Resumos
Neste artigo discutimos os desafios colocados pelas novas tecnologias reprodutivas considerando o caso específico dos direitos reprodutivos das pessoas vivendo com HIV na perspectiva de docentes da área do Direito. Abordamos questões levantadas na literatura acadêmica analisadas com base em material bibliográfico e entrevistas. Os resultados apontam os aspectos presentes nos discursos sobre direitos à reprodução a partir de diferentes posicionamentos, o que inclui o biodireito como um novo campo do saber. Destaca-se, por um lado, uma compreensão restrita do conceito de autonomia no trato das questões reprodutivas na qual prevalece o argumento do melhor interesse da criança, e, por outro, uma visão moralizante sobre o desejo de filhos por indivíduos que vivem com o HIV/Aids.
Reprodução assistida; direitos reprodutivos; biodireito; HIV/AIDS
In this article we discuss challenges raised by new reproductive technologies, especially those concerning the reproductive rights of HIV-positive persons as seen by Law faculty members. Our approach pinpoints questions brought up in the academic literature analysed based on bibliography and interviews. Results indicate the aspects present in speeches about reproductive rights from different stands, including biorights as a new field of knowledge. What stands out is, on one hand, a strict understanding of the concept of autonomy when it comes to reproductive matters in which the argument of the best interest of the child prevails, and, on the other hand, a moralizing view over whether HIV-positive individuals may have children.
assisted reproduction; reproductive rights; biolaw; HIV/AIDS
En este artículo discutimos los desafíos planteados por las nuevas tecnologías reproductivas considerando el caso específico de los derechos reproductivos de las personas que viven con VIH desde la perspectiva de docentes del área del Derecho. Abordamos temas de la literatura académica analizados en base a material bibliográfico y entrevistas. Los resultados señalan los aspectos presentes en los discursos sobre derechos a la reproducción a partir de distintas posiciones, lo que incluye el bioderecho como un nuevo campo del saber. Se destaca, por un lado, una comprensión restringida del concepto de autonomía en el tratamiento de las cuestiones reproductivas, en la que prevalece el argumento del mejor interés del niño y, por otro, una visión moralizante sobre el deseo de hijos por individuos que viven con VIH/Sida.
reproducción asistida; los derechos reproductivos; bioderecho; VIH/SIDA
OUTROS TEMAS
HIV/AIDS e reprodução: a perspectiva jurídica em análise
HIV/AIDS and reproduction: an analysis of the legal perspective
VIH/SIDA y reproducción: la perspectiva jurídica en análisis
Luciane da Costa MoásI; Eliane Portes VargasII; Ivia MaksudIII; Ruth BrittoIV
IDoutora em Saúde Coletiva, professora adjunta da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ lumoas@yahoo.com.br
IIDoutora em Saúde Coletiva, pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz IOC/Fiocruz Rio de Janeiro epvargas@ioc.fiocruz.br
IIIDoutora em Saúde Coletiva, professora adjunta da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ iviamaksud@gmail.com
IVDoutora em Saúde Coletiva, professora do programa de pós-graduação da Universidade Plínio Leite Unipli ruth.britto@gmail.com
RESUMO
Neste artigo discutimos os desafios colocados pelas novas tecnologias reprodutivas considerando o caso específico dos direitos reprodutivos das pessoas vivendo com HIV na perspectiva de docentes da área do Direito. Abordamos questões levantadas na literatura acadêmica analisadas com base em material bibliográfico e entrevistas. Os resultados apontam os aspectos presentes nos discursos sobre direitos à reprodução a partir de diferentes posicionamentos, o que inclui o biodireito como um novo campo do saber. Destaca-se, por um lado, uma compreensão restrita do conceito de autonomia no trato das questões reprodutivas na qual prevalece o argumento do melhor interesse da criança, e, por outro, uma visão moralizante sobre o desejo de filhos por indivíduos que vivem com o HIV/Aids.
Palavras-chave: Reprodução assistida; direitos reprodutivos; biodireito; HIV/AIDS
ABSTRACT
In this article we discuss challenges raised by new reproductive technologies, especially those concerning the reproductive rights of HIV-positive persons as seen by Law faculty members. Our approach pinpoints questions brought up in the academic literature analysed based on bibliography and interviews. Results indicate the aspects present in speeches about reproductive rights from different stands, including biorights as a new field of knowledge. What stands out is, on one hand, a strict understanding of the concept of autonomy when it comes to reproductive matters in which the argument of the best interest of the child prevails, and, on the other hand, a moralizing view over whether HIV-positive individuals may have children.
Keywords: assisted reproduction; reproductive rights; biolaw; HIV/AIDS
RESUMEN
En este artículo discutimos los desafíos planteados por las nuevas tecnologías reproductivas considerando el caso específico de los derechos reproductivos de las personas que viven con VIH desde la perspectiva de docentes del área del Derecho. Abordamos temas de la literatura académica analizados en base a material bibliográfico y entrevistas. Los resultados señalan los aspectos presentes en los discursos sobre derechos a la reproducción a partir de distintas posiciones, lo que incluye el bioderecho como un nuevo campo del saber. Se destaca, por un lado, una comprensión restringida del concepto de autonomía en el tratamiento de las cuestiones reproductivas, en la que prevalece el argumento del mejor interés del niño y, por otro, una visión moralizante sobre el deseo de hijos por individuos que viven con VIH/Sida.
