Resumos
A associação entre prevalência de marcadores sorológicos de hepatite B e local de nascimento, verificado em estudo realizado num município de características rurais do Estado de São Paulo, Cássia dos Coqueiros, sugere existirem diferenças entre migrantes e não-migrantes no que diz respeito a fatores de risco para hepatite B. Esses dois grupos foram analisados segundo as variáveis escolaridade, ocupação profissional, número de hospitalizações, antecedente de transfusões sangüíneas e tipo de tratamento dentário prévio. A comparação entre os grupos mostra que migrantes, particularmente de outros Estados do País, apresentam baixos níveis de escolaridade, elevadas proporções de lavradores empregados, maior número de internações prévias e maiores exposições a transfusões sangüíneas e a procedimentos odontológicos mais agressivos. Observaram-se ainda associações entre a prevalência de marcadores de hepatite B e as variáveis escolaridade, ocupação profissional, número de hospitalizações e tipo de tratamento odontológico, muito embora as duas últimas não justifiquem as maiores prevalências entre os migrantes. A distribuição diferenciada de marcadores de hepatite B parece ser resultado da pior condição socioeconômica dos migrantes, refletida pelo seu nível inferior de escolaridade e pela predominância de ocupações secundárias.
Hepatite B; Migração interna; Fatores socioeconômicos
The association between prevalence of hepatitis B serological markers and birthplace, in a study carried out in a small rural county of S. Paulo State, Brazil, suggests different risk factors for hepatitis B between migrants and nonmigrant populations. These two groups were compared with regard to the following variables: level of education, professional occupation, number of previous hospitalizations, past history of blood transfusions and type of dental treatment. Migrants, mainly those from other states of Brazil, showed a low-level of education, a high proportion of people employed in agricultural activities, a higher number of past hospitalizations and higher exposure to blood transfusion and to more aggressive dental procedures. Associations were observed between the prevalence of serological markers and the following variables: level of education, professional occupation, number of previous hospitalizations and type of dental procedures, even though the last two associations did not justify the higher prevalences observed among migrants. The different distribution of hepatitis B markers seems to be dependent on the migrants' worse socio-economic condition, demonstrated by their lower level of education and by the predominance of secondary occupations.
Hepatitis B; Internal migration; Socioeconomic factors
Influência da migração na prevalência de marcadores sorológicos de hepatite B em comunidade rural. 2 - Análise comparativa de algumas características das populações estudadas* * Parte da Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, 1991.
Influence of migration on prevalence of serological hepatitis B markers in a rural community. 2 - Comparative analysis of some characteristics of the population studied
Afonso D. C. PassosI; Uilho A. GomesI; José F. de C. FigueiredoII; Margarida M. P. do NascimentoII; Jaqueline M. de OliveiraIII; Ana M. C. GasparIII; Clara F. T. YoshidaIII
IDepartamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
IIDepartamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto USP-São Paulo, SP - Brasil
IIICentro de Referência Nacional para Hepatites Virais/ FIOCRUZ - Rio de Janeiro - Brasil
RESUMO
A associação entre prevalência de marcadores sorológicos de hepatite B e local de nascimento, verificado em estudo realizado num município de características rurais do Estado de São Paulo, Cássia dos Coqueiros, sugere existirem diferenças entre migrantes e não-migrantes no que diz respeito a fatores de risco para hepatite B. Esses dois grupos foram analisados segundo as variáveis escolaridade, ocupação profissional, número de hospitalizações, antecedente de transfusões sangüíneas e tipo de tratamento dentário prévio. A comparação entre os grupos mostra que migrantes, particularmente de outros Estados do País, apresentam baixos níveis de escolaridade, elevadas proporções de lavradores empregados, maior número de internações prévias e maiores exposições a transfusões sangüíneas e a procedimentos odontológicos mais agressivos. Observaram-se ainda associações entre a prevalência de marcadores de hepatite B e as variáveis escolaridade, ocupação profissional, número de hospitalizações e tipo de tratamento odontológico, muito embora as duas últimas não justifiquem as maiores prevalências entre os migrantes. A distribuição diferenciada de marcadores de hepatite B parece ser resultado da pior condição socioeconômica dos migrantes, refletida pelo seu nível inferior de escolaridade e pela predominância de ocupações secundárias.
