Acessibilidade / Reportar erro

Dipodascus capitatus (Geotrichum capitatum): infecção sistêmica fatal em paciente com leucemia mielocítica aguda

Dipodascus capitatus (Geotrichum capitatum): fatal systemic infection on patient with acute myeloid leukemia

Resumos

As infecções causadas por Dipodascus capitatus são raras e de difícil tratamento. Aqui se relata um caso em paciente com leucemia mielocítica aguda. O isolamento fúngico ocorreu a partir de hemocultura e a identificação fenotípica baseou-se em métodos micológicos clássicos; a identificação genotípica foi realizada através do sequenciamento da região D1/D2 do 26 rDNA. Os testes de suscetibilidade foram realizados através do Etest® e microdiluição em caldo. A antifungicoterapia foi ineficaz, registrando-se óbito da paciente no 17° dia após o diagnóstico. Os autores comparam o caso com relatos similares e discutem a emergência destas infecções bem como suas dificuldades diagnósticas e terapêuticas.

Dipodascus capitatus; Micoses


The infections caused by Dipodascus capitatus are rare, and the treatment is difficult. We reported a case of a patient with acute myeloid leukemia. The fungus was first isolated from hemocultures, and the phenotypic identification was based on mycological methods. The genotyping was carried out by sequencing the region D1/D2 from 26 rDNA. The susceptibility tests were assayed by Etest® and by the microdilution technique. None of the antifungal treatments employed were effective. The patient died on day 17 after the mycological diagnosis. The authors discussed the emergence of such infections as well as the difficulty regarding the diagnosis and treatment.

Dipodascus capitatus; Mycoses


RELATO DE CASO CASE REPORT

Dipodascus capitatus (Geotrichum capitatum): infecção sistêmica fatal em paciente com leucemia mielocítica aguda

Dipodascus capitatus (Geotrichum capitatum): fatal systemic infection on patient with acute myeloid leukemia

Thereza Christina Sampaio LafayetteI; Loiva Therezinha Otonelli OliveiraII; Melissa LandellIII; Patrícia ValenteIII; Sydney Hartz AlvesIV; Waldir Veiga PereiraI

IServiço de Hematologia-Oncologia, Hospital Universitário de Santa Maria,Santa Maria, RS.

IILaboratório de Micologia, Hospital Universitário de Santa Maria, Santa Maria, RS

IIILaboratório de Micologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS

IVDepartamento de Microbiologia e Parasitologia, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Dr. Sydney Hartz Alves. Rua dos Andradas 1985/201 97010-033 Santa Maria, RS. Tel: 55 55 3220-8906 e-mail: sydneyalves.ufsm@gmail.com

RESUMO

As infecções causadas por Dipodascus capitatus são raras e de difícil tratamento. Aqui se relata um caso em paciente com leucemia mielocítica aguda. O isolamento fúngico ocorreu a partir de hemocultura e a identificação fenotípica baseou-se em métodos micológicos clássicos; a identificação genotípica foi realizada através do sequenciamento da região D1/D2 do 26 rDNA. Os testes de suscetibilidade foram realizados através do Etest® e microdiluição em caldo. A antifungicoterapia foi ineficaz, registrando-se óbito da paciente no 17° dia após o diagnóstico. Os autores comparam o caso com relatos similares e discutem a emergência destas infecções bem como suas dificuldades diagnósticas e terapêuticas.

Palavras-chaves: Dipodascus capitatus. Micoses.

ABSTRACT

The infections caused by Dipodascus capitatus are rare, and the treatment is difficult. We reported a case of a patient with acute myeloid leukemia. The fungus was first isolated from hemocultures, and the phenotypic identification was based on mycological methods. The genotyping was carried out by sequencing the region D1/D2 from 26 rDNA. The susceptibility tests were assayed by Etest® and by the microdilution technique. None of the antifungal treatments employed were effective. The patient died on day 17 after the mycological diagnosis. The authors discussed the emergence of such infections as well as the difficulty regarding the diagnosis and treatment.

