Open-access Desigualdade de indicadores de mortalidade no Sudeste do Brasil

Mortality risk measure inequalities among workers in Southeast Brazil

Resumos

INTRODUÇÃO: Há indícios de que a deterioração das condições de trabalho ocorrida em anos recentes influencie a mortalidade. O objetivo do estudo é estimar indicadores de mortalidade para a população de Botucatu, classificada de acordo com as ocupações exercidas. MÉTODO: Foram calculados os indicadores coeficiente de mortalidade padronizado (CMP), razão de risco padronizada e anos potenciais de vida perdidos (APVP) para a população de Botucatu, em 1997, segundo ocupações e causas básicas do óbito. RESULTADOS: Os indicadores CMP e APVP variaram entre 0,6 e 39,9 óbitos/1000 trabalhadores e entre 33 e 334 anos/1000 trabalhadores, respectivamente, de acordo com a ocupação principal exercida. Observou-se que a ordenação quantitativa das causas de óbito depende da ocupação e do indicador utilizado. CONCLUSÕES: Os indicadores de mortalidade verificados apresentam uma grande heterogeneidade quando analisados de acordo com ocupação e causas básicas de óbito, refletindo a enorme desigualdade social existente na população estudada.

Mortalidade; Ocupações; Coeficiente de mortalidade; Anos potenciais de vida perdidos


INTRODUCTION: The main causes of illness and death in Brazil have been migrating backwards into the younger population during the last few years, increasing especially in the more productive age groups. Given the relationship between work and health/disease process, the hypothesis to be considered is that this phenomenon is partially due to the deterioration of workplace conditions. To contribute to investigating this hypothesis, this study estimates mortality risk indicators for the population of Botucatu, in the Southeast region of Brazil, classified according to their occupation. METHODS: Standardized mortality coefficient, standardized risk ratio, and years of potential life lost were calculated for the inhabitants of Botucatu who died after their 10th birthday, between January 1997 and March 1998, and classified according to their occupation and main cause of death. Occupational and medical information was obtained by interviewing families of the deceased and their doctors, and checking medical files. RESULTS: The standardized mortality coefficient ranged from 0.6 to 39.9 deaths/1000 workers in different occupations. The years of potential life lost ranged form 33 to 334 years/1000 workers. The ranking of causes of death varied according to occupation and the mortality risk considered. CONCLUSION: The risk measures analyzed showed a high heterogeneity when associated to occupation and causes of death, which reflects the great social inequality existingin the studied population.

Mortality; Occupations; Mortality rate; Years of potential life lost


Desigualdade de indicadores de mortalidade no Sudeste do Brasil*

Mortality risk measure inequalities among workers in Southeast Brazil

Ricardo Cordeiro, Eduardo R Olivencia P, Chrystiano F Cardoso, Daniela B Cortez, Eric Kakinami, Jacques J G Souza, Maria T M Souza, Ricardo Augusto Fernandes, Rodrigo F Guercia e Tarso Adoni

Departamento de Saúde Pública, da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista. Botucatu, SP - Brasil

Descritores
Mortalidade. Ocupações. Coeficiente de mortalidade. Anos potenciais de vida perdidos Resumo

Introdução

Há indícios de que a deterioração das condições de trabalho ocorrida em anos recentes influencie a mortalidade. O objetivo do estudo é estimar indicadores de mortalidade para a população de Botucatu, classificada de acordo com as ocupações exercidas.

Método

Foram calculados os indicadores coeficiente de mortalidade padronizado (CMP), razão de risco padronizada e anos potenciais de vida perdidos (APVP) para a população de Botucatu, em 1997, segundo ocupações e causas básicas do óbito.

Resultados

Os indicadores CMP e APVP variaram entre 0,6 e 39,9 óbitos/1000 trabalhadores e entre 33 e 334 anos/1000 trabalhadores, respectivamente, de acordo com a ocupação principal exercida. Observou-se que a ordenação quantitativa das causas de óbito depende da ocupação e do indicador utilizado.

