Resumos
OBJETIVO: Estimar a prevalência das infecções pelo HIV, vírus das hepatites B e C, e da sífilis em moradores de rua. MÉTODOS: Estudo transversal com intervenção educativa, realizado no município de São Paulo, de 2002 a 2003. Selecionou-se amostra de conveniência de moradores de rua que utilizavam albergues noturnos, segundo os critérios: >18 anos e não apresentar distúrbios psiquiátricos. Em entrevistas, foram coletados dados sociodemográficos e de comportamento, e realizados exames laboratoriais para HIV, hepatite B e C e sífilis, e aconselhamento pós-teste. RESULTADOS: Participaram 330 usuários dos albergues, com 40,2 anos (média), 80,9% homens, nas ruas, em média, há um ano. Observaram-se prevalências de 1,8% de HIV, 8,5% de vírus de hepatite C, 30,6% de infecção pregressa por hepatite B, 3,3% de infecção aguda ou crônica pelo vírus hepatite B e 5,7% de sífilis. Uso consistente de preservativo foi referido por 21,3% e uso de droga injetável, por 3% dos entrevistados. A positividade para HIV foi de 10% e 50% para vírus da hepatite C entre usuários de drogas injetáveis, versus 1,5% para HIV e 7,3% para hepatite C nos demais, evidenciando associação entre esse vírus e uso de droga injetável. Prisão anterior foi referida por 7,9% das mulheres e 26,6% dos homens, com prevalência de 2,6% para HIV e 17,1% para vírus da hepatite C. CONCLUSÕES: As elevadas prevalências de HIV e vírus de hepatite B e C requerem programas de prevenção baseados na vacinação contra hepatite B, diagnóstico precoce dessas infecções e inserção dos moradores de rua em serviços de saúde.
Infecções por HIV; Hepatite B; Hepatite C; Sífilis; Sem-teto; Estudos soroepidemiológicos; Estudos transversais
OBJECTIVE: To estimate the prevalence of HIV infections, as well as hepatitis B and C and syphilis viruses in homeless people. METHODS: Cross-sectional study with educational intervention, conducted in the city of São Paulo, between 2002 and 2003. A convenience sample of homeless people who used night shelters was selected, according to the following criteria: aged 18 or older and not showing psychiatric disturbances. During interviews, sociodemographic and behavioral data were gathered and HIV, hepatitis B and C and syphilis laboratorial tests and post-test counseling were carried out. RESULTS: A total of 330 shelter users participated, with an average age of 40.2 years, 80.9% of them male, having lived on the streets for one year in average. Prevalences of 1.8% for HIV, 8.5% for hepatitis C virus, 30.6% for previous hepatitis B infection, 3.3% for chronic or acute infection by hepatitis B virus, and 5.7% for syphilis. The consistent use of condoms was referred to by 21.3% of interviewees and the use of injecting drugs by 3% of them. Positivity was 10% for HIV and 50% for hepatitis C virus among injectable drug users, versus 1.5% for HIV and 7.3% for hepatitis C among the others, showing an association between the virus and the use of injecting drugs. Previous imprisonment was referred to by 7.9% of women and 26.6% of men, with a prevalence of 2.6% for HIV and 17.1% for hepatitis C virus. CONCLUSIONS: The high prevalences of HIV and hepatitis B and C viruses require prevention programs based on vaccination against hepatitis B, early diagnosis of these infections and placement of homeless people into health services.
