Galectina 3; Apoptose; Fibrose Endomiocárdica; Doença de Chagas; Biomarcadores
Nas últimas décadas, a epidemiologia da Doença de Chagas (DCh) mudou significativamente, como consequência da urbanização e da migração.1 No Brasil, até o momento, é a doença negligenciada com a maior carga, da qual ~30% dos indivíduos evoluirá para a estágio sintomático de ruptura do tecido em 20 a 30 anos após a infecção2 (cerca de 2% ao ano evoluem da forma indeterminada da doença para a forma cardíaca, de acordo com um estudo atual).3
A inflamação miocárdica persistente e a fibrose representam as principais características patológicas da DCh que estariam relacionadas com a sua progressão.4,5 O uso de biomarcadores de fibrose miocárdica para prever a progressão em pacientes com função normal ou quase normal do VE é certamente importante na DCh, onde fatores de risco tradicionais, como a FEVE, podem não ser tão úteis. No entanto, estudos têm demonstrado o valor dos biomarcadores de fibrose miocárdica na progressão da patogênese da DCh.6
Nesta edição, Fernandes et al.,7 apresentam dados que contribuem para o nosso entendimento relacionado à carga da fibrose miocárdica em diferentes estágios da DCh. Para tanto, os autores avaliaram a presença (ou não) da Galectina-3 (Gal-3), um biomarcador de fibrose miocárdica, em diferentes estágios da doença comparados à um grupo controle e se ela está associada a mortalidade ou necessidade de transplante de coração no estágio mais avançado da doença. Para esse propósito, foram realizados 2 estudos com desenhos distintos. Inicialmente, a fim de estratificar os grupos pelo status de cardiomiopatia chagásica (CC) utilizando um desenho de estudo transversal, 330 pacientes soropositivos para T. cruzi (187 sem cardiomiopatia; 46 com CC/ECG anormal e FEVE >50%; e 97 com CC/ECG anormal com FEVE <50%) foram incluídos, além de 153 controles soronegativos (pareados por idade e sexo). Desses pacientes soropositivos, 97 com formas cardíacas mais graves de CC fizeram parte do estudo longitudinal prospectivo censurado até o evento (mortalidade ou necessidade de transplante cardíaco).
Os resultados foram resumidos e analisados nos diferentes grupos. A mediana de idade foi de 49 ± 9,2 anos, com mediana de seguimento de 58 meses. Pacientes com doença de Chagas sem cardiomiopatia (n = 187) e aqueles com cardiomiopatia e FEVE >50% (n = 46) tinham níveis de Gal-3 semelhantes aos de controles saudáveis (n = 153), mas aqueles com cardiomiopatia e FEVE <50% (n = 97) apresentaram níveis de Gal-3 significativamente maiores do que os controles saudáveis (p = 0,0001). Uma correlação significativa foi observada entre os níveis de Gal-3 e FEVE (rs = -0,16, p = 0,001). Foram observados eventos em 28 pacientes (29%). Em pacientes com cardiopatia e FEVE <50%, o modelo de regressão linear ajustado mostrou uma associação significativa entre os níveis de Gal-3 e morte ou transplante cardíaco durante um seguimento de cinco anos (Hazard ratio - HR 3,11; IC 95% = 1,21– 8,04; p = 0,019).
Os autores concluíram que, em pacientes com a forma cardíaca, níveis mais elevados de Gal-3 estavam significativamente associados a formas graves da doença e a uma maior taxa de mortalidade em longo prazo, o que significa que podem ser utilizados de forma eficaz para identificar pacientes de alto risco.