Conclusões

Os indicadores de mortalidade verificados apresentam uma grande heterogeneidade quando analisados de acordo com ocupação e causas básicas de óbito, refletindo a enorme desigualdade social existente na população estudada.

Keywords:
Mortality. Occupations. Mortality rate. Years of potential life lost. Abstract

Introduction

The main causes of illness and death in Brazil have been migrating backwards into the younger population during the last few years, increasing especially in the more productive age groups. Given the relationship between work and health/disease process, the hypothesis to be considered is that this phenomenon is partially due to the deterioration of workplace conditions. To contribute to investigating this hypothesis, this study estimates mortality risk indicators for the population of Botucatu, in the Southeast region of Brazil, classified according to their occupation.

Methods

Standardized mortality coefficient, standardized risk ratio, and years of potential life lost were calculated for the inhabitants of Botucatu who died after their 10th birthday, between January 1997 and March 1998, and classified according to their occupation and main cause of death. Occupational and medical information was obtained by interviewing families of the deceased and their doctors, and checking medical files.

Results

The standardized mortality coefficient ranged from 0.6 to 39.9 deaths/1000 workers in different occupations. The years of potential life lost ranged form 33 to 334 years/1000 workers. The ranking of causes of death varied according to occupation and the mortality risk considered.

Conclusion

The risk measures analyzed showed a high heterogeneity when associated to occupation and causes of death, which reflects the great social inequality existingin the studied population.

INTRODUÇÃO

Durante as últimas décadas, uma série de conquistas tornou possível - ainda que de modo bastante heterogêneo e tardiamente em relação aos países industrializados do Ocidente - a queda da mortalidade geral e, em particular, da mortalidade infantil em todo o Brasil. Tal redução, associada à verificada diminuição do coeficiente de natalidade, resultou no aumento da expectativa de vida ao nascer e no envelhecimento da população brasileira.(Possas16, 1989) Neste novo quadro demográfico passaram a despontar em importância as doenças crônicas não-transmissíveis; vindo posteriormente a elas se juntarem as causas externas de adoecimento e morte. (Minayo14, 1995).

Assim, já ao final da década de 80, as doenças cardiovasculares, as mortes violentas e as neoplasias constituíam, respectivamente, as três primeiras causas de morte no Estado de São Paulo (Ministério da Saúde16, 1997), bem como na maior parte do restante do país, coexistindo com antigas e novas endemias e epidemias de doenças infectoparasitárias (Minayo14, 1995). Entretanto, a doença não se distribui homogeneamente no Brasil, mas atinge grupos populacionais em momentos, formas e intensidades diversas.Também diversas são suas condições de existência, notavelmente marcada pela desigualdade de acesso a bens de quaisquer natureza.

Evidenciar diferenciais de mortalidade em populações classificadas socialmente é uma forma de dimensionar desigualdades sociais, passo importante para a sua compreensão. O objetivo do presente estudo é desvelar os diferenciais de mortalidade da população de Botucatu, utilizando como variável preditora a ocupação.

MÉTODOS

Foram calculados os indicadores coeficiente de mortalidade padronizado (CMP), razão de risco padronizada (RRP) e anos potenciais de vida perdidos entre 10 e 74 anos (APVP) para a população de Botucatu, São Paulo, classificada de acordo com grupos e subgrupos ocupacionais, e causa básica do óbito.