Palabras clave: reproducción asistida; los derechos reproductivos; bioderecho; VIH/SIDA
Este trabalho é parte de uma investigação mais ampla sobre a temática da reprodução e do HIV/Aids em sua interface com o campo dos direitos reprodutivos e das tecnologias reprodutivas.1 Inovações tecnológicas destinadas à reprodução têm sido ainda pouco debatidas no âmbito das políticas públicas de saúde, inclusive aquelas voltadas para as mulheres vivendo com HIV/Aids. Discutem-se aqui os desafios colocados pelas novas tecnologias reprodutivas na perspectiva de profissionais do Direito considerando o caso específico dos direitos reprodutivos das pessoas vivendo com HIV.
Os discursos contemporâneos acerca dos direitos reprodutivos no contexto dos diversos saberes produzidos na sociedade notadamente os saberes médico e jurídico revelam a tendência à produção de narrativas moralizantes acerca de temas relacionados às questões reprodutivas (VARGAS; MOÁS, 2010). Partindo do pressuposto de coexistirem variadas percepções sobre o desejo de ter filhos, conforme as diferentes inserções e posicionamento dos atores envolvidos no cenário social, focalizamos particularmente os argumentos em jogo do ponto de vista jurídico, na ótica de docentes da área de Direito.2
As reflexões apresentadas dizem respeito às tecnologias reprodutivas e aos princípios jurídicos consubstanciados no biodireito um novo ramo do Direito relacionado às inovações biotecnológicas (CORRÊA, 2005). Nesse contexto, o papel do jurista vem ganhando enorme relevância no esforço de solucionar os conflitos e de agir preventivamente ao propor novas formas de organização e regulamentação visando a garantir um mínimo de ética necessária à sobrevivência e à convivência social (SANTOS, 2001).
Um caso interessante a ser estudado aqui, na ótica dos atores vinculados à área do Direito, mais especificamente de docentes de graduação em Direito, é a oferta de reprodução assistida para soropositivos ou casais sorodiscordantes (em que um dos parceiros tem o HIV e o outro, não) que desejam ter filhos. Por meio dessas reflexões, visando ao fomento do debate acerca do tema, podem-se entrever os valores sociais e culturais presentes na sociedade que resultam em uma maior ou menor aceitação dos usos das tecnologias reprodutivas por parte de determinados grupos sociais.
O percurso metodológico do estudo inclui o exame de um conjunto de valores, princípios e normas jurídicas que, em nome da proteção da vida humana, disciplinam as práticas, intervenções e mecanismos de manipulação do corpo biológico e social que envolvem diretamente as tecnologias reprodutivas. Para isso, foram aplicadas entrevistas semiestruturadas a dez professores de Direito Civil ou Constitucional de duas instituições de ensino, uma pública e outra privada, entre setembro de 2009 e abril de 2010.
O recurso às entrevistas justifica-se pela possibilidade de exploração do tema na perspectiva desses profissionais, até então praticamente ignorados nos estudos sobre reprodução e HIV/Aids. Trata-se de opção metodológica relevante, uma vez que envolve as percepções de atores inseridos em diferentes cenários onde os discursos sobre a temática transitam e são formulados. Esse é um dos argumentos favoráveis às abordagens do tipo qualitativo (POUPART, 2010).
A inclusão da ótica dos profissionais de Direito na análise do tema nos pareceu uma estratégia de interesse para a pesquisa por dar visibilidade aos dilemas e questões presentes nas suas narrativas e entender as restrições aos usos das tecnologias reprodutivas no contexto do HIV/Aids, para além do previsto nos documentos oficiais. Os textos jurídicos, aos quais nos referimos como discursos que "são ditos", na expressão de Foucault (2012 [1971]), encontram-se no horizonte do debate e são de crucial importância tanto para a formação desses profissionais quanto para a sua atuação prática, visto que são convidados a opinar sobre o tema. Essa atuação consiste, grosso modo, na disseminação de conhecimentos ou na aplicação de normas jurídicas que, ao menos teoricamente, devem ser compatíveis com as regras mais amplas do ordenamento jurídico.
No caso de decisões envolvendo práticas reprodutivas, porém, existem ainda dissonâncias no que se refere às implicações do uso da reprodução humana assistida e à sua regulação, bem como à oferta e ao acesso a esse recurso no âmbito das políticas públicas de saúde como assinalam os profissionais entrevistados.
Aspectos relevantes do debate sobre o tema são pontuados na análise a seguir, entre os quais a relativização da reprodução como direito fundamental sob o argumento do melhor interesse da criança, e a falta de investimentos necessários para a universalização do acesso às técnicas reprodutivas, o que leva os serviços de saúde pública a estabelecer critérios de escolha entre candidatos.
Para uma reflexão sobre viver com HIV/Aids e reprodução cotejamos questões abordadas na literatura que versa sobre políticas públicas, programas, projetos e/ou diretrizes nacionais sobre reprodução assistida no Brasil.
ACESSO E AUTONOMIA NAS QUESTÕES REPRODUTIVAS: O QUE OS DOCENTES PROBLEMATIZAM
CONSIDERAÇÕES SOBRE REPRODUÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA E PRINCÍPIOS JURÍDICOS
Uma das temáticas mais recorrentes no campo do biodireito é o da reprodução medicamente assistida. As intervenções médico-tecnológicas sobre a reprodução humana (aborto, diagnóstico genético, pesquisa com embriões etc.) constituem um terreno fértil para o discurso bioético e demandam a presença dos juristas para sua regulação.
A questão é menos debatida no caso de pessoas vivendo com HIV/Aids. O problema do acesso de casais soropositivos ou sorodiscordantes às novas tecnologias reprodutivas é atravessado pelo estigma e pelo julgamento moral. Entenda-se como acesso não apenas a regulação que franqueia ou não a possibilidade de uso da técnica, mas também sua disponibilização nos serviços públicos para garantir o efetivo exercício da autonomia pelos indivíduos.
