Open-access Envenenamento por serpentes do gênero Bothrops no Estado da Bahia: aspectos epidemiológicos e clínicos

Envenomation by Bothrops in the State of Bahia: epidemiological and clinical aspects

Resumos

Descreve-se características clínico-epidemiológicas de 655 casos de acidentes botrópicos atendidos e/ou notificados ao Centro de Informações Antiveneno da Bahia, no Estado da Bahia, em 2001. A incidência anual no Estado foi de 5,0 acidentes/100.000 habitantes e a letalidade, 1%. A incidência foi máxima na microrregião Litoral Norte (21,9/100.000 habitantes) e no município de Itanagra (92,9/100.000 habitantes). Os acidentes foram predominantemente diurnos, acometendo membros inferiores, em homens, de 11-30 anos, trabalhadores, no ambiente rural e no período chuvoso. Atendimento médico após 13 horas da ocorrência da picada ocorreu em 19% dos casos. Predominaram os quadros clínicos moderados (47,8%), seguidos dos graves (23,6%). As manifestações clínicas locais e sistêmicas seguiram o padrão nacional para as serpentes do gênero Bothrops. Sintomatologias neurológicas, não usualmente atribuídas ao acidente botrópico, foram registrados em alguns casos. A soroterapia empregada (7,7 ampolas/paciente) foi compatível com o fato da maioria de casos serem moderados. Outros tipos de soro que não o univalente foram utilizados em 15 (2,3%) pacientes.

Bothrops Jararaca; Picadas de cobra; Epidemiologia; Antivenenos


This study describes the clinical and epidemiological characteristics of 655 cases of Bothrops snakebites that were attended by and/or notified to the Bahia Antivenin Information Center, State of Bahia, Brazil, in 2001. The annual incidence in the State was 5.0 cases/100,000 inhabitants and lethality was 1%. The incidence was greatest in the North Coast microregion (21.9/100,000 inhabitants) and the municipality of Itanagra (92.9/100,000 inhabitants). The snakebites occurred predominantly during the day, affecting the lower limbs of men aged 11-30 years who worked in rural areas during the rainy period. Medical care was obtained more than 13 hours after the snakebite in 19% of the cases. Moderate (47.8%) and severe (23.6%) clinical presentations prevailed. The local and systemic clinical manifestations followed the usual pattern for Bothrops snakebites in Brazil. However, a few cases presented neurological manifestations, which are not usually attributed to Bothrops snakebites. The antivenin therapy used (7.7 blisters/patient) reflected the fact that the majority of the cases were moderate. Antivenins other than the univalent type were used in 2.3% of the cases.

Bothrops jararaca; Snakebites; Epidemiology; Antivenins


ARTIGO ARTICLE

Envenenamento por serpentes do gênero Bothrops no Estado da Bahia: aspectos epidemiológicos e clínicos

Envenomation by Bothrops in the State of Bahia: epidemiological and clinical aspects

Yukari Figueroa MiseI; Rejâne Maria Lira-da-SilvaI; Fernando Martins CarvalhoII

IDepartamento de Zoologia, Instituto de Biologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA

IIDepartamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Profª Rejâne Maria Lira-da-Silva. Deptº de Zoologia/IB/UFBA. Núcleo Regional de Ofiologia e Animais Peçonhentos da Bahia, Campus Universitário de Ondina Ondina 40170-210 Salvador, BA Tel: 55 71 3283-6564 e-mail: yukari@ufba.br; rejane@ufba.br; fmc@ufba.br

