Open-access O que os psiquiatras brasileiros esperam das classificações diagnósticas?

What do Brazilian psychiatrists want from diagnostic classifications?

Resumos

OBJETIVO: Realizou-se um levantamento postal anônimo com psiquiatras brasileiros afiliados à Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) sobre uso, percepção em termos de utilidade clínica dos sistemas diagnósticos multiaxiais CID-10 e DSM-IV e, ainda, expectativas sobre as próximas revisões. MÉTODOS: A carta-convite, o questionário padronizado e um envelope selado foram enviados para 1.050 dos 3.062 psiquiatras associados da ABP, selecionados de forma randomizada. Em virtude da taxa relativamente baixa de retorno: 160 respostas (15,2%), não se pode afirmar que a amostra obtida seja representativa. resultados: Os principais resultados mostraram que, entre os respondentes, a CID-10 é o sistema diagnóstico mais utilizado, sobretudo seu eixo clínico. O DSM-IV também é amplamente empregado, principalmente os eixos I e II. A principal característica esperada de um sistema classificatório foi a confiabilidade para comunicação. As classificações são vistas como instrumentos a ser manejados pelos psiquiatras e, em menor proporção, por outros membros de equipes multidisciplinares de saúde mental. Os atuais sistemas foram considerados confiáveis para o uso transcultural no contexto brasileiro. Em relação às expectativas quanto aos futuros sistemas, os psiquiatras preferem classificações com menos de 100 rubricas diagnósticas e dividem-se entre os que acham que estas devam expressar preferencialmente causa/patogênese dos transtornos mentais e aqueles que esperam que tais categorias, sobretudo, sejam construídas de modo a subsidiar o planejamento terapêutico. CONCLUSÕES: Os sistemas diagnósticos desempenham um importante papel na prática psiquiátrica cotidiana dos psiquiatras respondentes. As opiniões dos psiquiatras brasileiros parecem refletir bem algumas controvérsias existentes acerca de questões nosográficas decisivas.

Classificação; diagnóstico; utilidade clínica; sistemas multiaxiais


OBJECTIVE: An anonymous mail survey was carried out with Brazilian psychiatrists affiliated with Brazilian Psychiatric Association (ABP). A structured questionnaire was employed to assess use and perceived utility of current diagnostic classifications (ICD-10 and DSM-IV), as well as their expectations about the future revisions. METHODS: From the mailing list provided by ABP with 3,062 names of affiliated Brazilian psychiatrists, 1,050 were randomly selected to receive the questionnaire, along with a stamped, return address envelope. From the sample of 1,050, 160 completed questionnaires were returned, which corresponds to the following rate of response: 15.2%. No claims are made about the representativeness of the sample. RESULTS: It was found that the ICD-10 is the most frequently used system, especially its clinical axis. The DSM-IV's axes I and II are often used as well. For this sample the most important purpose of a classification is to ensure reliable inter-clinician communication. Classifications are seen as tools for psychiatric use and, to a lesser extent, for the use of a multidisciplinary team. Current diagnostic systems are perceived as reliable for cross-cultural use in our context. Regarding expectations about the future revisions, Brazilian psychiatrists prefer simpler classifications, with less than 100 diagnostic labels. They split, however, about having separate systems to account for cause/pathogenesis and to inform treat ment plans or a single classification, with many compromises, to convey information concerning causes, prognosis and treatment decisions. CONCLUSIONS: Classificatory systems play an important role in everyday psychiatric clinical practice in this sample of psychiatrists. Brazilian psychiasystems. trists' opinions seem to reflect well existing controversies regarding some key nosographic issues.

Classification; diagnosis; clinical utility; multiaxial systems


ARTIGO ORIGINAL

O que os psiquiatras brasileiros esperam das classificações diagnósticas?

What do Brazilian psychiatrists want from diagnostic classifications?

