Resumos
Relata-se caso de infecção criptocócica confinada à próstata, como achado de necropsia, em homem de 32 anos portador da síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA) com micobacteriose disseminada. Enfatiza-se a importância do achado incidental em necropsia e a persistência dessa infecção micótica na próstata.
Cryptococcus neoformans; Criptococose; Síndrome da imunodeficiência adquirida; HIV; Próstata; Necropsia
This is a case report of asymptomatic and restrained cryptococcal prostatic infection in a 32-year old black male with the acquired immunodeficiency syndrome, whose death was caused by systemic mycobacteriosis probably pertaining to MAI complex. The importance of autopsy studies to evaluate the real prevalence of fungus infections in AIDS patients, specially in cases of persistent silent focuses, is emphasized.
Cryptococcus neoformans; Cryptococcosis; AIDS; HIV; Prostate; Necropsy
RELATO DE CASO
INFECÇÃO POR CRYPTOCOCCUS LIMITADA À PRÓSTATA EM PACIENTE AIDÉTICO COM MICOBACTERIOSE DISSEMINADA. RELATO DE NECROPSIA
Marcus Aurelho de Lima, Jenner A. Modesto dos Santos, Javier Lazo, Mario León Silva-Vergara, Lister A. Modesto dos Santos e Vitorino Modesto dos Santos
Relata-se caso de infecção criptocócica confinada à próstata, como achado de necropsia, em homem de 32 anos portador da síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA) com micobacteriose disseminada. Enfatiza-se a importância do achado incidental em necropsia e a persistência dessa infecção micótica na próstata.
Palavras-chaves: Cryptococcus neoformans. Criptococose. Síndrome da imunodeficiência adquirida. HIV. Próstata. Necropsia.
Infecções fúngicas prostáticas, geralmente são achados incidentais em necropsias ou em espécimes removidos cirurgicamente12 14 21, sendo na maioria devido ao Blastomyces dermatitides2 22. A criptococose tem se destacado dentre outras micoses, que podem acometer a próstata, em virtude de sua persistência e da recorrência de infecção nessa glândula5, dificultando a erradicação da doença4 8 9. Tivemos oportunidade de realizar necropsia de paciente aidético com sinais indicativos de imunossupressão grave e que, entretanto, apresentava criptococose confinada à próstata. Parece-nos justificada a apresentação do presente caso, no sentido de enfatizar a importância da necropsia como meio de se diagnosticar micoses ocultas em órgãos que servem de reservatório.
RELATO DO CASO
Homem negro, 32 anos, vendedor ambulante, natural e procedente da área urbana de Uberaba, MG, internado no Hospital Escola da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro (FMTM), em 10/02/93, com história de linfadenomegalia cervical posterior, submandibular e axilar à direita há 6 meses, acompanhada de febre, sudorese noturna e emagrecimento de 10kg, além de adinamia, dor torácica e tosse com escarro não purulento. Relatava antecedentes de bissexualidade, uso de drogas injetáveis, doenças sexualmente transmissíveis (blenorragia e condiloma acuminado), etilismo (1 litro de aguardente/dia) e tabagismo (20 cigarros/dia durante 30 anos). Negava contacto com aves. Na internação, apresentava estado geral regular, turgor cutâneo diminuído e mucosas hipocoradas (1+). Temperatura axilar de 39oC. Linfonodos cervicais posteriores, submandibulares e axilares à direita estavam aumentados de volume, medindo de 2 a 5cm, de consistência dura, dolorosos e móveis. A ausculta pulmonar revelou estertores bolhosos no terço inferior do pulmão direito. O rítmo cardíaco era regular, a freqüência cardíaca de 80bpm, tensão arterial = 130/70mmHg. O fígado era palpável, a 4cm do rebordo costal direito, doloroso, liso e com borda romba. O baço era palpável a 3cm do rebordo costal esquerdo, doloroso, liso e de consistência normal. O exame neurológico era normal.
Exames complementares. Hemácias 4.410.000/mm3; hemoglobina 13,6g/dl; hematócrito 40,9%; plaquetas 147.000/mm3; leucócitos 8.400/mm3, com 86% de neutrófilos segmentados, 9% de linfócitos e 3% de eosinófilos. Velocidade de hemossedimentação 24mm na 1ª hora. Mielograma com hipoplasia eritrocitária moderada. Proteínas totais 8,3g/dl: albumina 2,9g/dl e globulinas 5,4g/dl. Radiografia do tórax normal. Sorologias positivas para toxoplasmose (IgG = 1:256) e para citomegalovírus (IgG). A sorologia, pelo método ELISA, para o vírus da imunodeficiência humana (HIV) foi positiva (título > 2000ng/ml e cut off = 0,171ng/ml) em duas amostras e confirmada pelo teste de Western blot.
