Open-access Reposição hormonal e doença cardiovascular: uma diretriz contrária à evidência

PONTO DE VISTA

Reposição hormonal e doença cardiovascular: uma diretriz contrária à evidência

Flávio Danni Fuchs

Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Porto Alegre, RS - Brasil

Correspondência Correspondência: Flávio Danni Fuchs Serviço de Cardiologia, Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Ramiro Barcelos 2350, 90.035-903, Porto Alegre, RS - Brasil E-mail: ffuchs@hcpa.ufrgs.br

Palavras-chave: Doenças cardiovasculares / prevenção e controle, climatério, menopausa, terapia de reposição hormonal.

A I Diretriz Brasileira para Prevenção de Doenças Cardiovasculares em Mulheres Climatéricas foi recentemente publicada nos Arquivos1. A iniciativa é bem-vinda, mas chama a atenção que mesmo se tratando de diretriz conjunta da SBC e da Associação Brasileira do Climatério, há franco predomínio de colegas da especialidade do Climatério entre seus redatores. Somente seis entre os 40 participantes são cardiologistas, sendo praticamente todos os demais membros da Associação Brasileira do Climatério. Certamente os colegas que cuidam de clientes nessa condição entendem desse problema, mas de prevenção de doença cardiovascular entendem bem os cardiologistas. A falta de isonomia entre os especialistas na redação da diretriz se inverte na hora da publicação. Por ora, a publicação foi somente feita nos Arquivos, periódico líder brasileiro e de alta visibilidade. Desconheço a existência de periódico nacional da especialidade associada, e nem sequer na página da Sociedade Brasileira do Climatério há menção sobre essas diretrizes. Também desconheço a atual normatização para realização de diretrizes por parte da SBC, que entendo deva abrigar orientações para realização de diretrizes conjuntas com outras sociedades. A estranheza com o formato e divulgação, no entanto, não é o mote deste comentário, que pretende rebater, com base em sólida fundamentação, a recomendação de usar terapia de reposição hormonal (TRH) para prevenir doença cardiovascular (DCV) em mulheres no climatério.

Boa parte da Diretriz reproduz recomendações de aceitação universal, aplicáveis a homens e mulheres, estando estas no climatério ou não. O ponto central, no entanto, é o posicionamento sobre a indicação de TRH com vista à prevenção de DCV. Os autores da Diretriz afirmam ter pesquisado 574 estudos, dos quais foram extraídas 114 publicações que foram avaliadas mais aprofundadamente para compor a base de conhecimentos e os níveis de evidência disponíveis. Com base nessas publicações (que não são especificamente citadas para fundamentar a recomendação), estabeleceram, por consenso, diversas conclusões. Sobre uma, a de que há riscos cardiovasculares quando a TRH é iniciada tardiamente (Classe III, Nível de Evidência B), não há reparos (ver adiante). A conclusão que antecede esta, de que "existem evidências de benefícios cardiovasculares quando a TRH é iniciada na transição menopáusica ou nos primeiros anos de pós-menopausa (chamada de janela de oportunidade) (Classe IIa, Nível de evidência B)" (reprodução literal, grifo meu), não é aceitável e atenta fortemente contra a evidência disponível. Se não, vejamos.

A idéia de que hormônios femininos são protetores contra DCV é antiga e está ainda arraigada. Procedeu da observação de menor incidência de DCV em mulheres antes da menopausa, sendo aparentemente corroborada por antigos estudos observacionais. A crença era tão forte que estrógenos foram, aliás, administrados a homens com vistas à prevenção secundária de doença cardiovascular. Um elegante ensaio clínico, o "Coronary Drug Project", com resultados publicados na década de 70 do século passado, eliminou a prática corrente naquela época, pois homens tratados com estrógeno tiveram maior incidência de infarto do miocárdio do que os que receberam placebo, sendo necessário interromper precocemente esse braço do estudo2. A teoria da proteção estrogênica em mulheres pré-menopáusicas tem sido questionada pelo progressivo aumento da incidência de cardiopatia isquêmica em mulheres jovens. Provavelmente os riscos a que elas estão expostas atualmente, como o hábito de fumar e a competitiva vida profissional, sejam as reais razões para a perda de proteção, erroneamente atribuída aos hormônios femininos.