Cláudio Eduardo Muller BanzatoI,II; Mário Eduardo Costa PereiraI,II; Amilton dos Santos JúniorI; Luiz Fernando de Almeida Lima e SilvaI; José Carlos Loureiro JuniorI; Bruno Raposo BarrosI

IDepartamento de Psicologia Médica e Psiquiatria (DPMP-FCM), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

IIDepartamento de Diagnóstico e Classificação em Psiquiatria (DDCP), Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Cláudio E. M. Banzato Rua Egberto F. A. Camargo, 1.200, apto. 52C 3092-621 – Campinas, SP E-mail: cbanzato@fcm.unicamp.br

RESUMO

OBJETIVO: Realizou-se um levantamento postal anônimo com psiquiatras brasileiros afiliados à Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) sobre uso, percepção em termos de utilidade clínica dos sistemas diagnósticos multiaxiais CID-10 e DSM-IV e, ainda, expectativas sobre as próximas revisões.

MÉTODOS: A carta-convite, o questionário padronizado e um envelope selado foram enviados para 1.050 dos 3.062 psiquiatras associados da ABP, selecionados de forma randomizada. Em virtude da taxa relativamente baixa de retorno: 160 respostas (15,2%), não se pode afirmar que a amostra obtida seja representativa.

resultados: Os principais resultados mostraram que, entre os respondentes, a CID-10 é o sistema diagnóstico mais utilizado, sobretudo seu eixo clínico. O DSM-IV também é amplamente empregado, principalmente os eixos I e II. A principal característica esperada de um sistema classificatório foi a confiabilidade para comunicação. As classificações são vistas como instrumentos a ser manejados pelos psiquiatras e, em menor proporção, por outros membros de equipes multidisciplinares de saúde mental. Os atuais sistemas foram considerados confiáveis para o uso transcultural no contexto brasileiro. Em relação às expectativas quanto aos futuros sistemas, os psiquiatras preferem classificações com menos de 100 rubricas diagnósticas e dividem-se entre os que acham que estas devam expressar preferencialmente causa/patogênese dos transtornos mentais e aqueles que esperam que tais categorias, sobretudo, sejam construídas de modo a subsidiar o planejamento terapêutico.

CONCLUSÕES: Os sistemas diagnósticos desempenham um importante papel na prática psiquiátrica cotidiana dos psiquiatras respondentes. As opiniões dos psiquiatras brasileiros parecem refletir bem algumas controvérsias existentes acerca de questões nosográficas decisivas.

Palavras-chaves: Classificação, diagnóstico, utilidade clínica, sistemas multiaxiais.

ABSTRACT

OBJECTIVE: An anonymous mail survey was carried out with Brazilian psychiatrists affiliated with Brazilian Psychiatric Association (ABP). A structured questionnaire was employed to assess use and perceived utility of current diagnostic classifications (ICD-10 and DSM-IV), as well as their expectations about the future revisions.

METHODS: From the mailing list provided by ABP with 3,062 names of affiliated Brazilian psychiatrists, 1,050 were randomly selected to receive the questionnaire, along with a stamped, return address envelope. From the sample of 1,050, 160 completed questionnaires were returned, which corresponds to the following rate of response: 15.2%. No claims are made about the representativeness of the sample.

RESULTS: It was found that the ICD-10 is the most frequently used system, especially its clinical axis. The DSM-IV's axes I and II are often used as well. For this sample the most important purpose of a classification is to ensure reliable inter-clinician communication. Classifications are seen as tools for psychiatric use and, to a lesser extent, for the use of a multidisciplinary team. Current diagnostic systems are perceived as reliable for cross-cultural use in our context. Regarding expectations about the future revisions, Brazilian psychiatrists prefer simpler classifications, with less than 100 diagnostic labels. They split, however, about having separate systems to account for cause/pathogenesis and to inform treat ment plans or a single classification, with many compromises, to convey information concerning causes, prognosis and treatment decisions.

CONCLUSIONS: Classificatory systems play an important role in everyday psychiatric clinical practice in this sample of psychiatrists. Brazilian psychiasystems. trists' opinions seem to reflect well existing controversies regarding some key nosographic issues.

Key-words Classification, diagnosis, clinical utility, multiaxial

INTRODUÇÃO

A discussão sobre o futuro das classificações diagnósticas em psiquiatria, neste momento em que são dados os primeiros passos rumo à CID-11 e ao DSM-V, desenvolve-se em torno de dois parâmetros básicos: validade e utilidade (Kendell e Jablensky, 2003; First et al., 2004). Em que pese o fato de haver certa sobreposição conceitual – e mesmo alguma oscilação – entre ambos, a prioridade tácita concedida a um ou a outro revela a intenção motriz de um sistema classificatório, científica, no primeiro caso, ou clínica, no segundo. Como os sistemas classificatórios são usualmente elaborados para atender a vários propósitos, não é de se estranhar que a regra seja antes um compromisso entre os dois parâmetros citados.