Evolução. O exame anatomopatológico do material obtido por biópsia de linfonodo cervical revelou formações granulomatosas epitelióides com necrose caseosa central e numerosos bacilos álcool-ácido resistentes no interior dos granulomas, compatíveis com micobacteriose. Foi medicado com rifampicina, isoniazida e pirazinamida. Recebeu alta em 01/03/93, para acompanhamento ambulatorial, porém abandonou o tratamento específico. Dez meses depois, foi reinternado com fistulização dos linfonodos cervicais, febre e calafrios, sudorese noturna, astenia, anorexia, tosse seca, desidratação, hipotensão arterial, além de dispnéia aos pequenos esforços. Evoluiu com diarréia de tonalidade esverdeada, dor abdominal em cólica e vômitos pós-prandiais. Apresentou insuficiência renal, elevação de enzimas hepáticas e de bilirrubinas, hiponatremia e leucocitúria. A radiografia de tórax evidenciou consolidação parenquimatosa retículo-nodular difusa. Passou a recusar a medicação e a alimentação, com piora progressiva da astenia, sonolência e hipotensão arterial. O óbito ocorreu em 10/01/94, no 14° dia de internação.
Necropsia. Cadáver com idade aparente de 40 anos medindo 160cm e pesando 35kg, em péssimo estado nutricional (índice de massa corporal = 13,67kg/m2). As mucosas mostravam-se ressecadas e com icterícia moderada. Linfonodos superficiais visíveis e palpáveis, móveis e elásticos nas cadeias cervicais laterais, anterior e posterior, axilares e inguinais. A sorologia para HIV do sangue colhido de cavidade cardíaca revelou título de 3000ng/ml e cut off = 0,265ng/ml. A próstata pesou 20g e, aos cortes, observou-se tumoração amarelada, bem delimitada medindo 2cm em diâmetro, de consistência mole. Ao exame microscópico, demonstrou tratar-se de criptococoma caracterizado por abundantes formas fúngicas, tipo leveduras, de tamanho uniforme, muitas de aspecto inviável, outras em gemulação única, muitas vezes em padrão de gota de lágrima, dupla ou tripla, por vezes no interior de glândula prostática (Figura 1). Os fungos, através da cápsula e do material mucinoso que os envolvia, coravam-se ocasionalmente pela técnica de Mucicarmin (Figura 2). As formas fúngicas encontravam-se imersas no muco, sem reação inflamatória. A criptococose estava restrita à próstata. Órgãos comumente acometidos por esta micose, como cérebro e pulmões, foram investigados macro e microscopicamente, inclusive com coloração específica para fungos e não mostraram qualquer evidência de infecção por Cryptococcus. As lâminas com cortes histológicos dos demais órgãos, também, foram revistas com objetivo de afastar a possibilidade da presença do fungo. Havia, ainda, disseminação miliar por micobactéria nos pulmões, baço, fígado, rins, adrenais e linfonodos. As características morfológicas dessa infecção, tais como bacilos curtos, espessos e com pontos semelhantes a um rosário, necrose de padrão caseoso sem formação de granulomas e grande número de bacilos intracelulares, muitas vezes amontoados com aspecto de globias, sugeriam tratar-se do complexo avium-intracelulare (Figura 3). Foram também diagnosticadas: depleção linfóide generalizada; esofagite erosiva por Candida sp e caquexia.
DISCUSSÃO
Trata-se de um caso de infecção criptocócica confinada à próstata em portador da síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA) com micobacteriose disseminada. A suspeita diagnóstica de criptococose foi baseada nos achados morfológicos e a característica forma do C. neoformans em gemulação única, muitas vezes em padrão de gota de lágrima. A confirmação do diagnóstico foi através da coloração da cápsula do fungo pela técnica de Mucicarmin. Os achados anatomopatológicos de depleção linfóide generalizada e a disseminação da micobacteriose com padrão geral inflamatório exsudativo-necrosante sem formação de granulomas, somados ao achado de candidíase esofágica e à positividade dos testes para HIV, sugerem que o paciente era portador de imunossupressão grave. Apesar de não termos a contagem de subpopulações de linfócitos para ilustrar o estado avançado da doença6 neste paciente, as evidências acima descritas favorecem esse diagnóstico. A disseminação por micobactéria atípica geralmente ocorre nos estados mais avançados da imunodepressão 17 (linfócitos T CD4 < 100 células/mm3), quando a imunodeficiência torna o hospedeiro especificamente susceptível à infecção e à doença através da via digestiva11 19. Apesar disso, a infecção criptocócica esteve restrita à próstata e sem suscitar qualquer reação inflamatória, formando uma massa bem delimitada, em padrão de criptococoma.