Descritores: Hepatite B, epidemiologia. Migração interna. Fatores socioeconômicos.
ABSTRACT
The association between prevalence of hepatitis B serological markers and birthplace, in a study carried out in a small rural county of S. Paulo State, Brazil, suggests different risk factors for hepatitis B between migrants and nonmigrant populations. These two groups were compared with regard to the following variables: level of education, professional occupation, number of previous hospitalizations, past history of blood transfusions and type of dental treatment. Migrants, mainly those from other states of Brazil, showed a low-level of education, a high proportion of people employed in agricultural activities, a higher number of past hospitalizations and higher exposure to blood transfusion and to more aggressive dental procedures. Associations were observed between the prevalence of serological markers and the following variables: level of education, professional occupation, number of previous hospitalizations and type of dental procedures, even though the last two associations did not justify the higher prevalences observed among migrants. The different distribution of hepatitis B markers seems to be dependent on the migrants' worse socio-economic condition, demonstrated by their lower level of education and by the predominance of secondary occupations.
Keywords: Hepatitis B, epidemiology. Internal migration. Socioeconomic factors.
Introdução
Apesar da baixa prevalência de marcadores sorológicos de hepatite B, verificada na população do Município Cássia dos Coqueiros, Estado de São Paulo15, o achado de riscos diferenciados entre migrantes e não-migrantes aponta para a necessidade de se proceder a uma análise mais detalhada dessas populações, visando a levantar diferenças que possam, eventualmente, ajudar na explicação das variações observadas. Este aspecto implica não apenas a caracterização desses grupos segundo alguns fatores de risco de natureza biológica, mas exige também o estudo dos mesmos segundo algumas variáveis de natureza socioeconômica, uma vez que a presença de hepatite B numa comunidade tem sido, com freqüência, associada a fatores ligados à pobreza5,7,8,9,12,13,14,19. Esta caracterização foi realizada por ocasião de um levantamento sobre hepatite B levado a efeito em Cássia dos Coqueiros, constituindo os seus achados o objetivo do presente trabalho.
Material e Método
À população de estudo, definida como o total de habitantes do município com idade igual ou superior a um ano, foi aplicado um questionário que tornou possível qualificá-la segundo características gerais (distribuição por sexo, idade, procedência, ocupação e escolaridade) e segundo fatores de risco para hepatite B, aí incluídas algumas modalidades de assistência médico-odontológica recebidas no passado. Ao mesmo tempo, uma amostra de sangue foi colhida e submetida a testes imunoenzimáticos para detecção de marcadores sorológicos de hepatite B (HBsAg, anti-HBs e anti-HBc, com reativos produzidos e fornecidos pelo Centro de Referência Nacional para Hepatites Virais, da Fundação Instituto Oswaldo Cruz).
Os dados foram analisados estatisticamente através da aplicação de um modelo log linear17. Considerações mais detalhadas acerca da metodologia empregada em todas as fases da investigação já foram objeto de publicação anterior15.