Embora a ambição científica que anima as classificações diagnósticas – notadamente o sistema DSM – tenha recebido mais atenção da literatura especializada, sempre houve uma preocupação com o impacto clínico e educacional da adoção e uso de tais sistemas (Jampala et al., 1986; Maser et al., 1991; Basset e Beiser, 1991; Mezzich, 2002). Afinal, as classificações diagnósticas, além de hipóteses sobre a disposição imanente dos fenômenos psicopatológicos, são ferramentas clínicas que devem servir, em última instância, ao paciente. Assim, há uma tendência recente de envolver no processo de construção de um sistema classificatório todos aqueles que tenham interesse e que sejam afetados por ele, como os clínicos, em geral, e os pacientes (Sadler e Fulford, 2004; Sadler, 2005).

Desde o lançamento do DSM-III (1980), um marco na psiquiatria pelo fato de ser a primeira classificação baseada em critérios diagnósticos explícitos e o primeiro sistema multiaxial adotado oficialmente (Banzato, 2004), diversos levantamentos foram realizados, principalmente nos Estados Unidos e no Canadá, sobre o uso e o impacto clínico e sobre o ensino do DSM-III e sucessores, com diferentes populações e em diversos contextos (Williams et al., 1985; Velamoor et al., 1989; Jampala et al., 1986; Maser et al., 1991; Basset e Beiser, 1991). Mais recentemente, o sistema multiaxial da CID-10 (lançado em 1997) foi objeto de estudos de campo (Michels et al., 1996; 2001) e de um levantamento internacional sobre uso e utilidade percebida tanto da CID-10 como de suas adaptações (Mezzich, 2002).

Levantamentos anteriores focalizaram apenas o uso e a utilidade percebida das classificações diagnósticas. Neste estudo são consideradas também as expectativas e algumas preferências taxonômicas dos psiquiatras em relação aos sistemas classificatórios. Trata-se, portanto, de um levantamento mais abrangente. Além disso, o momento atual é particularmente propício, pois os processos de revisão da CID-10 e do DSM-IV estão se iniciando.

Assim, o presente estudo busca investigar o uso e a utilidade percebida pelos psiquiatras brasileiros das principais classificações diagnósticas atuais (CID-10 e DSM-IV), bem como identificar suas expectativas sobre os futuros sistemas classificatórios. Mais especificamente, pretende-se verificar quais são os atributos desejáveis de uma classificação diagnóstica segundo os respondentes. Para tanto, é necessário interrogar esse público sobre suas preferências taxonômicas e sobre aquilo que eles consideram ser os principais propósitos de uma classificação.

MÉTODOS

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 28 de março de 2006. O questionário utilizado neste estudo é a tradução para o português do original em inglês, elaborado por Graham Mellsop (Nova Zelândia) para investigar a utilidade percebida pelos psiquiatras das atuais classificações diagnósticas (CID-10 e DSM-IV) e as expectativas desses profissionais em relação às próximas revisões (CID-11 e DSM-V). Realizou-se uma retrotradução independente para o inglês e depois uma comparação para avaliar sua equivalência semântica com o questionário original. Revisões da tradução foram, então, realizadas quando constatada a necessidade. Embora não se trate da validação de um instrumento psicométrico padronizado, entendemos que é importante assegurar a equivalência semântica para permitir a comparação com resultados obtidos em outros países.

Da mala direta com nomes de 3.062 psiquiatras associados à ABP fornecida ao DDCP-ABP, 1.050 foram selecionados de forma randomizada para receber o questionário, com envelope selado para resposta. Após o envio dos questionários, duas mensagens eletrônicas foram enviadas (na segunda e na quinta semana subseqüentes) aos e-mails dos psiquiatras constantes na lista original, reforçando a solicitação de seu preenchimento. Não havia identificação do psiquiatra no questionário. Da amostra total de 1.050, 160 questionários preenchidos retornaram, o que corresponde a uma taxa de resposta de 15,2%. Vinte e um questionários foram devolvidos pelos correios por endereço incompleto ou mudança de endereço.