HIV infections; Hepatitis B; Hepatitis C; Syphilis; Homeless persons; Seroepidemiologic studies; Cross-sectional studies
ARTIGOS ORIGINAIS
Infecção pelo HIV, hepatites B e C e sífilis em moradores de rua, São Paulo
Valquiria O. C. BritoI; Deolinda ParraII; Regina FacchiniIII; Cassia Maria BuchallaIV
ICoordenadoria de Vigilância em Saúde. Prefeitura do Município de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil
IICentro de Testagem e Aconselhamento "Henrique de Souza Filho" Henfil. Prefeitura do Município de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil
IIIPrograma de Doutorado em Ciências Sociais. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, Brasil
IVDepartamento de Epidemiologia. Faculdade de Saúde Pública. Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil
Correspondência | Correspondence Correspondência | Correspondence: Cássia Maria Buchalla Departamento de Epidemiologia - Faculdade de Saúde Pública -USP Av. Dr. Arnaldo 715 01246-904 São Paulo, SP, Brasil E-mail: cmbuchal@usp.br
RESUMO
OBJETIVO: Estimar a prevalência das infecções pelo HIV, vírus das hepatites B e C, e da sífilis em moradores de rua.
MÉTODOS: Estudo transversal com intervenção educativa, realizado no município de São Paulo, de 2002 a 2003. Selecionou-se amostra de conveniência de moradores de rua que utilizavam albergues noturnos, segundo os critérios: >18 anos e não apresentar distúrbios psiquiátricos. Em entrevistas, foram coletados dados sociodemográficos e de comportamento, e realizados exames laboratoriais para HIV, hepatite B e C e sífilis, e aconselhamento pós-teste.
RESULTADOS: Participaram 330 usuários dos albergues, com 40,2 anos (média), 80,9% homens, nas ruas, em média, há um ano. Observaram-se prevalências de 1,8% de HIV, 8,5% de vírus de hepatite C, 30,6% de infecção pregressa por hepatite B, 3,3% de infecção aguda ou crônica pelo vírus hepatite B e 5,7% de sífilis. Uso consistente de preservativo foi referido por 21,3% e uso de droga injetável, por 3% dos entrevistados. A positividade para HIV foi de 10% e 50% para vírus da hepatite C entre usuários de drogas injetáveis, versus 1,5% para HIV e 7,3% para hepatite C nos demais, evidenciando associação entre esse vírus e uso de droga injetável. Prisão anterior foi referida por 7,9% das mulheres e 26,6% dos homens, com prevalência de 2,6% para HIV e 17,1% para vírus da hepatite C.
CONCLUSÕES: As elevadas prevalências de HIV e vírus de hepatite B e C requerem programas de prevenção baseados na vacinação contra hepatite B, diagnóstico precoce dessas infecções e inserção dos moradores de rua em serviços de saúde.
Descritores: Infecções por HIV, epidemiologia. Hepatite B, epidemiologia. Hepatite C, epidemiologia. Sífilis, epidemiologia. Sem-teto. Estudos soroepidemiológicos. Estudos transversais.
INTRODUÇÃO
A população em situação de rua é uma das mais vulneráveis em relação à transmissão do HIV por incluir grupos de alto risco formados por egressos do sistema prisional, usuários de crack e cocaína, profissionais do sexo, grupos minoritários e pessoas com transtornos mentais.13,14,20
Comportamentos relacionados tanto à prática sexual como ao uso compartilhado de droga injetável podem predispor a população de rua à infecção por hepatite B.3 O risco dessa população contrair hepatite C também é aumentado se comparado à população geral. Transfusão sanguínea, tatuagens, uso de drogas injetáveis e prática sexual com múltiplos parceiros têm sido correlacionados com infecção pelo vírus da hepatite C em jovens de rua.3,15
No Brasil, existem poucos estudos que abordam a saúde dessa população e, em geral, se referem a grupos específicos, como adolescentes,9 menores infratores24 ou detentas.8 Lopes et al8 encontraram prevalências de 14,5% de infecção por HIV e 5,7% de sífilis na penitenciária feminina do município de São Paulo. Concluíram que as condições de pobreza e baixa escolaridade foram importantes marcadores de risco para as infecções sexualmente transmissíveis, incluindo HIV/Aids.