Resultados
A distribuição dos marcadores de hepatite B, segundo o local de nascimento e a escolaridade (Tabela 1), evidencia que 91,1% (317/348) do total de indivíduos provenientes de outros Estados do País apresentam um nível máximo de escolaridade que não ultrapassa o primeiro grau incompleto. Nesses indivíduos de nenhuma ou reduzida escolaridade se concentram 100% dos positivos do grupo para marcadores sorológicos de hepatite B (55), com prevalências correspondentes a 23,4% e 15,4%, respectivamente. Dos oriundos de outros municípios do Estado de São Paulo, 73,5% (353/480) concentram-se nos níveis de escolaridade zero ou com apenas o primeiro grau incompleto, categorias que isoladamente apresentam as maiores taxas de prevalência da doença (15,6% e 10,0%) e que, combinadas, concentram 84,1% dos positivos deste grupo (37/44). Entre os nascidos em Cássia dos Coqueiros e Ribeirão Preto observa-se que uma proporção de 71,5% (801/1.120) se distribui entre os de escolaridade zero ou primeiro grau incompleto, congregando 76,9% (40/52) dos positivos para marcadores sorológicos de hepatite B. Neste grupo, ao contrário dos anteriores, as mais altas prevalências de marcadores deixam de ser encontradas entre os de menor nível de escolaridade e passam a ser observadas entre os indivíduos com instrução universitária (19,0% entre os que concluíram a sua formação e 11,1% entre os que ainda não o fizeram), resultando numa prevalência combinada igual a 16,7% (5/30) entre os que atingiram nível superior de educação. Agrupando-se as categorias "nenhuma" com "primeiro grau incompleto"; "primeiro grau completo" com "segundo grau" (completo e incompleto); e "superior incompleto" com "superior completo", os testes de independência parcial entre as variáveis revelam as seguintes associações: a) entre positividade e local de nascimento, dentro de cada categoria de escolaridade - [X2 (6 gl) = 49,14 p < 0,001)]; b) entre positividade e escolaridade, dentro de cada categoria de local de nascimento - [X2 (6 gl) = 18,13 p < 0,01)].
A Tabela 2 mostra a distribuição das prevalências de marcadores sorológicos de acordo com o local de nascimento e a ocupação, entre os habitantes rurais. A mesma representação é mostrada na Figura, particularizada para as quatro ocupações que exibem o maior número de casos. Nestas, verifica-se que os níveis mais elevados de prevalência de marcadores de hepatite B ocorrem na categoria "lavrador empregado", tanto entre os naturais de Cássia dos Coqueiros e Ribeirão Preto (10,0%) como entre os nativos de outros municípios (24,1%) e, principalmente, de outros Estados (32,2%). Mesmo ostentando valores menos elevados, constata-se que esta tendência ascendente, à medida que o local de nascimento se afasta de Cássia dos Coqueiros/Ribeirão Preto, ocorre também nas outras três ocupações, muito embora não tenha sido detectado nenhum marcador sorológico de hepatite B entre o reduzido número (18) de lavradores patrões nascidos em outros Estados. Excluindo-se a categoria "retireiro", a segunda posição em termos de prevalência de marcadores em cada um dos locais de nascimento é ocupada pela categoria "lavrador patrão" entre os naturais de Cássia dos Coqueiros (8,0%) e de outros municípios (16,7%) e pela categoria "do lar" entre os oriundos de outros Estados (19,2%). Agrupando-se as categorias "lavrador patrão" com "meeiro/arrendatário"; "lavrador empregado" com "retireiro"; e "estudante" com "menor", os testes de independência parcial entre as variáveis mostram as seguintes associações: a) entre positividade e local de nascimento, dentro de cada categoria de ocupação - [X2 (8 gl) = 29,44 p< 0,001)]; b) entre positividade e ocupação, dentro de cada categoria de local de nascimento - [X2 (9 gl) = 33,33 p < 0,001)].
A Tabela 3 mostra a prevalência de marcadores sorológicos de hepatite B segundo o local de nascimento e o número de hospitalizações. Entre os nascidos em Cássia dos Coqueiros/Ribeirão Preto ocorre uma proporção de 56,3% de pessoas nunca internadas (630/1.120), valor acima dos 43,1% entre os nascidos em outros municípios (207/480) e dos 40,5% observados nos nascidos em outros Estados (141/348). À medida que aumenta o número de internações observa-se que as proporções de pessoas naturais de outros municípios e Estados tornam-se progressivamente maiores, de tal sorte que com 3 ou mais hospitalizações prévias os valores correspondem a 11,1% (124/1.120) entre os que nasceram em Cássia dos Coqueiros/Ribeirão Preto, 19,4% (93/480) entre os oriundos de outros municípios e 20,4% entre os naturais de outros Estados (71/348). A análise das prevalências revela valores consistentemente mais elevados nos indivíduos não nascidos em Cássia dos Coqueiros ou em Ribeirão Preto, particularmente entre os provenientes de outros Estados. Esta diferença se manifesta mesmo entre aqueles que nunca foram submetidos à qualquer internação, categoria onde o quociente entre as prevalências apresentadas pelos naturais de outros Estados e pelos nascidos em Cássia dos Coqueiros/Ribeirão Preto alcança o valor de 2,3 (9,9/4,4). Este quociente mostra variações irregulares quando aplicado a números progressivamente maiores de internações, atingindo um valor máximo igual a 9,4 quando se cotejam aqueles que foram hospitalizados 4 vezes ou mais (28,3%/3,0%). Agrupando-se os indivíduos com 1 a 3 internações, os testes de independência parcial entre as variáveis mostram as seguintes associações: a) entre positividade e local de nascimento, dentro de cada categoria de número de hospitalizações - [X2 (6 gl) = 43,51 (p < 0,001)]; b) entre positividade e número de hospitalizações, dentro de cada categoria de local de nascimento -[X2(6gl) = 16,86 (p<0,01)].
