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Revisitando o Uso do CDI na Cardiomiopatia Chagásica: Evidências Atuais e Direções Futuras

Palavras-chave
Doença de Chagas; Cardiomiopatia Chagásica; Insuficiência Cardíaca; Acidente Vascular Cerebral; Cardioversores Desfibriladores Implantáveis/tendências

A cardiomiopatia chagásica (CC) é uma doença cardíaca infecciosa crônica que recentemente foi considerada uma cardiomiopatia arritmogênica infecciosa de acordo com a declaração do HRS sobre o assunto.11 Towbin JA, McKenna WJ, Abrams DJ, Ackerman MJ, Calkins H, Darrieux FC, et al. 2019 HRS expert consensus statement on evaluation, risk stratification, and management of arrhythmogenic cardiomyopathy. Heart Rhythm. 2019;16(11):e301-72. doi:10.1016/j.hrthm.2019.05.007
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Após uma fase aguda, os pacientes tornam-se cronicamente infectados, mostrando uma ampla gama de apresentações relacionadas a doenças cardíacas, incluindo insuficiência cardíaca, acidente vascular cerebral, anomalias de condução, fibrilação atrial e arritmia ventricular.22 Nunes MC, Beaton A, Acquatella H, Bern C, Folger AF, Echeverriá LE, et al. Chagas Cardiomyopathy: An Update of Current Clinical Knowledge and Management: A Scientific Statement From the American Heart Association. Circulation. 2018;138(12):e169-209. doi: 10.1161/CIR.0000000000000599
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A morte súbita é uma forma de morte da maioria dos pacientes com CC, e o cardioversor-desfibrilador implantável (CDI) tem sido utilizado como terapia preferencial, pelo menos para prevenção secundária, seguindo recomendações semelhantes às de outras doenças cardiovasculares.33 Marin-Neto JA, Rassi A, Oliveira GM, Correia LC, Ramos Jr AN, Luquetti AO, et al. Diretriz da SBC sobre Diagnóstico e Tratamento de Pacientes com Cardiomiopatia da Doença de Chagas – 2023. Arq Bras Cardiol. 2023;120(6):e20230269. doi:10.36660/abc.20230269
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Todas as informações sobre o uso do CDI na CC são obtidas de estudos observacionais e, em relação às taxas de mortalidade, duas metanálises avaliaram esse tema em diferentes populações. A primeira meta-análise, realizada pelo nosso grupo, encontrou taxa de mortalidade anual de 9,7% (IC 95%: 5,7 a 13,7) em uma população com CDI implantado exclusivamente para prevenção secundária.44 Carmo AA, Sousa MR, Agudelo JF, Boersma E, Rocha MO, Ribeiro AL, et al. Implantable cardioverter-defibrillator in Chagas heart disease: A systematic review and meta-analysis of observational studies. Int J Cardiol. 2018;267:88-93 doi:10.1016/j.ijcard.2018.05.091
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A segunda meta-análise, avaliando uma população mista de prevenção primária e secundária, revelou uma taxa anual agrupada de mortalidade por todas as causas de 9,0%. Esses achados destacam o risco significativo de mortalidade em pacientes com CC que possuem CDI, enfatizando a importância do monitoramento e manejo cuidadosos nessa população.

Além disso, a CC é reconhecida há muito tempo como uma cardiomiopatia altamente arritmogênica, com alta incidência de terapias apropriadas com CDI, com média de 24,8% ao ano,55 Pereira FTM, Rocha EA, Gondim DSP, Almeida RLF, Pires Neto RJ, Preditores de Terapias Apropriadas e Óbito em Pacientes com Cardiodesfibrilador Implantável e Cardiopatia Chagásica Crônica. Arq Bras Cardiol. 2024; 121(6):e20230337. doi: https://doi.org/10.36660/abc.20230337.
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e uma taxa notável de tempestades elétricas de 9,1% ao ano, sublinhando a impressionante natureza arritmogénica da doença. Esta questão, no entanto, deve ser contextualizada devido à alta variabilidade na programação do CDI e nas estratégias implementadas para abordar a recorrência da taquicardia ventricular (TV), como medicamentos antiarrítmicos e ablação de TV. Existem evidências substanciais que associam terapias apropriadas, principalmente choques, ao aumento da mortalidade.

