Open-access “Exogenia” e “tolerância”: o duplo papel da mídia impressa na institucionalização da homossexualidade no sul de Moçambique pós-colonial (1975-2007)

“Exogeny” and “tolerance”: the double role of the print media in the institutionalization of homosexuality in post-colonial southern Mozambique (1975-2007)

RESUMO

No presente artigo, investigo historiográfica e etnograficamente, três jornais moçambicanos de grande circulação entre os anos de 1975 e 2007, no intuito de perceber como a imprensa do país tratou a questão da homossexualidade desde a independência. A partir da abordagem teórica proporcionada pela Antropologia da mídia, começo por uma contextualização da questão homossexual na imprensa de outros países africanos e pela contextualização histórica da imprensa moçambicana. Abordo cronologicamente os principais temas que foram desenvolvidos pela imprensa do país no tocante à dissidência sexual e de gênero. Concluo que a imprensa local, ao publicizar a homossexualidade de estrangeiros e não engajar em um discurso de ódio, reforçou a ideia da exogenia da homossexualidade em África e, diferente de outras nações africanas vizinhas, contribuiu para produzir um ambiente de tolerância para com a questão em Moçambique.

PALAVRAS-CHAVE: LGBT; África; imprensa; Moçambique; história

ABSTRACT

The article investigates, historiographically and ethnographically, three large-circulation Mozambican newspapers published between 1975 and 2007 in order to understand how the media used to address the homosexuality since independence. Based on the theoretical approach provided by the Anthropology of the Media, firstly it contextualizes the debate related to homosexuality in other African countries' press, secondly it provides a historical background of the discussion in the Mozambican media. Chronologically it approaches the main themes developed by the country's press regarding sexual and gender dissidence. As conclusion, by publicizing the homosexuality of foreigners and not engaging in hate speech, the local media reinforced the idea of the exogeny of homosexuality in Africa and, unlike other neighboring African nations, contributed to produce an environment of tolerance towards the theme in Mozambique.

KEYWORDS: LGBT; Africa; press media; Mozambique; history

INTRODUÇÃO

Quando se investiga a dimensão política e social da homossexualidade no continente africano, é possível encontrar alguns artigos que demonstravam a forte influência da imprensa em recentes crises nacionais de violência homofóbica (Awondo, 2012; Mwikya, 2013; Bompani e Brown, 2014; Mbaye, 2018). Estes textos tratam de veículos locais de comunicação como agentes ativos no que já fora chamado de “pânico moral” (Cohen, 2011; Miskolci, 2016; Rubin, 2018), especificamente na perseguição aos dissidentes sexuais e de gênero de seus respectivos países, inclusive denunciando individualmente cidadãos que tinham ou que se suspeitavam ter preferências homoeróticas (Awondo, 2016:109).

Tais cenários de violência midiática homofóbica em alguns países africanos diferiam da narrativa que encontrei tanto em etnografias sobre homossexualidade em Moçambique quanto com meus próprios dados de campo de que lá haveria uma espécie de maior “tolerância” da população (e da mídia) em relação à questão da homossexualidade. Certa tolerância aos homossexuais em Moçambique já fora constatada tanto por pesquisas de opinião (Dulani et al, 2016), quanto por pesquisadores de dentro (Chipenembe, 2018; Mugabe, 2019) e de fora de Moçambique (Miguel, 2019), inclusive em perspectiva comparada (Dulani et al, 2016; Santos e Waites, 2021). Assim sendo, ao que tudo indicava Moçambique jamais teria passado por crise semelhante de perseguição estatal e midiática como a que ocorrera em outros países cujos exemplos mais famosos são Uganda e Zimbábue, e o mais recente é a Tanzânia (O País, 5 dez. 2018).

Neste artigo darei enfoque à imprensa local pós-independência (1975-2007)1, com o objetivo de identificar se tal diferença com outros cenários de mídia do continente é factível e, assim sendo, qual seria o papel da imprensa moçambicana em contribuir na produção desta especificidade local.2 Ao fim, pretendo demonstrar que se a mídia moçambicana de fato se diferencia de várias outras do continente em relação ao tratamento dispensado aos homossexuais, ela - como tantas outras - colaborouparadifundir,durantealgumasdécadas,aideiadequeahomossexualidade era uma prática ou uma identidade exógena ao continente africano.3 Além disso, e fundamental, a mídia foi a instituição pública em Moçambique que primeiro parece ter transmutado a categoria de origem portuguesa “homossexualidade” de prática sexual à identidade, “institucionalizando-a”, nos termos de Mary Douglas (2007), e politizando-a.

Assim, este artigo se insere menos nos esforços de uma antropologia do gênero e da sexualidade, e mais nos de uma antropologia da mídia (Rothenbuhler, [s/d]; Osorio, 2001; Travancas e Nogueira, 2016). Parto de uma antropologia da mídia que está preocupada com as representações sociais de determinados assuntos e seu impacto naqueles que a consomem. Uma vertente recente da disciplina, cujos métodos, porém, são antigos.4 Não perdendo de vista que a mídia é apenas um dos produtos culturais consumidos simultaneamente a outros (Dickey, 1997: 416; Postill e Peterson, 2009: 338) e de que seu consumo não é passivo, darei especial ênfase à sugestão de Postill e Peterson de elaborar uma etnografia histórica da mídia, atento às transformações tecnológicas e não me limitando somente a uma análise de notícias atuais e seus impactos.

Autores como Campanella e Martineli (2010) revelam os motivos pelos quais tais reflexões teóricas propostas pela antropologia da mídia podem nos ser aqui cara se quisermos compreender o papel da mídia e dos seus discursos em um contexto de criação de “comunidades imaginadas” (Anderson, 1983) em um recente (e em andamento) projeto de formação nacional, como é o caso em Moçambique. Conforme analisam:

Anderson (1983) argumenta que a mídia impressa, em particular os jornais, foi capaz de criar uma noção de comunidade imaginada em que seus membros compartilham não somente uma língua comum, mas também o conteúdo e o próprio hábito cotidiano dessa leitura. Ou seja, o indivíduo começava a se imaginar fazendo parte de uma comunidade nacional, com uma história e características culturais comuns - mesmo que ambas tivessem sido elaboradas num passado recente. Considerando a predominância do nacionalismo enquanto sistema político no século XX, nada mais natural para os antropólogos do que analisar os meios de comunicação de massa na formação da estrutura política das sociedades em que investigavam (Campanella e Martineli, 2010: 4).

De acordo com Anderson (1983), a mídia - que tem idealmente por objetivo principal informar5 - produz o efeito nem sempre consciente ou perseguido de criar uma “comunidade imaginada”. Baseado em dados etnográficos, utilizarei a ideia do que chamo de um efeito não programado6 para defender o argumento de que a tradicional mídia impressa moçambicana se não estava pautando de maneira consciente um discurso de, por um lado, exogenia da homossexualidade em África e, por outro, de tolerância para com a mesma, foram esses os efeitos que colaborou para produzir e reproduzir na consciência nacional desde a década de 1980, quando rompeu o pacto de silêncio e começou a tratar do tema.

Pegando de empréstimo teorias do campo da comunicação, creio particularmente interessante pensar aqui no conceito de agenda-setting que, segundo Rabaça e Barbosa (2002), diz não apenas sobre o que pensar a partir das notícias veiculadas, mas afirmam "[...] que as notícias também nos dizem como pensar. Tanto a seleção dos assuntos que despertam a atenção como a seleção dos enquadramentos para pensar esses objetos” (:175, grifo do autor). Algo semelhante foi relatado pelo antropólogo Tom Boellstorff (2003) para o caso indonésio, que demonstra como os meios de comunicação em massa daquele país foram atores-chave na construção - de maneira não intencional - das subjetividades “gay” e “lesbi” desde a década de 1970 por lá:

Os meios de comunicação indonésios certamente não pretenderam estabelecer a possibilidade de subjetividades gays e lesbis, nem os programas importados que eles frequentemente retransmitiam; na verdade, eles raramente assumiram uma postura negativa em relação a posições de homossexuais e lésbicas. No entanto, são esses meios de comunicação de massa que, em um sentido muito real, possibilitaram subjetividades gays e lesbis, assim como as comunidades imaginárias nacionais que são tão socialmente eficazes em todo o mundo não poderiam ter existido antes de Gutenberg bater de ponta a ponta (Boellstorff, 2003: 229)

No caso moçambicano, os dados que disponho e as etnografias já realizadas (Souza, 2015; Chipenembe, 2018) também corroboram a visão de que para muitos homossexuais do país a mídia foi quem ofereceu o principal vocabulário no qual hoje eles se reconhecem e sob a qual criaram parte de suas subjetividades.

A mídia impressa em Moçambique

Antes de avançar nesta seção, uma questão teórica precisa ser ainda enfrentada. Em um documento de 1977, fruto do I Seminário Nacional da Informação, é dito que em Moçambique, à época, havia um contingente de 90% de analfabetos (Magaia, 1994: 115). Um quadro publicado pelo Jornal Notícias em 28 de maio de 1984, a que tive acesso, apontava que, dez anos após a independência, Moçambique ainda tinha uma taxa de 72% de analfabetos. Dados do último censo moçambicano, realizado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE, 2017), apontam que em 2007 esse número havia caído para 50,4% e, em 2017, para 39%. Uma diminuição considerável no pós-independência. Mas contando que saber ler não significa necessariamente comprar e ler jornais, poder-se-ia afirmar que esses números revelariam a limitação até os dias atuais do impacto da mídia impressa no dia-a-dia de grande parte dos cidadãos moçambicanos. No entanto, de acordo com a teoria two-step flow ou “teoria do fluxo comunicacional em duas etapas” de Katz (1957), os jornais teriam influência em massa mesmo em sociedades majoritariamente iletradas, uma vez que seus conteúdos seriam mediados por “líderes comunitários” e “formadores de opinião” letrados, via oralidade. Nesse sentido, torna-se fundamental compreender o que pensava e pensa essa elite midiática e seus consumidores nos rumos da nação.