A definição de população em situação de rua inclui pessoas sem residência adequada e fixa no período noturno. É considerado também situação de rua usar ou residir em albergue, instituição, local público ou privado não designado ou usado como acomodação regular para dormir.20 Não há estimativa do tamanho, distribuição ou composição dessa população. Trata-se de população heterogênea, que se desloca geograficamente, dificultando precisar o número de pessoas vivendo nas ruas.23
Em São Paulo, esta população tem aumentado nos últimos anos. Segundo a Secretaria da Assistência Social, foram registradas 3.392 pessoas em 1991; 4.549 em 1994; 5.334 em 1996; 6.453 em 1998; 8.706 em 2.000 e 10.394 em 2003. Em 2000, foram cadastradas pelo censo 3.693 albergados e em 2003, 6.186, o que representa um crescimento de 70%.1 1 Censo de moradores de rua da cidade de São Paulo. [Acesso em 17/8/2007] Disponível em: http://pvalls.ibmecsp.edu.br/seminariosIbmec/MoradoresdeRua.pdf
As populações em situação de pobreza apresentam fatores múltiplos e complexos que favorecem a transmissão de infecções sexualmente transmissíveis.13 No entanto, existem poucos dados epidemiológicos relacionados à essas infecções e hepatites na população em situação de rua.
O objetivo do presente estudo foi estimar a prevalência das infecções pelo HIV, vírus da hepatite B (HBV), vírus da hepatite C (HCV), e da sífilis e identificar fatores associados à transmissão dessas infecções em moradores de rua.
MÉTODOS
Estudo transversal com amostra de conveniência da população moradora de rua que utiliza albergues para pernoite, na região central do município de São Paulo.
Foram selecionados cinco albergues. Os critérios de escolha foram: proximidade com o centro da cidade, interesse e consentimento de seus diretores, convênio estabelecido com a prefeitura e indicação de técnicos da Secretaria de Assistência Social.
Para seleção da população estudada, os usuários dos albergues foram informados previamente por meio de cartazes sobre os objetivos da pesquisa, que compreendia: processo de intervenção educativa, entrevista individual e coleta de sangue para provas laboratoriais.
A sensibilização e intervenção educativa foram realizadas por meio de oficina de trabalho em grupo sobre temas como sexo seguro, prevenção de infecções sexualmente transmissíveis/Aids e redução de danos relativos ao abuso de drogas. Os participantes das oficinas foram convidados a fazer parte do estudo, sendo obedecidos os seguintes critérios de inclusão: ser maior de 18 anos e não apresentar distúrbios psiquiátricos. Aqueles que aceitaram participar foram entrevistados individualmente e receberam explicações sobre os objetivos do estudo, metodologia, riscos, inexistência de implicações em caso de participação ou de recusa, garantia de confidencialidade de resultados e autonomia para desistir a qualquer momento, sem prejuízo pessoal.
De 11 de novembro de 2002 a 20 de maio de 2003, foram realizadas intervenções educativas e as entrevistas individuais com os usuários admitidos que tivessem concordado em participar do estudo.
As entrevistas basearam-se em questionário estruturado pré-codificado com os seguintes dados: idade, sexo, cor auto-referida, situação conjugal, tempo na rua; prática sexual, parceria sexual, uso de preservativos; abuso de drogas, compartilhamento de equipamentos (aparelhos de barbear, objetos de higiene); informações sobre infecções sexualmente transmissíveis e quadro clínico prévio sugestivo dessas doenças.
Amostras de sangue foram coletadas por venopunção, com "vacutainer", após as entrevistas. Foram colhidos dois tubos secos, enviados para análise em dois laboratórios de referência do município de São Paulo.
A pesquisa de anticorpos anti-HIV foi feita por ensaio imunoenzimátido indireto ELISA (enzyme-linked immunosorbent assay). Como recomendado pelo Ministério da Saúde, foram realizados dois testes de diferentes marcas para atestar os resultados negativos. Os resultados discordantes foram repetidos e aqueles positivos ou indeterminados foram submetidos aos testes confirmatórios de imunofluorescência indireta para diagnóstico da infecção pelo HIV-1 (IFI) ou western blot (Cambridge Biotech).