Para o cálculo do CMP, RRP e APVP utilizaram-se os seguintes algoritmos:

onde,

i = faixa etária (unitária em anos)

mOCi = número de óbitos de trabalhadores do grupo ou subgrupo ocupacional O, devido à causa básica C, na faixa etária i, em Botucatu, ocorridos no período estudado corrigido para um ano

M = número de óbitos ocorridos no Brasil em 1995

bOi = número de trabalhadores pertencentes ao grupo ou subgrupo ocupacional O, na faixa etária i, residentes em Botucatu, em 1997

pi = população brasileira na faixa etária i em 1996 (para CMPOC e APVPOC) e 1995 (para RRPOC)

P = população total brasileira em 1996

A distribuição da população brasileira segundo faixas etárias de um ano, em 1996, foi obtida consultando-se os resultados da contagem populacional realizada pelo IBGE5, em 1996. Para 1995, esta distribuição foi estimada por interpolação exponencial, tendo como limites as distribuições populacionais de 1991 e 1996, obtidas no Censo 91 e na Contagem 96, respectivamente. O total de óbitos ocorridos no Brasil em 1995 foi obtido consultando-se o banco de dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde16 ,1997.

A distribuição da população de Botucatu, segundo grupos e subgrupos ocupacionais e faixas etárias de um ano, foi estimada por intermédio da aplicação de um método amostral realizado durante os meses de junho e julho de 1997. As informações sobre os trabalhadores moradores da zona urbana do município foram coletadas em amostragem aleatória sistemática de conglomerados. Foram utilizados os mapas dos setores censitários da região urbana de Botucatu como um cadastro universal e ordenado de domicílios residenciais. A partir desse cadastro amostrouse sistematicamente um sétimo de todos os domicílios residenciais. Na zona rural do município foram alocados 100% dos domicílios residenciais de 4 aglomerados rurais, o que, como na zona urbana, correspondeu a um sétimo dos domicílios nessa área.

Foram obtidas informações sobre sexo, idade, situação de trabalho e descrição detalhada da ocupação principal, para cada morador com 10 ou mais anos de idade nos domicílios amostrados, em ambas regiões. A ocupação principal foi definida como aquela exercida por maior tempo durante a vida laboral. As informações foram obtidas por entrevistas domiciliares com um morador adulto. A partir das informações obtidas, as ocupações foram classificadas como pertencentes a um dos grupos e subgrupos ocupacionais especificados, com base em Rumel17.

Grupo 1. Trabalhadores intelectuais: administrativos; cientistas e artistas; técnicos;

Grupo 2. Trabalhadores agricultores: agropecuários e produção extrativa vegetal e animal.

Grupo 3. Trabalhadores da área de serviços: serviço de eletricidade; comércio; transporte; comunicações; prestação de serviços; escritório; segurança pública e defesa nacional.

Grupo 4. Trabalhadores operários: extrativa mineral; mecânica, metalúrgica e material elétrico; construção civil; alimentação, bebidas e cigarros; têxtil e curtição de couro; vestuário e artefatos de couro; madeira e móveis; papel e papelão; gráfica; cerâmica e vidro; jóias e instrumentos de precisão; artefatos de borracha e plástico; movimentos de cargas.

Grupo 5. Trabalhadores braçais: trabalhadores braçais.

Estimou-se o número de moradores pertencentes a cada um dos grupos e subgrupos, dividindo-se o número encontrado na amostra pela fração amostral obtida. Para o cálculo dos intervalos de confiança, pressupôs-se que os domicílios de área urbana (93,1%) e os de área rural (6,9%) foram originados de uma mesma amostra de conglomerados. A variância amostral dos estimadores foi estimada segundo a expressão2:

onde:

f = fração amostral

n = número de domicílios amostrados

h/ = número médio de habitantes nos domicílios

ai = número de indivíduos pertencentes ao grupo ou subgrupo ocupacional O no domicílio i

= proporção de indivíduos pertencentes ao grupo ou subgrupo ocupacional O na amostra