Dito isso, voltemos à história. Com a independência do país, em 1975, a mídia, como todo o restante do setor privado em Moçambique, foi estatizada. De acordo com Mário (2016: 22), o partido único, Frelimo, estabeleceu o controle social sobre todo o setor por meio do Ministério da Informação. Assim sendo, “os meios de comunicação social dentro deste quadro eram considerados instrumentos de difusão da ideologia do partido único” (Mário, 2016: 22). E dessa visão compartilhavam muitos jornalistas à época: “se na altura da independência se fizesse uma pesquisa nas redacções, penso que a percentagem de apoiantes entusiásticos da Frelimo andaria perto dos 100 por cento” (Machado da Graça in: Mário, 2016: 22).

Ainda assim, haveria divergências pontuais entre os jornalistas e os interesses do partido no poder. Em razão disso, foi criado poucos anos depois um Conselho Editorial, “em que todos os directores e chefes de redacção reuniam-se semanalmente sob a orientação do Ministro da Informação”. E o mesmo autor prossegue: “Neste Conselho Editorial era definida a visão editorial através da qual todos os media deveriam abordar os principais assuntos nacionais e internacionais da actualidade” (Mário, 2016: 23, grifo do autor). No entanto, como veremos, parece que a homossexualidade nunca foi assunto principal na agenda da Frelimo e da revolução, razão pela qual abundam matérias sobre o assunto sem ter havido, ao que tudo indica, nenhuma censura a respeito.

Essa também parece ser a visão do escritor Mia Couto, diretor do Jornal Notícias a partir de 1981, e que, em entrevista a mim, explica que o momento era de muita tensão devido à guerra civil e à necessidade de criar uma unidade nacional. Nesse contexto, a homossexualidade simplesmente não era assunto relevante para o Estado. Para ele, havia assuntos mais urgentes, como a guerra. (Entrevista com Mia Couto, Maputo, 18 jun. 2018). Ao responder sobre a minha ideia de que a mídia em Moçambique parecia ter sido vanguardista no tratamento positivo dado ao assunto da homossexualidade, ele acaba revelando não só as origens liberais dos jornalistas daquele momento (jovens estudantes simpáticos à Frelimo recrutados da antiga metrópole no momento da independência), como o quanto foram, neste assunto, dissidentes não apenas do senso comum da população moçambicana, quanto do próprio partido.7

Todavia, a moralização da sexualidade aparecia em diversos discursos do então presidente Samora Machel. Nesse sentido, cito um trecho de pelo menos um desses discursos, realizado em 1976 em Maputo e dirigido a toda a juventude do país:

Assim, aproveitando-se da tendência dos jovens para se divertirem, os colonialistas esforçaram-se por difundir um tipo de diversão baseado no consumo de álcool e da droga, na promiscuidade sexual, no desprezo pela cultura nacional e na imitação cega dos valores decadentes da burguesia estrangeira. Surgiram deste modo os “parties”, ou sejam as festas ao bom estilo americano ou sul-africano onde eram correntes a bebedeira, a droga, a promiscuidade e aberrações sexuais; as sessões de “passa” ou sejam as reuniões de drogados onde jovens inexperientes eram iniciados no mundo da droga; o chamado “amor livre”, directamente importado das democracias burguesas, que outra coisa não é, senão uma abjeta promiscuidade sexual com o desprezo mais profundo pela mulher;[...] (“Juventude: o centro da batalha” Revista Tempo, n. 325, 26 dez. 1976)

Mesmo com uma incerta alusão à homossexualidade, eu argumentei com Couto e com Ba Ka Khosa, outro grande escritor moçambicano e também interlocutor nesta pesquisa, que, diferente dos países vizinhos, a Frelimo não havia enfatizado os homossexuais como inimigos declarados do Estado. Citei os discursos de Samora Machel em que os homossexuais não foram elencados - diferente dos violadores, dos ladrões etc. - como inimigos internos a se combater.8 Para a Frelimo, Ba Ka Khosa disse que a homossexualidade, na verdade, era um “não problema”, “não era uma questão”, apesar de mencionar, assim como Couto já o tinha feito, que Samora mandou Fernando Ganhão, o primeiro reitor da Universidade Eduardo Mondlane e reconhecido por muitos como homossexual, casar-se com uma mulher.

Ba Ka Khosa falou de uma “surdez do Samora”, no sentido de que apesar de ter homens gays próximos, como o próprio Fernando Ganhão e o radialista que foi seu adido de comunicação9, entre outras ainda hoje vivas, essas pessoas para Samora eram pessoas normais, aliadas; suas sexualidades não eram um problema para o qual não houvesse solução. Eles só precisavam rezar a cartilha do “homem novo” e por isso foram “obrigados” a se casar com mulheres. Sobre essas pessoas, Ba Ka Khosa diz que eram reprimidas, silenciadas, não tiveram espaço de abertura, mas que também nunca foram violentadas fisicamente10 - diferente do que teria ocorrido pela mesma época, por exemplo, no regime ditatorial brasileiro (Quinalha, 2018: 36).11 Por último, Ba Ka Khosa diz que, em Moçambique, a homossexualidade sempre existiu, mas não a sua manifestação pública.12 Revelado o contexto mais amplo do lugar da homossexualidade na política nacional pós-independência, voltemos ao jornalismo moçambicano.

Magaia afirma que entre as esperanças dos jornalistas dos anos 1980 estava a de fazer um jornalismo propriamente africano, com a perspectiva e com o conteúdo africanos (Magaia, 1994: 61). A vontade geral era, pelo menos idealmente, a de se ver independente também das agências de notícias internacionais, como a LUSA, Reuters etc. Todavia, o que se percebe ao longo da década é que as agências internacionais continuaram sendo fundamentais para que o leitor moçambicano acessasse o mundo estrangeiro. Nos jornais que analisarei nas próximas seções, é significativo o volume de matérias internacionais apenas transcritas dessas agências. As razões eram várias: 1) incapacidade econômica de manter correspondentes internacionais; 2) falta de conhecimento amplo dos jornalistas moçambicanos sobre questões internacionais, e as mais prosaicas; 3) na falta de conteúdo, as notícias que chegavam dos telexes eram rapidamente traduzidas (quando não vinham de agências lusófonas) e publicadas como tapa-buracos.

Quem me contou isso foi Miguel, um veterano jornalista moçambicano, gay e ativista LGBT. Em entrevista ele contava que muitas das vezes, por “preguiça e comodismo”, os radialistas apenas copiavam as notícias que chegavam dos telexes. De certa forma, isso demonstra uma falta de zelo ou despreocupação com as notícias internacionais e, certamente, afetou inclusive, os conteúdos relativos à homossexualidade que chegavam de fora. Para Miguel, a homossexualidade entrava nos jornais como um fait diver, ou seja, como uma notícia que distensionaria notícias supostamente mais “pesadas” ou mais graves, tais como “Os EUA bombardearam o Iraque” ou o assassinato de uma pessoa qualquer (Entrevista com Miguel, Maputo, 7 set. 2018). Eu então lhe questiono sobre o fato de a homossexualidade ser considerada um fait diver em Moçambique, mas sem a carga negativa. Sem discordar e baseado em sua experiência profissional como radialista, Miguel revelou também um certo descaso com notícias importadas de uma forma geral, independentemente do conteúdo específico.

- [...] Diariamente, eu chegava na redação, tínhamos duas fontes: a máquina do telex, que vinha os lençóis enormes das agências noticiosas internacionais, agências Francepress, [...] Que constantemente estavam a despejar notícias e tinha um setor, chamado “Setor de Escuta”. Eu gravava as notícias da BBC, da Voz da América, da Deutsche Welle, da Rádio França Internacional e trazíamos para a redação os cassetes com os noticiários. O que que nós fazíamos? Líamos a notícia no telex, tínhamos o gravador, usávamos os computadores, olhávamos as notícias e literalmente reproduzíamos em português. [...] Sem fazer a editorialização muito da notícia. [...] tudo o que não era produto nacional tinha que encher chouriço literalmente. “Temos uma página que precisamos descer. Onde é que vamos arranjar?” [...] E copy and paste. [...] “Porque tá aqui a notícia, está feita, pra quê o trabalho de estar a reescrever, dar um outro ar? Não!” (Entrevista com Miguel, Maputo, 7 set. 2018)

Pergunto então se tal descaso com o conteúdo das notícias, principalmente as internacionais, não era perigoso no contexto de doutrinação ideológica socialista pretendida pela Frelimo naqueles tempos e Miguel me respondeu que tal preocupação só se dava na capa do jornal e nos cadernos de política. As matérias do caderno “Recreio-Divulgação”, onde figurava a maioria das notícias sobre homossexualidade, eram, segundo ele, “para encher” o jornal.

Já se encaminhando para o fim da guerra civil e do período socialista, Moçambique abriu seu mercado e promulgou sua primeira Constituição multipartidária. Noanoseguinte, osmoçambicanosacompanhariam apromulgação da nova Lei de Imprensa, que basicamente regulamentava o setor em novas bases pós-coloniais, liberais e democráticas. Segundo Mário, após a Lei de Imprensa, “foram desmanteladas as principais estruturas e mecanismos através dos quais o Estado exercia o controlo político directo sobre a comunicação social nacional” (Mário, 2016: 28). O autor conclui que o ambiente era então de tolerância política (Mário, 2016: 38).

