CORRELAÇÃO ANATOMOCLÍNICA
Correlação anatomoclínica
Caso 1/03 - Homem, 27 anos, com sorologia reagente para doença de Chagas e antecedente de febre reumática há 11 anos (Pontifícia Universidade Católica - Campinas, SP)
Carolina Bonet; Tiago Pugliese Branco; André Fernando Gemente Larrubia; Carlos Osvaldo Teixeira; Maria Aparecida Barone Teixeira; Silvio dos Santos Carvalhal
Campinas, SP
Endereço para correspondência Endereço para correspondência Maria Aparecida Barone Teixeira Rua Carlos Araujo Gobbi, 444/41, Edifício Canadá 13034-070, Campinas, SP
Paciente masculino, 27 anos, natural e procedente de Guanambi (BA), internado pela primeira vez em nosso serviço aos 16 anos de idade, em 1990, apresentando insuficiência cardíaca congestiva classe IV e sorologia positiva para doença de Chagas.
Nessa internação apresentava quadro compatível com doença reumática em atividade: pericardite, poliartrite migratória e febre. O eletrocardiograma (fig. 1) e a radiografia simples de tórax, naquela ocasião, eram normais. O ecocardiograma confirmou o diagnóstico clínico de disfunção mitral completa e insuficiência aórtica, além de demonstrar derrame pericárdico, ausência de dilatação de câmaras e fração de ejeção do ventrículo esquerdo de 86%. Recebeu alta hospitalar, porém abandonou o acompanhamento ambulatorial, retornando para a cidade de origem.
Em março de 2001, retornou em insuficiência cardíaca congestiva classe IV, queixando-se, há 2 anos, de dor retroesternal em pontada, intermitente, que piorava com a tosse.
Ao exame físico de entrada, apresentava-se em satisfatório estado geral, afebril, corado, hidratado, ictérico ++, com pressão arterial = 140x50mmHg e estase jugular a 45º. A propedêutica cardíaca revelava ictus palpável no 7º espaço intercostal, 3cm à esquerda da linha hemiclavicular, globoso e hiperimpulsivo. A ausculta cardíaca mostrou insuficiências aórtica e mitral +++ e estenose mitral ++. O fígado era palpável a 6cm da borda costal direita, endurecido ++, com superfície lisa, borda romba e indolor. Havia edema compressível de +++ em membros inferiores com extensão dos maléolos até raiz da coxa.
A radiografia de tórax em PA revelou cardiomegalia global ++++ (fig. 2). O eletrocardiograma evidenciava bloqueio atrioventricular de 1ºgrau, sobrecarga biatrial, bloqueio completo de ramo esquerdo, com complexos QRS de 130ms de duração e extra-sístoles ventriculares freqüentes (fig. 3). No ecocardiograma, foram constatados aumento acentuado das quatro câmaras, insuficiência tricúspide ++, insuficiência aórtica ++, insuficiência mitral ++, estenose mitral +, pressão sistólica na artéria pulmonar estimada em 50mmHg e fração de ejeção do ventrículo esquerdo de 40%. Nessa ocasião, a insuficiência cardíaca congestiva mostrava-se refratária ao tratamento.
Na última internação, em julho/2001, estava em anasarca. Após 13 dias apresentou parada cardiorrespiratória por choque cardiogênico e fibrilação ventricular, vindo a falecer.
(André Fernando Gemente Larrubia)
Aspectos clínicos
Trata-se de progressiva piora do quadro clínico de insuficiência cardíaca congestiva, onde se pôde acompanhar a evolução das alterações clínicas, ecocardiográficas (aumento acentuado das quatro câmaras, intensificação das disfunções valvares e redução da fração de ejeção do ventrículo esquerdo para 40%) e eletrocardiográficas (surgimento de distúrbios de condução, do ritmo e presença de sobrecarga de câmaras).
Durante as internações considerou-se que o componente reumatismal fora preponderante sobre a miocardite chagásica na piora da insuficiência cardíaca, pois as disfunções valvares, não corrigidas, provavelmente seriam as responsáveis pela piora hemodinâmica. O exame físico do coração e o ecocardiograma reforçavam este raciocínio, já que os distúrbios de ritmo e de condução detectados ao eletrocardiograma são inespecíficos 1, podendo ser atribuídos às duas doenças.
A dor retroesternal em pontada e intermitente referida com freqüência pelo paciente poderia ser atribuída a doenças da motilidade gastroesofágica, distúrbios de ansiedade, doença depressiva e neurite intercostal, já que não havia substrato clínico para isquemia ou pericardite. Não deve ser esquecida a usual dor torácica, sem substratoanatômico, em pacientes chagásicos 2.
Assim, as hipóteses diagnósticas seriam: 1) insuficiência cardíaca congestiva por cardiopatia reumatismal; 2) doença de Chagas; 3) distúrbio de ansiedade.
(Carlos Osvaldo Teixeira)
Achados necroscópicos
O coração pesava 990g, com dilatação significativa das quatro câmaras. Apresentava, ainda, discreto afilamento apical com recesso subendocárdico, sem deformidade da silhueta externa. A microscopia óptica em HE de fragmentos de todas as paredes revelou extensa miocardite linfocítica, com múltiplos ninhos das formas amastigotas do T. cruzi no interior das fibras miocárdicas (figs. 4, 5).
No teste de função valvar durante a necrópsia, foi identificada disfunção completa da valva mitral com predomínio de insuficiência, além de insuficiências tricúspide e aórtica. À macroscopia, a valva mitral revelou espessamento moderado dos folhetos associado à discreta fusão das cordoalhas tendíneas (fig. 6). À microscopia óptica, em HE, evidenciamos difusa fibrose com inflamação linfo-histiocitária e numerosos vasos neoformados, sem, no entanto, a presença de nódulos de Aschoff.