Embora o biodireito, em interface com outras áreas do conhecimento, já tenha despontado no debate por meio da problematização do acesso às tecnologias reprodutivas para casais inférteis (DINIZ; BUGLIONE, 2002; MOÁS; VARGAS, 2012), ainda é incipiente no campo dos direitos reprodutivos relacionados ao HIV/Aids.
A reprodução humana assistida é um exemplo emblemático do vazio legislativo no que se refere às novas descobertas científicas. Não existem normas jurídicas gerais que acompanhem a rapidez das transformações nesse campo, mas apenas normas específicas para solucionar questões pontuais. No momento da realização das entrevistas a única referência para o uso de técnicas de reprodução assistida era a Resolução n. 1.957, de 2010, do Conselho Federal de Medicina, que define normas éticas para sua aplicação (VARGAS; MOÁS, 2010).3 Já existem vários projetos de lei que tratam desse tema tramitando no Congresso Nacional, mas até agora nenhum foi aprovado.
Uma das entrevistadas em nossa pesquisa levanta importantes aspectos relacionados à falta de regulação no uso de técnicas de reprodução assistida, tais como a inexistência de controle das clínicas e a questão dos vínculos de parentesco estabelecidos.
Uma boa regulamentação envolverá necessariamente um controle das clínicas que fazem fertilização, um controle sanitário, na ampla acepção da palavra, desde a pessoa que está fazendo, como está fazendo e com que material, até a conservação do mesmo, enfim, um controle sanitário amplo que passará necessariamente por um controle ético. [...] E tem um projeto mais abrangente que vai desde quem são os partícipes, se estabelece o parentesco ou não e quem estabelece. [...] uma série de questões que você não pode deixar à interpretação casuística, porque são coisas que atingem uma faixa muito grande da população. (Ana, professora de direito civil, universidade pública)
A mesma preocupação em relação ao estabelecimento do vínculo de parentesco é manifestada por outro entrevistado:
A reprodução assistida vem, sobretudo, permeada de dúvidas, quanto, por exemplo, à questão da paternidade, sempre polêmica, quando parece que o ideal seria discutir a questão do bem jurídico, da pesquisa científica e também da dignidade da pessoa humana. O direito de ser pai, de ser mãe, se reduz muito ao analisar a questão exclusivamente de paternidade. Vai ser filho de quem? Cria-se o banco de esperma e de repente pode-se ter filhos daquela pessoa e não se sabe se haverá responsabilidade patrimonial sobre aquilo. (Emanuel, professor de direito constitucional, universidade privada)
Outra preocupação levantada por esse entrevistado diz respeito aos riscos de seleção e descarte de embriões:
Pode ainda envolver uma questão discriminatória, de violação do princípio da igualdade. Vale citar o problema da China, relacionado à escolha do sexo, em que, culturalmente, ninguém quer gerar uma menina. Tem que haver controle por parte do poder público, através de normas jurídicas, órgãos nos moldes das agências reguladoras, em que se busque justamente preservar aspectos relativos à saúde dos envolvidos, tanto física, quanto psíquica, e procurar evitar a concretização dos riscos como seleção e descarte de embriões. (Emanuel, professor de direito constitucional, universidade privada)
Outra questão importante relacionada ao uso de técnicas de reprodução assistida, além da falta de regulação da prática, diz respeito à legitimação do avanço da ciência, já que esta não é isenta de valor. Como lembra Paul Feyerband (1993), as ideias científicas são comumente difundidas de modo não democrático, e sua disseminação no conjunto da sociedade é, quase sempre, fruto de decisões políticas tomadas sem nenhuma participação popular.
No caso dos avanços tecnológicos no âmbito da reprodução, sua disseminação encontra-se restrita aos estratos superiores da população, que dispõem de poder aquisitivo para ter acesso a esses recursos. Os esforços empreendidos por inúmeros comitês, associações, fóruns e outras formas de mobilização, no sentido de ampliar a discussão em torno das questões éticas envolvidas nessas práticas, não garantem um efetivo reforço de participação social ou mesmo a democratização da informação e do acesso aos modernos recursos conceptivos, fruto dos avanços produzidos pela ciência e a biomedicina.
Além disso, essa discussão no âmbito da bioética, para ter validade, não poderia deixar de reconhecer as grandes dimensões políticas e econômicas que lhe dizem respeito (CAMPBELL, 2000). No entanto, o discurso bioético parece ignorar a incapacidade das sociedades industrializadas de remediar os problemas econômicos e sociais básicos que contribuem para o aumento da defasagem entre o acesso à saúde de diferentes grupos de cidadãos, ao mesmo tempo em que critica a escassez de recursos para a prática de reprodução assistida e reivindica prioridade no orçamento da saúde para esse fim.
De um ponto de vista bioético, é desejável que a discussão de princípios esteja inserida no debate mais amplo em torno da melhor destinação dos recursos públicos para a saúde. Isso para evitar que indivíduos e grupos da sociedade corram o risco de serem excluídos do atendimento básico e/ou de verem comprometido seu direito a uma atenção integral à saúde, como preconizado pelo Sistema Único de Saúde SUS.
Assim, a interrogação sobre que parâmetros devem nortear as escolhas das prioridades torna-se relevante, sobretudo no âmbito dos profissionais inseridos na área do Direito.