O diagnóstico de sífilis foi realizado pelo VDRL Test (Veneral Disease Research Laboratories), que significa suspensão antigênica estabilizada para realizar o teste modificado (USR unheated serum reagin) de detecção de sífilis. Utilizou-se também o teste de aglutinação de partículas de gelatina para a detecção do anticorpo Treponema pallidum Serodia TPPA quando as amostras foram reativas.
A sorologia para a hepatite B foi realizada utilizando ELISA, seguindo o algoritmo: determinação dos títulos de antígeno HBs e anticorpos anti-HBc total. Se ambos fossem negativos o resultado era considerado negativo. Se o HBsAg foi negativo e Anti-HBc total positivo, realizou-se o exame de detecção de anticorpos anti-HBs, cujo resultado positivo indicava imunidade infecção prévia de hepatite B.
O método utilizado para anti-HBc total foi o ELISA-Hepanostika anti-HBc Uni-Form Biomérieux, baseado no princípio da inibição competitiva de fase única.
As provas sorológicas para a hepatite C foram feitas utilizando duas técnicas: EIA-Hepanostika teste imunoenzimático qualitativo e monolisa anti-HCV plus, uma técnica imunoenzimática indireta.
Os resultados dos exames laboratoriais foram entregues nos albergues aos participantes dez a 20 dias após a coleta do material, ou ficaram disponíveis no Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) Henfil para os ausentes.
O aconselhamento pós-teste consistiu-se de: atendimento individualizado, esclarecimento de dúvidas, incentivo às condutas de prevenção, redução de danos e encaminhamentos necessários.
Os encaminhamentos obedeceram aos seguintes critérios:
-
usuários com queixas de doença sexualmente transmissível e/ou resultado positivo para HIV, hepatite B, C e/ou sífilis foram encaminhados para tratamento e acompanhamento ambulatorial em unidades municipais de DST/Aids;
-
usuários susceptíveis, com sorologia negativa para hepatite B foram encaminhados para vacinação, em unidades municipais de DST/Aids.
Todos os participantes foram admitidos como usuários do Centro de Testagem e Aconselhamento Henfil, da Secretaria Municipal de Saúde, onde podem receber orientações e insumos, como preservativos masculinos, femininos e kits de redução de danos para uso de droga injetável.
Para análise estatística dos dados utilizou-se o programa EpiInfo, a análise univariada para conhecer as associações entre situações de risco e as prevalências das infecções estudadas. Quando indicado, foi utilizado o teste exato de Fisher.
O protocolo de pesquisa foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. Todos os participantes da pesquisa assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
RESULTADOS
Foram entrevistados 330 moradores de rua usuários de albergues da região central, correspondendo a 29,7% das vagas ofertadas nos cinco albergues participantes.
A Tabela 1 mostra a caracterização sociodemográfica dos entrevistados. A população estudada foi composta por 267 homens (80,9%). A idade média dos participantes foi de 40,2 anos (mínimo 18 e máximo 72 anos). A média de idade das mulheres entrevistadas (36,7 anos) foi menor que a dos homens.
Cinqüenta por cento da amostra eram de pessoas brancas e 63% eram solteiras. Com relação ao grau de instrução, cerca de 70% referiram ter no máximo quatro anos de educação formal e o analfabetismo foi referido por 3,6% (7,9% entre mulheres e 2,6% entre homens). A maioria dos participantes (66,6%) era procedente de outros estados: 28,8% da região Nordeste, 22,7% dos estados da região Sudeste e 10% da região Sul. O tempo médio de permanência nas ruas foi de um ano e 7,9% das mulheres e 26,6% dos homens estiveram presos.
