Resumos
OBJETIVO: Avaliar a sobremortalidade por diarréia infecciosa, sem diagnóstico etiológico, simultânea à circulação do Vibrio cholerae. MÉTODOS: Foi aplicada modelagem estatística à série histórica dos óbitos ocorridos por "infecções intestinais mal definidas" (Classificação Internacional de Doenças - CID-9) e "diarréia e gastroenterite de origem infecciosa presumível" (CID-10), entre 1980 e 1998, na região Nordeste. Foi obtida a predição de valores esperados a partir de um ponto de descontinuidade. O excesso de mortalidade foi calculado pela diferença entre o observado e o estimado pelo modelo. RESULTADOS: Entre 1992 e 1994, apenas 19,3% dos óbitos por cólera foram efetivamente registrados. Em 1993, ano em que a epidemia atingiu seu ponto máximo na região, a presente modelagem leva a uma estimativa de sub-registro de 82,2%. CONCLUSÕES: Os resultados apontam um grande sub-registro da mortalidade por cólera durante a epidemia na região Nordeste.
Diarréia; Cólera; Surtos de doenças; Registros de doenças
OBJECTIVE: To evaluate excess mortality due to infectious diarrhea without etiological diagnosis, occurring simultaneously to Vibrio cholerae circulation. METHODS: Statistical modeling was applied to a time series of deaths ascribed to "poorly defined intestinal infections" (International Classification of Diseases - ICD-9) and "presumably infectious diarrhea and gastroenteritis" (ICD-10), between 1980 and 1998 in the Northeast Region of Brazil. The prediction of expected values was obtained after a discontinuity point. Excess mortality was calculated as the difference between observed figures and those estimated by the model. RESULTS: Between 1992 and 1994, only 19.3% of deaths by cholera were actually notified. In 1993, the year in which the epidemic reached its peak in the area, our modeling estimated underregistration at 82.2%. CONCLUSIONS: Results indicate substantial underregistration of cholera mortality during the epidemic in Northeastern Brazil.
Diarrhea; Cholera; Disease outbreaks; Diseases registries
ARTIGOS ORIGINAIS
Sobremortalidade por diarréia simultânea à cólera na região Nordeste do Brasil
Moacir GerolomoI; Maria Lúcia Fernandes PennaII
IFundação Nacional de Saúde. Ministério da Saúde. Curitiba, PR, Brasil
IIInstituto de Medicina Social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Endereço para correspondência Endereço para correspondência Moacir Gerolomo Travessa João Turín, 72/208 80240-100 Curitiba, PR, Brasil E-mail: moacir.gerolomo@saude.gov.br
RESUMO
OBJETIVO: Avaliar a sobremortalidade por diarréia infecciosa, sem diagnóstico etiológico, simultânea à circulação do Vibrio cholerae.
MÉTODOS: Foi aplicada modelagem estatística à série histórica dos óbitos ocorridos por "infecções intestinais mal definidas" (Classificação Internacional de Doenças CID-9) e "diarréia e gastroenterite de origem infecciosa presumível" (CID-10), entre 1980 e 1998, na região Nordeste. Foi obtida a predição de valores esperados a partir de um ponto de descontinuidade. O excesso de mortalidade foi calculado pela diferença entre o observado e o estimado pelo modelo.
RESULTADOS: Entre 1992 e 1994, apenas 19,3% dos óbitos por cólera foram efetivamente registrados. Em 1993, ano em que a epidemia atingiu seu ponto máximo na região, a presente modelagem leva a uma estimativa de sub-registro de 82,2%.
CONCLUSÕES: Os resultados apontam um grande sub-registro da mortalidade por cólera durante a epidemia na região Nordeste.
Descritores: Diarréia, mortalidade. Cólera, mortalidade. Surtos de doenças, sub-registro. Registros de doenças.
INTRODUÇÃO
A avaliação das condições de vida e saúde da população brasileira aponta hoje para um quadro de extrema gravidade. Ele se traduz na sobreposição de padrões de morbidade e mortalidade distintos, em que o avanço dos padrões ditos de modernidade, doenças crônico-degenerativas e violências, entre outras, se associam à persistência de padrões identificados com o atraso e o subdesenvolvimento, como as doenças infecciosas e parasitárias.9
Em um curto espaço de tempo, houve uma diminuição significativa na participação das doenças infecciosas e parasitárias na mortalidade brasileira. Passou de segunda causa, em 1977, para quinta causa identificada, em 1984, caindo de 9,3% dos óbitos, em 1980, para 7,6%, em 1984.11 Em 1996, 1997 e 1998, as doenças infecciosas e parasitárias figuraram como sexta causa de mortalidade no Brasil, sendo responsáveis por, respectivamente, 5,8, 5,3 e 5,2% do total de óbitos ocorridos. Para isso, contribuiu a possibilidade crescente de acesso da população a bens e serviços essenciais, ainda que distribuídos de forma desigual e concentrados nos contingentes populacionais localizados nos bolsões de desenvolvimento.