Infecções por C. neoformans em pacientes portadores do HIV são de difícil controle e têm mau prognóstico, embora o tratamento de manutenção ou profilaxia secundária resulte em menores índices de recorrência da doença, especialmente quando se utiliza o fluconazol. Clark e cols7, em um estudo retrospectivo de 68 casos, onde havia concomitância dessas duas infecções, verificaram que a criptococose foi a condição inicial que definiu a SIDA em 51 (75%) dos pacientes; surgiu isoladamente em 39 (57%) e associada com outras doenças oportunísticas em 12 (18%). Ocupando o segundo lugar como infecção oportunística associada à criptococose, a micobacteriose ocorreu em 14 (20%) casos. Desses, 2 precederam, 3 foram concomitantes e 9 sucederam a infecção por criptococos. Na SIDA, o C. neoformans ocupa posição de destaque como patógeno oportunista sistêmico, precedido pelo P. carinii, citomegalovírus e as micobactérias16.
Nos pacientes com SIDA, a próstata tem sido considerada um importante foco de infecção persistente e recorrente pelo C. neoformans. Mesmo depois da terapia específica, o fungo tem sido detectado na secreção prostática pós-massagem, indicando o trato urinário como fonte mais provável das recidivas5. Nesse local, a infecção geralmente é assintomática, sendo o fungo incidentalmente detectado em necropsias ou exames de peças cirúrgicas, como o ocorrido no presente caso. Os locais do trato urinário mais acometidos pela criptococose em ordem decrescente de freqüência são: rins, próstata, epidídimo e testículos1 3 13 16 20. Embora eficazes para o tratamento sistêmico da criptococose, níveis subterapêuticos das drogas na próstata podem explicar a sobrevivência do fungo no trato urinário10 18. A persistência de altos títulos séricos de antígenos criptocócicos em pacientes adequadamente tratados poderia sugerir que esses fungos, mesmo depois de mortos, continuassem a liberar antígenos, não refletindo necessariamente uma infecção ativa7. Acreditamos, porém, que a permanência de fungos em focos despercebidos, como é o caso da próstata, possa melhor explicar essas alterações sorológicas. Dentre os medicamentos utilizados pelo paciente, nenhum tem ação efetiva contra a infecção criptocócica. O presente caso demonstra que, apesar da intensa imunossupressão comprovada pela disseminação da micobacteriose, a infecção criptocócica foi encontrada confinada à próstata, seu aparente órgão reservatório5 22. Além disso, ressalta-se a importância de estudos completos de necropsia para avaliar a real freqüência com que processos micóticos se associam à SIDA15.
SUMMARY
This is a case report of asymptomatic and restrained cryptococcal prostatic infection in a 32-year old black male with the acquired immunodeficiency syndrome, whose death was caused by systemic mycobacteriosis probably pertaining to MAI complex. The importance of autopsy studies to evaluate the real prevalence of fungus infections in AIDS patients, specially in cases of persistent silent focuses, is emphasized.
Key-words: Cryptococcus neoformans. Cryptococcosis. AIDS. HIV. Prostate. Necropsy.
Serviço de Patologia Cirúrgica, Curso de Pós-graduação em Patologia Humana e Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, Uberaba, MG.
Endereço para correspondência: Prof. Vitorino Modesto dos Santos. Al. República 64. Recanto das Torres. 38057-020 Uberaba, MG.
Recebido para publicação em 06/12/96.
Referências bibliográficas
- 1. Bailly MP, Boibieux A, Biron F, Durieu I, Piens MA, Peyramond D, Bertrand JL. Persistence of Cryptococcus neoformans in the prostate: failure of fluconazole despite high doses. The Journal of Infectious Diseases 164:435-436, 1991.
- 2. Bissada NK, Beiner AEF, Redman JF. Prostatic mycosis. Urology 9:327-328, 1977.
- 3. Bozzette SA, Larsen RA, Chiu J, Leal MAE, Tilles JG, Richman DD, Leedom JM, McCutchan JA. Fluconazole treatment of persistent Cryptococcus neoformans prostatic infection in AIDS. Annals of Internal Medicine 115:285-286, 1991.