A Tabela 4 mostra a prevalência de marcadores sorológicos de hepatite B de acordo com o local de nascimento e o antecedente de transfusão sangüínea. Proporções diferentes de exposição a transfusões ocorrem conforme a área de nascimento, com um valor proporcional mínimo de 3,6% entre os naturais de Cássia dos Coqueiros/Ribeirão Preto (40/1.120). Os nascidos em outros municípios apresentam um valor intermediário de 6,0% (29/480), com o máximo (7,5%) sendo observado entre os oriundos de outros Estados (26/ 348). As proporções de pessoas que ignoram antecedente de transfusão apresentam valores muito próximos entre si, oscilando de 2,6% entre os naturais de Cássia dos Coqueiros (29/1.120) a 2,9% entre os nascidos em outros Estados (10/348). A comparação das prevalências mostra valores constantemente mais elevados entre os que apresentam passado de transfusão, embora tais diferenças assumam valor reduzido entre nascidos em outros Estados e praticamente inexistam entre os nascidos em Cássia dos Coqueiros/Ribeirão Preto. Entre os não submetidos a transfusões prévias, verifica-se que os naturais de outros Estados apresentam uma prevalência 3,3 vezes mais elevada que os nascidos em Cássia dos Coqueiros/Ribeirão Preto (14,7% e 4,5%) e 1,7 vezes maior que a mostrada pelos oriundos de outros municípios (14,7% e 8,9%, respectivamente). Colocando à parte a categoria "ignorado", os testes de independência parcial entre as variáveis mostram: a) associação entre positividade e local de nascimento, dentro de cada categoria de antecedentes de transfusão - [X2 (4 gl) = 43,18 (p< 0,001)]; b) não associação entre positividade e antecedente de transfusão, dentro de cada categoria de local de nascimento - [X2 (3 gl) = 2,62 (não significante)].
A distribuição dos indivíduos estudados e dos positivos, segundo o local de nascimento e o tipo de tratamento dentário (Tabela 5), revela a existência de proporções diferenciadas de intervenções odontológicas nas diversas áreas de procedência. Os procedimentos mais agressivos, representados por extrações múltiplas e cirurgia, apresentam percentuais de 49,1% (550/1.120) e 3,5% (39/1.120) nos nascidos em Cássia dos Coqueiros/Ribeirão Preto, contra valores correspondentes de 64,9% (226/348) e 6,3% (22/348) entre os naturais de outros Estados. A análise das prevalências de marcadores mostra valores sistematicamente mais elevados entre os nascidos em outros estados. Isto ocorre em qualquer categoria de tratamento, destacando-se que o máximo quociente encontrado quando se comparam as prevalências dos naturais de outros Estados com os nascidos em Cássia dos Coqueiros/Ribeirão Preto acontece entre aqueles que referem nunca ter recebido qualquer tipo de intervenção odontológica (9,6 correspondendo à razão 13,5%/1,4%). Agrupando-se as categorias "nenhum" + "apenas rotina" + "extrações únicas" e "extrações múltiplas" + "cirurgia", os testes de independência parcial entre as variáveis revelam as seguintes associações: a) entre positividade e local de nascimento, dentro de cada categoria de tratamento dentário [X2 (4 gl) = 44,96 (p < 0,001)]; b) entre positividade e tratamento dentário, dentro de cada categoria de local de nascimento [X2 (3 gl) = 12,57 (p < 0,01)].