hi = número de habitantes no domicílio i

A distribuição da população falecida em Botucatu, com 10 ou mais anos de idade, segundo causa básica do óbito, grupos e subgrupos ocupacionais, e faixas etárias de um ano, foi obtida como se segue. A família dos moradores da cidade, que faleceram entre 1/1/97 e 26/3/98, nessa faixa etária, era visitada por um entrevistador da equipe de pesquisa, que entrevistava um familiar adulto, geralmente filho(a), cônjuge, irmão(ã) ou pai(mãe) do falecido. Nessas entrevistas era recuperada a história do óbito e os problemas relevantes de saúde do falecido, segundo o respondente. Paralelamente, para os óbitos hospitalares, era pesquisado o desenvolvimento do processo que levou ao óbito por intermédio do estudo do prontuário do falecido, que abrangia inclusive a análise de exames subsidiários importantes para o estabelecimento de diagnósticos, como por exemplo laudos de biópsia e de exames de imagens. A análise dos prontuários foi feita por um médico especialista em saúde ocupacional, membro da equipe de pesquisa. Foram também examinados os laudos de necropsia emitidos pelo Serviço de Verificação de Óbitos da Faculdade de Medicina de Botucatu e pelo Instituto Médico Legal do município. Em muitas ocasiões, para complemento de informações, o médico que acompanhou o falecido, ou o que procedeu a necropsia, foi também entrevistado. Para óbitos domiciliares de pacientes crônicos, os prontuários hospitalares foram localizados e analisados, sempre que possível, segundo o mesmo procedimento acima descrito. Em alguns casos foram localizados e analisados prontuários ambulatoriais de pacientes crônicos em seguimento ambulatorial regular. Ao final deste processo, o Atestado de Óbito era reconstruído caso a caso por um membro da equipe de pesquisa, com grande experiência em codificação de mortalidade. A partir do Atestado de Óbito reconstruído, o mesmo pesquisador selecionava a causa básica do óbito, com base nas regras de seleção da 10a Revisão da Classificação Internacional de Doenças.

Na mesma entrevista com a família, era também recuperada a história ocupacional do falecido, a partir de seus 10 anos de idade e até a última ocupação exercida, anotando-se pormenorizadamente as ocupações e os seus respectivos tempos de exercício. Sempre que disponível, a carteira profissional do falecido era consultada, ratificando-se e complementandose as informações obtidas. Cerca de 10% dos familiares entrevistados, escolhidos ao acaso, foram revisitados por coordenadores de campo, que reaplicavam parcialmente a entrevista. Os dados eram comparados com as entrevistas originais para checar sua qualidade, visando a identificar eventuais imprecisões, erros sistemáticos ou mesmo fraudes, os quais não foram identificados.

RESULTADOS

Foram realizadas entrevistas em 4.454 domicílios residenciais amostrados na zona urbana e 328 na zona rural, o que correspondeu a uma fração amostral de 0,168. Nos domicílios amostrados foram identificados 17.219 moradores, projetando-se uma população de 102.494 moradores na cidade em 1/7/1997, com um intervalo de confiança de 95% igual a 101.810 103.179.

Entre 1/1/97 e 26/3/98 faleceram 785 moradores em Botucatu, implicando o coeficiente geral de mortalidade de 6,21 óbitos/1.000 habitantes-ano (IC 95% 6,17 - 6,25), e o coeficiente de mortalidade padronizado para a população do Brasil, em 1996, igual a 4,97 óbitos/1.000 habitantes.ano (IC 95% 4,95 - 4,99).

Dentre os 785 falecidos, 745 tinham 10 ou mais anos no momento do óbito. Dentre estes conseguiram-se de 658 indivíduos informações sobre o grupo e o subgrupo de ocupação principal exercida em vida, bem como a causa básica do óbito. Isto correspondeu a uma fração de 88,1%. A distribuição de sexo, idade e estado civil entre as perdas não diferiu significativamente daquela encontrada entre os 658 indivíduos estudados. Para o cálculo das estatísticas de mortalidade, assumiuse que as distribuições de ocupação entre as perdas eram semelhantes às da população analisada.

Na Tabela 1 são apresentados os valores do CMP para os trabalhadores de Botucatu, classificados segundo grupos de ocupação principal e segundo alguns capítulos da CID-10(I: algumas doenças infecciosas e parasitárias; II: neoplasias; IX: doenças do aparelho circulatório; X: doenças do aparelho respiratório; XX: causas externas; e demais capítulos). Também são apresentados os CMP para a população trabalhadora classificada de acordo com os subgrupos de ocupação principal mais prevalentes na cidade. A Figura 1 enfatiza a grande variabilidade encontrada entre os CMP da população estudada, classificada de acordo com ocupações e causas básicas de óbito.