- 4. British Society for Antimicrobial Chemotherapy Working Party. Antifungal chemotherapy in patients with acquired immunodeficiency syndrome. The Lancet 340:648-651, 1992.
- 5. Case Records of The Massachusetts General Hospital. Case 7-1994. The New England Journal of Medicine 330:490-496, 1994.
- 6. Centers for Disease Control and Prevention. Leads from the morbidity and mortality weekly report Atlanta, Ga, 1993 revised classification system for HIV infection and expanded surveillance case definition for AIDS among adolescents and adults. The Journal of the American Medical Association 269: 729-730, 1993.
- 7. Clark RA, Greer D, Atkinson W, Valainis GT, Hyslop N. Spectrum of Cryptococcus neoformans infection in 68 patients infected with human immunodeficiency virus. Reviews of Infectious Diseases 12:768-777, 1990.
- 8. Como JA, Dismukes WE. Oral azole drugs as systemic antifungal therapy. The New England Journal of Medicine 330:263-272, 1994.
- 9. Daar ES, Meyer RD. Bacterial and fungal infections. The Medical Clinics of North America 76:173-203, 1992.
- 10. Finley RW, Cleary JD, Goolsby J, Chapman SW. Fluconazole penetration into the human prostate. Antimicrobial Agents and Chemotherapy 39:553-555, 1995.
- 11. Gallant JE, Moore RD, Chaisson RE. Prophylaxis for opportunistic infections in patients with HIV infection. Annals of Internal Medicine 120:932-944, 1994.
- 12. Huynh MT, Reyes CV. Prostatic cryptococcosis. Urology 20:622-623, 1982.
- 13. Larsen RA, Bozzette S, McCutchan JA, Chiu J, Leal MA, Richman DD, California Collaborative Treatment Group. Persistent Cryptococcus neoformans infection of the prostate after successful treatment of meningitis. Annals of Internal Medicine 111:125-128, 1989.
- 14. Lief M, Sarfarazi F. Prostatic cryptococcosis in acquaired immunodeficiency syndrome. Urology 28:318-319, 1986.
- 15. Lima MA, Vergara, MLS, Demachki, S, Santos JAM. Paracoccidioidomicose em paciente com a infecçăo pelo vírus da imunodeficięncia humana. Relato de necropsia. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 28:279-284, 1995.
- 16. Mamo GJ, Rivero MA, Jacobs SC. Cryptococcal prostatic abscess associated with the acquired immunodeficiency syndrome. The Journal of Immunology 148:889-890, 1992.
- 17. Nightingale SD, Byrd LT, Southern PM, Jockusch JD, Cal SX, Wynne BA. Incidence of Mycobacterium avium complex bacteremia in human immunodeficiency virus-positive patients. Journal of Infectious Disease 165:1082-1085, 1992.
- 18. Nightingale SD, Cal SX, Peterson DM, Loss SD, Gamble BA, Waterson DA, Manzone CP, Baker JE, Jockush JD. Primary prophylaxis with fluconazole against systemic fungal infections in HIV-positive patients. AIDS 6:191-194, 1992.
- 19. Pitchenik AE, Fertel D. Tuberculosis and nontuberculous mycobacterial disease. The Medical Clinics of North America 76:121-171, 1992.
- 20. Powderly WG, Saag MS, Cloud GA, Robinson P, Meyer RD, Jacobson JM, Graybill JR, Sugar AM, McAuliffe VJ, Follansbee SE, Tuazon CU, Stern JJ, Feinberg J, Hafner R, Dismukes WE. NIAID AIDS Clinical Trials Group, NIAID Mycosis Study Group. A controlled trial of fluconazole or amphotericin B to prevent relapse of cryptococcal meningitis in patients with the acquired immunodeficiency syndrome. The New England Journal of Medicine 326:793-798, 1992.
- 21. Rozenbaum R, Gonçalves AJR. Clinical epidemiological study of 171 cases of cryptococcosis. Clinical Infectious Diseases 18:369-380, 1994.
- 22. Staib F, Seibold M, L'age M. Persistence of Cryptococcus neoformans in seminal fluid and urine under itraconazole treatment. The urogenital tract (prostate) as a niche for Cryptococcus neoformans Mycoses 33:369-373, 1990.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Jun 2000 -
Data do Fascículo
Dez 1997
Histórico
-
Recebido
06 Dez 1996