Discussão
O achado de níveis mais elevados de marcadores sorológicos de hepatite B entre migrantes, no Município de Cássia dos Coqueiros, aponta para a necessidade de se conhecer algumas características que permitam diferenciá-los dos nativos e que talvez possam estar associadas às diferenças encontradas. Entre essas características assumem importância a condição socioeconômica e antecedentes de exposição a determinados procedimentos médico-odontológicos, fatores reconhecidos como freqüentemente associados à distribuição da hepatite B.
Para a caracterização socioeconômica dos membros de uma determinada comunidade seria desejável que estes fossem estudados segundo à classe social a que pertencem. Todavia, a operacionalização do conceito de classe social e/ou de suas frações constitui, reconhecidamente, tarefa de grande complexidade, até mesmo para profissionais da área de ciências sociais4. As dificuldades inerentes à operacionalização deste conceito levaram a que no presente trabalho não se tentasse a sua utilização, optando-se pelo uso de outros indicadores para tentar caracterizar a condição social dos membros da população estudada. Para atender a este objetivo é que foram levantadas as variáveis escolaridade e ocupação, consideradas como passíveis de promover um certo grau de estratificação dos habitantes e servir como indicadores indiretos da sua posição social.
A análise do nível de escolaridade mostra com clareza as diferenças existentes entre nativos e migrantes, com os últimos apresentando situação inferior, particularmente os oriundos de outros Estados do País. Nestes, a concentração de todos os positivos para marcadores sorológicos de hepatite B entre os indivíduos de baixa escolaridade fala a favor de mecanismos de transmissão associados às condições socioeconômicas deficientes, quais sejam, promiscuidade, aglomeração, baixos padrões de higiene e dificuldade de acesso a uma assistência médica de qualidade. Por outro lado, a constatação de que a prevalência mais elevada de marcadores entre os nativos de Cássia dos Coqueiros/Ribeirão Preto ocorre entre os de nível universitário sugere a ação de outros mecanismos de transmissão. Estes poderiam estar associados às mudanças vividas por jovens estudantes quando deslocados para cidades maiores, onde hábitos e comportamentos mais liberados aumentam as possibilidades de contacto com o vírus, quer por via sexual1,2,16, quer por eventuais experiências de utilização de drogas injetáveis.
A hipótese de a transmissão entre os migrantes habitando a área rural ser associada às condições socioeconômicas deficientes é reforçada pela constatação de que os riscos mais elevados se fazem presentes na categoria dos lavradores empregados, de modo particular entre provenientes de outros municípios do Estado de São Paulo e de outros Estados do País.
Exposição a determinados procedimentos médico-odontológicos constitui fator de risco conhecido para hepatite B, o que levou a que algumas destas exposições fossem objeto de investigação no presente trabalho. Assim, buscaram-se associações entre a presença de marcadores e três principais modalidades de exposições prévias, quais sejam, número de hospitalizações, antecedente de transfusão sangüínea e tipo de tratamento dentário.
A primeira delas, referente às hospitalizações, mostra que o risco de adquirir hepatite B se acha associado à maior freqüência numérica deste evento, refletindo o que se observa nas duas categorias de local de nascimento correspondentes aos migrantes. Embora os nascidos em outros locais, de modo particular em outros Estados, apresentem freqüências mais elevadas de indivíduos que foram hospitalizados, e apesar das altas prevalências de marcadores de hepatite B nos indivíduos deste grupo, com maior número de internações, os dados do presente trabalho não permitem que se incrimine com segurança o aumento das hospitalizações como determinante da maior concentração da doença nos migrantes. Isto porque o risco de infecção, entre os que nunca foram internados, já mostra um valor 2,3 vezes maior entre os oriundos de outros Estados em relação aos nativos de Cássia dos Coqueiros, caindo este valor a 1,8 quando se cotejam aqueles com antecedente de duas internações.