Entretenimento e repressão inauguram o tema da homossexualidade na mídia impressa moçambicana

A partir da dica de António Sopa, talvez o maior especialista vivo dos arquivos históricos de Moçambique13, fui atrás de notícias na década de 1970, mais especificamente nos anos de 1974 e 75 - quando na transição do período colonial para o novo regime independente instaurado pelo governo comandando pela Frelimo - sobre a expulsão de padres católicos, alguns acusados de “práticas homossexuais”. Encontrei então uma notícia datada de 30 de outubro de 1975, em que um padre italiano teria sido expulso de Moçambique supostamente por esse motivo (Jornal Notícias, 30 out. 1975: 3).

Sopa me alertou, no entanto, que a perseguição a padres católicos no novo regime instaurado pela independência moçambicana extrapolava a questão homossexual ou a pedofilia de que eram acusados. Como é possível averiguar na bibliografia relativa ao tema (Rocca, 1998), apesar de diversos líderes da Frelimo terem sido formados em instituições cristãs, o governo de Samora Machel teve diversas rusgas com a Igreja Católica de Moçambique nesse período, considerada por muitos partidários como reacionária por ter apoiado o regime colonial. O próprio presidente, em um discurso em outubro de 1979, alegou que a Igreja Católica abençoaria, nos campos de concentração, “a prostituição e a homossexualidade” e “todos os métodos de despersonalizar o nosso Povo, todas as formas de aperfeiçoar a imoralidade” (Machel, 1979: 9-10). Quando abordei o tema da dita tolerância nesse período com Miguel, o mesmo apresenta uma hipótese concorrente sobre o (não) papel das igrejas em relação à opressão aos homossexuais à época:

[...] uma das forças mais reacionárias deste país ou de qualquer país foi abafada, que foi a Igreja. A Igreja Católica, igrejas protestantes, mulçumanas Em muitos países são as vozes que alimentam o movimento contra [direitos LGBT]. Aqui não tinha mais. Não tinha um advogado contra, né? A Igreja estava preocupada em sobreviver como igreja. (risos) [...] Querias aí que ninguém lhes chateasse, então também não vocalizavam grandes agendas. [...] Ao contrário de países como Zâmbia, Uganda, Malawi. Aí já é o centro da reação. Aqui, as igrejas eram mais marginalizadas do que nós [gays] até. Era pior ser cristão do que ser gay. (risos) Era um bocado maior aos olhos da liderança [política] na altura. Então, epa, eu creio que terá também contribuído um pouco [para o ambiente de tolerância aos homossexuais]... Não houve, portanto, um discurso político contra [a homossexualidade].

(Entrevista com Miguel, Maputo, 7 set. 2018)

O papel das religiões na conformação da tolerância moçambicana já foi analisado por mim e por outros autores (Miguel, 2019; Santos e Waites, 2019). Relevante, no entanto, é que quando os governos, tanto colonial quanto pós-colonial, reprimiram práticas homossexuais, isso teria sido muito mais uma desculpa, um adendo acusatório, para riscos mais fundamentais de cunho político-institucional para o regime colonial e para a revolução, do que propriamente um intento deliberado de uma força de conservação da heteronorma pelas autoridades no poder (Miguel, 2021a). Isso pode ser aqui percebido em uma outra notícia desse mesmo jornal, do ano anterior. Nela é possível ver a chamada para um concurso de travestimento, no contexto de um baile de carnaval de Lourenço Marques, inclusive com uma provocativa ilustração, em que não se tem notícias de ter havido repressão ou censura estatal.14

Figura 1
| . "Carnaval no Malhanga", Jornal Notícias, 8 fev. 1974.

É possível que estas performances no carnaval de Lourenço Marques não passassem de um “entretenimento hétero de luxo”, ou “high het entertainment”, nos termos de Judith Butler (1993: 85). Ainda conforme Butler, tais performances confirmariam as fronteiras entre as identidades “hétero” e as “não-hétero” como “um escape ritualístico para uma economia heterossexual que precisa constantemente policiar suas próprias fronteiras contra a invasão do queer” (Butler, 1993: 126). Em outras palavras, é possível que essas noites de travestimento em Lourenço Marques nada tivessem a ver com homossexualidade ou com expressões identitárias conscientes de subversão de gênero.15 No entanto, concordo com Araújo quando disse que “para homens que se identificam como gays, este também pode ter sido um momento para brincadeiras e experimentação” (2021: 140).

Meu argumento principal é que o aparente baixo índice de repressão a esta e a outras manifestações de práticas homossexuais e de travestimento - que tive conhecimento tanto a partir de registros escritos como de depoimentos pessoais - parece indicar que a homossexualidade nunca (ou quase nunca) esteve no horizonte como inimiga declarada do Estado moçambicano e, portanto, alvo direto de suas investidas de controle.16

Por último, é importante marcar que a imprensa de Moçambique rompia com o silêncio que vigorava até então e inaugurou uma real publicização do fenômeno, descrevendo-oinicialmentecomoumapráticasexual. Ouseja, nomomentoimediato à independência, ela trata da homossexualidade como ato e não como identidade - em termos relativamente semelhantes ao ocorrido na Europa do século XVII, onde se promoveu a conversão da “sodomia” para o “homossexual” (Foucault, 1988: 44; Bleys, 1995: 156-60). O tal padre italiano da notícia apresentada anteriormente é dito ser expulso não por ser homossexual, mas por “actos homossexuais”. Isso é fundamental para perceber a futura transição politizadora que o discurso midiático fará ao começar adjetivar os sujeitos que praticam o homoerotismo como homossexuais.

Na década de 1980 pré-SIDA, a inflexão de prática à identidade

As notícias sobre a questão só reapareceriam em 1981, com uma pequena nota no caderno Internacional sobre a despenalização da homossexualidade na França (Jornal Notícias, 25 dez. 1981: 7). Esta notícia, todavia, representa diversas inflexões não apenas no tratamento do fenômeno da homossexualidade pelo jornal quanto no próprio jornal. Ocorre que depois da Independência, após os jornalistas finalmente se livrarem da censura colonial, o jornalismo moçambicano se viu diante do proselitismo revolucionário - especialmente no Jornal Notícias, um dos principais veículos de comunicação do novo governo com o povo. Se os jornais tinham servido, em grande parte, até então, para a propaganda colonial, eles agora tinham sido capturados pelo que Magaia chama de “revolucionarismo” (2000: 40), em outras palavras, para propaganda do novo regime socialista independente.

Em documento do I Seminário Nacional da Informação, de 1977, mencionado anteriormente, é possível extrair um resumo crítico daquele momento: “O jornalista transformou-se no funcionário da Informação. O seu trabalho consiste em apanhar a fotografia oficial, meter o discurso na íntegra e puxar o título a palavra de ordem” (Honwana apud Magaia, 1994: 42). Minha impressão ao ler o Jornal Notícias nos anos imediatamente seguintes à Independência (ou seja, entre 1975 e 1980) era exatamente esta: um jornal “chapa-branca”, para usarmos um termo brasileiro. Nesse sentido, após 1980, percebi uma mudança gráfica e conceitual do Jornal Notícias, da qual essa matéria sobre a despenalização da homossexualidade na França já era consequência. O jornal não mais trazia apenas textos de doutrina marxista e panafricanista, mas também trazia o fait diver, o inusitado, o entretenimento e o humor (e muitos deles provenientes do mundo capitalista).

É a partir daí que surge um jornalismo em Moçambique que, apesar de relativamente refém, agora das diretrizes de um novo governo e uma nova ideologia (Magaia, 1994: 45-6), buscava ser mais atrativo aos seus leitores. E essa atratividade seria buscada, entre outras estratégias, no caderno Recreio-Divulgação, que tratava de entretenimento, curiosidades e costumes. Por exemplo, no dia 9 de agosto de 1982, foi noticiado com algum sensacionalismo que “Um homem deu à luz”. Segundo o jornal, “uma história incrível, mas verídica”. Ao ler a reportagem, percebe-que a pessoa é um sujeito que chamaríamos hoje de “intersexo”, provido, neste caso, da capacidade de gestar uma criança. Tal matéria, entre outras, demonstra como o jornal buscou publicar notícias que envolviam questões de sexualidade e gênero, na medida que elas de alguma forma eram interessantes o suficiente para despertar a curiosidade dos leitores e, assim, alavancar suas vendas (Jornal Notícias, 9 ago. 1982).17

Como é possível depreender a partir da sequência cronológica que venho seguindo, a primeira notícia que substantiva o fenômeno homoerótico é aquela que trata da despenalização da homossexualidade na França, pois lá o jornal moçambicano assumia, consciente ou não, que houvesse “homossexuais”. Como veremos, essa transição de discurso e de abordagem da questão, de prática à identidade, marcará a tônica em quase cem porcento dos casos que o jornal passa a relatar.

É importante ainda ressaltar que tal notícia é a que primeiro politiza a homossexualidade para o público leitor moçambicano, ao demonstrar que sua prática havia sido despenalizada alhures. A conquista desse direito de existir dentro da lei inaugura uma série de outras notícias dos jornais moçambicanos que demonstrarão direitos sendo adquiridos por diversos homossexuais estrangeiros. E aqui também temos o início de um privilégio editorial dado aos diversos casos envolvendo homossexuais estrangeiros que, de certa forma, construirão e reforçarão um discurso em Moçambique - especialmente para os leitores menos cosmopolitas e não partícipes do “mundo homossexual” (Boellstorff, 2005) - de que a homossexualidade é um fenômeno exógeno, dos estrangeiros, e dos brancos, como é possível verificar em diversos relatos etnográficos recentes em Moçambique (Souza, 2015; Chipenembe, 2018; Miguel, 2020).