RESUMO

Descreve-se características clínico-epidemiológicas de 655 casos de acidentes botrópicos atendidos e/ou notificados ao Centro de Informações Antiveneno da Bahia, no Estado da Bahia, em 2001. A incidência anual no Estado foi de 5,0 acidentes/100.000 habitantes e a letalidade, 1%. A incidência foi máxima na microrregião Litoral Norte (21,9/100.000 habitantes) e no município de Itanagra (92,9/100.000 habitantes). Os acidentes foram predominantemente diurnos, acometendo membros inferiores, em homens, de 11-30 anos, trabalhadores, no ambiente rural e no período chuvoso. Atendimento médico após 13 horas da ocorrência da picada ocorreu em 19% dos casos. Predominaram os quadros clínicos moderados (47,8%), seguidos dos graves (23,6%). As manifestações clínicas locais e sistêmicas seguiram o padrão nacional para as serpentes do gênero Bothrops. Sintomatologias neurológicas, não usualmente atribuídas ao acidente botrópico, foram registrados em alguns casos. A soroterapia empregada (7,7 ampolas/paciente) foi compatível com o fato da maioria de casos serem moderados. Outros tipos de soro que não o univalente foram utilizados em 15 (2,3%) pacientes.

Palavras-chaves: Bothrops Jararaca. Picadas de cobra. Epidemiologia. Antivenenos.

ABSTRACT

This study describes the clinical and epidemiological characteristics of 655 cases of Bothrops snakebites that were attended by and/or notified to the Bahia Antivenin Information Center, State of Bahia, Brazil, in 2001. The annual incidence in the State was 5.0 cases/100,000 inhabitants and lethality was 1%. The incidence was greatest in the North Coast microregion (21.9/100,000 inhabitants) and the municipality of Itanagra (92.9/100,000 inhabitants). The snakebites occurred predominantly during the day, affecting the lower limbs of men aged 11-30 years who worked in rural areas during the rainy period. Medical care was obtained more than 13 hours after the snakebite in 19% of the cases. Moderate (47.8%) and severe (23.6%) clinical presentations prevailed. The local and systemic clinical manifestations followed the usual pattern for Bothrops snakebites in Brazil. However, a few cases presented neurological manifestations, which are not usually attributed to Bothrops snakebites. The antivenin therapy used (7.7 blisters/patient) reflected the fact that the majority of the cases were moderate. Antivenins other than the univalent type were used in 2.3% of the cases.

Key-words: Bothrops jararaca. Snakebites. Epidemiology. Antivenins.

Os acidentes ofídicos são um importante problema de saúde pública, especialmente em regiões tropicais do mundo. A obrigatoriedade da notificação, a partir de 1988/89, permitiu um maior conhecimento sobre os envenenamentos ofídicos no Brasil. Apesar disso, as características clínico-epidemiológicas e a real magnitude dos acidentes ofídicos no País ainda são precariamente conhecidas nas regiões Norte e Nordeste, devido à subnotificação ou da informação colhida com omissões15. Dentre os acidentes por serpentes, o acidente botrópico destaca-se pela sua elevada incidência8 24.

O presente trabalho descreve características clínicas e epidemiológicas de envenenamentos botrópicos ocorridos no Estado da Bahia, em 2001.

MATERIAL E MÉTODOS

Realizou-se um estudo descritivo retrospectivo das características clínico-epidemiológicas dos casos de acidentes botrópicos atendidos e/ou notificados ao Centro de Informações Antiveneno da Bahia da Secretaria de Saúde da Bahia (CIAVE/SESAB), no ano de 2001. As características clínicas e epidemiológicas analisadas neste artigo provieram das informações constantes nas Fichas Individuais dos casos, padronizadas pelo Programa Nacional de Ofidismo e Animais Peçonhentos. As Fichas eram preenchidas pelos médicos do CIAVE e/ou da emergência do Hospital Central Roberto Santos (HCRS), a partir dos prontuários dos pacientes.

A área de pesquisa compreendeu o Estado da Bahia, com área de 567.295km², com 417 municípios e população de 13.214.114 habitantes. Foram calculadas as medidas de incidência e letalidade para a Bahia, referentes ao ano de 2001. De acordo com a configuração geopolítica, o Estado está dividido em 15 subzonas30. Como denominadores das taxas de incidência, usou-se os dados demográficos populacionais disponíveis no IBGE9. O Risco foi definido como a probabilidade de um indivíduo ou grupo de indivíduos sofrerem o acidente ofídico em relação à respectiva população de base, no ano de 2001.