Na Tabela 2 são apresentados os valores da RRP para os trabalhadores classificados segundo grupos e subgrupos de ocupação principal exercida e causas básicas do óbito. A mesma variabilidade encontrada na Tabela 1 pode ser notada nesta, uma vez que, na prática, a RRP é obtida a partir da razão entre os diferentes CMP da população estudada e uma constante, que neste caso é o CMP da população brasileira em 1995.

Na Tabela 3 são apresentados os valores dos APVP para trabalhadores entre 10 e 74 anos classificados de modo análogo à classificação utilizada na Tabela 1. Também aqui percebe-se uma grande amplitude de variação. A Figura 2 ilustra essas disparidades.


DISCUSSÃO

A utilização da ocupação como variável relacionada ao adoecimento teve início no começo do século XVIII, quando o médico italiano Bernardino Ramazzini publica "De Morbis Artificum Diatriba", o primeiro tratado de doenças dos trabalhadores. O primeiro estudo epidemiológico relacionando ocupação a óbitos foi realizado 150 anos mais tarde por William Farr. Desde então, classificações ocupacionais exclusivas ou combinadas têm sido amplamente utilizadas.

A maioria das classificações sociais utilizadas em estudos epidemiológicos baseia-se na ocupação como indicadora, única ou associada, de estrato social8. Ocupações costumam ser classificadas conforme a opinião a respeito do prestígio que elas conferem, conforme o grau de escolaridade requerido para seu exercício, e conforme o seu retorno financeiro8.

No presente estudo, a opção pela utilização da ocupação como variável privilegiada na análise deveu-se não apenas a seu caráter identificador de estrato social, mas também por marcar exposições a riscos ocupacionais razoavelmente específicos, ligados aos postos de trabalho 8,12. Isto porque a distribuição das cargas de trabalho7 e suas implicações no desgaste das populações trabalhadoras não se subordinam estritamente à classe social, ou mais restritamente, à inserção nas relações de produção. Esta distribuição diz respeito também às condições de trabalho, implicando situações até certo ponto específicas, e assim determinando níveis diferenciados de exposição.

A classificação ocupacional adotada no presente estudo foi proposta por Rumel17 em 1987, que a utilizou na análise dos dados de declarações de óbitos masculinos na faixa etária de 15 a 64 anos ocorridos no estado de São Paulo entre 1980 e 1982. Este autor agrupou ocupações da Classificação Brasileira de Ocupações18 com base na classificação de ocupações utilizada pelo IBGE4. Como resultado, as ocupações são divididas em cinco grandes grupos (chamados por Rumel17 de níveis sociais), onde prevalece o componente indicador social: trabalhadores intelectuais (grupo 1), agricultores (grupo 2), de serviços (grupo 3), operários (grupo 4) e braçais (grupo 5). Os Grupos 1, 3 e 4 são também divididos em subgrupos, onde para vários deles ocorrem exposições ocupacionais relativamente específicas (como por exemplo os subgrupos dos trabalhadores eletricitários, de transportes, da construção civil, da indústria gráfica, etc.).