O advindo da SIDA e o (não) impacto no discurso sobre a homossexualidade

Seguindo outros grandes veículos de comunicação pelo mundo, a edição de 22 de abril de 1983 do Jornal Notícias, em sua sessão Recreio - Divulgação noticiava: “estranha doença vitima [sic] norte-americanos”. No corpo da matéria, esclarecia-se: “Detectada pela primeira vez nas comunidades homossexuais de Nova Iorque, S. Francisco e Los Angeles, a doença espalhou-se por 35 estados norte-americanos e 16 países incluindo a França, a Alemanha Federal e a Dinamarca”. O jornal explicava a origem da doença no paciente número um: um “homossexual masculino de 31 anos que apresentava uma infecção na garganta”. Contudo, corretamente retificava que “embora 72 por cento dos casos digam respeito a homossexuais, os sintomas parecem estar a propagar-se em outros grupos da população, como os consumidores de droga injectáveis, hemofílicos e pessoas que sofreram transfusão de sangue” (Jornal Notícias, 22 abr. 1983).

Ao contrário do que aconteceu em diversos países ocidentais, que estimularam um forte discurso sobre o “câncer gay” e uma ênfase na culpa, com consequente estigmatização de homossexuais como causadores da epidemia de HIV/Aids18, analisando o material, é possível dizer que o mesmo não ocorreu em Moçambique. A exceção é formada por dois materiais: (a) uma notícia de 25 de junho de 1983, reportando os dados britânicos sobre a doença, cujo título é “Doença venérea dos homossexuais” (Jornal Notícias, 25 jun. 1983b: 10) e que contém em sua redação o trecho, “a chamada ‘doença dos homossexuais’”, e (b) uma foto publicada pelo jornal Zambeze, já em 2007 (Jornal Zambeze, 28 jul. 2007: 13). Não é possível encontrar, nas dezenas de notícias que encontrei, uma correlação acusatória e pejorativa entre homossexualidade e a Sida.19 O que se segue daí, são pequenas ou médias notas sobre o desenvolvimento da epidemia em diversos países, começando pelos ocidentais - o que, de certa forma, acompanha o curso histórico-geográfico da própria epidemia (Jornal Notícias, 10 nov. 1984: 4; Jornal Notícias, 3 dez. 1984: 4; Jornal Notícias, 25 jan. 1985: 4; Jornal Notícias, 7 jun. 1985; Jornal Notícias, 18 dez. 1985: 5; Jornal Notícias, 7 jun. 1986: 5; Jornal Notícias, 31 dez. 1987: 4). Em uma e outra, há o dado de uma prevalência da doença entre homossexuais em cada país tratado, mas no geral sem julgamentos morais. Há também um volume significativo de notícias, especialmente depois de 1985, que relatam o desenvolvimento de possíveis vacinas e cura para a síndrome.20

Em meio às notícias sobre a Aids que se revezam entre os cadernos Internacional e Recreio-Divulgação, é possível encontrar outras que abordam a homossexualidade. Importante ressaltar também que sempre e até aqui, os casos se dão em contextos nacionais fora de Moçambique. Ainda que nem sempre de maneira positiva, tampouco festiva. É o caso, por exemplo, de uma notícia que discute um relatório de direitos humanos da ONU sobre a homossexualidade dos eunucos na Índia e no Paquistão (Jornal Notícias, 17 set. 1983: 4). Diz-se que, segundo tal relatório, “Entre 300 000 a 500 000 homens são homossexuais não por terem nascidos anormais, mas assim se tornaram por terem sido raptados quando ainda crianças por seitas de eunucos”.21 Tal ideia de que a homossexualidade não só não seria inata quanto seria estimulada e imposta pelo sequestro de crianças parece ter ganho uma enorme ressonância em contextos africanos (Kaoma, 2009; Mwikya, 2013) e alguma em Moçambique (Bagnol, 2009: 20).

Em relação a esta e a outras notícias há para este pesquisador uma limitação de método na checagem se o texto da matéria é simplesmente uma tradução de uma eventual notícia transcrita de agências internacionais ou se é de autoria de algum jornalista do próprio jornal (particularmente nesta dos eunucos, não é dito, como em outras, que se trata de reprodução de alguma agência de notícias). Logo, fica impossível atribuir a autoria da linguagem e do conteúdo utilizados. Mas importa aqui perceber que os discursos e conceitos produzidos e/ou reproduzidos pelos jornais não são uníssonos e, se tentarei argumentar pela produção de uma certa “tolerância” do jornal no pós-independência - e mais do que isso uma visão positivada - para com esta temática ao longo das últimas décadas, seria leviano dizer que os jornais moçambicanos, por vezes, também não reproduziram visões estigmatizantes ou mal-informadas sobre o assunto.

Em notícia divulgada em 1985, descobrimos que a “SIDA chega à Ásia e provoca pânico” e que “Em toda a Ásia, o ‘SIDA’ é considerado um problema de saúde pública não apenas restrito a homossexuais” (Jornal Notícias, 25 abr. 1985: 4). Com recursos extremamente precários para fazer uma testagem em massa em sua população, até 1986 Moçambique ainda não havia feito qualquer recenciamento sobre a epidemia de HIV/Aids em seu próprio território (Jornal Notícias, 3 dez. 1990: 4). Todavia, no mesmo ano, o Jornal Notícias publica a primeira notícia da Aids não só em território africano, mas vizinho à Moçambique, na matéria “Casos de SIDA detectados no Zimbabwe” (Jornal Notícias, 18 mar. 1986:5). E dela se seguem outras sobre os demais vizinhos, como Tanzânia (Jornal Notícias, 21 jun. 1986: 1) e África do Sul (Jornal Notícias, 20 jun. 1987: 5). Aliás, é nesta matéria sobre a Tanzânia (“Pesquisa sobre SIDA na Tanzania”) que, pela primeira vez (e até onde consegui investigar, única), a palavra “homossexualidade” aparece na capa do Jornal Notícias.

Figura 2
| Reportagem “Pesquisa sobre a Sida na Tanzânia, Jornal Notícias 21 jun. 1986.

Mas foi apenas em 1988, portanto antes da queda do Muro de Berlim, que aparecemno Jornal Notícias, matériassobrehomossexualidadeemdoisimportantes países do bloco socialista, China e Rússia, que até então também pareciam bastante conservadores em explicitar e debater questões relativas ao tema (Jornal Notícias, 12 nov. 1988: 4; Jornal Notícias, 29 dez. 1988: 4)22. Em abril de 1989, seria a vez de publicar matéria sobre a primeira cirurgia de redesignação genital na então Iugoslávia (Jornal Notícias, 25 abr. 1989: 4).

Se em 1988 o governo chinês já admitia “a existência de homossexuais” e cineastas soviéticos já produziam filmes sobre a questão homossexual de jovens russos, o assunto era quase invisível em Moçambique e práticas homossexuais no país só apareceriam no Jornal Notícias timidamente um ano antes, e sem qualquer destaque.

Práticas homossexuais locais agora sim expostas

Em uma nota policial dentro do caderno Cidade de Maputo da edição de 3 de dezembro de 1987 do Jornal Notícias, é possível ler o seguinte título “Sentenciado por atentado ao pudor”.

Figura 3
| “Sentenciado por atentado ao pudor”, Jornal Notícias, 3 dez. 1987.

A matéria apresentou o caso de Francisco Xituco Sitoe, um moçambicano de 40 anos, provavelmente tsonga (pelo que se pode supor a partir de seu sobrenome)23, acusado de abusar de dois meninos menores de idade no bairro Polana-Caniço A, na cidade de Maputo. De acordo com o jornal, o acusado teria tido “práticas homossexuais” com os menores em troca de comida. Esta parece ser a primeira vez, desde as fichas policiais da década de 1940 (Miguel, 2021a) que se registra na escrita, em Moçambique, práticas homossexuais de moçambicanos, ainda que agora se trate de estupro de menores.

Curiosamente, apesar do jornal já ter, desde 1981, incorporado a homossexualidade como identidade, quando trata pela primeira vez de um caso local, a expressão “práticas homossexuais” volta a ter prevalência na descrição do caso. Tal fato poderia ser encarado como mero acaso ou fato isolado, mas apenas se não nos dispuséssemos uma leitura e análise de todo o discurso do jornal sobre homossexualidade durante essas décadas e não conhecêssemos a narrativa da exogenia da homossexualidade em África. Por exemplo, já nos anos 2000, mais precisamente em 2001, o Jornal Savana publicou uma matéria com o título “Homossexualismo, suborno, superlotação e muito mais”, em que revivendo uma antiga constatação de Junod (2009: 391), denuncia as péssimas condições do sistema carcerário em Moçambique (Jornal Savana, 6 abr. 2001: 17).