HIV/AIDS E DIREITOS REPRODUTIVOS: ESCOLHAS E INTERESSES EM JOGO
Em face da notória escassez de recursos e da repartição de verbas insuficientes para todas as demandas na área da saúde coletiva/pública, cresce a discussão acerca da necessidade de rever prioridades e de repensar escolhas consideradas pela sociedade de licitude questionável, ou seja, aquelas que, embora permitidas por lei, são inadmissíveis do ponto de vista ético.
Um exemplo é a dificuldade de priorizar pessoas alcoólatras em caso de transplante de fígado, já abordada por Giovani Berlinguer (2000). Ele mostrou que, no elenco de prioridades médicas, indivíduos dependentes de álcool acabavam ficando atrás de pacientes que apresentavam causas "menos culpáveis", no sentido da responsabilização individual, para a realização da cirurgia.
Outro exemplo é a polêmica em torno do fato de o SUS custear serviços de atendimento integral a pacientes transexuais, incluindo a cirurgia de transgenitalização, enquanto há pacientes aguardando cirurgias de coração, rins ou outra qualquer.
No campo específico da reprodução, prevalece a ideia de que os hospitais públicos pertencentes ao SUS não deveriam investir no tratamento de problemas ligados à infertilidade, seja masculina, seja feminina quando faltam recursos para suprir outras necessidades. É de se supor que essa mesma objeção seja feita para casais soropositivos ou sorodiscordantes que demandam o uso de tecnologia para fins reprodutivos, visando a diminuir os riscos da contaminação entre os parceiros ou pelo feto. Nesse caso, a dificuldade pode ser maior uma vez que, em relação à temática do HIV/Aids, existem injunções morais relacionadas ao preconceito, como se observa em grupos mais vulneráveis (MOÁS; VARGAS, 2012).
A questão se complexifica quando se consideram os direitos reprodutivos e sexuais sob a ótica dos direitos humanos e a perspectiva das convenções internacionais. Alguns passos nesse sentido foram dados na IV Conferência Mundial da Mulher, realizada em Pequim, em 1995. A Plataforma de Ação assinada por 184 países, entre os quais o Brasil, defende o direito à liberdade e à autodeterminação do indivíduo, o que compreende o livre exercício da sexualidade e da reprodução humana, sem discriminação, coerção e violência. O direito de ter acesso a informações sobre métodos anticoncepcionais seguros e sobre tecnologias disponíveis não somente para não ter filhos, mas também para tê-los está diretamente relacionado ao direito de acesso ao mais elevado padrão de saúde reprodutiva. Entretanto, esse direito defendido na Plataforma permanece como uma das questões mais sensíveis no cenário jurídico atual. O grande desafio é contemporizar todos os interesses envolvidos (MOÁS, 2006).
No passado o direito de procriar, embora entendido como a liberdade de decidir de forma livre e responsável sobre o número de filhos e o intervalo entre eles e de ter acesso a informações sobre planejamento familiar, comportava apenas um conteúdo negativo, na medida em que a promoção desse direito se limitava a oferecer métodos de controle da fecundidade.
Contemporaneamente, passou-se a valorizar o conteúdo positivo do direito de procriar, que é consistente com o direito de exercer, de fato, a função de genitor, na medida em que inclui a escolha de como procriar (BARBOZA, 2007). Trata-se do reconhecimento do direito à reprodução como uma das manifestações do direito à liberdade, fortalecido pela oferta de novas técnicas de reprodução assistida, que põe em questão sua abrangência e titularidade por parte do Estado. Essa titularidade tem o sentido de indagar/indicar quem pode ter acesso ou gozar desse direito, uma vez que o "como" abrange necessariamente a reprodução assistida e o acesso a ela por meio do SUS.
A chegada da tecnologia reprodutiva no SUS é uma decorrência legal necessária. Legal no sentido constitucional, porque se você reconhece que o direito à reprodução é um direito constitucionalmente assegurado você tem que assegurar a todos em razão do princípio da universalidade do SUS. Quer dizer, pelo princípio da universalidade do SUS, pelo princípio bioético de justiça, você tem que garantir o acesso indistintamente. (Ana, professora de direito civil, universidade pública)
Considerar o direito à reprodução como um direito fundamental implica, portanto, a oferta de reprodução humana assistida pelos serviços públicos de saúde. Há uma vertente que defende sua universalização, fundamentada na concepção originária do SUS como um sistema público universal, o que garantiria o acesso a casais soropositivos e sorodiscordantes.
Se, por um lado, a legislação atual valoriza a autonomia de casais e de indivíduos quanto às suas escolhas reprodutivas, por outro, questões de natureza ético-jurídica emergem quando se pensa no contraponto representado pelo direito das crianças que são fruto de escolhas reprodutivas não normativas, como seria o caso de pais solteiros, de casais homossexuais, ou ainda de casais em que um ou ambos vivem com HIV/Aids. No cenário atual de restauração da primazia da pessoa humana nas relações civis, floresce a ideia de que as crianças, os adolescentes, os idosos, os portadores de deficiências físicas e mentais, enfim, todos aqueles em situação de inferioridade têm interesses que devem ser tratados com prioridade em razão da maior vulnerabilidade desses grupos.