Keywords:Dipodascus capitatus. Mycoses.

INTRODUÇÃO

A severa neutropenia que acompanha os pacientes com leucemia e submetidos à quimioterapia antineoplásica representa elevado risco para infecções fúngicas, notadamente, as causadas por Candida spp e Aspergillus spp. Espécies menos frequentes como Trichosporon, Geotrichum, Rhodotorula, têm emergido como importantes e desafiadores agentes de micoses oportunistas, entre estes pacientes1-4. Neste contexto, relatamos um caso de infecção sistêmica causada por Dipodascus capitatus em paciente com leucemia mielocítica aguda, com evolução fatal.

RELATO DE CASO

Paciente feminina, 17 anos, procurou atendimento no Hospital Universitário de Santa Maria, relatando febre, náuseas, sudorese, tonturas e dor na axila esquerda há duas semanas. Ao exame físico apresentava palidez, febre e lesões crostosas sugestivas de Herpes simplex no mento e coxa esquerda. O hemograma revelou leucocitose (51.000/mm³) com células blásticas (68%), granulócitos (7,3%) e monócitos (22%); as plaquetas somavam 137.000/mm³ e hemoglobina era de 6,1g/dL. Confirmou-se o diagnóstico de LMA com imunofenótipo CD13 e CD33 positivos. Iniciou-se a antibioticoterapia com ceftazidima, penicilina G cristalina e aciclovir. A quimioterapia antineoplásica foi iniciada três dias após a internação com citosina arabinosídio (ARA-C) e 2 cloro-deoxi-adenosina (2CDA). No 4° dia pós-internação, a lesão axilar passou a drenar secreção purulenta e, após medidas locais, evoluiu para cicatrização. Ao 5° dia pós-quimioterapia a leucometria era de 1.700/mm³ com ausência de neutrófilos; a febre de até 39,6°C persistia o que determinou a substituição do esquema antimicrobiano inicial por meropenem, vancomicina, amicacina e anfotericina B. A paciente permanecia com hipertermia, calafrios e sinais de toxemia. Ao 7° dia após o término da quimioterapia, os hemocultivos revelaram crescimento fúngico que, ao Gram, evidenciava elementos leveduriformes pleomórficos sem blastoconídios. Foi acrescentado itraconazol sem melhora do quadro clínico nos quatro dias subsequentes. Ao 12° dia pós-quimioterapia, a leucometria era de 600/mm³ sendo 100% linfócitos. O RX do tórax revelou infiltrado pulmonar bibasal, fato que determinou a associação de flucitosina à antifungicoterapia. A paciente evoluiu com sepse acompanhada de hematêmese, melena, hematúria e insuficiência renal aguda, requerendo diálise peritoneal. Nesta ocasião, a anfotericina B foi aumentada para 1mg/kg/dia e o itraconazol foi substituído por voriconazol. O agravamento do quadro pulmonar acompanhado de hipotensão refratária ao uso de vasopressores e corticosteróides evoluiu para choque e óbito ao 17° dia após o diagnóstico da infecção fúngica. Os hemocultivos foram positivos somente para as amostras colhidas antes do início da antifungicoterapia. No ágar Sabouraud, após quatro dias de incubação obteve-se crescimento nas temperaturas 25°C e 35°C, evidenciando colônias brancas de aspecto rugoso e seco. Os microcultivos em agar fubá (25°C) revelaram hifas hialinas fragmentando-se em artroconídios retangulares ocasionalmente de disposição simpodial, ausência de blastoconídios e clamidoconídios. As demais provas bioquímica-fisiológicas (Tabela 1) foram compatíveis com Geotrichum sp. A Identificação genotípica baseou-se na sequência obtida pela amplificação da região D1/D2, a qual, comparada com o banco de dados do GenBank, identificou o fungo como Dipodascus capitatus. Pelo Etest as CIMs foram de: anfotericina B (2,0µg/ml), fluconazol (32µg/ml) e itraconazol (0,5µg/ml). Pela técnica de microdiluição em caldo, as CIMs foram de: anfotericina B (1,0µg/ml), fluconazol (32µg/ml), itraconazol (0,5µg/ml), voriconazol (0,5µg/ml) e flucitosina (0,5µg/ml). A metodologia empregada para diagnóstico e testes de susceptibilidade baseou-se nas seguintes técnicas: a) Isolamento fúngico em frascos para hemocultura contendo caldo BHI (sistema BACTEC-BD Diagnostic Systems, Oxford, UK). A partir deste, obteve-se o isolamento fúngico em tubos com ágar Sabouraud a 25°C e 35°C; b) Identificação fenotípica3,4 realizada através de microcultivos em ágar fubá e provas bioquímico-fisiológicas; c) Identificação genotípica5,6: a extração do DNA seguiu o protocolo de Ramos cols. A amplificação da região D1/D2 do 26S rDNA (Figura 1) foi realizada com os primers NL1 e NL45, nas seguintes condições: ciclo a 94ºC por 3 min; 33 ciclos a 95°C por 1 min, 56°C por 30s, 72ºC por 1min e um ciclo de extensão final a 72ºC durante 6 min. Eletroforese em gel de agarose 1% a 100V por 45 min do produto amplificado; corados com brometo de etídio para visualização sob luz UV. O sequenciamento da região DI/D2 utilizou sequenciador automático Amersham MegaBACE 1.000; d) Testes de susceptibilidade a antifúngicos7: realizados através de microdiluição em caldo, conforme CLSI M27-A3 (2008) e Etest conforme bula. Os antifúngicos testados foram: anfotericina B, fluconazol, itraconazol, voriconazol e flucitosina (Figura 1).