A proporção de expostos a transfusões sangüíneas também se revela mais elevada entre migrantes, sem que isso, no entanto, justifique a maior prevalência de marcadores sorológicos por hepatite B observada entre eles. De fato, não se verifica associação entre transfusões e hepatite B no que diz respeito à procedência, o que reflete riscos praticamente iguais entre expostos e não-expostos quando se comparam os nascidos no município de Cássia dos Coqueiros com os migrantes. A ocorrência de números relativamente altos de pessoas que ignoram antecedente de transfusão não se revelou capaz de alterar estas conclusões, mesmo quando uma análise estatística complementar foi aplicada a duas situações hipotéticas extremas, quais sejam, considerar os "ignorados" como expostos e não-expostos a transfusões prévias.
A associação estatística verificada entre a positividade e o tipo de tratamento dentário corrobora a importância de procedimentos odontológicos mais agressivos, traduzidos por extrações múltiplas e cirurgias, na história natural da hepatite por vírus B. A exemplo do ocorrido com o número mais elevado de hospitalizações e de transfusões sangüíneas, também estes procedimentos mostram proporções mais elevadas entre os nascidos fora do município estudado. Todavia, quando se comparam os migrantes com os nativos de Cássia dos Coqueiros, verifica-se que as maiores diferenças ocorrem entre aqueles que nunca foram submetidos a qualquer procedimento odontológico. Isso afasta a possibilidade de que essas exposições desiguais sejam determinantes da distribuição diferenciada da prevalência de marcadores de hepatite B, segundo o local de nascimento.
A verificação de que migrantes apresentam maiores proporções de hospitalizações, de transfusões sangüíneas, de extrações dentárias múltiplas e de cirurgias odontológicas levanta alguns questionamentos acerca da qualidade da assistência médica a eles oferecida nas suas áreas de origem. Ao nível das hipóteses, pode-se pensar que sejam reflexo de uma menor disponibilidade de serviços de assistência médica-odontológica que atuem preventivamente. Com isso, a busca de cuidados se faria num período evolutivo mais tardio da doença, obrigando a adoção de medidas mais radicais.
Independentemente dos seus possíveis determinantes, vale notar que esta maior proporção de procedimentos médico-odontológicos mais agressivos não parece ser responsável pelas maiores prevalências de marcadores de hepatite B entre os nascidos em outros municípios e Estados. Apesar de certas ressalvas impostas pelo número relativamente reduzido de pessoas em algumas das categorias estudadas, os resultados sugerem que esta distribuição diferenciada da infecção seja mesmo resultado da pior condição socioeconômica dos migrantes, expressa no seu nível inferior de escolaridade e na predominância de ocupações subalternas.
A associação de hepatite B com a pobreza tem sido verificada em inúmeros trabalhos, realizados em diversas áreas do mundo. Incluem-se aí estudos de prevalência em diferentes populações de baixo nível socioeconômico, tão distantes entre si como os habitantes de várias áreas do continente africano8,9,13,18,22 e asiático11,21; esquimós do Alaska3 e da Groelândia19; negros norte-americanos7,20; nativos de certas regiões da Amazônia5,6,10 e favelados da cidade de São Paulo12,14.
Nas condições do presente estudo, o baixo nível socioeconômico provavelmente atua como o determinante básico comum, tanto do processo migratório como do risco mais elevado de se contrair hepatite B. Estranhamente, essas associações não têm merecido a devida atenção de pesquisadores nacionais, justificando, pela sua relevância, estudos que permitam um conhecimento mais aprofundado deste processo.
Recebido para publicação em 3.7.1992
Reapresentado em 11.11.1992
Aprovado para publicação em 19.11.1992
Separatas/Reprints: A. D. C. PASSOS - Av. Bandeirantes, 3900 -14049-900 - Ribeirão Preto, SP - Brasil.
Edição subvencionada pela FAPESP. Processo Medicina 93/ 0208-5.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Out 2003 -
Data do Fascículo
Fev 1993
Histórico
-
Aceito
19 Nov 1992 -
Recebido
03 Jul 1992 -
Revisado
11 Nov 1992