RESU LTADOS

Neste artigo, analisaram-se apenas os aspectos descritivos e quantitativos das respostas obtidas. A discussão dos dados qualitativos será objeto de futura publicação. Na seqüência, apresentamos os principais resultados por meio de tabelas temáticas.

A tabela 1 compara, em termos percentuais, a amostra obtida com o universo dos psiquiatras associados à ABP, com base em idade e sexo, bem como retrata as áreas de atuação dos psiquiatras que responderam ao questionário.

A tabela 2 mostra o percentual relativo da proveniência por estado das respostas, comparado à distribuição dos psiquiatras associados à ABP na federação.

A tabela 5 exprime quais seriam os pontos de partida mais adequados para a elaboração dos futuros sistemas multiaxiais. Nela, consta apenas o percentual da primeira opção do ranking estabelecido pelo conjunto dos psiquiatras respondedores.

Na tabela 7, sobre a utilidade transcultural percebida dos atuais sistemas classificatórios, os psiquiatras tinham a possibilidade de assinalar tantas opções quanto lhes parecessem pertinentes.

Consultados sobre o sistema de que os profissionais de atenção primária deveriam dispor, houve uma divisão equilibrada entre os 158 psiquiatras que se manifestaram: a opção por um sistema classificatório modificado/simplificado foi assinalada por 76 (48,1%) e a alternativa, a opção pelo mesmo sistema classificatório dos psiquiatras e serviços especializados em saúde mental, foi escolhida por 82 (51,9%).

Quanto ao número preferido de categorias diagnósticas nos futuros sistemas classificatórios, observou-se tendência à parcimônia. As 156 respostas obtidas apresentaram a seguinte distribuição: entre 10 e 30 opções diagnósticas: 58 (37,2%); entre 31 e 100 opções diagnósticas: 65 (41,7%); mais de 100 opções diagnósticas: 33 (21,1%).

Encontramos ainda uma divisão a respeito de um princípio organizador de futuras classificações diagnósticas: dos 156 psiquiatras respondedores a essa questão, 84 (53,8%) entendem que deveriam ser desenvolvidos sistemas classificatórios que levassem em conta causa/patogênese separados daqueles voltados para manejo clínico e tratamento, enquanto 72 (46,2%) preferem um único sistema classificatório, com muitos compromissos, capaz de reunir informações concernentes a causas, prognósticos e decisões terapêuticas.

Finalmente, na pergunta sobre uma possível participação em um grupo focal de discussão sobre esse assunto em futuros congressos de psiquiatria (se tal atividade fosse oferecida), a maioria mostrou disposição em participar: do total de 154 respostas obtidas nesse item, 110 (71,4%) foram afirmativas e 44 (28,6%), negativas.

DISCUSSÃO

Em primeiro lugar, é preciso considerar duas limitações do estudo. A primeira é que a taxa de resposta obtida não nos permite assegurar que a amostra seja representativa do universo dos psiquiatras brasileiros afiliados à ABP. É provável que exista um viés de maior interesse ou preocupação com o tema entre os respondentes. A disposição manifestada por eles de participar de grupos focais sobre o assunto parece corroborar tal interpretação. Além da falta de interesse específico pelo tema, suspeitamos que fatores mais gerais também tenham contribuído para a baixa taxa de resposta obtida. Por exemplo, não existe em nosso meio hábito de se responder a levantamentos postais. Além disso, temos as questões da relevância percebida, do tempo gasto com o preenchimento do questionário e a necessidade de certa elaboração sobre o assunto.

Embora nosso questionário fosse simples, ele não se limitava a perguntas diretas sobre a realidade clínica dos psiquiatras, convidando o respondente a uma reflexão mínima sobre sua prática diagnóstica. Alguns estudos realizados no Reino Unido examinaram as inúmeras razões para a nãoparticipação de médicos generalistas em levantamentos postais. Entre outras razões alegadas, citaram-se: sobrecarga de trabalho, interferência na rotina, extensão do questionário e tempo requerido para o seu preenchimento, desinteresse ou falta de envolvimento com o tópico pesquisado e falta de incentivo para participar (McAvoy e Kaner, 1996; Templeton et al., 1997; Kaner et al., 1998).