Para processamento e análise dos dados, utilizou-se o programa SPSS® versão 11.0 (Statistical Package for the Social Sciences)31.

A identificação das serpentes causadoras dos acidentes foi feita pelo Núcleo Regional de Ofiologia e Animais Peçonhentos, Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia (NOAP/UFBA).

RESULTADOS

Aspectos epidemiológicos. Em 2001, o CIAVE-BA atendeu e/ou notificou 740 acidentes ofídicos; destes, 665 (89,9%) foram acidentes botrópicos perfazendo uma incidência de 5,0 acidentes botrópicos/100.000 habitantes. Apenas 11 (1,7%) casos foram confirmados com a identificação da serpente causadora do acidente, sendo todos exemplares da espécie Bothrops leucurus.

O Litoral Norte foi a microrregião que apresentou maior incidência de acidentes botrópicos (21,9 casos/100.000 habitantes) e o município mais afetado foi Itanagra (92,9 casos/100.000 habitantes). Em Salvador, os bairros mais atingidos foram Pirajá e Fazenda Grande do Retiro, cada qual contribuindo com 16% dos casos ocorridos nesta capital. Os acidentes botrópicos ocorreram mais no período chuvoso de março-agosto (62,4%) que no período menos chuvoso de setembro-fevereiro (37,6%).

Na casuística predominou o sexo masculino (76,7%) e pacientes com faixa etária de 11 a 30 anos (46,5%). Informação sobre a ocupação só existia para 188 dos 665 casos: 92 eram menores de 10 anos, 4 eram aposentados ou desempregados e para 381 não havia essa informação. A ocupação mais freqüentemente registrada foi a de trabalhador rural (110 casos ou 16,5%). Elevada proporção (542 casos ou 81,5%) dos acidentes ocorreu em ambiente rural. O trabalho habitual foi a atividade mais freqüentemente mencionada no momento da picada (66,7%), seguida pelo lazer (21,1%).

A maioria (413 casos ou 62,1%) dos pacientes chegou ao hospital nas seis primeiras horas após a picada. Por outro lado, 19% dos pacientes chegaram ao atendimento médico com mais de 13 horas decorridas após a picada. Os acidentes botrópicos acometeram principalmente os pés ou as pernas (75,2%) e ocorreram no período diurno (76,7%). Dentre os 665 acidentes botrópicos registrados no ano de 2001, ocorreram sete óbitos, o que correspondeu à letalidade de 1%.

Aspectos clínicos. Os acidentes foram classificados como leves (19,1%), moderados (47,8%) ou graves (23,6%).

As manifestações no local da picada mais verificadas nestes pacientes foram: edema (90,7%), sangramento (7,8%) e equimose (6,3%) (Tabela 1). As manifestações sistêmicas relacionadas às alterações no tempo de coagulação foram observadas em 66,5% nos 496 pacientes em que se pesquisou estes distúrbios. Cefaléia (5,3%), gengivorragia (5,1%) vômito, hematúria e alteração na cor da urina (todos com 3,2%) também foram manifestações verificadas (Tabela 2).

Soroterapia. Dentre os 665 pacientes com diagnóstico de acidente botrópico, 621 (93,4%) receberam soro antibotrópico, 7 (1%) receberam soro antibotrópico-laquético, 6 (0,9%) receberam soro antibotrópico-crotálico, 2 (0,3%) receberam soro anticrotálico, e 29 (4,4%) não receberam qualquer tipo de soro. Dentre os 636 pacientes que receberam soroterapia antiofídica, a média de ampolas na primeira dose foi de 8,1 ampolas/paciente. Houve uma segunda dose para 59 (9,3%) destes pacientes, que variou de 1 a 4 ampolas (62,7%, de 59 casos), 5 a 8 ampolas (23,7%) de 9 a 12 ampolas (13,6%). Dentre os 621 pacientes que receberam o soro antibotrópico, 57 (9,1%) apresentaram reações imediatas: febre (28 casos), palidez (6 casos), náuseas/vômitos, taquicardia e hipotensão/choque (5 casos cada), taquipnéia/dispnéia e broncoespasmo (1 caso cada).