Curiosamente, o “homossexualismo” presente nas cadeias moçambicanas não qualifica ninguém como “homossexual”, e o fenômeno é novamente associado ao abuso de menores.24 Diz a matéria: “Outra preocupação apresentada pelos reclusos por nós contactados é a de homossexualismo, já que existem menores naquela cadeia que estão sujeitos a assédio sexual por parte dos mais velhos”. E em outro momento da reportagem, percebemos que práticas observadas ainda no período colonial25 permanecem atuais:

[...] segundo o nosso interlocutor, “há casos de homossexualidade, o que nos preocupa bastante. Tentámos resolver o problema por diversas vezes, separando os reclusos de menor idade, entre 16 e 21 anos, colocando-os em celas independentes. Só que, mesmo assim, há aqueles contactados durante o dia, uma vez que não estão fechados, o que facilita a prática de homossexualismo. Dentro das celas existem estruturas montadas, para resolver problemas que acontecem entre eles, e caso não consigam resolvê-los passam para as estruturas prisionais”.

Para além do claro argumento faut de mieux para a homossexualidade prisional, minha hipótese é que a demora da mídia moçambicana em apresentar casos de homossexualidade no país contribuiu para criar a ideia - ainda atual - de que a homossexualidade era algo estrangeiro. E, quando finalmente evidencia “práticas homossexuais” de nacionais, especialmente de sujeitos negros, estes não podem ter uma “identidade homossexual”, mas apenas ter praticado um ato, diga-se de passagem, marginal, atípico, quando não criminoso. É como se, para os jornais, o “dispositivo da sexualidade” (Foucault, 1988) não estivesse plenamente instalado entre os sujeitos nacionais africanos, e tais identidades não fossem (ainda) possíveis aos mesmos.

A explosão de notícias

Analisando as notícias a partir do pico de 1987 até 1994, pode-se notar uma ênfase sobre a questão da epidemia de Aids (38 notícias) e direitos políticos dos homossexuais (35), mas também sobre o mundo das celebridades (17) e outras (18). As notícias sobre Aids são as mais variadas: celebridades com o vírus HIV; dados estatísticos nos diversos países sobre a epidemia; novas pesquisas sobre a cura da doença etc. No que tange ao que chamei de “direitos políticos”, o jornal noticia os direitos de pessoas gays ou trans em outros países em adentrarem o exército; de postularem a adoção de crianças e métodos de inseminação artificial, assim como cirurgias de redesignação genital; do direito ao casamento, à pensão por morte, de se organizarem politicamente etc. Sobre as celebridades, é possível encontrar uma concentração de notícias sobre os escândalos de pedofilia homossexual envolvendo Michael Jackson e especulações sobre sua sexualidade; e escândalos envolvendo drogas e as vidas sexuais de Elton John, Madonna e Freddy Mercury, ícones pop/ rock da década de 1980.26 Na categoria “outros”, incluí crimes contra indivíduos assumidamente LGBT, como casos de assassinato; a ordenação ou expulsão de padres gays em igrejas pelo mundo etc.

Nesse período, o Jornal Notícias reproduzia de agências internacionais como a LUSA e outras, matérias cujos debates ainda hoje são bastante atuais, inclusive respeitando, às vezes, a designação de gênero na linguagem. Como o caso do esquiador austríaco Erik Shinegger, que ao transicionar de gênero decidiu entregar a medalha ganha no passado: “Ganhei a taça do mundo como mulher, mas ainda sem ter bem a noção disso. Eu era um homem, por isso a medalha não me pertence - disse Erika Shinegger agora casado com uma austríaca e já com uma filha” (Jornal Notícias, 22 nov. 1988: 4, grifo meu). O jornal também noticiou, em seu caderno Recreio-Divulgação do dia 19 de dezembro daquele ano, um caso da Dinamarca, que viria a ser o primeiro estado nacional do mundo a permitir a união civil entre pessoas do mesmo sexo (Jornal Notícias, 18 nov. 1988: 4), assim como a primeira celebração de casamento gay que se tem notícia na história da China (Jornal Notícias, 9 mar. 1989: 4). O jornal repercute ainda estudos científicos sobre as origens biopsíquicas e sociais da homossexualidade, assim como seus dados estatísticos (Jornal Notícias, 27 jan. 1989: 4; Jornal Notícias, 15 fev. 1989:4).

Por último, não posso deixar de notar a abordagem do jornal em todas as vezes em que o tema da Aids era tratado no continente africano: nele, Aids não era (quase) nunca correlacionada à homossexualidade. As notícias, fossem as escritas pelo próprio jornal ou as reproduzidas das agências internacionais, não estavam erradas em apontar que, de fato em África, a via de transmissão sexual do HIV era predominantemente heterossexual. Nesse sentido, há uma notícia sobre Uganda onde se pode ler o seguinte trecho: “Segundo Sam Okware, os casos de transmissão heterossexual ascendem a 90 por cento enquanto a transmissão de mãe para filho é de apenas 10 por cento” (Jornal Notícias, 20 abr. 1989: 4). Ou seja, de acordo com o dado percentual inexistiria transmissão homossexual em Uganda.27 Tal discurso presente nestas e em outras matérias do Jornal Notícias sobre Aids em África colaborou para reforçar um antigo “mito” sobre a exogenia da homossexualidade no continente (Mott, 2005).

O que importa para o argumento, no entanto, é: 1) demonstrar a quantidade de matérias relativas ao tema da homossexualidade (e assuntos correlatos) veiculadas pelo Jornal Notícias neste período, em que percebo em sua maioria uma neutralidade, por vezes uma positividade, mas raramente um discurso condenatório da prática ou da identidade homossexual; 2) demonstrar a evidente subnotificação do fenômeno em Moçambique já que até 1994 temos apenas uma notícia sobre um moçambicano negro preso por abuso de menores, naquela ocasião vinculada como “práticas homossexuais”.

Se como em outros regimes pós-coloniais, houve uma explosão de notícias sobre homossexualidade a partir dos anos 1980 (Boellstorff, 2005: 65-6), em Moçambique, diferente de outros países, essa explosão de notícias só muito tardiamente incluiria os próprios cidadãos nacionais. Assim, espero ter também demonstrado que se até 1994 a imprensa moçambicana não adere a um discurso de ódio e condenação sobre a homossexualidade (pelo contrário, divulga diversas pautas políticas do recente movimento LGBT pelo mundo); por outro lado, ela praticamente não divulga o fenômeno em seu próprio país. Sugiro que, assim, a imprensa nacional moçambicana foi fundamental tanto para reforçar um discurso de tolerância em relação à homossexualidade quanto para colar o fenômeno ao estrangeiro e, no limite, aos brancos.

A condenação africana e a “tolerância” moçambicana

Em 1995, uma matéria do semanário Savana trouxe a figura de “Mimi: maria rapaz de Manjacaze”, que jogava basquetebol “com a mesma destreza e capacidade de encestar igualzinha à dos rapazes” (Jornal Savana, 8 maio 1995: 20). Como já expliquei em outra oportunidade (Miguel, 2021c), “Maria-rapaz” é uma expressão de origem portuguesa ambígua que em meu trabalho de campo na Província de Maputo vi adquirindo pelo menos dois significados: Ela pode tanto designar uma mulher que tem hábitos, trejeitos ou gostos masculinos (na maior parte das vezes, em um sentido elogioso quanto à força e bravura daquela mulher), como pode ser usada para, pejorativamente, acusar um homem de ser afeminado. A reportagem acima parece fazer o primeiro uso. O que demonstrarei a seguir é que se a mídia moçambicana, no geral, era receptiva ao fenômeno da subversão de gênero, da homossexualidade e sua linguagem, jornais de outros países não o foram.

Quase três meses após a publicação da história daquela “maria-rapaz”, o Jornal Notícias estampa em seu caderno Internacional a seguinte manchete: “Mugabe condena homossexualidade” (Jornal Notícias, 3 ago. 1995: 11). O ano de 1995 foi um marco para uma série de discursos de líderes africanos - muitos deles lideranças de países vizinhos a Moçambique - contra a homossexualidade. Entre eles, o presidente zimbabuano Robert Mugabe tornou-se o mais ilustre africano a disseminar um discurso homofóbico oficial ainda por pelo menos duas décadas, mas foi seguido por diversos outros líderes políticos e religiosos locais (Kaoma, 2009). Em 1996, Mugabe voltou a atacar os homossexuais e o semanário moçambicano Savana repercutiu o acontecimento (Jornal Savana, 8 mar. 1996: 23).

Em 14 de junho do mesmo ano, um artigo de opinião de autoria de Filemão Limão - que aparentemente trata-se de uma carta dirigida a um tal Padre Jucundo - foi publicado no jornal Savana. Com o título “Não marginalizemos os homossexuais”, o autor discute, a partir da perspectiva católica, qual deve ser o tratamento dispensado pelas pessoas aos homossexuais. O artigo é construído na já conhecida máxima paternalista católica “Deus ama o pecador e não o pecado”, mas preocupa-se em demonstrar diversos dados científicos que comprovariam a impossibilidade de um diagnóstico tanto bio quanto sociológico sobre a origem da homossexualidade. Depois de apresentar tais dados, o autor prescreve:

As diretrizes da Igreja Católica são claras: “Os homossexuais têm de ser acolhidos com compreensão e ajudados na esperança de poder ultrapassar as suas dificuldades pessoais e a sua inaptidão à vida social”. O termo compreender não quer dizer compadecer; aqui, ao invés, tem o sentido latino de “abranger, abraçar tudo e todos”, tendo em conta as condições subjetivas das pessoas, não apenas por razão de caridade, mas de verdadeira justiça. É a própria ciência que hoje em dia nos ensina que a homossexualidade é uma realidade muitíssimo complexa. Cada vez que nós nos encontramos com um homossexual temos que discernir que estamos em frente de um irmão, aliás um “tu” que podia ser um “eu” com grilhões que podiam ser meus. Todavia, se ele chega a conhecer seu estado de doença moral, e não procura satisfações inaturais, pode participar à edificação da casa comum. Pelo contrário não concordo com uns partidários dos direitos humanos que querem dar ao “par homossexual” reconhecimento jurídico e o direito de ter filhos por meio de novas técnicas de fecundação artificial[...]” (Limão, Jornal Savana 14 jun. 1996: 8).