A segunda limitação do estudo é que se trata de uma pesquisa de opinião que não necessariamente reflete o que os psiquiatras respondedores efetivamente fazem em sua prática profissional cotidiana.

Feitas as ressalvas anteriores, é importante salientar que material levantado – dadas sua originalidade e abrangência, bem como o fato de articular elementos quantitativos com questões qualitativas, redigidas de forma a permitir uma expressão mais espontânea dos entrevistados – fornece um panorama amplo e fecundo a partir do qual se pode, pela primeira vez em nosso país, visualizar de forma sistemática a opinião e as expectativas dos psiquiatras sobre os instrumentos diagnósticos dos quais se servem em sua prática diária.

O perfil dos psiquiatras respondentes ao questionário recobre, em linhas gerais, as características do conjunto dos psiquiatras listados pela Associação Brasileira de Psiquiatria no que diz respeito à distribuição por idade, gênero e por estados da federação em que residem (Tabelas 1 e 2). Em sua maioria, ocupam-se clinicamente de pacientes adultos, embora houvesse também a referência significativa de trabalho em subespecialidades com crianças, adolescentes, idosos e dependências (Tabela 1).

Entre os psiquiatras que responderam ao questionário, o sistema de diagnóstico mais utilizado em sua prática cotidiana foi o eixo clínico da CID-10, empregado, pelo menos às vezes, por quase todos eles. Mais de 80% referem usá-lo rotineiramente. A versão multiaxial da CID-10 que também contempla a funcionalidade/incapacitação, ainda que menos empregada, teve seu uso, surpreendentemente, referido por uma proporção significativa dos respondentes (Tabela 3).

O uso ocasional ou rotineiro do DSM-IV foi igualmente referido pela maioria dos respondentes. O eixo I é, de longe, o mais utilizado dos cinco propostos por esse manual. Os demais são empregados segundo uma freqüência decrescente que vai do eixo I ao V (Tabela 3). É digno de nota o fato de que pelo menos um quinto dos respondentes refere nunca utilizar nem mesmo os eixos I e II, ao passo que é ínfima a percentagem dos que dizem jamais empregar a versão clínica da CID-10.

As respostas abertas (objeto de futura publicação) mostraram que a CID-10 é valorizada pelo fato de constituir uma classificação efetivamente internacional. Além disso, ganha especial relevo aos olhos dos respondentes pelo fato de ser a classificação oficial para fins legais e burocráticos. O DSM-IV, por sua vez, foi destacado por sua pertinência no campo da pesquisa e por sua utilidade clínica, sobretudo relacionada aos eixos II e III. Interrogados sobre qual seria, segundo sua perspectiva, o propósito mais importante de um sistema de classificação diagnóstica, os psiquiatras que participaram desta pesquisa responderam, em sua maioria, que seria o de constituir uma ferramenta confiável de comunicação entre os clínicos. A segunda resposta mais freqüente, embora em uma freqüência bem menor que a anterior, foi a de transmitir informação sobre etiologiapatogênese (Tabela 4).

Outro aspecto notável dos resultados aparece na tabela 6, que expressa uma visão segundo a qual os sistemas diagnósticos são ferramentas destinadas fundamentalmente aos psiquiatras. Mesmo assim, quase um terço dos respondentes considera que tais sistemas devem ser utilizáveis por todos os membros da equipe interdisciplinar de saúde mental. Poucos são, entretanto, os que consideram que tais instrumentos devam ser empregáveis também pelos usuários.

No que diz respeito à sensibilidade dos atuais sistemas diagnósticos a dimensões de ordem cultural, a maior parte dos respondentes manifestou-se favoravelmente aos instrumentos hoje disponíveis. Mesmo assim, uma proporção significativa daqueles considerou-os de difícil aplicação (quando não francamente inapropriados) em certas situações transculturais, isto é, quando clínico e usuário são de culturas diferentes (Tabela 7).

As opiniões também estão divididas quanto à questão sobre se os profissionais atuando em atenção primária deveriam dispor de um sistema classificatório modificado/simplificado ou se um único sistema deveria ser empregado tanto por estes como por especialistas. Cerca de metade dos respondentes assume a posição unitária e a outra metade sustenta a criação de dois dispositivos diagnósticos distintos, ainda que organizados a partir das mesmas bases.

