Resumos
O presente estudo teve como objetivo estimar a prevalência da infecção pelo HTLV-1 em remanescentes de comunidades de população negra, os quilombos no Brasil Central. 1.837 indivíduos foram avaliados, sendo nove soropositivos para HTLV-1/2 por ELISA. Todos esses foram positivos para HTLV-1 por Western blot e/ou PCR, resultando em uma prevalência de 0,5% (IC 95%: 0,2-1,0). A idade dos indivíduos infectados variou de 11 a 82 anos, sendo a maioria do sexo feminino. Quanto às características de risco, história de aleitamento materno, transfusão de sangue, múltiplos parceiros sexuais e doenças sexualmente transmissíveis foram relatadas por esses indivíduos. Os achados deste estudo evidenciam a importância da identificação dos indivíduos infectados pelo HTLV-1 na estratégia de controle e prevenção dessa infecção em remanescentes de quilombos.
Vírus linfotrópico de células T humanas 1; Remanescentes de quilombos; Brasil Central; Prevalência
This study aimed to determine the prevalence of HTLV-1 infection among remnant black quilombo communities in Central Brazil. A total of 1,837 individuals were evaluated, among whom nine were HTLV-1/2 seropositive according to ELISA. All of them were positive for HTLV-1 by means of Western blot and/or PCR, thus resulting in a prevalence of 0.5% (95% CI: 0.2-1.0). The HTLV-1 infected individuals ranged in age from 11 to 82 years. The majority of them were females. Regarding risk characteristics, histories of breastfeeding, blood transfusion, multiple sexual partners and sexually transmitted diseases were reported by these individuals. The findings from this study indicate the importance of identifying HTLV-1 infected individuals, as a strategy for infection control and prevention in these remnant quilombos.
Human T-cell lymphotropic virus 1; Remnant quilombo; Central Brazil; Prevalence
ARTIGO ARTICLE
Prevalência da infecção pelo HTLV-1, em remanescentes de quilombos no Brasil Central
Prevalence of infection due to HTLV-1 in remnant quilombos in Central Brazil
Laura Branquinho do NascimentoI; Megmar Aparecida dos Santos CarneiroI; Sheila Araújo TelesII; Carmen Luci Rodrigues LopesII; Nádia Rúbia da Silva ReisI; Ágabo Macedo da Costa e SilvaI; Ana Rita Coimbra Motta-CastroIII; Koko OtsukiIV; Ana Carolina Paulo VicenteIV; Regina Maria Bringel MartinsI
IInstituto de Patologia Tropical e Saúde Pública, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO
IIFaculdade de Enfermagem, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO
IIIDepartamento de Farmácia Bioquímica, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS
IVInstituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ
Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Prof a Regina Maria Bringel Martins IPTSP/UFG Caixa Postal 131, 74605-050 Goiânia, GO Tel: 55 62 3209-6129; Fax: 55 62 3209-6363 e-mail: rbringel@terra.com.br
RESUMO
O presente estudo teve como objetivo estimar a prevalência da infecção pelo HTLV-1 em remanescentes de comunidades de população negra, os quilombos no Brasil Central. 1.837 indivíduos foram avaliados, sendo nove soropositivos para HTLV-1/2 por ELISA. Todos esses foram positivos para HTLV-1 por Western blot e/ou PCR, resultando em uma prevalência de 0,5% (IC 95%: 0,2-1,0). A idade dos indivíduos infectados variou de 11 a 82 anos, sendo a maioria do sexo feminino. Quanto às características de risco, história de aleitamento materno, transfusão de sangue, múltiplos parceiros sexuais e doenças sexualmente transmissíveis foram relatadas por esses indivíduos. Os achados deste estudo evidenciam a importância da identificação dos indivíduos infectados pelo HTLV-1 na estratégia de controle e prevenção dessa infecção em remanescentes de quilombos.
Palavras-chaves: Vírus linfotrópico de células T humanas 1. Remanescentes de quilombos. Brasil Central. Prevalência.