Em que pese esse acentuado declínio observado na proporção de óbitos por doenças infecciosas e parasitárias no Brasil, na região Nordeste, as mortes relacionadas a essa causa ainda são um componente importante na estrutura da mortalidade infantil e da infância. Representam cerca de 16,5% do conjunto total de óbitos. Essa proporção pode ser mais elevada, visto que nessa região persistem altos índices de causas mal definidas, com 22% do total de óbitos em 1998, o que pode ter mascarado os percentuais relacionados às mortes por doenças infecciosas e parasitárias. Causas não determinadas referem-se, preferencialmente, a grupos sociais mais carentes que, durante o processo doença-morte, deixaram de ter acompanhamento médico.13 Segundo Werneck & Reichenheim,16 as doenças, cujo impacto na mortalidade é mais intenso na população de menores de um ano, são subestimadas quando se analisa apenas as proporções de óbitos, como mostram estudos que analisam anos potenciais de vida perdidos.
A cólera, na sua expressão clínica em nível individual, é uma doença diarréica aguda que pode determinar a perda de vários litros de água e eletrólitos corporais em poucas horas. Caso não sejam prontamente restabelecidas, essas perdas levam a um quadro clínico de choque hipovolêmico e morte.5 No Brasil, entre 1991 e 1998, foram notificados ao Ministério da Saúde, pelo Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SNVE), do Ministério da Saúde, 1.918 óbitos por cólera. No mesmo período, o Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), gerenciado pelo Departamento de Informática do SUS (Datasus), também do Ministério da Saúde, registrou 1.295 óbitos. Tal disparidade remete à suposição de que tenha ocorrido um expressivo sub-registro na mortalidade por cólera no Brasil.
A avaliação do impacto da circulação do V. cholerae na mortalidade pode ser realizada indiretamente, por meio de modelagem estatística, estimando-se o excesso de mortalidade durante a vigência da epidemia, calculado como a diferença entre o número de óbitos observados e os esperados na ausência da epidemia. Essa abordagem já foi consagrada no estudo do impacto da circulação do vírus Influenza e dos efeitos deletérios da poluição atmosférica.6,12
O presente estudo tem por objetivo avaliar a sobremortalidade por diarréia infecciosa, sem diagnóstico etiológico, na região Nordeste do Brasil, simultânea à circulação do V. cholerae nessa mesma região.
MÉTODOS
A série histórica dos óbitos ocorridos por "infecções intestinais mal definidas" (CID-9), entre 1980 e 1995, e "diarréia e gastroenterite de origem infecciosa presumível" (CID-10), entre 1996 e 1998, foi obtida com o Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde. A série temporal completa foi utilizada para a estimação do ponto de descontinuidade da estrutura estatística da série, aplicando-se um modelo auto-regressivo estacionário local e o princípio do valor mínimo do critério de informação de Akaike (AIC). Uma vez determinado o ponto de descontinuidade, os dados da série temporal anteriores foram modelados pela decomposição nos componentes tendência polinomial local, auto-regressão estacionária global e erro aleatório. O valor mínimo de AIC foi utilizado para a seleção do melhor modelo.7 Os parâmetros do modelo foram estimados utilizando-se o aplicativo Kyplot. O modelo ajustado foi utilizado para a predição dos valores esperados a partir do ponto de descontinuidade. O excesso de mortalidade foi calculado pela diferença entre o observado e o estimado pelo modelo.
RESULTADOS
A série histórica com o número de óbitos por diarréia infecciosa, sem diagnóstico etiológico, na região Nordeste, entre 1980 e 1998 (Figura 1), mostra que esse número vinha decrescendo continuamente, mas voltou a subir em 1992, primeiro ano da epidemia na região. A partir de então, sua variação acompanha os coeficientes de incidência da cólera.
O ponto de descontinuidade do comportamento da série temporal apontado pelo modelo foi o ano de 1991, conforme Tabela 1 que, em conjunto com o trabalho de Kitagawa & Gersch,7 pode ser utilizada para melhor entendimento da modelagem estatística utilizada.
O modelo selecionado para o ajuste dos dados de 1980 a 1990 é apresentado na Tabela 2, cujos resultados são apresentados na Figura 2, onde também podem ser observados os óbitos esperados e observados, a partir de 1992.
A Tabela 3 apresenta os óbitos observados, estimados, limite superior e inferior do intervalo de confiança e o excesso de mortalidade estimado, observado no período de 1992 a 1995 e em 1998, mínimo e máximo, esses dois últimos com base nos limites do intervalo de confiança, e os óbitos por cólera registrados no SIM.
DISCUSSÃO
A escolha do método estatístico se deveu a sua melhor adequação à modelagem de séries temporais com tendência importante em relação ao método Arima proposto por Box & Jenkins,2 mais adequado a séries estacionárias. Outra vantagem do presente método é o caráter semi-automático da escolha entre os vários modelos possíveis com base no AIC mínimo. Ressalte-se a boa predição do modelo para os dados dos últimos anos da série temporal, embora se trate da predição de sete anos com base em 11 anos anteriores. A adequação do modelo mesmo a séries pequenas é uma de suas vantagens.7
Os resultados apontam um grande sub-registro da mortalidade por cólera durante a epidemia na região Nordeste. Se considerado o excesso de mortalidade entre 1992 e 1994 como óbitos por cólera, isso significaria que apenas 19,3% deles foram efetivamente registrados. Em 1993, ano em que a epidemia atingiu seu ponto máximo na região Nordeste, a presente modelagem leva a uma estimativa de sub-registro de 82,2% (69,4-86,8%).