O comportamento sexual da população estudada e a existência de parceria fixa, entendida como relação estável por período superior a três meses, foram analisados considerando o período anterior à situação de rua e o momento da realização da entrevistas realizadas. A Tabela 2 apresenta os dados sobre a vida sexual dos entrevistados. Na situação de rua, 46% das mulheres e 19,5% dos homens referiram parceria fixa. Relações sexuais por dinheiro foram referidas por 56 (17%) pessoas, (15 mulheres e 41 homens); além disso, 43 (76,7%) delas eram menores de 40 anos. Relações sexuais para conseguir drogas foram referidas por dez participantes, quatro mulheres e seis homens, enquanto a troca de sexo por comida foi referida por 13 usuários dos albergues (3,9%): cinco mulheres (7,9%) e oito homens (2,9%).
O número de parceiros sexuais eventuais depois que passaram a viver na rua variou de zero a 200 para os homens (média=9,5 e mediana=2); e de zero a 20 para as mulheres (média=1,95 e mediana=1). Cerca de 26% mantiveram-se abstinentes desde que passaram a viver em situação de rua.
O uso do preservativo em todas as relações sexuais foi referido por 21,2% dos participantes (8,1% mulheres e 24,3% homens). Os motivos apontados com mais freqüência para justificar o uso foram relações com pessoas desconhecidas, para evitar doenças e filhos. No entanto, cerca de 32,5% nunca fazem uso de preservativos, dos quais 41,9% são mulheres e 30,3% homens. Referiram uso inconsistente de preservativos 46% dos participantes.
Em relação ao abuso de substâncias, 70% dos entrevistados referiram uso, pregresso ou atual, de álcool (maior entre os homens) e 60,3% de tabaco. Foram referidos também uso de maconha por 27%, cocaína inalada, 17,5% e crack 12,4%; o uso de drogas injetáveis foi referido por dez homens.
O conhecimento sobre sintomas e/ou nome de DST foi referido por 87% dos entrevistados, 91,4% homens e 71,4% mulheres. Referiram DST anterior 51% dos entrevistados (53,6% homens e 41,3% mulheres). Dos 169 participantes que referiram DST prévia, 95,9% efetuaram tratamento (73,5% com médico e 19,8% em farmácia). As doenças mais freqüentes foram gonorréia, (52,1%), verrugas (8,9%), sífilis e corrimento (ambas referidas por 8,3% da população). Entre usuários dos albergues com DST anterior, a taxa de positividade para anti-HIV foi de 3,0%, enquanto no restante foi de 0,6%, diferença não significativa (p=0,11).
Os exames realizados evidenciaram prevalência de 1,8% de infecções pelo HIV. A distribuição por faixa etária mostrou 9,1% em maiores de 60 anos, seguido pela faixa de 30-39 anos com 3,2% e de 50-59 anos com 2,3%.
O VDRL foi positivo em 5,7% dos casos, sendo que em apenas um caso o título foi de 1/256 e cinco tiveram titulação de 1/4. Os demais apresentaram uma provável cicatriz sorológica.
Em relação à hepatite C, a prevalência foi de 8,5%, sendo de 14% na faixa de 50-59 anos, seguido pelos grupos de 40-49 anos e 30-39 anos, com 10% e 9,6% respectivamente.
Em relação à infecção pelo HBV, a prevalência geral foi de 3,3%, sendo de 5,3%, na faixa etária de 30-39 anos. A prevalência de infecção prévia por HBV foi de 30,6%, com prevalência de 45,5% em maiores de 60 anos, seguido pela faixa etária de 50-59 anos, com 41,9%. A menor taxa observada (11%) foi no grupo de participantes com idade entre 18 e 19 anos. (Tabela 3)
O uso consistente de preservativos foi referido por 21,2% dos usuários e, neste grupo, a prevalência de infecções por HIV foi de zero, HBsAg 1,4%, anti-HBc total 21,4% e sífilis 1,4%.
No grupo de mulheres que afirmou trocar sexo por dinheiro a prevalência de HIV foi de 13,3%, enquanto nas demais essa taxa foi de zero. Entre aquelas que informaram parceiro bissexual ou usuário de drogas injetáveis, a prevalência de HIV foi de 40% e 25%, respectivamente.