O que este artigo demonstra é uma visão que, apesar de negar direitos reivindicados pelas pessoas LGBT alhures, como o casamento e a adoção, não nega a humanidade dos homossexuais tampouco os condena à inexistência - como já parecem propagar diversas lideranças estrangeiras, vizinhas a Moçambique, a maioria delas de formação protestante e mulçumana. Não à toa, o catolicismo, seria acusado durante os últimos séculos de ser complacente com a homossexualidade (Bleys, 1995; Moodie e Ndatshe, 1990) e esta seria uma hipótese-chave de alguns autores para a maior tolerância da homossexualidade no país (Santos e Waites, 2019). Mas o mais importante aqui é perceber que enquanto no contexto da África Austral surgiam discursos de extermínio, que culminariam no encarceramento ou execução de pessoas LGBT nos anos 2000, em Moçambique o que se percebe é uma situação ou de silêncio ou de apaziguamento do conflito, característico da moralidade que reprimiu fortemente, desde o período colonial, até os dias de hoje, as manifestações públicas e organizadas de contestação social, que de forma nenhuma se restringem à questão homossexual (Miguel, 2021b).

Meses depois, o presidente zimbabuano Robert Mugabe entrou novamente em uma polêmica ao proibir que expositores LGBT participassem da Feira do Livro da capital Harare em 1997. E a polêmica só se agrava no Zimbábue. Com o título “Xenofobiasexual”, o texto do jornalista moçambicano António Gumende, com um tom descritivo relativamente neutro, não deixa de denunciar tal atitude governamental que fez com que os expositores se retirassem da Feira após essa polêmica (Gumende, 1996: 23). Além de encontrar lideranças políticas e religiosas propagando discursos dessa mesma natureza via jornais estrangeiros, em Moçambique os jornalistas, eles mesmos, nunca pareceram se engajar em um discurso anti-homossexualidade de maneira clara e direta. Pelo contrário, não apenas é pelo jornalismo que o tema da homossexualidade ganhou uma dimensão verdadeiramente pública quanto foi nele que um discurso sobre práticas se transformou em um discurso sobre identidade, ou seja, foi politizado. Foi pelo jornalismo em Moçambique que a homossexualidade deixou, nas décadas de 1970-90, de ser algo restrito à intimidade das práticas sexuais e afetivas para ganhar o terreno público da luta política. Mais do que isso foi a partir dos jornais, e particularmente do Savana e do Zambeze, que a homossexualidade não apenas passou a ser lida, mas será visualizada pelos leitores.

Uma imagética gay surge

Antes de mais nada, é importante frisar que a melhor situação da economia moçambicana e a evolução tecnológica das redações jornalísticas fará com que os jornais moçambicanos sejam agora, no geral, muito mais ilustrados. Dito isso, em setembro de 1996, até onde consegui investigar, temos a primeira foto impressa de homossexuais em um jornal moçambicano. A matéria trata do pleito de um casal homossexual branco norte-americano para que o tribunal reconhecesse sua união (Jornal Notícias, 5 set. 1996: 2).

Figura 4
| “Dupla de homossexuais recorre a tribunal para se casar", Jornal Notícias, 5 set. 1996.

No mesmo ano, curiosamente, o cinema Xenom, de Maputo, estreou a comédia romântica Casa de Doidas, que conta a história de um casal de homossexuais americanos que precisam se desdobrar para esconder sua relação com a visita dos pais da noiva de seu filho. O Jornal Savana publica a publicidade do filme (Jornal Savana, 18 jul. 1997: 28). Até onde se tem notícia, este seria o segundo filme com temática homossexual a ir aos cinemas de Maputo ou o primeiro de forma realmente explícita (Miguel, 2019).

Mas voltando à análise dos jornais, foco deste presente artigo, descobri que em 1997, o mesmo jornal Savana publicou um ensaio provocativo do fotógrafo Alfredo Mueche, em que aparecem três dançarinos moçambicanos, dois deles dando um beijo na boca (Jornal Savana, 1997b:30).

Figura 5
| "Foto & grafia", Jornal Savana, 17 out. 1997.

O texto do ensaio não é menos positivo:

[...] Em primeiro plano três dançarinos se concretizam. Sincronizando mesmo está o par: requebrou, sentiu apelação, chegou perto um do outro e beijou-se. Para alguns este gesto pode ser entendido no âmbito das liberdades artísticas. Ou talvez, o selar duma relação amorosa. Mas aí é que são elas. Vão aparecer outros que dirão ‘não é possível porque não faz parte da nossa cultura’. Mas que cultura pode punir dois corpos que se unem e se entregam no próprio gesto?

Quando mostrei essa foto para Makala, médico moçambicano da etnia makonde e meu amigo, ele teve o mesmo estranhamento. Liberal nos costumes e conhecedor das culturas locais, para ele a cena carecia de sentido, menos porque eram dois homens em situação de afeto28 e mais pelo gesto do beijo na boca. Segundo Makala, o beijo na boca não era um hábito cultivado nas tradições autóctones de Moçambique, mesmo entre heterossexuais. Algo confirmado há um século por Junod (2009: 289). De fato, é muito raro captar nas ruas de Maputo - e mais ainda no interior, pelo menos da região sul do país, por onde passei - cenas cotidianas de casais se beijando na boca. Tampouco andam de mãos dadas.

Mas este não seria o único beijo entre pessoas de mesmo gênero (ou assim insinuado) a aparecer nos jornais. Em 24 de março de 2000, foi a vez do Savana publicar o beijo de duas mulheres (Jornal Savana, 24 mar. 2000: 20).

Figura 6
| "Sai lá essa beijoca bem gostosa... claro está", Jornal Savana, 24 mar. 2000.

A legenda foge ao estilo do jornalismo moçambicano de certa neutralidade para questões como essa, e faz uma defesa deliberada e festiva das liberdades individuais:

Não temos nada a ver com os gostos e desgostos de cada uma, de cada um ou de cada qual! Cada uma ou cada um tem o direito inalienável - inalienavelmente falando, claro está! - de encarar a vida à sua maneira, de sentir a vida à sua maneira! Uma vida tão curta, tão efémera e tão cruel também que, realmente, deixar de fazer aquilo que se deseja e se gosta - gostosamente falando, claro está - não dá mesmo para entender!

Outra foto de um beijo feminino estamparia a mesma coluna no ano seguinte, com um texto não menos festivo, apesar de mais enigmático (Jornal Savana, 21 jan. 2001: 20).

Figura 7
| "O beijo do milênio... em rigoroso exclusivo!", Jornal Savana, 21 jan. 2001.

E enquanto a homoafetividade era exibida e festejada por alguns jornalistas moçambicanos, o contexto internacional africano era do início de uma perseguição governamental e midiática direta aos homossexuais, com o presidente zimbabuano Robert Mugabe liderando o processo (Diário de Moçambique, 5 fev. 2002: 6).

A reação conservadora

Não houve apenas celebração da homossexualidade pelos jornais de Moçambique. Tive conhecimento de pelo uma voz na mídia impressa moçambicana se colocando clara e sistematicamente contrária a essa liberalidade dos costumes em geral e, particularmente, nas questões LGBT. No final da década de 1990, o Sheik Aminuddin Mohamad, uma figura proeminente da intelectualidade islâmica salafi-Wahhabi do sul de Moçambique, ganhou uma coluna no jornal Savana em que pregava os seus ensinamentos religiosos sobre diversos assuntos. Em março de 1998, o Sheik publicou um texto com o título “Preservar a moral”, em que ataca fortemente os direitos humanos, tal como seriam entendidos no Ocidente - ele esclarece (Jornal Savana, 18 set. 1998: 7). Em uma das passagens, ele chama as práticas homossexuais de “abomináveis”. Mas mesmo ele - a voz que até então é a mais dura contra os direitos LGBT na mídia impressa moçambicana -, diferente de outras lideranças políticas e religiosas africanas, não apela para nenhum radicalismo, como o de sugerir a prisão ou o extermínio de homossexuais - o que, evidentemente, não torna seu discurso, como o católico, menos perigoso.29

Em setembro, o Sheik voltaria a atacar diversos alvos, entre eles, os homossexuais. Em sua coluna, do dia 18 de setembro de 1998, intitulada “O sexo no islão”, ele escreve que a pedofilia, os “grupos lésbicos”, a adoção, o abuso de menores, clubes gays, os namoros, os raptos, os abortos, os homossexuais, a masturbação e os filhos bastardos são “produtos dessa cultura de reprodução e normas sexuais ilícitas” (Jornal Savana, 18 set. 1998: 6). Em outros trechos, ele continua: “O islão proíbe o sexo anal, oral, o abuso sexual, a prostituição em todas as suas formas e a sodomia”. Na sua coluna do dia 21 de maio do ano seguinte, ele voltou a atacar o “lesbianismo”, o “homossexualismo”, e as demais práticas que considera imorais e ilícitas (Jornal Savana, 21 maio 1999: 9). Mas foi na coluna “A proibição de algumas práticas sexuais” que o Sheik passou a atacar mais diretamente alguns direitos que começam a ser discutidos e adquiridos alhures, como o casamento e a união civil entre pessoas de mesmo sexo (Jornal Savana, 10 jun. 2004: 10).