Já existem iniciativas, no âmbito do Ministério da Saúde, que levam em conta a necessidade de atender à demanda de reprodução por casais soropositivos. Por exemplo, o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, lançado em 2004, estabelece como obrigação do Estado, entre outras, "promover a qualidade de vida das mulheres vivendo com HIV/Aids, no âmbito dos direitos humanos, direitos sexuais e direitos reprodutivos". Em 2005, foi criado um grupo de trabalho para estruturação de uma agenda integrada para efetivação do planejamento reprodutivo em casais que convivem com HIV, no âmbito da Política de Direitos Sexuais Reprodutivos. Dentre as propostas desse grupo destaca-se a criação de 21 centros de reprodução assistida para casais inférteis, dos quais seis são destinados a portadores do HIV. Nesse mesmo ano, foi assinada a Portaria n. 426, instituindo, no âmbito do SUS, a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida, destinada a casais com problemas de fertilidade e portadores de doenças infectocontagiosas, como hepatites virais, sífilis e Aids, ou genéticas. Em 2007, a Secretaria Especial para Mulheres e o Ministério da Saúde (Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais e Área Técnica de Saúde da Mulher) formalizaram o Plano Integrado de Enfrentamento à Feminização da Epidemia da Aids e outras DSTs, contemplando as "mulheres e suas especificidades", sem menção à reprodução. Em 2008, foi lançado o Projeto Mais Saúde, com a finalidade de "ampliar o acesso e a qualidade dos serviços prestados pelo Sistema Único de Saúde", que previa, entre outras ações, "investir nos direitos sexuais e reprodutivos, a partir da criação de centros de reprodução assistida". Em 2010, a publicação bianual do Ministério da Saúde "Recomendações para Terapia Antirretroviral em Adultos Infectados pelo HIV" apresenta, pela primeira vez, dentre suas recomendações, as estratégias a serem adotadas para redução de risco de transmissão sexual do HIV no planejamento da reprodução para pessoas que vivem e convivem com HIV/Aids.
Em que pese a tais iniciativas programáticas, pouco se tem avançado na incorporação dessas recomendações no âmbito das políticas públicas, particularmente a de saúde. E elas estão muito distantes das preocupações de profissionais e gestores públicos inseridos no campo do Direito. Uma das professoras entrevistadas em nossa pesquisa aponta a insuficiência das políticas públicas de saúde para a abordagem da reprodução assistida:
As políticas públicas de saúde consideram de forma embrionária essa temática, pois não há planejamento familiar propriamente dito. O problema é que esta questão esbarra na autonomia, que é um princípio fundamental e que decorre da dignidade, quando se pretende um planejamento familiar. A autonomia é aquele plano em que o direito não pode ter invadida a sua privacidade, é autonomia privada mesmo que está sendo revisitada como várias outras noções de direito, revisitada em função de interesse coletivo, estamos vivendo uma funcionalização de todos os direitos. É uma questão muito delicada. (Joana, professora de direito civil, universidade privada)
É interessante perceber, no que tange ao uso de tecnologias reprodutivas focalizadas pelas políticas públicas, a reduzida abordagem dos estudos sobre esse tema entre casais sorodiscordantes para o HIV, em geral centrados nas mulheres, quanto às aspirações relacionadas ao desejo de filhos (SANTOS et al., 2002).
Os debates envolvendo a autonomia dos indivíduos, como parte dos princípios fundamentais de um ponto de vista bioético, são, em geral, marcados por dilemas morais em particular quando se trata da reprodução entre pessoas que vivem com HIV/Aids que demandam o uso de tecnologias médicas. De um lado, encontra-se a autonomia dos casais soropositivos e sorodiscordantes, quanto ao desejo reprodutivo, e, de outro, a necessidade de garantir a viabilidade do feto e de uma nova vida sem riscos acionado pelo argumento do interesse da criança.
A gravidez no contexto do HIV, ainda ligado à ideia de doença/morbidade, comumente associada à ideia de uma nova vida e a um momento de felicidade, gera polêmicas e debates acalorados, não somente entre os profissionais de saúde, informados pela perspectiva de risco associada à epidemiologia moderna, mas também entre vários outros profissionais e setores da sociedade protagonistas em processos decisórios, como no caso dos profissionais de Direito, quando acionam argumentos ancorados no conhecimento científico. A racionalidade científica evidencia o risco da transmissão vertical do HIV, ou seja, a que corresponde à situação em que a criança é infectada pelo vírus da Aids durante a gestação, o parto ou por meio da amamentação. As pesquisas com mulheres soropositivas no Brasil, no entanto, indicam que cerca de 30% a 40% já sabiam do diagnóstico de infecção pelo HIV antes de engravidarem, sendo que entre elas prevalece a gravidez associada a um novo sentido para a vida, ou seja, a gravidez promove uma ressignificação da doença (PAIVA, 2009).
O respeito à autonomia e ao interesse da criança, considerado similarmente por todos os entrevistados, foi central nas narrativas quando indagados sobre a oferta de reprodução assistida para casais soropositivos conforme podemos observar:
[...] [o interesse da criança] envolve duas coisas, se há risco de contaminação para o embrião de nascer com o vírus e também, por outro lado, sobre a viabilidade da mãe. É evidente que ninguém sabe quando vai morrer, mas se já tem uma doença, tem que ser observada a expectativa de vida da pessoa. Pode até parecer preconceituoso. Caso ocorra a morte, ensejaria um ônus para o Estado, ou seja, o Estado teria que cuidar daquele filho, o que vai representar um custo muito grande também para a criança. Mas faltam dados. Não sei sobre a expectativa de vida hoje dos soropositivos. (Emanuel, professor de direito constitucional, universidade privada)
Uma questão entremeada nesse aspecto refere-se à culpabilização social que recai sobre a pessoa vivendo como HIV/Aids, como apontado por uma entrevistada:
Eu não sei, mas eu acho que o HIV ainda tem uma carga cultural negativa muito grande. Para o grande público, quem tem HIV é um grupo que no fundo mereceu ter, entendeu? É a culpabilização, porque a imagem do HIV, qual é? O sujeito tem Aids, então é homossexual, é drogado. São os grupos iniciais de risco [início da epidemia] que ficaram, digamos assim, no senso comum como os portadores. Então, no fundo, eles fizeram por onde, merecem o problema. Isso eu acho que pesa. Pode não pesar explicitamente, mas implicitamente. (Ana, professora de direito civil, universidade pública)
Considerando a tradição da medicina ocidental, na qual o objetivo maior é o bem do paciente, e o valor maior sendo a vida que deve ser preservada, a autonomia, ou seja, a possibilidade de os casais soropositivos ou sorodiscordantes participarem ativamente do processo decisório como sujeitos de direito na relação médico-paciente pode vir a ser reduzida, sobretudo em contextos de forte medicalização social (FOUCAULT, 2010).