A freqüência de infecção pregressa pelo vírus da hepatite B nos usuários de albergues do sexo masculino foi de 30,9% entre os que referiram relações heterossexuais, 37% para aqueles que relataram comportamento bissexual e 50% para homossexuais.
A co-infecção HIV e HCV foi observada em dois casos, representando 0,6% da amostra estudada. As co-infecções HIV e hepatite B, HIV e sífilis não foram observadas na amostra. A co-infecção HCV/HBV, assim como a co-infecção HCV/sífilis, ocorreu em um caso cada, enquanto a co-infecção sífilis e hepatite B ocorreu em dois casos.
O uso de droga injetável foi referido por 3% da população e, neste grupo, a positividade para HIV e HCV foi de 10% e 50% respectivamente, enquanto no restante foi de 1,5% para HIV e 7,3% para HCV.
Tatuagem foi referida por 60 usuários (18%), nenhum com sorologia positiva para o HIV, 13,3% HCV positivo e 6,7% HBsAg positivo.
Entre 210 entrevistados que responderam à questão sobre compartilhamento de equipamentos de higiene, como escovas de dente e barbeadores, 89 responderam afirmativamente. Nesse grupo a prevalência de HCV foi de 13,5%.
História de prisão anterior foi referida por 23% (76) dos usuários, entre os quais a prevalência de HIV foi de 2,7%, 17,1% de HCV e 4,1% de HBsAg.
A positividade para o HCV foi de 9,7% entre os homens. Neste grupo, observou-se associação entre parceria usuária de droga injetável (OR=3,73; IC 95%: 1,35; 10,18); uso de droga injetável (OR= 11,14; IC 95%: 2,53; 49,43) e prisão anterior (OR=2,62; IC 95%: 1,06; 6,42). Entre as mulheres, a taxa de positividade para o HCV foi de 3,2%, sendo 5,3% nas mulheres com parceiros ex-presidiários (p=0,53) e 20% em mulheres com prisão anterior (p=0,15); porém não foi observada associação estatisticamente signitivativa.
Entre os homens, foi observada associação entre hepatite B pregressa e parceria sexual tanto com ex-presidiário(a) (OR=2,16; IC 95%: 1,11; 4,17) como com portadores de HIV (OR=4,83; IC 95%: 1,25; 20,06). As taxas de positividade foram de 43,9% e 66,7%, respectivamente.
DISCUSSÃO
O presente estudo estimou a prevalência de quatro infecções e dos fatores de risco a elas associados em usuários de albergues da região central da cidade de São Paulo.
Entre as limitações do presente estudo, inclui-se o delineamento transversal, que não permite assegurar a causalidade das infecções. Por outro lado, a amostra constituída por voluntários impede a generalização dos resultados para o restante da população em situação de rua. Em relação à análise dos dados, o pequeno número de casos das infecções estudadas também constitui limitação.