Com relação aos indicadores de mortalidade apresentados, chama a atenção a disparidade que eles apresentam entre si, conforme variam as ocupações e as causas básicas de óbitos dos grupos estudados. Como mostra a Tabela 1, o CMP da população de Botucatu, como um todo, foi estimado em 4,97 óbitos/1.000 habitantes, variando de 2,38 para trabalhadores intelectuais a 8,40 para operários. Entre os subgrupos de ocupação, a variação foi consideravelmente maior, transitando entre 0,60 óbito/1.000 trabalhadores para cientistas e artistas e 39,92 para operários da indústria de vestuário. Ou seja, a incidência de óbitos entre os operários da indústria do vestuário foi 66 vezes maior que entre os cientistas e artistas, após corrigidas as diferenças da estrutura etária dos dois grupos. Também com relação aos óbitos para causas básicas classificadas de acordo com cinco grupos de Rumel17, pôde-se observar variações consideráveis. O CMP para óbitos por causas externas, por exemplo, variou de 0,13 óbito/1.000 trabalhadores para trabalhadores intelectuais a 1,64 para agricultores. Isto é, a incidência de mortes violentas entre os trabalhadores do campo foi 13 vezes maior que entre os trabalhadores intelectuais de Botucatu. Variabilidade semelhante pode ser encontrada quando se analisa a RRP (Tabela 2).

Em relação aos APVP, as disparidades podem ser observadas na Tabela 3. Esse indicador abrangeu valores entre 39 e 274 anos/1.000 trabalhadores, quando passou de trabalhadores intelectuais para trabalhadores braçais. Esta variação foi maior entre subgrupos de ocupação, passando de 33 anos/1.000 trabalhadores para cientistas e artistas a 334 anos/1.000 trabalhadores para operários da indústria de vestuário. Da mesma maneira, os APVP classificados segundo capítulos da CID10 apresentaram grande variação. No ano de 1997, cada grupo de 1.000 trabalhadores intelectuais da cidade, com idade entre 10 e 74 anos, "perdeu" 4 anos em decorrência de mortes violentas, enquanto entre os trabalhadores do campo, nessa mesma situação, a perda foi de 84 anos, isto é, 21 vezes maior, conforme ilustra a Figura 2. A magnitude dessas variações dispensa a realização de testes de hipóteses.

Chamam a atenção as diferenças das propriedades dos indicadores de mortalidade utilizados: CMP (e seu análogo RRP) e APVP. O CMP do grupo de trabalhadores intelectuais situase em patamar definitivamente inferior aos demais 4 grupos, os quais estão em níveis próximos entre si (Tabela 1). Entretanto, pela Tabela 3 pode-se identificar três patamares quando se analisa APVP para grupos de ocupação, estando trabalhadores intelectuais em posição inferior, prestadores de serviços e operários em situação superior, e agricultores e braçais em posição ainda superior aos anteriores. A comparação das Figuras 1 e 2 entre si salienta as diferentes propriedades dos indicadores CMP e APVP. Analisandose o CMP de acordo com as causas de óbito, observase que as doenças do coração (Capítulo IX, CID-10) e as neoplasias (Capítulo II) foram, nessa ordem, as causas mais importantes de óbito para intelectuais, prestadores de serviços e operários; sendo que para agricultores as mortes violentas (causas externas, Capítulo XX) prevaleceram entre todas as outras (Figura 1). Entretanto, quando o indicador analisado é o APVP, observase que não apenas para agricultores, mas também para prestadores de serviços e operários, as mortes violentas prevalecem sobre todas as outras; permanecendo em terceiro lugar apenas para o grupo dos intelectuais (Figura 2). Chama a atenção a magnitude dos APVP por mortes violentas para agricultores, maior que qualquer outro APVP por qualquer causa em qualquer outro grupo ocupacional.

Merece destaque a capacidade do APVP de incorporar a dimensão temporal ao fenômeno da morte. Possivelmente a ascensão das causas externas ao primeiro posto entre as causas de óbito na população estudada, quando se utiliza o APVP, reflete o conhecido aumento das mortes violentas entre a população jovem, em anos recentes18. Este indicador foi maior entre os trabalhadores do campo do que entre os da cidade, em Botucatu, sugerindo que o fenômeno da violência venha se dando com maior intensidade na zona rural do município. Dois dos óbitos ocorridos entre trabalhadores rurais foram devidos a acidentes do trabalho, ambos até então não notificados, sendo descobertos no processo da presente pesquisa.