Entretanto, os principais achados de Fernandes et al.,7 foram os seguintes: primeiro, os níveis de Gal-3 não mostraram nenhuma diferença entre indivíduos normais e pacientes com DCh sem cardiomiopatia e com cardiomiopatia / FEVE >50%. Esta observação sugere que os níveis de Gal-3 nesta amostra de pacientes não puderam ser utilizados como um marcador de progressão da doença miocárdica. O segundo achado importante deste estudo foi que os níveis mais elevados de Gal-3 estavam significativamente associados às formas graves da doença e a uma maior taxa de mortalidade em longo prazo. Esse resultado não é exclusivo da DCh, pois achados semelhantes foram observados nos estudos de Nagase et al.8 e Spinale.9
A interpretação desses resultados deve considerar o pequeno número de pacientes com seguimento de cinco anos e experiência em centro único já citados pelos autores. No grupo de pacientes com cardiomiopatia e FEVE <50%, possivelmente foram utilizados diferentes graus de comprometimento miocárdico, já que havia um amplo espectro de FEVE (variando de 20% a 40%) levando a diferentes perfis de pacientes incluídos nos grupos.7 É evidente que a taxa de eventos foi baixa e significativamente inferior à da coorte de alto risco de Rassi (taxa de mortalidade anual de 5,8% vs. 12,6%); assim, os resultados das análises multivariadas, que incluíram cinco variáveis independentes, devem ser considerados com cautela devido à provável supersaturação do modelo.
Um dos maiores desafios da DCh é a dificuldade da identificação, em um estágio inicial, os indivíduos infectados que farão parte dos 20% a 30% que podem desenvolver cardiomiopatia. Infelizmente, no momento, não há como prever essa possível progressão. Assim, encontrar biomarcadores confiáveis de progressão da doença significaria o maior salto na história da DCh desde sua descoberta em 1909 pelo Dr. Carlos Chagas. Por esse motivo, existem inúmeros grupos de pesquisa que se dedicam à busca de biomarcadores derivados do hospedeiro e do T. cruzi .10 Isso significaria um avanço no manejo da DCh.
Referências
- 1 Martins-Melo FR, Carneiro M, Ramos Jr AN, Heukelbach J, RibeiroALP, Werneck GL. The burden of Neglected Tropical Diseases in Brazil, 1990-2016: A subnational analysis from the Global Burdenof Disease Study 2016. PLoS Negl Trop Dis. 2018; 12(6):e0006559.
- 2 Nunes MCP, Beaton A, Acquatella H, Bern C, Bolger AF, Echeverría LE et al. Chagas Cardiomyopathy: An Update of Current Clinical Knowledge and Management A Scientific Statement From the American Heart Association. Circulation. 2018 Sep 18;138(12):e169-e209.
- 3 Sabino EC, Ribeiro AL, Salemi VM, Di Lorenzo OC, Antunes AP, Menezes MM, et al. Ten-year incidence of Chagas cardiomyopathy among asymptomatic Trypanosoma cruzi-seropositive former blood donors. Circulation 2013; 127(10):1105-15.
- 4 Chaves AT, Menezes CAS, Costa HS, Nunes MCP, Rocha MOC. Myocardial fibrosis in chagas disease and molecules related to fibrosis. Parasite Immunol 2019; 41(10): e12663.
- 5 Bonney KM, Luthringer DJ, Kim SA, Garg NJ, Engman DM. Pathology and Pathogenesis of Chagas Heart Disease. Annu Rev Pathol 2019; 14: 421-47.
- 6 L. Giordanengo L, Gea S, Barbieri G, Rabinovich GA. Anti-galectin-1 autoantibodies in human Trypanosoma cruzi infection: differential expression of this β- galactoside-binding protein in cardiac Chagas’ disease. Clin. Exp. Immunol 2001; 124(2):266–73.
- 7 Fernandes F, Moreira CHV, Oliveira LC, Souza-Basqueira M, Ianni BM, di Lorenzo C, et al. Galectina-3 Associada a Formas Graves e Mortalidade em Longo Prazo em Pacientes com Doença de Chagas. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(2):248-256.
- 8 Nagase H, Visse R, Murphy G. Structure and function of matrix metalloproteinases and TIMPs. Cardiovasc Res 2006; 69(3):562-73.
- 9 Spinale FG. Myocardial matrix remodeling and the matrix metalloproteinases: influence on cardiac form and function. Physiol Rev 2007; 87(4):1285-342.
- 10 Linhares-Lacerda L, Granato A, Gomes-Neto JF, Conde L, Freire-de-Lima L, de Freitas EO, et al. Circulating Plasma MicroRNA-208a as Potential Biomarker of Chronic Indeterminate Phase of Chagas Disease Front Microbiol. 2018 Mar 6;9:269. Referências
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Minieditorial referente ao artigo: Galectina-3 Associada a Formas Graves e Mortalidade em Longo Prazo em Pacientes com Doença de Chagas
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
01 Mar 2021 -
Data do Fascículo
Fev 2021