O torniquete foi utilizado como intervenção inicial em 59 (8,9%) casos. Onze (1,7%) pacientes relataram o uso de recursos da medicina popular previamente ao atendimento médico.

DISCUSSÃO

A incidência de acidentes ofídicos na Bahia (5,0 acidentes/100.000 hab) é relativamente baixa quando comparada com a média nacional (13,9 acidentes/100.000 hab) e semelhante à média para o Nordeste (7,6 acidentes/100.000 hab) em 199315. Esse dado pode estar relacionado à subnotificação do ofidismo no estado, uma vez que as regiões Sul e Sudeste contam com melhor organização dos serviços de saúde e sistemas de informação15. Destacou-se o município de Itanagra que possui pecuária desenvolvida e agricultura diversificada. O município explora a agricultura de coco e a pecuária, com criação de bovinos e eqüinos, sendo o trabalho agropecuário realizado sem mecanização13. Esse modo de produção pode expor o trabalhador rural a um maior risco de se acidentar. Os bairros de Pirajá e Fazenda Grande do Retiro, em Salvador, caracterizam-se pelo crescimento desordenado, com vestígios de Mata Atlântica e alta densidade populacional, além de saneamento básico precário ou ausente30. Estas características propiciam o acúmulo de lixo, entulho e atraem roedores, gerando abrigo e alimento para as serpentes, o que favorece, conseqüentemente, a sua proliferação13.

O hábito de levar a serpente agressora ao serviço de saúde (1,7%) ainda é uma medida incipiente na Bahia, quando comparada à freqüência de 11,8%, relatada no Estado do Acre17. Essa medida é de extrema importância para a identificação do envenenamento e indicar a aplicação de soro antiofídico. Rotineiramente, o CIAVE notifica e encaminha a serpente agressora para o Setor de Biologia do serviço, para a devida identificação. A observação de que a maioria dos acidentes botrópicos acometeu homens na faixa etária dos 11 aos 30 anos e trabalhadores rurais pode ser devido provavelmente à inserção de crianças no trabalho rural, já que houve uma predominância do trabalho habitual como atividade efetivamente mencionada no momento da picada (66,7%), seguido por lazer (21,1%), similar ao relatado para o Brasil e outros países sul-americanos1 13 16 17.

A incidência dos acidentes botrópicos foi mais elevada no período chuvoso. No Brasil, os acidentes ofídicos em geral predominam de janeiro a abril, associados ao aumento da temperatura e pluviosidade, sobretudo nas regiões Sul e Sudeste15. Na Bahia, os acidentes botrópicos registrados predominaram nos meses de março a agosto, devido provavelmente à inundação dos abrigos das jararacas que as obriga a buscar outros esconderijos, tornando-as mais susceptíveis a serem vistas e capturadas por transeuntes17 18. Este achado sazonal diferiu daquele relatado para o Rio Grande do Sul28, provavelmente porque na Bahia e em estados da Região Norte não há queda acentuada de temperatura no outono e inverno.

O tempo entre a picada e o atendimento médico tem grande importância para o prognóstico do acidente11. O fato de 19% dos pacientes chegarem ao atendimento médico com mais de 13 horas, indica a desinformação e a precariedade do sistema de atendimento médico, apesar da pequena proporção de pacientes (1,7%) ter previamente adotado práticas da medicina popular.

Uma segunda dose foi ministrada em 8,9% dos pacientes, o que é uma melhor proporção quando comparada com aquela relatada para o Estado do Acre (16%)17. O ideal é que a dose inicial seja suficiente para neutralizar a peçonha inoculada, sem que seja necessária uma dose complementar. O soro antibotrópico, assim como os demais soros antiofídicos, deve ser aplicado o mais precocemente possível, pois, evidentemente, só possui ação sobre o veneno circulante, não agindo sobre tecidos já lesados32.