Os estudos sobre o tema podem ser divididos em estudos de coorte, ensaios clínicos com desfechos substitutos e ensaios clínicos com desfechos primordiais. Mais de 20 estudos observacionais foram praticamente homogêneos em identificar menor incidência de DCV entre usuárias de estrógenos. Um dos primeiros sugeria que até a mortalidade geral fosse menor nessas pacientes3. O de maior impacto, entretanto, foi o da coorte de enfermeiras americanas (The Nurses' Health Study)4. Esse estudo, que acompanhou 59.337 mulheres por longo período, observou redução de 40% na incidência de doença arterial coronariana (DAC) entre as usuárias de TRH. Meta-análise de 25 estudos de coorte mostrou risco relativo de 0,70 para doença coronariana em usuárias de estrógenos5.

As evidências de estudos observacionais, entretanto, têm que ser hoje tomadas como geradoras de hipóteses, pois algumas se confirmam em ensaios clínicos e outras, não. Vandenbroucke6 já questionava, em 1991, se o resultado desses estudos de coorte não poderiam estar enviesados pelo estilo de vida mais saudável das usuárias de TRH6, o ''healthy cohort effect''. Muitas variáveis de confusão foram controladas na análise daquelas coortes, mas Vandenbroucke6 atentou que uma, a vontade de viver, era incontrolável, podendo se expressar por razões diversas das existentes nos bancos de dados dos estudos.

Progredindo na hierarquia da evidência, chega-se aos ensaios clínicos. Diversos foram feitos nessa área, mas muitos empregaram desfechos substitutos. O maior deles é o ensaio clínico PEPI7, que alocou 875 mulheres pós-menopáusicas para receber placebo ou diversas associações de hormônios. Houve aumento de HDL e redução de fibrinogênio, especialmente entre as pacientes tratadas com estrógenos isolados. Os resultados do estudo ILLUMINATE, em que houve acentuado aumento de mortalidade em pacientes tratados com torcetrapib, a despeito de elevações de mais de 60% nos níveis de HDL8, sugerem que esse não seja um bom substituto de eventos primordiais em cardiopatia isquêmica. Em outro elegante ensaio clínico com desfechos substitutos, publicado mais recentemente9, não houve nenhum efeito de hormônios femininos no surgimento de novas lesões ou progressão das lesões coronarianas existentes, determinadas por angiografia quantitativa. Esse efeito nulo se deu a despeito da redução de LDL e aumento de HDL observado entre as tratadas com hormônio.

Os ensaios clínicos randomizados com desfechos primordiais, por definição os desfechos entendidos facilmente pelos próprios pacientes10, tais como mortalidade, infarto do miocárdio, AVC e outros, são os que dão as respostas mais consistentes para a decisão terapêutica. Há um punhado de estudos consistentes nesse contexto.

O primeiro foi o estudo HERS11, que avaliou o efeito da associação estrógeno-progestógeno na prevenção secundária da doença cardiovascular em mulheres pós-menopáusicas com doença coronariana estabelecida. Surpreendentemente, à época, houve aumento de 52% no risco de doença cardíaca isquêmica no primeiro ano do estudo nas mulheres tratadas com TRH, risco que aparentemente se diluía nos anos subsequentes. Todavia, o seguimento do estudo confirmou que o risco persistia com o uso prolongado12. Houve também importante aumento na incidência de eventos tromboembólicos venosos, incluindo embolia pulmonar entre as participantes tratadas com TRH. O estudo foi intensamente debatido e criticado. As críticas eventualmente consistentes eram a de que a idade das participantes era avançada (67 anos em média), e que efeitos protrombóticos da TRH teriam se exteriorizado pela existência de doença vascular prévia.

O estudo maior dirigido à avaliação da eficácia de TRH na prevenção primária da DAC e outros desfechos primordiais é conhecido pelo acrônimo WHI13, a despeito de ser somente um dos estudos de grande iniciativa de pesquisa sobre a saúde de mulheres nos Estados Unidos (Women's Health Initiative). No total, 8.506 pacientes foram randomizadas para empregar 0,625 mg/dia de estrógenos equinos conjugados e 2,5 mg/dia de medroxiprogesterona, sendo 8.102 alocadas a placebo. Após 5,2 anos de seguimento, a incidência do desfecho primário, DAC fatal e não-fatal, foi 29% maior nas usuárias de TRH (IC 95% correspondendo a um aumento de pelo menos 2% até aumento de 63%).