O processo de medicalização social, considerado intenso no Brasil e importante para as ações de saúde ligadas ao SUS e à saúde coletiva, tem sido de longa data tratado em literatura específica sobre o tema (TESSER, 2006). Nesse processo das relações entre a saúde e a doença observa-se tendência a se produzir desarmonia entre o indivíduo e o seu grupo social, resultando em perda de autonomia individual e em produção de comportamento passivo e dependente da autoridade médica. Considerando, portanto, esse aspecto não desejável da intervenção da medicina, a beneficência pode transformar-se em paternalismo médico. A autonomia ou possibilidade de autodeterminação, por outro lado, quando exercida de forma exacerbada, pode impedir que médicos e demais profissionais de saúde exerçam suas funções. Mediante essa tensão inerente a esse processo, a dificuldade reside em encontrar a exata medida em que os dois princípios devem ser utilizados. É inegável a opção pela valorização da pessoa, o que implica a noção de autonomia privada, compreendida como o poder conferido pelo ordenamento jurídico aos indivíduos para a autorregulamentação de seus interesses, nos limites estabelecidos pelo próprio ordenamento.
A questão está na imposição ou escolha desses limites, ou seja, na indagação sobre até que ponto é válida a autonomia, até que ponto o seu agir está de acordo com a ordem jurídica. Uma das participantes da pesquisa argumenta como ainda é tênue a incorporação da ideia de autonomia reprodutiva, inclusive apontando ausências observadas na literatura sobre aspectos já contemplados na constituição, tendo em vistas a não observância dos direitos reprodutivos e constitucionais de um modo geral:
Minha visão é que direitos reprodutivos que são constitucionalmente assegurados, isso é uma novidade no mundo do Direito brasileiro. Eu defendo que a chamada autonomia reprodutiva se traduziu na Constituição Federal como um direito ao planejamento familiar, eu defendo, e enfim, já sustentei isso, assegurar autonomia reprodutiva está na Constituição. Tem gente que não concorda que reproduzir seja um direito fundamental. Que bobagem. [...] Quer dizer, ainda é um tema novo, e eu me lembro que quando eu comecei a tratar de direito e reprodução como tal, não é? O que aconteceu? Eu não encontrei literatura. No direito não tem, não tem, e muito... eu disse, olha, tem que ficar atento, isso é um direito fundamental, isso está garantido como planejamento familiar o acesso às técnicas de concepção, e, por conseguinte, às técnicas de reprodução assistida. Isso antes de ter a portaria. Aí disse assim: mas o que você tá querendo dizer? Isso tem que estar no SUS. Como está no SUS, troço caríssimo esse... Gente, está lá, na Constituição. Eu juro que não fui eu que botei, mas está lá, entendeu? Eu acho que é uma coisa muito nova ainda, a própria formulação, só completando, a própria formulação que está na Constituição envolve coisas que as pessoas não sabem muito bem. O que é paternidade responsável? É o princípio que, ao lado da dignidade humana, autoriza e fundamenta o direito ao planejamento familiar. O que é paternidade responsável? Procura bibliografia sobre este conceito, não tem. Ainda é uma coisa nova, entendeu? (Ana, professora de direito civil, universidade pública)
Alguns exemplos apontam como a tendência de valorização da autonomia tem sido contemplada em outras temáticas no campo da saúde, tais como:
1) a regulamentação da possibilidade de remoção de órgão, em vida, para fins de transplante e tratamento;
2) a possibilidade de recusar a transfusão de sangue em razão de convicção religiosa ou filosófica, em que se vê resguardada a responsabilidade do médico, que tende a opinar pela utilização dos recursos médicos indispensáveis à sobrevivência do paciente. Se este é maior de idade e em seu juízo perfeito, cabe a si o pleno exercício de sua vontade, em respeito à liberdade de crença (PEREIRA, 2008);
3) o direito de recusar tratamento médico ou intervenção cirúrgica;
4) a cirurgia de transgenitalização em pacientes transexuais e a possibilidade de alteração do nome e do sexo junto ao Registro Civil de Pessoas Naturais;
5) e nas situações relativas à internação não consentida de paciente em hospital psiquiátrico ou introdução de medicamentos que afetem o comportamento da pessoa.