ABSTRACT
This study aimed to determine the prevalence of HTLV-1 infection among remnant black quilombo communities in Central Brazil. A total of 1,837 individuals were evaluated, among whom nine were HTLV-1/2 seropositive according to ELISA. All of them were positive for HTLV-1 by means of Western blot and/or PCR, thus resulting in a prevalence of 0.5% (95% CI: 0.2-1.0). The HTLV-1 infected individuals ranged in age from 11 to 82 years. The majority of them were females. Regarding risk characteristics, histories of breastfeeding, blood transfusion, multiple sexual partners and sexually transmitted diseases were reported by these individuals. The findings from this study indicate the importance of identifying HTLV-1 infected individuals, as a strategy for infection control and prevention in these remnant quilombos.
Key-words: Human T-cell lymphotropic virus 1. Remnant quilombo. Central Brazil. Prevalence.
A infecção pelo vírus linfotrópico de células T humanas 1 (HTLV-1) está associada com desenvolvimento de doenças graves como a leucemia/linfoma de células T do adulto (ATL) e mielopatia associada ao HTLV-1/paraparesia espástica tropical (HAM/TSP), além de síndromes inflamatórias e complicações infecciosas24. Estima-se que 15 a 25 milhões de indivíduos estejam infectados pelo HTLV-1 em todo o mundo. A soroprevalência desse vírus varia de acordo com a área geográfica, grupo étnico e comportamentos de risco. Taxas elevadas de prevalência foram observadas em algumas regiões como o sudoeste do Japão, Melanésia, África equatorial, Caribe e América do Sul20.
O Brasil é o país com maior número absoluto de indivíduos infectados por HTLV-1, possuindo cerca de dois milhões de portadores3. Essa infecção é endêmica em Salvador, Bahia, onde uma prevalência de 1,8% foi encontrada8. Segundo Alcântara e cols1, a introdução do HTLV-1 nesse estado ocorreu com o tráfico de escravos africanos. Estudo sobre HTLV-1/2, realizado em doadores de sangue nas capitais dos Estados brasileiros e Distrito Federal, obteve soroprevalência de 0,1% a 1%, sendo superior nas Regiões Norte e Nordeste, e inferior no sul do Brasil. Na Região Centro-Oeste, a prevalência verificada nessa população variou de 0,2% a 0,7%4. Em gestantes, uma prevalência de 0,1% foi observada para o HTLV-1 em Mato Grosso do Sul e Goiás718, e de 0,2% para HTLV-1/2 em Mato Grosso25.
As comunidades remanescentes de quilombos semi-isoladas no Brasil Central foram fundadas por africanos escravizados, que fugiram para locais de difícil acesso, e instituíram sociedades alternativas conhecidas como quilombos21. Considerando a possível origem africana do HTLV-1 e a escassez de estudos epidemiológicos para esse vírus nessas comunidades22, bem como a inexistência de dados sobre essa infecção em remanescentes de quilombos no Brasil Central, o presente estudo teve como objetivo estimar a prevalência da infecção pelo HTLV-1 nessa população.
MATERIAL E MÉTODOS
Estudo transversal realizado em remanescentes de quilombos em Goiás e Mato Grosso do Sul, Brasil Central, cuja população totalizava 4.500 indivíduos, no período de julho de 2004 a julho de 2005. Para obter uma prevalência estimada de 0,3%, com precisão de 0,2%, fez-se necessário estudar o mínimo de 1.757 indivíduos, considerando um poder estatístico de 80% (β= 0,20) e nível de significância de 95% (α=0,05). Assim sendo, a amostra deste estudo foi constituída de 1.837 indivíduos. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Materno Infantil de Goiânia, GO (protocolo CEPHA - HMI nº 025/05).
Todos os indivíduos foram entrevistados sobre dados sócio-demográficos e possíveis fatores associados à infecção pelo HTLV, após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, ou da coleta de impressão digital dos indivíduos analfabetos. Para menores de idade, o referido termo foi assinado pelos pais ou responsáveis. Em seguida, amostras sanguíneas (soros) foram coletadas para a realização da triagem sorológica.