A predominância de acidentes ofídicos acometendo membros inferiores (75,2%) reflete o hábito terrícola da maioria das espécies do gênero Bothrops. Essa situação, observada para a Bahia2 13 14 23 25 26 e para outras regiões do Brasil8 11 19 21, denota a não utilização de equipamentos de proteção, em especial nas zonas de agricultura não mecanizada.

Embora as jararacas sejam serpentes noturnas, 76,7% dos acidentes ocorreram durante o período diurno, possivelmente porque a atividade laboral favorece a possibilidade de contato do homem com a serpente.

Registrou-se o uso de soro anticrotálico em dois pacientes. A administração de soro inadequado pode dever-se a erro grosseiro de diagnóstico, a quadros iniciais que podem simular outro envenenamento ou à falta de soro específico, sendo difícil discutir este assunto. Apesar disso, o uso inespecífico da soroterapia é injustificado, uma vez que a imunidade cruzada, conferida por diversos tipos de soro, é muito baixa5. A aplicação de soro inadequado também foi observada no Estado do Acre17, o que sugere a necessidade de treinamento e/ou capacitação para a equipe médica, principalmente sobre a identificação de serpentes e aspectos sintomatológicos, diagnósticos e terapêuticos do ofidismo.

A média de 7,7 ampolas/paciente encontrada neste estudo pode ser considerada alta, segundo parâmetros nacionais (5,6 ampolas/paciente), porém compatível com a obtida para a Região Metropolitana de Salvador13 e com o fato da maioria dos casos terem sido classificados como moderados (47,8%). Embora o Ministério da Saúde recomende uma dosagem padronizada para o tratamento do envenenamento botrópico, existem variações na média de ampolas utilizadas nas Unidades Federadas: Rio Grande do Norte (3,3 ampolas/paciente), Santa Catarina e Espírito Santo (4,0 ampolas/paciente), Pernambuco (7,3 ampolas/paciente) e Distrito Federal (8,3 ampolas/paciente)15. Esta variação provavelmente está associada à realidade de cada região do país e pelos agentes etiológicos envolvidos. Estes fatos sugerem a necessidade, apontada desde 199710 de reavaliação da atual recomendação15 do número padronizado de ampolas de soro antiofídico a serem utilizadas num tratamento.

As reações precoces à soroterapia são motivos de preocupação, devido à sua potencial gravidade. Existem poucos trabalhos na literatura especializada referentes às reações à soroterapia3 apesar do monitoramento do paciente durante a infusão do soro antiofídico ser indispensável para se observar a ocorrência de anafilaxia32. Foram observadas reações imediatas à soroterapia em 8,9% dos pacientes estudados. Essa proporção é baixa, quando comparada à relatada para o Estado do Acre17, Ribeirão Preto3 e muito abaixo daquela relatada para Salvador, Bahia (67,5%)12. A baixa proporção de reações ao soro antibotrópico encontrada nesse trabalho pode estar relacionada à falta de observação da equipe médica em relação a determinados sintomas de reações ao soro.

Contra-indicado no envenenamento botrópico15, o uso de torniquete foi pouco registrado (8,9%), entretanto, o preenchimento das informações costuma ser falho e quando o dado é obtido prospectivamente4 24, a percentagem é muito maior do que quando obtida, no mesmo centro de atendimento, porém com base em prontuários19 23.

Foram verificadas lesões locais como edema (90,7%), sangramento (7,8%) e equimose (6,3%), concordando com o perfil clínico dos acidentes botrópicos na Bahia2 20 25 26 e no Brasil11 22 27. Lesões locais estão associadas à ação proteolítica, freqüente no veneno botrópico9. As freqüências de manifestações sistêmicas gerais são semelhantes às descritas para acidentes botrópicos ocorridos na Região Metropolitana de Salvador13 e na Bahia25 26. A menor freqüência de distúrbios digestivos e cardiovasculares também concorda com dados para essas regiões13 25 26.