Estudos brasileiros referentes a esse tema, na maior parte das vezes, referem-se à população mais jovem9 ou a grupos institucionalizados.24
Nos estudos norte-americanos, a população de rua é considerada de alto risco para infecções parenterais devido ao grande número de usuários de drogas injetáveis. A prevalência estimada de HIV nos Estados Unidos é de 0,3% na população geral10 e 3,3% na população em situação de rua.1 No entanto, essa taxa varia de zero a 62%, dependendo da população alvo, área geográfica e local de recrutamento.13 A situação de rua também é importante fator de risco para a infecção por HIV. Entre usuários de drogas injetáveis na situação de rua, a prevalência dessa infecção foi de 33,7% comparado a 20,5% entre usuários de drogas injetáveis não moradores de rua em Chicago.22
Apesar do modo comum de transmissão parenteral da hepatite C e do HIV, observou-se, no presente trabalho, taxa de infecção por HIV menor que 2%, enquanto para o HCV foi de 8,5%. Esta diferença também foi observada em estudo realizado no Novo México, entre usuários de heroína injetável recrutados nas ruas, cujas taxas de positividade para HIV, HCV e HBV foram de 0,5%, 82,2% e 61,1%, respectivamente.17 A menor prevalência de infecção pelo HIV obtida no presente estudo pode ser devida à recusa em participar do estudo por parte dos usuários que conheciam sua condição de portador. Durante as atividades educativas que precederam a entrevista e a coleta de material para exame, dois usuários dos albergues referiram ser soropositivos para o HIV, afirmaram estar em acompanhamento médico e optaram por não participar da pesquisa. Apesar de menor que a observada em outros estudos, a prevalência infecção HIV de 1,8% representa quase três vezes a estimativa de prevalência de HIV na população brasileira, de 0,6%.21 Em estudo realizado em São Francisco, registrou-se soroprevalência de HIV na população de rua cinco vezes maior que na população geral.14
Todas as mulheres em situação de rua e HIV-positivas referiram trocar sexo por dinheiro. Estudo americano mostrou prevalência de 22,4% de HIV, 53,4% de HBV e 29,7% HCV em mulheres profissionais do sexo. Os fatores relacionados a estas taxas foram prática sexual não segura, situação de rua, abuso de drogas, entre outros.7
Em relação à sífilis, os dados encontrados no presente estudo são semelhantes aos apontados para o município do Rio de Janeiro, com prevalência de 5,3% entre gestantes.2 2 Boletim Epidemiológico Aids - Ministério da Saúde. Programa Nacional de DST/Aids. Brasília. (DF) 2000; ano XIII(1) dezembro 1999 a junho 2000. No entanto, deve se considerar que, no presente estudo, o teste treponêmico foi realizado apenas nos casos de VDRL positivo, subestimando o número de casos referentes à cicatriz sorológica.
Informações do Ministério da Saúde apontam taxas bastante variadas de infecção por sífilis, como 0,5% em conscritos do exército, em 1997, 16,3% em população de homens que fazem sexo com homens e de 7% a 43% entre prisioneiros.3 3 Ministério da Saúde. Prevalências de DST em populações específicas. Projetos Desenvolvidos pela Coordenação Nacional de DST/Aids em parceria com estados, municípios e outras instituições. Brasília; 2006 [Acesso em: 17/8/2007]. Disponível em http://www.aids.gov.br/data/Pages/LUMISBCD47A0DPTBRIE.htm
Inquérito realizado no município de São Paulo mostrou soroprevalência de infecção ativa pelo vírus da hepatite B de 1% e prevalência de anti-HCV de 1% a 4%.5
Em estudos sobre população em situação de rua, a soroprevalência de HCV observada foi de: 12,6% em jovens de rua em Montreal, 22% em adultos em Los Angeles, e 26,5% em adultos em Oxford.11,15,18
No Brasil, Martins et al9 observaram taxa de 3% de HCV entre adolescentes em situação de rua, na região central do Brasil, e Zanetta et al24 observaram prevalência de 5,9% para meninos e 4,6% para meninas, em instituição para menores de rua ou infratores em São Paulo.
A associação entre infecções por HCV, uso de droga injetável e compartilhamento de equipamentos corrobora estudos que indicaram o uso de drogas injetáveis como maior fator de risco para infecção pelo HCV.2,3,19 Embora no presente estudo apenas 3% da população estudada tenha referido uso de drogas injetáveis, a positividade para HIV e HCV entre os usuários foi elevada. Na população de rua não usuária de droga injetável, esses dados foram de 1,5% para o HIV e 7,3% para HCV, confirmando associação entre HCV e uso de droga injetável.