É importante salientar que a reação apresentada na imprensa não seria jamais corroborada explicitamente por figuras do Estado30 - como no caso do Zimbábue e outros países - mas viria de um setor bem específico e minoritário da sociedade nacional moçambicana e, particularmente de Maputo, que são os mulçumanos salafi-Wahhabi - apesar de profundas raízes históricas e de seu suposto crescimento recente (Newitt, 2012; Bouene, 2004). Ainda que seja um setor social minoritário, inclusive dentro da própria comunidade mulçumana de Moçambique, ele exerce influência sobre diversas famílias de Maputo e de fora da capital.

A contrarreação viria alguns anos depois com uma coluna de direitos humanos, publicada a seguir da coluna do Sheik. Nela, alguns textos pró-direitos LGBT foram publicados e textos do Sheik Aminuddin foram direta e explicitamente contestados pelo colunista Samuel Matusse.

Figura 8
| "Sheik Aminuddin, os gays não estão a pedir direitos especiais!”, Jornal Zambeze, 23 jan. 2014..

Antes de concluir esse já extenso texto, gostaria de abordar um último aspecto importante dessa virada do século na imprensa moçambicana, quando os próprios gays moçambicanos têm suas vozes ouvidas e reproduzidas pelos jornais, antes mesmo da emergência de um movimento LGBT organizado no país (Miguel, 2021b).

Pela imprensa tradicional, os “gays” moçambicanos falam

Em uma edição de julho de 2003 do caderno Cultura do Jornal Zambeze, foi publicado a seguinte matéria: “Retrato de um país enquanto ‘gay’” (Jornal Zambeze, 2003: 30).

Figura 9
| "Retrato de um país enquanto 'gay'", Jornal Zambeze, 24 jul. 2003.

Nas fontes em que pesquisei, essa aparece como a primeira reportagem em que sujeitos gays moçambicanos, além de se apresentarem claramente como tais, dão seus depoimentos. O autor Celso Ricardo realiza uma sensível matéria, explicando (ou “desmistificando”) para seus leitores que homossexualidade não se trata apenas de sexo, mas de “intimidade, afectividade e companheirismo”. Ou seja, a reportagem é um agente ativo da transformação do sentido de homossexualidade, de práticas sexuais à identidade e, agora, afeto. A matéria traz ainda depoimentos de Zaika, um jovem de 24 anos que, ao longo da entrevista, ora se identifica como “gay” ora como “mulher”.

Zaika conta da sua família, seu “percurso gay” e dos namorados. Mais abaixo, o jornalista dá espaço para a fotógrafa dinamarquesa Ditte Haarlow-Johnsen, que acabara d eestrear uma mostra fotográfica na Associação Moçambicanade Fotografia sobre as “manas”31 de Maputo. O que mais uma vez - é bom salientar - demonstra uma abertura das instituições e das artes moçambicanas para com a temática.32 A reportagem conclui com um breve histórico de luta política em favor dos direitos LGBT nos EUA e na Europa. O conteúdo da reportagem, suas fotos e suas legendas abordam, no geral, tanto a “marginalização” e “isolamento” dos homossexuais moçambicanos, mas também sobre “darem a cara” (serem corajosos).

A última reportagem que trago é a que, em 2007, proclama em seu título “gays querem reconhecimento” (em Moçambique) e é pioneira em vários aspectos (Jornal Zambeze, 28 jun. 2007:13).

A matéria do Zambeze, que tem um espaço de destaque no jornal, consulta os mais variados especialistas (um antropólogo, um cientista político e um jurista) e é a primeira que intersecciona a Aids com a homossexualidade em Moçambique, exibindo não apenas essa triste foto, mas também denunciando que os homossexuais haviam sido excluídos do Plano Estratégico Nacional de Combate ao HIV/SIDA 2005-2009. Também é pioneira em tratar da LAMBDA, fruto da institucionalização do movimento LGBT, que estava prestes a nascer formalmente na capital do país (Miguel, 2021b). A matéria fala ainda, ao que parece pela primeira vez também, de um dos artigos da reforma da Lei do Trabalho, que estabeleceu proteção contra a discriminação homofóbica nos ambientes laborais do país (Santos, 2017: 480). Por fim, a reportagem cita o primeiro seminário nacional sobre homossexualidade, realizado no ano anterior, que foi o momento de encontro privilegiado de vários homossexuais do país (e de fora). Momento no qual eles decidiram juntos institucionalizar o movimento LGBT de Moçambique na primeira organização deste tipo no país (Miguel, 2021b).

Considerações finais

Apoiado por depoimentos de jornalistas e notícias de jornais por mim coletadas nos arquivos históricos de Moçambique, busquei demonstrar uma das possíveis razões de emergência da narrativa de uma “tolerância” da homossexualidade em Moçambique, ao mesmo tempo que o privilégio de certas notícias colaborou para reforçar o que já fora chamado de “mito” da exogenia da homossexualidade em África.

Vimos como o ingresso da homossexualidade enquanto tema se deu em uma seção de entretenimento não disputada politicamente pelo principal jornal do país, como um fait diver; também foi possível constatar que, diferente do que ocorreu no Ocidente, em Moçambique a homossexualidade não fora associada firmemente à epidemia de Aids e os homossexuais não ganharam o estigma de disseminadores do vírus HIV. Na sequência, os dados permitiram compreender que a identidade homossexual quase sempre era noticiada em contextos estrangeiros e quando finalmente práticas homoeróticas locais aparecem, levadas a cabo por sujeitos nacionais, elas perdem o caráter identitário e, consequentemente, político, patrocinando a persistência do discurso da exogenia da homossexualidade no continente. No entanto, a tolerância como construção narrativa pelo jornalismo moçambicano parece fortalecida quando os discursos locais contrastam fortemente com as políticas de perseguição aos homossexuais nos países vizinhos. E mesmo a coluna do maior ativista anti-homossexual público no país é marginalizada por outras vozes pró-direitos LGBT e por figuras do Estado que não aderem publicamente às suas investidas.

Desde o início do período pós-colonial, a imprensa moçambicana não pareceu censurar notícias que diziam respeito à homossexualidade - muitas delas positivas e politizadas, em um cenário africano de crescente perseguição aos homossexuais. Com a pesquisa foi possível descobrir que, se por um lado, o governo/Estado/ partido único em/de Moçambique - diferente do que ocorrera em países vizinhos - não parecia perseguir a homossexualidade através da mídia impressa, por outro, figuras importantes do mais alto escalão do partido único foram censuradas não propriamente em suas práticas homossexuais - o que é entendido por alguns como a típica tolerância moçambicana - mas em sua visibilidade pública.

Também vimos que as transformações políticas no país assim como as transformações tecnológicas nos jornais foram fatores, junto com o método de trabalho e as ideologias dos jornalistas, que tiveram implicações sobre como e quando o tema da homossexualidade era trazido. De forma geral, percebeu-se através do discurso de jornalistas que a homossexualidade não era assunto relevante nem para eles (segundo relatos, não havia pessoas LGBT ou militantes desta causa nas redações e havia um aparente descaso com as notícias internacionais que veiculavam o tema) nem para o Estado, que passava por dificuldades econômicas, humanitárias e bélicas bastante mais graves e urgentes.

Por fim, pudemos perceber que, mesmo sem intenção explícita, a imprensa moçambicana foi a primeira que politizou o tema no país, que fez a conversão da homossexualidade-como-ato para a homossexualidade-como-identidade. E, além disso, reforçou tanto a insistente narrativa africana de exogeniada homossexualidade ao noticiar quase sempre apenas casos que envolviam homossexuais estrangeiros quanto promoveu, internamente e de forma diferente de vários outros países do continente, tolerância para com a questão, quando veiculava discursos em sua maioria neutros ou positivados, quando não festivos e libertários.