DISCUSSÃO

Dipodascus capitatus constitui-se no estágio teleomórfico de Geotrichum capitatum, ambos os fungos leveduriformes da classe Endomycetes, divisão Ascomycota do reino Fungi. Esta espécie já foi nomeada Trichosporon capitatum e Blastoschizomyces capitatus3.

Este fungo é considerado um comensal do trato respiratório e digestivo de indivíduos sadios3. As infecções oportunistas por D. capitatus (G. capitatum) acometem pacientes imunocomprometidos, todavia, aqueles com malignidades hematológicas são os mais vitimados. As infecções invasivas ocorrem exclusivamente em pacientes neutropênicos, notadamente naqueles recebendo quimioterapia intensiva para leucemia agudas. As infecções disseminadas causadas por D. capitatus (G. capitatum) são raras, com menos de 100 casos relatados; a utilização de antibacterianos de amplo espectro e uso de cateteres, contribuem no agravamento, manifestado pelo surgimento de lesões na pele ou mucosas1,3.

As taxas de mortalidade nas infecções por D. capitatus (G. capitatum) variam de 60-80% e os órgãos mais atingidos são pulmões, fígado, baço, rim, medula óssea, sistema nervoso central e coração8. O RX de tórax costuma evidenciar infiltrados similares ao observado neste caso. Outra característica comum ao presente relato é o isolamento fúngico a partir de hemocultivos. O prognóstico das infecções sistêmicas costuma ser desfavorável, apesar da antifungicoterapia à base de anfotericina B, itraconazol e flucitosina1.

Os testes de susceptibilidade indicaram sensibilidade a alguns fármacos e resistência a outros; na ausência de breakpoints para anfotericina B, a susceptibilidade deste isolado indicou tendência a resistência. Com base nos parâmetros para Candida spp., o microrganismo foi classificado como sensível-dose-dependente (SDD) ao fluconazol, mas sensível aos demais azólicos e flucitosina7. A susceptibilidade de D. capitatus (G. capitatum) aos antifúngicos é variável; na maioria dos estudos o microrganismo apresenta-se sensível aos antifúngicos exceto à caspofungina9,10. Todavia, há também relatos indicando resistência a anfotericina B ao fluconazol10 e a flucitosina9,10. O voriconazol, por outro lado, tem evidenciado excelente atividade sobre D. capitatus (G. capitatum)9,10.