Uma aparente associação entre história de prisão anterior e hepatite C foi encontrada ao verificar que, dos 28 usuários dos albergues infectados por HCV, 46,4% referiram prisão anterior. Observou-se elevada taxa de infecção entre ex-detentos: 2,6% por HIV, 17,1% por HCV, 38,2% por HBV em infecção pregressa, 3,9% por HBV e 10,5% de sífilis. No entanto, essas taxas são menores do que as observadas na Itália, em estudo realizado em população carcerária, que observou positividade de 38% para HCV, 52,7% anti-HBc, 6,7% HBsAg e 7,5% anti-HIV.2
A prevalência de HBsAg entre jovens de rua de Montreal16 variou de 1% a 6% e entre usuários de albergues foi de 12%; enquanto hepatite B pregressa foi de 21% entre freqüentadores de restaurantes gratuitos e 43% em usuários de albergues de Nova York.22 Apesar da gratuidade da imunização para hepatite B, a taxa de cobertura vacinal é baixa, como foi observado em estudo realizado em Montreal16 onde 12% de 437 jovens de rua completaram as três doses do esquema vacinal.
A taxa de co-infecção entre HIV e hepatites C e B mostrou-se similar a de outro estudo brasileiro entre soropositivos para HIV, onde prevalência de HCV foi de 53,8%, anti-HBc total de 44% e HBsAg de 5,3%.12
A prevalência de hepatite C entre tatuados foi quase o dobro da encontrada nos não-tatuados. Embora não tenha sido significativa, essa associação confirma achados de outros estudos.2,6,19
Alcoolismo foi reportado como fator de risco para desenvolvimento da infecção pelo HCV em estudo americano com pacientes admitidos por causas não-hepáticas.4 No presente estudo cerca de 70% dos usuários de albergues referiram uso atual ou pregresso de álcool e observou-se associação entre hepatite C e alcoolismo. A alta prevalência de HCV no grupo estudado, se aplicável a toda população em situação de rua no município de São Paulo, revela um problema de saúde pública. Esta infecção requer tratamento de seis a 12 meses com acompanhamento em todo esse período, o que é problemático para indivíduos em situação de rua. O tratamento da hepatite C crônica requer refrigeração da medicação e uso de seringas e agulhas, o que dificulta o tratamento para esses indivíduos. Esses pacientes devem ter acompanhamento clínico para avaliação de complicações e possíveis efeitos colaterais, como depressão e anemia.
A positividade para HCV entre os homens em situação de rua foi associada à história de uso de droga injetável e compartilhamento de seringas e agulhas, à parceria sexual com usuários(as) de drogas injetáveis e à situação de ex-detentos. Os dados apresentados mostram a necessidade de se estabelecer programas de detecção de infecção pelo HIV e hepatites virais em usuários de albergues, bem como de facilitar o acesso dessas pessoas aos serviços de saúde. A vacinação contra hepatite B deve ser implementada como forma de reduzir a infecção neste grupo vulnerável.
Entre as mulheres, a parceria sexual com homem bissexual ou usuário de droga injetável foi fator preditor de infecção pelo HIV. Também esse grupo é mais vulnerável às infecções sexualmente transmissíveis, fato evidenciado pelo maior desconhecimento sobre essas doenças e práticas sexuais não seguras. Deve-se enfatizar ações de prevenção específicas para o HIV entre mulheres em situação de rua e a prevenção de câncer colo de útero, por meio de orientação e consulta ginecológica, visando detecção e tratamento precoce dessas infecções.
Finalmente, é fundamental que se estabeleçam intervenções educativas visando redução do comportamento de risco para prevenção de HIV, infecções sexualmente transmissíveis e hepatites, por meio de programas de redução de danos, troca de seringas e equipamentos para uso de droga injetável, e fornecimento de insumos com preservativos femininos, masculinos e kits de redução de danos.
Recebido: 8/8/2006
Revisado: 23/5/2007
Aprovado: 3/6/2007
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
12 Dez 2007 -
Data do Fascículo
Dez 2007
Histórico
-
Aceito
03 Jun 2007 -
Revisado
23 Maio 2007 -
Recebido
08 Ago 2006