A mortalidade atribuível ao vírus influenza, ao calor e à poluição atmosférica é tradicionalmente calculada por modelagem estatística, onde se estima um excesso de óbitos ou sobremortalidade.14,15 Como no presente caso, não há provas definitivas de que tais óbitos se devam realmente à influenza ou aos demais eventos citados. No entanto, a lógica biológica contida em tais estudos e o fato de a sobremortalidade desaparecer após o fim do evento em questão sustentam as hipóteses defendidas.
O número e percentual de óbitos classificados como causa mal definida diminuiu durante todo o período estudado, sendo 48,6% em 1980, 42,1% em 1990, 34,4% em 1995 e 28,8% em 1998.
Estima-se que cerca de 20% dos óbitos ocorridos no Brasil não sejam contabilizados, proporção que ultrapassa 50% em algumas localidades do Nordeste, região que também apresenta os maiores valores de causas mal definidas.10 Levando-se em consideração que se trabalhou com os óbitos registrados e com causa básica definida, os números encontrados, embora elevados, provavelmente ainda não refletem a real sobremortalidade ocasionada pela cólera nessa região.
Até 1991, não existia no Ministério da Saúde estrutura que desenvolvesse atividades relacionadas à vigilância epidemiológica das diarréias. Como os estados e municípios tendem a reproduzir o modelo desenvolvido pelo nível federal, com raríssimas exceções, não existia no País nenhuma atividade destinada a estudar e compreender a problemática das diarréias, apesar de reconhecer-se o seu impacto na saúde da população. Com o surgimento da cólera, essa estrutura foi montada em caráter de urgência; porém, até o momento, por motivos operacionais, funciona de maneira precária, com grande dificuldade em detectar e notificar os casos da doença, principalmente os ocorridos em regiões remotas. Com relação à assistência, a despeito do grande investimento realizado quanto à atenção às diarréias e desidratação, estudo realizado em nove capitais brasileiras mostrou grande proporção de atendimentos inadequados.3
Conforme recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), os casos suspeitos notificados foram confirmados por meio dos critérios laboratorial (com cultura de fezes positiva para V. cholerae) e clínico-epidemiológico (com cultura de fezes não realizada ou negativa para V. cholerae, mas com aspectos clínicos e antecedentes epidemiológicos compatíveis com a doença), que se encontram descritos detalhadamente em documento técnico.8 Por decisão política, em 1991 e início de 1992, mesmo em áreas onde já estava definida a circulação do V. cholerae, a Comissão Nacional de Prevenção e Controle da Cólera (CNPC), responsável, na época, por todas as atividades de controle da epidemia no País, só aceitava como caso aqueles que tivessem comprovação laboratorial, ou seja, cultura de fezes positiva para o V. Cholerae. No período subseqüente, mesmo com as mudanças de orientação por parte do Ministério da Saúde, todos as unidades federadas continuaram confirmando poucos casos pelo critério clínico-epidemiológico. Os estados da região Nordeste, com exceção de Pernambuco e Bahia, confirmaram mais de 50% de seus casos de cólera pelo critério laboratorial, chegando a números próximos ou maiores de 85% no Maranhão, Paraíba, Piauí e Sergipe.4
A inconveniência da quimioprofilaxia para os comunicantes de casos de cólera está amplamente relatada na literatura internacional. Além de não causar nenhum efeito benéfico na contenção da disseminação da doença para a população, essa medida pode levar facilmente à resistência aos antibióticos usados, inutilizando uma arma que deve ser usada em casos graves, principalmente para a diminuição da letalidade. Amplamente utilizada no Brasil, também levou muitos casos a não serem diagnosticados, visto que o uso de antibióticos antes da coleta do "swab" retal leva à negativação do exame.
As estatísticas de mortalidade constituem-se em elemento importante no diagnóstico e planejamento em saúde, e a declaração de óbito é a sua principal fonte de dados.1 A utilização do SIM para as ações voltadas à vigilância epidemiológica apresenta limitações, devido principalmente à defasagem de dois ou três anos entre a ocorrência do óbito e a disponibilização dos dados em nível federal. Isso não impede que essas informações possam ser utilizadas nos municípios, em tempo real, como importante instrumento de monitorização para a identificação precoce de alterações das condições de saúde da população. No caso específico da cólera, um aumento no número de óbitos por diarréia constitui-se em importante alerta para a detecção precoce de surtos.
Recebido em 19/5/2003
Reapresentado em 17/12/2003
Aprovado em 5/2/2004
Baseado em tese de doutorado apresentada ao Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2002.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Ago 2004 -
Data do Fascículo
Ago 2004
Histórico
-
Aceito
05 Fev 2004 -
Revisado
17 Dez 2003 -
Recebido
19 Maio 2003