Nesses casos, o STF tem concedido habeas corpus para liberação do paciente com deficiência mental, entendendo que somente motivos comprovados de alta periculosidade justificam a internação coativa (LÔBO, 2009). Ainda na linha do reconhecimento de maior autonomia no âmbito da reprodução assistida, a doutrina jurídica vem discutindo sobre a manutenção ou não do sigilo do doador de material genético, a produção e o uso de embriões4 em principalmente duas questões. A primeira é referente ao acesso ao uso de tecnologias. Somente casais heterossexuais com problemas de infertilidade ou também pessoas solteiras, a chamada "produção independente", podem demandar a reprodução assistida? Ou casais do mesmo sexo e com relacionamentos homoafetivos também podem ser contemplados? A segunda diz respeito ao direito ao conhecimento da origem genética do ser gerado a partir da reprodução assistida, o vínculo parental e questões sucessórias, já que o contraponto desse debate passa pelo melhor interesse da criança que nasce a partir da técnica (MOÁS, 2006). Mas, como pensar o princípio da autonomia relacionada à decisão reprodutiva entre casais, considerando a ênfase das políticas de prevenção ao HIV/Aids, no campo da saúde coletiva, quanto ao uso do preservativo masculino? Um dado relevante nesse debate é a noção de responsabilidade compartilhada da prevenção, em razão de suas variadas implicações, como, por exemplo, a questão jurídica da responsabilidade pela transmissão do HIV/Aids.
Em nossos tribunais, as decisões judiciais5 no contexto do HIV/Aids giram em torno acentuadamente de duas temáticas: a primeira, sobre responsabilidade civil, ou seja, a obrigação de indenizar, normalmente relacionada a erro laboratorial de diagnóstico ou preconceito nas relações de trabalho; a segunda tem a ver com acesso aos medicamentos ou tratamento gratuito. De acordo com Beloqui (2009), as sentenças fora do Brasil se realizam em razão da transmissão do vírus entre os parceiros. Segundo o autor, pessoas têm sido condenadas por comportamento considerado negligente, até mesmo em situações em que desconhecem serem portadoras de HIV/Aids. Ele problematiza duas sentenças judiciais condenatórias por essa razão. Em um caso, uma mulher foi condenada por transmissão intencional de doença grave; em outro, um motorista que havia feito sexo sem preservativo com sua amante foi condenado na primeira instância por tentativa de homicídio. Vale considerar que, em caso de arrependimento da denúncia, a intervenção pública (que envolve aspectos da vida privada) torna-se problemática, uma vez que esse crime é de ação penal pública, não dependendo da vontade da "vítima" a continuidade do processo. Especula-se sobre a necessidade de um tipo de consentimento informado entre os parceiros quando acordam pelo não uso do preservativo e um deles é soropositivo, questão diretamente relacionada com a autonomia em relação às suas escolhas sexuais e/ou reprodutivas, questão já abordada anteriormente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As reflexões apresentadas apontam os aspectos presentes nos discursos sobre direitos à reprodução de acordo com os atores inseridos no campo do Direito, a partir de diferentes posicionamentos resultantes dessa inserção, o que inclui o biodireito como um novo campo do saber. Encontra-se destacado nos discursos dos docentes, por um lado, uma compreensão restrita acerca do conceito de autonomia no trato das questões reprodutivas na qual prevalece o argumento do melhor interesse da criança, sobretudo nos casos envolvendo o recurso às tecnologias reprodutivas. Por outro lado, e sobrepondo-se a esse aspecto, observa-se o destaque nas narrativas da presença, para o conjunto da sociedade, de traços moralizantes quanto ao acesso às tecnologias reprodutivas e ao desejo de ter filhos pelos indivíduos que vivem com o HIV/Aids.
Podemos concluir que a dificuldade da discussão sobre os direitos reprodutivos tem sido marcada por questões muito sensíveis e, não obstante garantido constitucionalmente, o conceito de autonomia reprodutiva não tem sido suficientemente compreendido, como bem o retratam os entrevistados na pesquisa. Além disso, o mesmo já vem demandando revisão em razão da utilização das novas tecnologias reprodutivas. Parece sintomático o fato de a indicação sobre a importância de maior debate e reconhecimento da autonomia reprodutiva aparecer somente nas falas dos entrevistados que têm aproximação com a temática, sobretudo aqueles dedicados ao biodireito, correspondendo a um número minoritário em relação ao conjunto de entrevistados. Tal posição no debate não favorece os argumentos sobre a escassez de recursos públicos e o melhor interesse da criança que contam com forte apelo junto ao senso comum, pois, na medida em que o Estado não consegue, na área da saúde, proporcionar o necessário atendimento integral e universal preconizado pelo Sistema Único de Saúde, é fácil sustentar que escolhas, mesmo sem critérios previamente estabelecidos, precisam ser feitas.
Barcellos (2009) aponta alguns critérios sugeridos para a seleção de casais soropositivos que procuram por reprodução assistida: alto grau de motivação em relação à concepção; HIV controlado e CD4 (células fundamentais do sistema imunológico) estável; carga viral indetectável no sangue e no esperma; boa adesão à terapêutica antirretroviral. Existe a possibilidade de diminuição da transmissão vertical com o uso da reprodução assistida, permitido pela lavagem de esperma, um processo anterior de manipulação das células em homens que excluem quase que totalmente a possibilidade de transmissão do HIV pelo esperma. A outra face dessa moeda parece ser o alto custo do procedimento e, em consequência, a discussão sobre a possibilidade ou não de sua disponibilização na rede pública através do SUS.
Uma mudança de perspectiva relacionada à prevenção pode ser observada, contribuindo para este debate, quando se considera que, no início da epidemia, as políticas públicas trabalhavam com a noção de grupos de risco (homossexuais, usuários de drogas injetáveis etc.) enquanto no momento atual seu foco está não somente na evitação de novas infecções, mas também nos direitos dos portadores de HIV/Aids, para além do direito social à saúde. Ou seja, conjuga-se prevenção com assistência. Percebem-se, portanto, dois momentos distintos: o início dos anos 1980, em que a principal questão consistia em atenuar a letalidade da doença, a diminuição do número de óbitos e o controle da epidemia; e o momento em curso, em que a maior longevidade e melhoria na qualidade de vida das pessoas soropositivas acarretaram a necessidade da garantia de outros importantes direitos, entre os quais a garantia dos direitos reprodutivos e acesso aos recursos conceptivos com vistas à reprodução.