Nesta edição da ABC Cardiol, Pereira et al.,55 Pereira FTM, Rocha EA, Gondim DSP, Almeida RLF, Pires Neto RJ, Preditores de Terapias Apropriadas e Óbito em Pacientes com Cardiodesfibrilador Implantável e Cardiopatia Chagásica Crônica. Arq Bras Cardiol. 2024; 121(6):e20230337. doi: https://doi.org/10.36660/abc.20230337.
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descrevem um estudo que avaliou pacientes com CC com CDI e os preditores de morte e terapias adequadas.55 Pereira FTM, Rocha EA, Gondim DSP, Almeida RLF, Pires Neto RJ, Preditores de Terapias Apropriadas e Óbito em Pacientes com Cardiodesfibrilador Implantável e Cardiopatia Chagásica Crônica. Arq Bras Cardiol. 2024; 121(6):e20230337. doi: https://doi.org/10.36660/abc.20230337.
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A população do estudo foi predominantemente masculina (74%) com insuficiência cardíaca grave e 74% tiveram CDI implantado para prevenção secundária de morte súbita. A taxa de mortalidade global anualizada foi de 7,7%, semelhante às taxas de mortalidade para outras cardiomiopatias. Fração de ejeção do ventrículo esquerdo <30%, classe funcional IV e idade >75 anos foram associadas ao aumento da mortalidade após análise multivariada.

A taxa anual de terapia apropriada foi de 10% e 4,4% para tempestades elétricas, numericamente inferior aos dados agrupados apresentados na meta-análise anterior conduzida por Rassi et al.66 Rassi FM, Minohara L, Rassi A, Correia LC, Marin Neto JA, Rassi A, et al. Systematic Review and Meta-Analysis of Clinical Outcome After Implantable Cardioverter-Defibrillator Therapy in Patients With Chagas Heart Disease. JACC Clin Electrophysiol. 2019;5(10):1213-23. doi:10.1016/j.jacep.2019.07.003
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Este efeito pode ser parcialmente atribuído à tendência geral decrescente na mortalidade cardiovascular no Brasil, incluindo melhorias na programação do CDI, introdução de novos medicamentos para o tratamento da insuficiência cardíaca e acesso mais amplo à ablação de TV.

Curiosamente, nosso grupo publicou recentemente uma avaliação temporal de pacientes submetidos a implante de CDI antes e após a estruturação de Serviços de Arritmia e Eletrofisiologia em um sistema público terciário de saúde no Brasil.77 França AT, Martins LN, Oliveira DM, Castilho FM, Branco BC, Wilnes B, et al. Evaluation of patients with implantable cardioverter-defibrillator in a Latin American tertiary center. J Cardiovasc Electrophysiol. 2024;35(4):675-84. doi:10.1111/jce.16201
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Além do principal achado de menor mortalidade para toda a população após o estabelecimento do atendimento especializado, mostramos um declínio progressivo nas taxas de recorrência de TV para pacientes com CC. Como resultado, no último período do nosso estudo, a disparidade nas taxas de TV/fibrilação ventricular (FV) entre pacientes chagásicos e não chagásicos não existia mais.

A estruturação do Serviço de Arritmia/Eletrofisiologia incluiu o acompanhamento rotineiro dos pacientes com CDI em clínicas especializadas, onde a programação dos dispositivos eletrônicos cardíacos era inteiramente realizada por equipe especializada, adotando práticas que podem reduzir a mortalidade. Este período também viu a introdução da ablação por cateter de TV, com um alto volume anual de ablações de TV chagásica. Foram introduzidas tecnologias inovadoras para o tratamento da CC, como o acesso epicárdico guiado por laparoscopia para prevenir lesões intra-abdominais de órgãos.88 Carmo AA, Zenobio S, Santos BC, Rocha MO, Ribeiro AL. Feasibility and Safety of Laparoscopic-Guided Epicardial Access for Ventricular Tachycardia Ablation. J Am Heart Assoc. 2020;9(15) e016654. doi:10.1161/JAHA.120.016654
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Quanto ao benefício do implante de CDI em pacientes com CC, este permanece sendo um tema controverso. Embora dados recentes, como o manuscrito publicado nesta edição do ABC Cardiol por Pereira et al.,55 Pereira FTM, Rocha EA, Gondim DSP, Almeida RLF, Pires Neto RJ, Preditores de Terapias Apropriadas e Óbito em Pacientes com Cardiodesfibrilador Implantável e Cardiopatia Chagásica Crônica. Arq Bras Cardiol. 2024; 121(6):e20230337. doi: https://doi.org/10.36660/abc.20230337.
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sugerem taxas de mortalidade semelhantes em comparação com outras cardiomiopatias, ainda faltam evidências diretas do benefício dos CDI em comparação com o tratamento médico ideal. Até que tenhamos evidências diretas derivadas de ensaios randomizados, esta questão permanecerá discutível.