A maior parte dos respondentes manifestou a expectativa de que os sistemas diagnósticos tivessem um número relativamente limitado e manipulável de opções diagnósticas, achado esse que pode servir de alerta quanto à dificuldade do clínico em operar com um número sempre crescente de categorias diagnósticas.

Em relação ao que esperam dos próximos sistemas de classificação, os respondentes dividiram-se, em partes praticamente iguais, entre os que preferem sistemas que levem em conta causa/patogênese, separando-os daqueles instrumentos diagnósticos voltados para fins especificamente de manejo clínico, e os que reivindicam um sistema que transmita – a um só tempo – informações tanto sobre as causas e patogenia quanto sobre o prognóstico e decisões terapêuticas a serem adotadas. Além disso, o maior percentual de respondentes considera que os futuros sistemas multiaxiais deveriam usar os eixos do DSM-IV, sendo esses psiquiatras acompanhados bem de perto pelos que acham que deveriam ser desenvolvidos eixos mais relevantes para o planejamento terapêutico (Tabela 5).

As respostas abertas, por sua vez, mostraram que as qualidades esperadas pelos psiquiatras participantes do estudo de uma classificação diagnóstica compreendem: simplicidade, clareza de critérios, objetividade, abrangência, confiabilidade e facilidade no manejo clínico. Por outro lado, espera-se, também, que os novos sistemas levem mais em consideração os sintomas e as estruturas psicopatológicas. A manifestação espontânea dos respondentes indica a aspiração por um sistema que contemple etiologia e patogênese, ao mesmo tempo que orienta as tomadas de decisão clínicas.

Como muitas dessas expectativas são potencialmente incompatíveis entre si, nota-se que há risco de os psiquiatras esperarem dos sistemas diagnósticos mais do que estes podem dar, bem como de haver um borramento entre os limites da atividade diagnóstica e a prática mais ampla da clínica psiquiátrica para a qual o sistema diagnóstico deveria servir de instrumento e não de substituto.

Por fim, questionados sobre seu interesse em participar de um grupo focal de discussão desses assuntos concernentes ao diagnóstico psiquiátrico em futuros congressos de psiquiatria, se tal atividade fosse oferecida, mais de dois terços dos respondentes manifestaram-se afirmativamente, o que indica uma aspiração dos psiquiatras clínicos em participar mais ativamente da construção dos instrumentos diagnósticos de que se servem em sua prática diária. Na apreciação desse dado, é importante considerar, no entanto, um possível viés de seleção, uma vez que é provável que os respondedores constituam uma parcela significativa de profissionais interessados no assunto específico e/ou na pesquisa científica em psiquiatria.

CONCLUSÕES

Os sistemas diagnósticos atuais fazem parte ativa da prática psiquiátrica cotidiana dos psiquiatras respondentes, constituindo um instrumento do qual muito se espera em termos de respostas concretas às questões comuns da clínica, bem como em relação à validação científica das categorias empregadas. Além disso, manifesta-se a concepção de que o instrumento diagnóstico é destinado fundamentalmente à figura técnica do psiquiatra, o que evoca imediatamente a questão das relações dos sistemas diagnósticos com a equipe de saúde mental, com a assistência primária e com os próprios usuários (pacientes e familiares).

Por fim, a manifestação expressiva de que os psiquiatras desejam assumir um papel ativo na construção dos novos sistemas diagnósticos pode constituir uma referência importante para se pensar os procedimentos concretos de sua elaboração e de sua consolidação, nesse momento histórico em que os dois principais instrumentos utilizados internacionalmente para esse fim – CID-10 e DSM-IV – estão iniciando os processos de suas novas revisões.

AGRADECIMENTOS

Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) pelo apoio logístico e patrocínio.

Recebido 08/01/2007

Aprovado 06/05/2007

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  • Endereço para correspondência:
    Cláudio E. M. Banzato
    Rua Egberto F. A. Camargo, 1.200, apto. 52C
    3092-621 – Campinas, SP
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Out 2007
    • Data do Fascículo
      2007

    Histórico

    • Recebido
      08 Jan 2007
    • Aceito
      06 Maio 2007
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