Havia pericardite intensa, com aderências entre os folhetos pericárdicos e grande espessamento do pericárdio parietal (fig. 7). À microscopia óptica em HE, o pericárdio revelou intenso processo inflamatório crônico.
Diagnósticos anatomopatológicos 1) Doença de Chagas forma subaguda, com miocardite intensa e numerosos parasitas intracelulares; 2) doença reumática crônica com seqüela nas valvas mitral e aórtica.
(Carolina Bonet e Silvio dos Santos Carvalhal)
Correlação Anátomoclínica
Houve correlação concordante entre a imagem do coração à radiografia de tórax e a cardiomegalia demonstrada no exame necroscópico. Já o ecocardiograma foi concordante quanto aos vícios valvares, porém não demonstrou a lesão de ponta do ventrículo esquerdo revelada pela necropsia, já que nesse caso o afilamento apical era pequeno. A miocardite encontrada justifica o distúrbios de condução (BRE) e do ritmo detectado pelo eletrocardiograma.
O substrato anatômico para a dor retroesternal em pontada e intermitente foi a intensa pericardite. Esta alteração deve ser conseqüência de uma reação à grave cardiopatia crônica, porém, não se pode descartar evolução da doença reumática.
A intensidade do sopro de estenose mitral não era compatível com o grau de estenose valvar observado na peça, que demonstrava discreta fusão comissural. Em nosso caso, o teste de fechamento da sigmóidea aórtica revelou um jato de refluxo contra a cúspide medial da mitral, produzindo, assim, uma estenose relativa desta valva, compatível com o sopro de Austin Flint 3,4.
A febre reumática representa sério problema médico-social, sendo sua freqüência diretamente proporcional aos níveis de pobreza, condições de moradia precárias, aglomerados populacionais e escassos investimentos em saúde pública. Dados estatísticos disponíveis sobre a prevalência desta doença são limitados, pois não existem estudos abrangentes e com seguimento prolongado 5-9.
A prevalência da Doença de Chagas é muito alta na América Latina. No Brasil, a partir de 1983, medidas de combate ao Triatoma infestans passaram a ser adotadas. Apesar disso, a doença ainda é de alta prevalência, sendo importante causa de dias perdidos de trabalho, perda de produtividade por absenteísmo e elevado custo de assistência médica no tratamento de suas complicações 10-14.
Apesar das duas doenças estarem relacionadas a baixos indicadores sociais, precárias condições de saúde pública e possuírem elevada prevalência em nosso meio, sua associação na literatura pesquisada é praticamente nula. Foi encontrado apenas um caso descrito no México 15, em que o componente principal da cardiopatia foi a grave estenose mitral, estando a doença de Chagas representada, apenas, pela miocardite crônica e lesão de ponta, sem a presença do parasitismo tecidual, encontrado em nosso relato.
A descrição histológica do miocárdio apontou para a miocardite chagásica subaguda descrita por Andrade & Andrade 16, uma vez presentes caracteres da fase crônica da inflamação, associados a componentes da fase aguda. Ambos de grande destaque, dada a intensidade do infiltrado linfocitário e dos ninhos de amastigotas.
Clinicamente, nosso caso foi concordante com os descritos na literatura 16-18 demonstrando, em um paciente jovem, uma insuficiência cardíaca congestiva de rápida evolução e refratária a medicamentos, sem os demais caracteres da forma aguda da doença de Chagas. Contudo, o diagnóstico para esta doença já havia sido sugerido há 11 anos, através de teste sorológico. Não é possível inferir se nessa época a doença se apresentava na forma crônica ou inaparente, já que a concomitância com a febre reumática impossibilitava essa conclusão.
O motivo para o grau de infestação das fibras miocárdicas neste paciente, em contato com o parasita há mais de uma década, permanece desconhecido. É descrito em literatura um processo de reativação da infestação tripanossômica em pacientes imunocomprometidos, como aqueles submetidos a transplantes 19, portadores de doenças imunossupressoras 20-24 ou em uso de quimioterápicos 19,25-27. A imunossupressão permite a reativação da doença com manifestações clínicas indistinguíveis da forma aguda da cardiopatia 28.
Em nosso caso, não havia nenhum fator que desencadeasse a imunodepressão, a não ser a própria insuficiência cardíaca congestiva ou a febre reumática. No entanto, o paciente permaneceu em sua cidade de origem, o que nos faz acreditar que tal forma pode estar presente em habitantes de zona endêmica sujeitos a reinfestação 29. Conforme descrito por Dias & Coura 30, as reinfestações sobre indivíduos se relacionam com a possível acentuação do quadro patogênico, a partir da entrada de novos parasitos e estímulos antigênicos no primo infectado.
O estudo necroscópico foi de fundamental importância, pois revelou a associação entre duas cardiopatias prevalentes no Brasil e demonstrou inesperada intensidade da miocardite chagásica. Por outro lado, também identificou os substratos anatômicos para o quadro clínico do caso relatado, já que através da história não foi possível quantificar a participação de cada um deles.
(Tiago Pugliese Branco e Maria Aparecida Barone Teixeira)
Agradecimentos
Agradecemos ao Serviço de Anatomia Patológica do InCor-FMUSP pela consultoria.
Editor da Seção: Alfredo José Mansur (ajmansur@incor.usp.br)
Editores Associados: Desidério Favarato (dclfavarato@incor.usp.br), Vera Demarchi Aiello (anpvera@incor.usp.br)
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Abr 2003 -
Data do Fascículo
Fev 2003