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  • 1
    Escolho três jornais com circulação em Maputo para a análise sistemática: O diário Jornal Notícias, por sua hegemonia e importância desde o período colonial, e os semanários/tablóides Savana e Zambeze, por me parecerem de grande circulação e repercussão nas ruas de Maputo enquanto do meu trabalho de campo em 2018. Outros, como o Diário de Moçambique e O País, irão aparecer de forma subsidiária.
  • 2
    A mídia moçambicana não foi única instituição a historicamente produzir essa especificidade. Em minha tese de doutorado, busquei demonstrar como o Estado Moçambicano, as igrejas, a mídia, os pesquisadores e organizações internacionais, e o próprio movimento LGBT local produziram e ainda produzem esse diagnóstico de um país “tolerante” à homossexualidade.
  • 3
    Os discursos sobre a exogenia da homossexualidade em África e os debates teóricos que eles têm suscitado podem ser acessados em Mott (2005) e Kaoma (2009).
  • 4
    Alguns autores remontam sua origem para a obra O Crisântemo e a Espada, de Ruth Benedict (1946) por ela ser a pioneira em tratar materiais escritos como “diários, romances, filmes, jornais, programas e rádio” como dados etnográficos (Eiselein,Topper e Osorio, 2001: 8).
  • 5
    Wright (apud Rabaça e Barbosa, 2002: 173) cita quatro objetivos da comunicação de massa: detecção e informe dos acontecimentos; interpretação e orientação prescritiva dos eventos; transmissão de cultura; e entretenimento.
  • 6
    Como, em entrevista, disse a mim Miguel, jornalista moçambicano e um dos precursores do movimento LGBT no país, “Às vezes as coisas vão acontecendo sem tu refletires, né?” (Entrevista Miguel, Maputo, 7 set. 2018).
  • 7
    Em outros países africanos, como Uganda, críticos da chamada “agenda gay” acusariam a liberalização dos jornais como veículos de propagação de tal agenda (Mwikya, 2013: 143).
  • 8
    Em um discurso em 1979, para acusar a Igreja Católica de agente do colonialismo, Samora associou a homossexualidade à imoralidade e à despersonalização do povo (Machel, 1979: 9-10). Este foi o único documento que encontrei em que Samora explicitamente cita a homossexualidade. Como era comum ainda anos depois da independência, o Jornal Notícias publicava discursos inteiros do presidente Samora Machel. Em 28 de Setembro de 1982, o jornal então publica o discurso “Rompamos definitivamente com a burguesia” (: 5-8). Nele, é possível acessar quem eram os inimigos do Estado, de acordo com o presidente: “[...] limpar os ladrões, os bandidos, os violadores de menores, os traficantes, os drogados, os marginais, os assassinos, os criminosos, os boateiros, os entreguistas, os agitadores”.
  • 9
    Trata-se de Gulamo Khan, o adido de comunicação do presidente Samora Machel que morreu com ele no famoso “acidente” de avião no território sul-africano. Gulamo é reconhecido por diversas pessoas com quem conversei como alguém que era claramente homossexual.
  • 10
    Há rumores de que, anos mais tarde, alguns homossexuais seriam, por sua orientação sexual, enviados aos campos de reeducação (Santos e Waites, 2021). Dada a inacessibilidade de documentação desse período nebuloso da história recente de Moçambique, no entanto, não há ainda provas concretas que isso tenha de fato ocorrido.
  • 11
    No entanto, “o cerne da política sexual da ditadura [no Brasil também] não era exterminar fisicamente estes grupos vulneráveis do mesmo modo como se fez com a subversão política. Antes, o objetivo era reforçar o estigma contra os homossexuais, ‘dessexualizar’ o espaço público expulsando estes segmentos e impelir, para o âmbito privado, as relações entre pessoas do mesmo sexo” (Quinalha, 2018: 36).
  • 12
    Ba Ka Khosa, em seu livro Entre Memórias Silenciadas (2013), cria o personagem de um soldado que alega ser homossexual para fugir da guerra, sendo enviado para um campo de reeducação. Em entrevista a mim, no entanto, disse que o personagem é totalmente ficcional.
  • 13
    Por arquivos históricos de Moçambique, refiro-me principalmente àqueles encontrados no Arquivo Histórico de Moçambique (AHM) - em suas instalações tanto na Baixa da cidade, quanto no campus principal da Universidade Eduardo Mondlane - e na Biblioteca Nacional de Moçambique (BNM), onde realizei pesquisa sistemática.
  • 14
    Alguns jornalistas por mim entrevistados, porém, alertaram-me para o fato de que não haveria apenas censura prévia e que, muitas vezes, a censura vinha a posteriori. Para um interessante artigo sobre o lugar da comunidade queer nos carnavais coloniais de Lourenço Marques, ver Araújo (2021).
  • 15
    Outras claramente o eram. Como podia ser visto nos anos 1960 e 1970 em shows de travestis na Rua Araújo, em Lourenço Marques (Santos, 2017: 485; Araújo, 2021).
  • 16
    Isso, no entanto, não exime as autoridades governamentais que detiveram e detém o poder em Moçambique das responsabilidades e violações aos direitos humanos das pessoas LGBT que foram alvos de sua esporádica repressão.
  • 17
    Uma estratégia comum, que em Uganda tomou o contorno de uma perseguição aos homossexuais por dois tabloides do país (Mwikya, 2013: 144)
  • 18
    Como em muitos países africanos de língua portuguesa, em Moçambique o termo mais corrente e adotado para a Síndrome da Imunodeficiência adquirida é Sida, em contraste com o Brasil que adota a grafia Aids. Ao longo do texto, ambos os termos serão adotados.
  • 19
    Pelo contrário, em 1985, António Marmelo publica um artigo no Jornal Notícias de título “SIDA: uma peste à Ocidente?”, em que responde à pergunta: “Uma peste gay? Nada mais falso dizem os cientistas. Se é verdade que os homossexuais são o grupo mais atreito isso se deve, ao que se julga, ao maior número de parceiros que tem cada um.” (Jornal Notícias, 1985d:3).
  • 20
    Por exemplo, “No tratamento do SIDA. Foram já gastos 3 600 milhões de dólares nos EUA” (Jornal Notícias, 16 jan. 1986: 4) ou “SIDA exige vacina diversificada” (Jornal Notícias, 23 jan. 1986: 5).
  • 21
    Sem falar de homossexualidade, o Jornal Notícias reproduz anos depois uma matéria da agência de notícias DPA sobre uma organização criminosa de eunucos (Jornal Notícias, 15 out. 1986:5).
  • 22
    Em matéria reproduzida da Agência LUSA e publicada pelo Jornal Notícias em 24 de Abril de 1990, é possível descobrir a realização de uma conferência internacional sobre homossexualidade em Leipzig, que reuniu ativistas do bloco soviético: “Citando a sua congénere alemã ADN, a LUSA informou que homossexuais da União Soviética estão a participar secretamente da conferência” e informa que “a homossexualidade é considerada uma ofensa criminal em vários países, entre os quais a Albânia, a Romênia e a União Soviética” (Jornal Notícias, 24 abr. 1990: 4).
  • 23
    O caráter étnico/racial se torna aqui relevante, dado que a homossexualidade em Moçambique - assim como em outros países africanos - quase sempre fora associada aos brancos.
  • 24
    Algo que seria denunciado em outra reportagem do Jornal Savana de 6 de abril de 2001, “Abuso sexual de menores”, que conta a história de um menor que além de ser um empregado doméstico acabou participando de “jogos sexuais” com o casal de patrões brancos e supostamente heterossexuais (Jornal Savana, 6 abr. 2001:31).
  • 25
    “Os reclusos classificados como perigosos têm ido para a penitenciária de Lourenço Marques, não oferecendo a cadeia a possibilidade de se fazer separação e, por isso, não se podem evitar os vícios que em circunstâncias semelhantes costumam aparecer em centros prisionais” (Leitão, 1968:101)
  • 26
    Ao entrevistar Miguel e Mia Couto, perguntei-lhes se não havia uma eventual predileção do editor do caderno Recreio-Divulgação por dar visibilidade apenas a artistas que de alguma forma eram envolvidos em questões LGBT, mas fui alertado por ambos para o fato de que na década de 1980 tais artistas eram quase uma unanimidade da juventude e não eram, como hoje, vistos como ídolos LGBT. Segundo Miguel, a hegemonia artística - mais do que a especificidade de suas vidas sexuais - era a razão de figurarem absolutos no noticiário à época. Mas não deixa de ser interessante observar como exatamente Freddie Mercury, Rock Hudson e Elton John eram, na década de 1990, os mesmos personagens que, de forma fragmentada, construiriam uma ideia de homossexualidade ocidental na Indonésia (Boellstorff, 2005: 74).
  • 27
    A ideia de uma diferença entre uma propagação homossexual da doença no Ocidente e uma propagação heterossexual em África era repercutida em África a partir de estudos epidemiológicos feitos por pesquisadores ocidentais. A mídia ocidental também frequentemente enfatizou essa distinção. Por exemplo, em 1990 a revista norte-americana Times fez uma longa matéria enfatizando a via heterossexual da epidemia em África em contraposição à epidemia homossexual nos países da América do Norte (Patton, 1992: 220-1).
  • 28
    Makala certa vez me contou sobre se reeducar na cidade para perder o hábito, que tinha em sua aldeia, de andar de mãos dadas com seus amigos rapazes: “Parei de andar de mãos dadas com os amigos quando cheguei aqui na cidade e vi na TV que isso era símbolo de homossexualidade”. Algo semelhante ocorrera no século XVIII na Inglaterra quando o beijo deu lugar ao aperto de mão como cumprimento típico entre homens, por ter se tornado um símbolo de afeminação (Trumbach, 1990: 134-5).
  • 29
    O Sheik Aminuddin se coloca publicamente como uma voz do islamismo no país, mas pertence de fato à vertente salafi-Wahhabi, uma fratria minoritária do islamismo moçambicano. Pelos jornais, no período aqui investigado, não é possível conhecer quaisquer outros discursos homofóbicos que tenham sido proferidos publicamente por outras lideranças mulçumanas moçambicanas.
  • 30
    Anos mais tarde, o ex-presidente de Moçambique, Joaquim Chissano, teria conclamado em carta aos africanos pela não discriminação baseada na orientação sexual. ‘An Open Letter to Africa’s Leaders - Joaquim Chissano, former President of Mozambique’ The Africa Report 14 January 2014 https://www.the africare port.com/4886/an-open-letter-to-africas-leaders-joaquim-chissano-former-presi dent-of-mozambique/
  • 31
    Essa é a forma como os homossexuais, travestis e transexuais vem se denominando jocosa e afetivamente nos últimos anos em Maputo (Mugabe, 2021).
  • 32
    Nos últimos anos, para além dessa mostra fotográfica e peças de teatro, foram publicados pelo menos três romances em Moçambique, que tem a homossexualidade ou como temática central (Languana, 2014; Aboobacar, 2018) ou como tema vestigial (Ba Ka Khosa, 2013). Para a obra de Mia Couto, no que diz respeito a esse tema, ver Cantarin (2010).
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:
    não se aplica.
  • FINANCIAMENTO:
    BEPE FAPESP 2021/10298-3 / GD CNPQ 140227/2016-4.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Fev 2021
  • Aceito
    13 Out 2022
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