Em ensaio clínico paralelo ao estudo WHI, em que se empregou somente o estrógeno conjugado em pacientes histerectomizadas, não houve aumento da incidência de DAC e câncer de mama, mas a incidência de AVC foi 39% (IC 95% de 10% a 77%) maior nas pacientes tratadas com estrógeno14, de forma similar ao observado no estudo com associação de progestágeno.

Outros riscos da TRH devem ser comentados. Os colegas especialistas no climatério têm legítimo interesse e competência para cuidado das doenças cardiovasculares de suas pacientes. Em contrapartida, cardiologistas também têm compromisso com outros aspectos da saúde de suas pacientes. A incidência dobrada de eventos tromboembólicos venosos e o aumento de 26% na incidência de carcinoma de mama invasivo nas pacientes tratadas com TRH no estudo WHI13 são outras razões substanciais para que se evite o uso prolongado de TRH. Houve benefício quanto a prevenção de fraturas e câncer colorretal, mas foram amplamente superadas em números absolutos pelos efeitos adversos apontados. Em outras análises do estudo WHI15,16, verificou-se que TRH, com estrógenos isolados ou associados a progestágeno, não tem nenhum benefício na função cognitiva e na prevenção de demência de pacientes no climatério, sendo ambas as abordagens provavelmente deletérias.

Independentemente de outros efeitos deletérios e benéficos de TRH, sociedades científicas de diversos países têm se posicionado predominantemente contra a indicação de TRH com vistas à prevenção de DCV. O documento mais robusto é certamente o elaborado e subscrito por 36 sociedades científicas ou órgãos oficiais nos Estados Unidos, que concluiu, em 2007, que essa terapia está contraindicada para prevenção primária ou secundária de doença cardiovascular em mulheres, cotando-a como intervenção de classe III (ineficaz e possivelmente deletéria), com base em nível de evidência A17. Há diversas sociedades de ginecologia e de menopausa entre as entidades que elaboraram ou subscreveram o documento.

A diretriz brasileira que deu origem a este comentário1, indicando TRH para prevenção de DCV na dita "janela de oportunidade", se antepõe completamente às evidências comentadas e à posição de sociedades científicas de outros países. Os autores da Diretriz brasileira justificam sua posição afirmando que os estudos comentados foram feitos com estrógenos conjugados equinos, extraídos da urina de éguas grávidas, o clássico e mundialmente conhecido Premarin®, e não com estradiol, hoje empregado por via transdérmica. Também questionam o progestágeno empregado, aventando que outras opções, tipicamente na linha de comercialização atual de grandes corporações farmacêuticas, possam ter efeito diverso. Os hormônios mais novos, entretanto, não foram testados em ensaios clínicos randomizados com vistas a demonstrar sua eficácia na prevenção de DCV. Como reproduzem a atividade biológica principal dos agentes mais antigos, é difícil supor que tenham efeitos absolutamente divergentes nesse contexto. A idéia da "janela de oportunidade" é defendida também com base no fato de as pacientes dos estudos WHI e HERS serem, em média, idosas. A média de idade das pacientes do estudo WHI era de 63 anos, mas um terço tinha entre 50 e 59 anos. Não houve interação entre idade e efeitos do tratamento, demonstrando que esse não foi diferente nas pacientes mais jovens, muitas delas na considerada "janela de oportunidade".

Por fim, no arrazoado com que defendem o uso de TRH com vistas à prevenção de DCV, os autores da Diretriz afirmam que o juízo clínico não deve levar em conta somente as evidências colhidas nos ensaios clínicos randomizados controlados por placebo, mas sim o conjunto de variáveis clínicas e de fatores de riscos apresentados pela paciente. Essa posição sofística não pode obviamente se antepor ao peso da evidência de boa qualidade e a ausência de qualquer evidência concreta que a sustente.

As considerações apresentadas são suficientemente fortes para questionar a indicação de TRH para prevenir DCV feita pela I Diretriz Brasileira. Enquanto os cardiologistas brasileiros não reconsiderarem sua indicação oficial, entendo ser prudente seguir as Diretrizes da American Heart Association e suas mais de 30 associadas para reduzir o risco cardiovascular em mulheres no climatério.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 06/09/2008; revisado recebido em 20/10/2008; aceito em 23/10/2008.

Referências bibliográficas

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  • Correspondência:
    Flávio Danni Fuchs
    Serviço de Cardiologia, Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Ramiro Barcelos
    2350, 90.035-903, Porto Alegre, RS - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Out 2009
    • Data do Fascículo
      Jul 2009
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