Para o entendimento dos resultados acima apresentados, vale a pena demarcar algumas idéias que ao longo do tempo vêm sendo consolidadas no âmbito da epidemiologia, em que pese o risco, dada a natureza do presente trabalho, de ser demasiadamente sintético.

A relação entre classe/estrato social** e indicadores de saúde (geralmente quantificados por estatísticas de mortalidade) tem sido ampla e irrefutavelmente identificada nos países industrializados durante todo o decorrer do século XX8. Na grande maioria dos países do Terceiro Mundo não existem estatísticas de âmbito nacional confiáveis apontando tal associação. Em boa parte isto se deve a problemas com a cobertura e validação dos sistemas de informação. Entretanto, nada faz supor a inexistência de tal associação nestes países.

Existe um considerável conjunto de evidências apontando uma associação negativa entre estrato social e mortalidade por todas as causas, isto é, quanto mais baixo é o estrato social, mais altos são os indicadores de mortalidade12.

Também para as doenças cardiovasculares, a associação com estrato social tem sido apontada durante todo o decorrer do século XX. Estas patologias, que no início do século foram consideradas doenças de estratos sociais elevados nos países industrializados12, a partir dos anos 30 começam a ser reconhecidas como fortemente associadas aos estratos sociais mais inferiores13.

Com relação às doenças neoplásicas, a associação com estrato social parece não se dar na mesma direção para todos os sítios. Revendo a literatura a partir de 1970, Loom e col.9 identificam, com maior ou menor consistência, uma associação negativa com estrato social para canceres de pulmão, estômago, orofaringe, fígado, esôfago e colo uterino; e positiva para mama e cólon.

Para inúmeros outros agrupamentos de doença também tem sido consistentemente apontada uma associação negativa com estrato social, como por exemplo doenças mentais3, doenças perinatais6, doenças maternas12, e tantas outras.

Definitivamente, diferenças sociais associam-se a diferenças nos indicadores de saúde. E diferenças de mortalidade segundo estrato social têm sido consideradas o melhor indicador de desigualdade social19. Vários autores têm documentado que, muito embora a mortalidade (geral e para a maioria das causas) venha diminuindo na segunda metade deste século em muitos países industrializados, as diferenças de mortalidade entre estratos vêm aumentando às custas de uma queda mais acentuada nos estratos sociais mais elevados11.

Na discussão da natureza da associação entre estrato social e indicadores de mortalidade, pelo menos três tendências podem ser identificadas. A primeira delas, conhecida por "artefact explanation", argumenta que parte das associações encontradas são viéses decorrentes de deficiências nas classificações sociais utilizadas, erros nas medidas dos indicadores de mortalidade e erros nas análises estatísticas utilizadas9,10.

A segunda evidência, conhecida como "selectional explanation", argumenta que o estado de saúde de um indivíduo, função de fatores genéticos e ambientais, é um fator primário de mobilidade social. Indivíduos com boa saúde têm maior chance de ascensão social, enquanto os com má saúde têm maior probabilidade de descenso. Consequentemente, ao longo do tempo, nos estratos mais elevados concentram-se indivíduos com melhor saúde, o que explicaria as diferenças de mortalidade encontradas1,19.

A terceira tendência, às vezes chamada de "materialist explanation", advoga que as diferenças de mortalidade segundo estrato social precisam ser explicadas no interior da relação classe/saúde, e não fora dela como nas visões anteriores. Neste domínio, duas concepções sobressaem. Uma delas, a mais prevalente nos estudos epidemiológicos, entende que as diferenças são resultado da distribuição desigual dos fatores de risco entre os estratos sociais8. De fato, numerosos trabalhos mostram que o tabagismo, o etilismo, as dietas pobres em fibras e ricas em gorduras, o sedentarismo, as exposições ocupacionais aos agentes químicos e físicos nocivos, o estresse - para citar apenas alguns dos mais conhecidos fatores de risco para um grande número de doenças - distribuem-se desigualmente entre os estratos sociais, concentrandose nos mais inferiores. Sob esta perspectiva, estrato social é um marcador de risco, sendo incorporado às análises multivariadas como um fator de confundimento. A outra concepção nesta linha de pensamento defende a existência de relação causal entre estrato social e níveis de saúde, uma vez que os diferenciais de distribuição dos fatores de risco para doenças são eles próprios determinados socialmente. Fatores de risco são elos intermediários na cadeia causal. Sob este ponto de vista, é inadequado "controlar o confundimento" de estrato social numa análise envolvendo fatores de risco e doença, uma vez que tais fatores não são independentes, mas subordinam-se no processo causal em que a desigualdade na saúde é determinada no âmbito social.