A pesquisa de anticorpos anti-HTLV-1/2 foi realizada pelo ensaio imunoenzimático, ELISA (Murex HTLV-I+II, GE80/81, Murex Diagnostics, UK). Após a triagem sorológica, coletou-se uma segunda amostra de sangue dos indivíduos soro reagentes para confirmação por Western blot (WB) (HTLV Blot 2.4, Genelabs Diagnostics, Cingapura) e detecção do DNA proviral. Assim, amostras de sangue total desses indivíduos foram submetidas à extração do DNA utilizando os reagentes da Qiagen (QIAamp DNA Blood Minikit, Qiagen, Hilden, Germany), de acordo com as instruções do fabricante. O DNA proviral foi amplificado por nested-PCR com iniciadores para as regiões tax e long terminal repeat (LTR) do genoma do HTLV-110 23.
Os dados foram analisados pelo programa Epi Info 6 versão 3.04 (2007). A prevalência foi calculada com intervalo de confiança de 95%.
RESULTADOS
A idade da população estudada variou de 1 a 108 anos, com média (dp) de 29 (20,1) anos e mediana de 25 anos. A maioria era do sexo feminino (56,3%), casada ou com união consensual (42,1%), cursou ou estava cursando o ensino fundamental (62,6%), lavrador (45,6%) e referiu renda menor que um salário mínimo (55%). Quanto às características de risco para infecção pelo HTLV-1, 28,7% dos quilombolas relataram mais que cinco parceiros sexuais na vida, 12,9% referiram antecedentes de doenças sexualmente transmissíveis (DST) e 7,5% de transfusão de sangue (Tabela 1). Além disso, todos os entrevistados informaram história de aleitamento materno. Por outro lado, não se observou relato de uso de drogas injetáveis nessa população.
Das 1.837 amostras testadas, nove foram reagentes para HTLV-1/2 por ELISA e apresentaram reatividade com as proteínas codificadas por gag (p19 e p24) no WB, bem como para as proteínas codificadas pelo envelope (GD21 e rgp46-I), exceto a Q-245 (indeterminada). Verificou-se que as oito amostras positivas no WB foram classificadas como HTLV-1, tendo em vista a reatividade para rgp46-I, uma proteína recombinante exclusiva do envelope desse vírus. Amostras de sangue total desses indivíduos foram submetidas à detecção do DNA para as regiões tax e LTR do HTLV-1, sendo oito positivas para as duas regiões. A amostra Q-245, com padrão indeterminado no WB, foi positiva para a região tax e negativa para LTR (Tabela 2). Por conseguinte, nove amostras foram positivas nos testes confirmatórios (WB e/ou PCR), resultando numa prevalência global de 0,5% (IC 95% 0,2-1,0) para infecção pelo HTLV-1.
As características dos indivíduos infectados, inclusive aquelas associadas a risco aumentado da infecção pelo HTLV-1, são apresentadas na Tabela 3. A idade variou de 11 a 82 anos, sendo o sexo feminino predominante. Destes, quatro residiam em Goiás e cinco em Mato Grosso do Sul. A maioria dos indivíduos relatou que foi amamentada por mais de seis meses. Dois quilombolas positivos referiram transfusão de sangue, sendo um episódio anterior a 1993 e o outro em 1998. A idade da primeira relação sexual foi informada por seis indivíduos, variando de 13 a 20 anos. O número de parceiros sexuais relatado variou de um a mais de 15. Dois indivíduos informaram múltiplos parceiros, sendo que um mencionou história de DST e não usava preservativo, dentre os infectados pelo HTLV-1.
DISCUSSÃO
Esta é a primeira investigação epidemiológica do HTLV-1 em remanescentes de quilombos no Brasil Central, cuja população foi composta em sua maioria por indivíduos do sexo feminino, e com níveis baixos de renda familiar e escolaridade. Características semelhantes foram observadas na população em geral de Salvador, constituída predominantemente por afro-descendentes, e se mostraram associadas à infecção pelo HTLV-18. Provavelmente, a baixa freqüência de quilombolas infectados da presente investigação não permitiu evidenciar a ocorrência dessas associações (dados não mostrados).
A prevalência global da infecção pelo HTLV-1 neste estudo foi concordante com as observadas em doadores de sangue na Região Centro-Oeste4 e em remanescentes de quilombos no Pará (1,1%; IC 95%: 0,3-3,6)22. Por outro lado, foi inferior à encontrada na população em geral de Salvador, Bahia (1,8%; IC 95%: 1,1-2,5)8, mas superior às verificadas em gestantes em Goiás (0,1%; IC 95%: 0,1-0,2) e Mato Grosso do Sul (0,1%; IC 95%: 0,1-0,2)7 18. De acordo com esses dados, a prevalência para infecção pelo HTLV-1 em remanescentes de quilombos no Brasil Central pode ser considerada intermediária.