Finalmente, devido as frequentes falhas da terapêutica antimicótica, sugere-se estudos explorando a atividade de combinações de fármacos os quais poderão contribuir na terapia antifúngica.

Recebido para publicação em 20/05/2010

Aceito em 11/01/2011

  • 1. Ersoz G, Otag F, Erturan Z, Aslan G, Kaya A, Emekdas G, et al. An outbreak of Dipodascus capitatus infection in the ICU: three case reports and review of the literature. Jpn J Infect Dis 2004; 57:248-252.
  • 2. Gadea I, Cuenca-Estrella M, Prieto E, Diaz-Guerra TM, Garcia-Cia JI, Mellado E, et al. Genotyping and antifungal susceptibility profile of Dipodascus capitatus isolates causing disseminated infection in seven hematological patients of a tertiary hospital. J Clin Microbiol 2004; 42:1832-1836.
  • 3. De Hoog GS, Guarro J, Gené J, Figueras MJ. Atlas of clinical fungi. 2nd ed. Utrecht (The Netherlands): Centralbureau voor Schimmelcultures/Reus (Spain): Universitat Rovira i Virgili; 2000.
  • 4. Kurtzman C, Fell JW. The yeasts: a taxonomic study, 4th ed. Amsterdan: Elsevier; 1998.
  • 5. O'Donnell K. Fusarium and its near relatives. In: DR Reynolds, Taylor JW, editors. The Fungal Holomorph: Mitotic, Meiotic and Pleomorphic Speciation in Fungal Systematics. Wallingford (UK): CABInternational; 1993. p. 225-233.
  • 6. Ramos JP, Valente P, Souza RA, Rosa CA, Leoncini O. Heteroduplex mobility assay of the D1/D2 region of the 26S rDNA for differentiation of Saccharomyces species. Lett Appl Microbiol 2001; 33:206-210.
  • 7
    Clinical Laboratory Standards Institute. Reference method for broth dilution antifungal susceptibility testing of yeasts. 3nd ed. Palo Alto (USA): Clinical Laboratory Standard Institute; 2008.
  • 8. Martino R, Salavert M, Parody R, Tomás JF, de la Camara R, Vasquez L, et al. Blastoschizomyces capitatus infection in patients with leukemia: report of 26 cases. Clin Infect Dis 2004; 38:335-341.
  • 9. Cuenca-Estrella M, Gomez-Lopes A, Mellado E, Buitrago MJ, Monzon A, Rodríguez-Tudela JL. Head-to-head comparison of the activities of currently available antifungal agents against 3,378 Spanish clinical isolates of yeasts and filamentous fungi. Antimicrob Agents Chemother 2006; 50:917-921.
  • 10. Girmenia C, Pizzarelli G, D'Antonio D, Cristini F, Martino P. In vitro susceptibility testing of Geotrichum capitatum: comparison of the E-test, disk diffusion, and Sensititre colorimetric methods with the NCCLS M27-A2 broth microdilution reference method. Antimicrob Agents Chemother 2003; 47:3985-3988.
  • Endereço para correspondência:

    Dr. Sydney Hartz Alves.
    Rua dos Andradas 1985/201
    97010-033 Santa Maria, RS.
    Tel: 55 55 3220-8906
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Out 2011

    Histórico

    • Aceito
      11 Jan 2011
    • Recebido
      20 Maio 2010
    Sociedade Brasileira de Medicina Tropical - SBMT Sociedade Brasileira de Medicina Tropical - SBMT, Núcleo de Medicina Tropical – UnB, Sala 43C – 70904-970, E-mails: rsbmt@uftm.edu.br | artes.rsbmt@gmail.com | sbmt@sbmt.org.br , WhatsApp: SBMT (61) 9.9192-6496, WhatsApp: RSBMT (34) 9.9996-5807 - Brasília - DF - Brazil
    E-mail: rsbmt@uftm.edu.br