É possível que a explicação das diferenças de mortalidade encontradas em Botucatu contenha elementos das três correntes acima citadas. Não há como descartar erros de medidas, inerentes a quaisquer processos de mensuração. E parece ser aceitável que uma pequena parte das diferenças assinaladas se deva à maior possibilidade de ascensão social que uma condição de saúde melhor poderia eventualmente conferir. Entretanto, o esforço para o entendimento dos diferenciais deve se concentrar na terceira concepção acima descrita, uma vez que aí está sediada a origem das desigualdades, sendo este ambiente o alvo das ações para a sua superação.

Já existem estudos mostrando que em Botucatu a prevalência de tabagismo e alcoolismo é maior entre os grupos ocupacionais menos especializados. Não há informações sistematizadas sobre a distribuição de muitos outros tradicionais fatores de risco - tais como sedentarismo, obesidade, hipertensão, etc. - na população local classificada quanto a ocupações. É provável, conforme tendência observada em diversos outros países, que esses riscos se distribuam desigualmente, sendo mais prevalentes nos grupos ocupacionais mais inferiores. Entretanto, seria ingênuo explicar diferenças de mortalidade simplesmente como decorrentes de diferenças na distribuição de fatores de risco. Tal constatação é de pouca utilidade em saúde pública, a menos que se possa compreender os determinantes sociais desta distribuição. Exemplificando, a menos que se possa de fato compreender, por exemplo, porque os trabalhadores braçais fumam mais que os intelectuais, campanhas antitabagistas continuarão ter eficiência questionável.

Em conclusão, os resultados evidenciam a grande disparidade dos indicadores de mortalidade da população de Botucatu quando classificada de acordo com suas ocupações, um indicador de desigualdade social na cidade. Nada sugere que seja esta uma situação particular do município. Ao contrário, a percepção que se tem é que esse quadro de diferenças seja encontrado, em maior ou menor amplitude, em todo o país.

AGRADECIMENTO

À Mônica Aparecida Silveira Kron, pela orientação e supervisão na codificação das causas de óbito e seleção das causas básicas.

Correspondência para/Correspondence to:

Ricardo Cordeiro - Caixa Postal 543, 18618-970 Botucatu SP - Brasil.

E-mail: cordeiro@fmb.unesp.br

Edição subvencionada pela Fapesp (Processo n 98/13915-5).

Recebido em 24.11.1998. Reapresentado em 26.5.1999. Aprovado em 14.6.1999

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    Financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processos 96/7583-4, 96/7584-0, 96/75857, 97/127829, 97/12783-5 e 97/12784-1) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Processo 520605/96-9).
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    A conceituação de classe social é um debate secular na teoria sociológica que está além dos limites deste texto. Entretanto, é útil destacar que os estudos epidemiológicos geralmente refletem duas orientações. A conceituação marxista de classe social é concebida com base nas relações sociais de produção. A visão weberiana confere grande importância a domínios relacionados à riqueza, prestígio e poder dos indivíduos na sociedade, gerando, a partir deles, indicadores de estratos sociais bastante difundidos em um grande número de estudos epidemiológicos. Entre eles, os mais utilizados são educação, renda e ocupação.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Ago 2001
    • Data do Fascículo
      Dez 1999

    Histórico

    • Aceito
      14 Jun 1999
    • Revisado
      26 Maio 1999
    • Recebido
      24 Nov 1998
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