Em resumo, a gestão da CC continua sendo um desafio complexo e em evolução, particularmente no que diz respeito ao uso de CDI. Embora estudos e meta-análises recentes indiquem altas taxas de eventos arritmogênicos e riscos significativos de mortalidade em pacientes com CC com CDI, o benefício direto dos CDI em comparação com o tratamento médico ideal ainda está em debate. A melhoria do atendimento especializado em arritmia tem mostrado resultados promissores, incluindo redução da mortalidade e declínio nas taxas de recorrência de TV, o que ressalta a importância do atendimento integral e especializado. No entanto, até que sejam obtidas evidências mais definitivas a partir de ensaios randomizados, o papel dos CDI na CC permanecerá sendo um tema controverso, necessitando de investigação contínua e avaliação clínica para otimizar estratégias de tratamento e melhorar os resultados dos pacientes.

  • Minieditorial referente ao artigo: Preditores de Terapias Apropriadas e Óbito em Pacientes com Cardiodesfibrilador Implantável e Cardiopatia Chagásica Crônica

Referências

  • 1
    Towbin JA, McKenna WJ, Abrams DJ, Ackerman MJ, Calkins H, Darrieux FC, et al. 2019 HRS expert consensus statement on evaluation, risk stratification, and management of arrhythmogenic cardiomyopathy. Heart Rhythm. 2019;16(11):e301-72. doi:10.1016/j.hrthm.2019.05.007
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  • 2
    Nunes MC, Beaton A, Acquatella H, Bern C, Folger AF, Echeverriá LE, et al. Chagas Cardiomyopathy: An Update of Current Clinical Knowledge and Management: A Scientific Statement From the American Heart Association. Circulation. 2018;138(12):e169-209. doi: 10.1161/CIR.0000000000000599
    » https://doi.org/10.1161/CIR.0000000000000599
  • 3
    Marin-Neto JA, Rassi A, Oliveira GM, Correia LC, Ramos Jr AN, Luquetti AO, et al. Diretriz da SBC sobre Diagnóstico e Tratamento de Pacientes com Cardiomiopatia da Doença de Chagas – 2023. Arq Bras Cardiol. 2023;120(6):e20230269. doi:10.36660/abc.20230269
    » https://doi.org/10.36660/abc.20230269
  • 4
    Carmo AA, Sousa MR, Agudelo JF, Boersma E, Rocha MO, Ribeiro AL, et al. Implantable cardioverter-defibrillator in Chagas heart disease: A systematic review and meta-analysis of observational studies. Int J Cardiol. 2018;267:88-93 doi:10.1016/j.ijcard.2018.05.091
    » https://doi.org/10.1016/j.ijcard.2018.05.091
  • 5
    Pereira FTM, Rocha EA, Gondim DSP, Almeida RLF, Pires Neto RJ, Preditores de Terapias Apropriadas e Óbito em Pacientes com Cardiodesfibrilador Implantável e Cardiopatia Chagásica Crônica. Arq Bras Cardiol. 2024; 121(6):e20230337. doi: https://doi.org/10.36660/abc.20230337.
    » https://doi.org/10.36660/abc.20230337
  • 6
    Rassi FM, Minohara L, Rassi A, Correia LC, Marin Neto JA, Rassi A, et al. Systematic Review and Meta-Analysis of Clinical Outcome After Implantable Cardioverter-Defibrillator Therapy in Patients With Chagas Heart Disease. JACC Clin Electrophysiol. 2019;5(10):1213-23. doi:10.1016/j.jacep.2019.07.003
    » https://doi.org/10.1016/j.jacep.2019.07.003
  • 7
    França AT, Martins LN, Oliveira DM, Castilho FM, Branco BC, Wilnes B, et al. Evaluation of patients with implantable cardioverter-defibrillator in a Latin American tertiary center. J Cardiovasc Electrophysiol. 2024;35(4):675-84. doi:10.1111/jce.16201
    » https://doi.org/10.1111/jce.16201
  • 8
    Carmo AA, Zenobio S, Santos BC, Rocha MO, Ribeiro AL. Feasibility and Safety of Laparoscopic-Guided Epicardial Access for Ventricular Tachycardia Ablation. J Am Heart Assoc. 2020;9(15) e016654. doi:10.1161/JAHA.120.016654
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2024
  • Revisado
    03 Jul 2024
  • Aceito
    03 Jul 2024
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