No Brasil, no que diz respeito ao aspecto normativo, a Constituição Federal de 1988 contemplou o debate a respeito da noção de responsabilidade, pois, no artigo 226, parágrafo 7º, estabeleceu que o planejamento familiar é da livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições públicas ou privadas.6 E, no artigo 227, parágrafo 6º, estabeleceu que "é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".
O vínculo entre pais e filhos diz respeito mais precisamente ao estado familiar, compreendido como a qualidade ou a posição que estes ocupam na entidade familiar e da qual decorrem direitos e obrigações. O estado de filiação tem natureza de direito de família e diz respeito à relação afetiva entre pai e filho construída durante os anos em que ocorre a socialização da criança. É compreendido como um valor moral. Nesse sentido, o desejo de filhos biológicos pelos casais soropositivos é legítimo, mas esbarra no discurso jurídico sobre o princípio do melhor interesse da criança. A adoção é a alternativa normalmente apontada não somente no senso comum, mas na área acadêmica para a formação de família com prole, envolvendo pessoas que se "desviaram do padrão naturalizado" de casal: heterossexual, casado ou unido, em idade fértil, mas com problemas de infertilidade. Os casais soropositivos, homossexuais, pessoas solteiras deveriam apenas adotar e assim ainda estariam contribuindo para o problema social da infância desvalida, já que é significativo o número de crianças abrigadas. Tal postura em relação a esse padrão considerado desviante parece sugerir com relação ao desejo de filhos espécie de capricho pessoal, escolha egoísta à realização da maternidade/paternidade de base biológica, se há algum risco eventual para a prole.
Qualquer projeto parental decorre de escolha afetiva, daí a consequente necessidade de igualdade de direitos e obrigações em relação a todas as formas de filiação, proibindo-se a distinção de qualquer natureza, sob a pena de restar caracterizado flagrante preconceito. A doutrina do melhor interesse da criança relativiza o direito ao planejamento familiar, mas reflete a opção legislativa de colocar as crianças e os adolescentes no centro de tutela do ordenamento jurídico já que a ênfase está nos deveres parentais, não mais circunscritos ao aspecto material do sustento, mas também e principalmente ao âmbito existencial. Os interesses das crianças e dos adolescentes considerados pessoas em desenvolvimento são considerados prioritários, superiores. É flagrante a condição de vulnerabilidade, daí a necessidade de uma legislação especial: o Estatuto da Criança e do Adolescente, que, obedecendo à Constituição Federal, adota o princípio da proteção integral.
A partir do ECA,7 o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente passa a ser uma espécie de bússola, sinalizando o caminho que deve ser tomado em cada caso específico em que interesses de crianças ou adolescentes estejam envolvidos. No entanto, trata-se de uma noção vaga, pois o interesse é multiforme: moral, familiar, futuro, incapaz de fornecer em termos teóricos um critério objetivo e seguro de definição. Sua destacada relevância está diretamente relacionada a uma tomada de decisão política quanto aos direitos das crianças e adolescentes, em nosso país, a partir da Constituição de 1988, que teve início no movimento de mobilização da década de 1980, ligado ao intenso debate acerca da proteção infanto-juvenil, notadamente a necessidade de substituição de doutrinas anteriores (a do Direito Penal do Menor e a do Menor em situação irregular, com a afirmação da proteção integral). A ideia era substituir o subjetivismo pelo "garantismo", considerando a cidadania infanto-juvenil como interesse prioritário. Trata-se, sem dúvida, do primado dos direitos e do reconhecimento da criança e do adolescente como titulares de obrigações que devem ser prestadas pelo Estado, pela sociedade e pelas famílias. Não obstante, é possível afirmar que não há uma orientação uniforme, em abstrato ou a priori, do conjunto de fatores determinantes do que venha a ser o melhor interesse.
Quando o plano teórico cede espaço ao da casuística e, em particular, quando se consideram as novas tecnologias reprodutivas e o acesso aos casais soropositivos, novas indagações aparecem. Porém, obstar tal realização com fundamento nos direitos das crianças que podem nascer pode ser um equívoco, pois nenhum projeto parental, envolvendo ou não as tecnologias reprodutivas, ou até mesmo a adoção, podem, em princípio, garantir o pleno desenvolvimento físico e moral da criança. O princípio da dignidade da pessoa humana, na condição de valor nuclear da ordem constitucional, tende a pontuar o debate apresentando-se como balizador na ponderação de interesses em conflito.
Por fim, indicamos a escassez da literatura conjugando as temáticas reprodução assistida e HIV/Aids no campo das ciências sociais no Brasil e na saúde coletiva, embora se apresente como uma forte tendência à expansão na área biomédica (VARGAS et al., 2010). É nesta direção, e considerando a impossibilidade de recobrir todo o espectro de questões vinculado ao debate sobre o tema, que este artigo pretendeu contribuir.
Recebido em: ABRIL 2011
Aprovado para publicação em: SETEMBRO 2013
Versão preliminar deste trabalho foi apresentada na 27ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de agosto de 2010, em Belém do Pará.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Mar 2014 -
Data do Fascículo
Dez 2013
Histórico
-
Recebido
Abr 2011 -
Aceito
Set 2013