A proporção de casos com gengivorragia (5,1%) foi baixa quando comparada com dados do Estado do Acre (15,3%)17, e equivalente à proporção relatada para Salvador, Bahia (5,3%)13. Essa diferença provavelmente está relacionada com a variabilidade do veneno entre espécies do mesmo gênero, pois, no Acre, a Bothrops atrox é o principal agente agressor17.

As alterações no tempo de coagulação sangüínea observadas nesse trabalho concordam com dados da literatura1 21 23. O tempo de coagulação sangüínea não possui valor como critério de gravidade, mas é usado como parâmetro na evolução do quadro clínico24.

Apesar da baixa freqüência de sintomas urinários observados, é importante salientar que a falência renal é a principal causa de óbito pelo envenenamento botrópico4. Esse dado se aproxima dos dados obtidos para a Região Metropolitana de Salvador13.

Sintomas neurológicos (principalmente cefaléia) e respiratórios (bradipnéia) ocorreram em proporções semelhantes às relatadas para a Bahia25 26 e podem estar relacionados à ação neurotóxica pré-sináptica do veneno de Bothrops leucurus observada in vitro sobre a preparação nervo-frênico diafragma de camundongo12. Essa peculiaridade do veneno da Bothrops leucurus sugere que os agentes de saúde devem estar aptos a executar a terapêutica adequada aos sintomas sistêmicos, raros nos acidentes botrópicos no país, porém presentes nos acidentes para o Estado.

A letalidade de 1% foi alta, se comparada com a média nacional (0,45%) e nordestina (0,81%) nos anos de 1990 a 199315, respectivamente; mas se equipara à média do Estado da Bahia, nos últimos quinze anos. Embora a letalidade na Bahia tenha decrescido nos últimos anos (2,6% em 198525; 1,3% em 198626; 1,1% em 1991/19922; 0,5% em 199529), esteve sempre acima da média nacional.

A predominância de acidentes moderados (47,8%) difere de informação anteriormente relatada para a Região Metropolitana de Salvador, Bahia13, quando predominaram os casos leves. Esta discrepância pode dever-se a equívocos no enquadramento do estadiamento do paciente, tais como considerar a alteração no tempo de coagulação como indicativo de gravidade, o que é um procedimento incorreto23.

Diversos fatores podem estar associados à baixa qualidade das anotações nos prontuários médicos. Dentre esses, a dinâmica de atendimento na Unidade de Saúde; o elevado fluxo de pacientes, tanto para acidentes ofídicos quanto para outros problemas de caráter médico; e o costume de não se fazerem as devidas anotações em prontuário, por causa da " falta de tempo" dos componentes da equipe de saúde17. É de extrema importância que profissionais de saúde estejam capacitados para o manejo epidemiológico, clínico e terapêutico dos acidentes botrópicos, mas infelizmente apenas 56% das escolas médicas do País preparam seus futuros profissionais para o atendimento aos acidentados por animais peçonhentos7.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem à Dra. Dayse Schwab Rodrigues, Coordenadora do Centro de Informações Antiveneno da Bahia da Secretaria de Saúde da Bahia (CIAVE/SESAB) por ter disponibilizado a consulta às fichas de atendimento de pacientes.

Recebido para publicação em: 23/07/2007

Aceito em: 23/08/2007

Órgãos financiadores: PIBIC/UFBA – CNPq, PRODOC/UFBA – FAPESB (Fundação de Amparo á Pesquisa do Estado da Bahia) e FUNASA/MS (Fundação Nacional de Saúde, Ministério da Saúde).

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  • Endereço para correspondência:
    Profª Rejâne Maria Lira-da-Silva.
    Deptº de Zoologia/IB/UFBA. Núcleo Regional de Ofiologia e Animais Peçonhentos da Bahia, Campus Universitário de Ondina
    Ondina
    40170-210 Salvador, BA
    Tel: 55 71 3283-6564
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Out 2007

    Histórico

    • Aceito
      23 Ago 2007
    • Recebido
      23 Jul 2007
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