No presente estudo, o WB confirmou positividade para o HTLV-1 em oito (88,9%) das nove amostras soro reagentes pelo ELISA. Apenas uma amostra foi indeterminada, sendo que esta apresentou reatividade para proteínas codificadas por gag (p19 e p24) e foi PCR positiva para a região tax, mas negativa para LTR. Esse perfil de reatividade pode ocorrer durante o período de soroconversão, já que os anticorpos contra gag surgem primeiramente, ou quando da infecção com provírus defectivo do HTLV, ou ainda devido à reatividade cruzada com outros agentes. Dessa forma, faz-se necessária a detecção do DNA viral nas amostras indeterminadas pelo WB, para diagnóstico e acompanhamento dos indivíduos infectados5 6 11.
Dentre os remanescentes de quilombos infectados pelo HTLV-1, observou-se maior soropositividade no sexo feminino, sendo concordante com outros estudos8 13 15. A frequência elevada de mulheres infectadas pelo HTLV-1 pode ser atribuída à maior eficiência da transmissão sexual do vírus no sentido homem-mulher12 17, podendo ainda favorecer a transmissão vertical por amamentação2 9 19. De fato, o aleitamento materno por mais de seis meses foi referido pela maioria dos indivíduos infectados pelo HTLV-1, neste estudo.
Ainda em relação à transmissão sexual desse vírus, fatores como múltiplos parceiros sexuais durante a vida, sexo sem proteção, iniciação sexual precoce e história de DST foram associados à soropositividade ao HTLV-115 16 17. Embora tais associações não foram evidenciadas na presente investigação, dois dos nove indivíduos infectados pelo HTLV-1 relataram múltiplos parceiros sexuais, sendo que um referiu também antecedentes de DST e sua primeira relação sexual ocorreu aos 13 anos de idade (Q-130).
No Brasil, a hemotransfusão foi um fator de risco significante para a transmissão do HTLV-1, principalmente se ocorreu antes de novembro de 1993, quando foi implantada a triagem sorológica para HTLV-1/2 nos bancos de sangue14. Dentre os indivíduos infectados pelo HTLV-1, neste estudo, história de hemotransfusão foi informada por dois quilombolas. Um relatou episódio transfusional anterior ao ano de 1993 (Q-535) e não informou outras características de risco, ratificando a importância da triagem dos doadores de sangue. O outro individuo (Q-130), apesar de ter sido transfundido em 1998 (após a implantação da triagem sorológica para esse vírus), o mesmo referiu características de risco relacionadas a transmissão sexual do HTLV-1.
Como os remanescentes de quilombos infectados pelo HTLV-1 vivem em comunidades ainda semi-isoladas, acredita-se que a introdução do vírus possa estar vinculada ao tráfico de escravos da África para o Brasil e, provavelmente, a manutenção da infecção vem ocorrendo pela transmissão vertical e/ou horizontal. Entretanto, investigações moleculares são necessárias para elucidação da possível origem africana do HTLV-1 nas comunidades remanescentes de quilombos no Brasil.
Diante dos achados deste estudo e considerando o risco dos indivíduos infectados desenvolverem doenças graves como ATL e HAM/TSP, além de outras associadas24, medidas incluindo a triagem para HTLV durante o pré-natal, aconselhamento das gestantes infectadas em relação à suspensão da amamentação, ou a redução da mesma pelo fornecimento de fórmulas infantis, devem ser implementadas. Adicionalmente, faz-se necessária a adoção de estratégias para o incentivo à prática sexual segura, como o uso regular de preservativo.
Recebido para publicação em 06/08/2009
Aceito em 27/10/2009
Suporte Financeiro: UNESCO/MS-Programa DST-Aids
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Mar 2010 -
Data do Fascículo
Dez 2009
Histórico
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Aceito
27 Out 2009 -
Recebido
06 Ago 2009