Resumos
O artigo analisa padrões de segregação entre e intraescolas, trazendo dados para toda a rede municipal de educação do Rio de Janeiro, de 2004 a 2010. O desenho do estudo possibilita medir o efeito líquido produzido pela distribuição dos alunos entre os turnos da manhã e da tarde na segregação escolar. Para isso foi utilizado um indicador denominado Índice de Segregação, que considera quatro características dos estudantes: condição de pobreza, cor/raça, educação parental e distorção idade-série. Os resultados indicam que os turnos escolares produzem efeito de incremento no nível geral de segregação escolar e que os estudantes são selecionados para diferentes turnos, principalmente em função de seu percurso escolar pregresso, o que reforça a impressão da existência de uma espécie de tracking informal, na rede escolar estudada.
Segregação escolar; turnos escolares; política educacional
El artículo analiza estándares de segregación entre e intra escuelas y aporta datos para toda la red municipal de educación de Rio de Janeiro, desde 2004 hasta 2010. El diseño del estudio posibilita medir el efecto neto producido por la distribución de los alumnos entre los turnos de la mañana y de la tarde en la segregación escolar. Para ello se utilizó un indicador denominado Índice de Segregación, que considera cuatro características de los estudiantes: condición de pobreza, color/ raza, educación parental y distorsión edad-año escolar. Los resultados indican que los turnos escolares producen un efecto de incremento en el nivel general de segregación escolar y que los estudiantes son seleccionados para distintos turnos principalmente en función de su recorrido escolar anterior, lo que refuerza la impresión de que hay una suerte detrackinginformal en la red escolar estudiada.
Segregación escolar; turnos escolares; política educativa
The paper analyzes patterns of intra- and interschool segregation for the entire Rio de Janeiro, municipal school system from 2004 to 2010. The research design captures the "net effect" of "schooling in shifts/sessions, a mandatory distribution of pupils across morning and afternoon "shifts" or "sessions". Segregation was assessed utilizing the Segregation Index considering four different pupil characteristics: poverty, color/race, parents' education and age/grade distortion. The results indicate that "school shifts" increase the overall level of segregation and that the pupils are being consistently selected based on prior educational attainment, reinforcing the existence of "informal tracking" in Rio de Janeiro public schools.
School segregation; school shifts; educational policy
OUTROS TEMAS
Turnos e segregação escolar: discutindo as desigualdades intraescolares
Turnos y segregación escolar: las desigualdades intraescolares en discussio
Tiago Lisboa BartholoI; Marcio da CostaII
IProfessor do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, tiagobartholo@gmail.com
IIProfessor associado da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ e coordenador do Observatório Educação e Cidade, marcioc@pobox.com
RESUMO
O artigo analisa padrões de segregação entre e intraescolas, trazendo dados para toda a rede municipal de educação do Rio de Janeiro, de 2004 a 2010. O desenho do estudo possibilita medir o efeito líquido produzido pela distribuição dos alunos entre os turnos da manhã e da tarde na segregação escolar. Para isso foi utilizado um indicador denominado Índice de Segregação, que considera quatro características dos estudantes: condição de pobreza, cor/raça, educação parental e distorção idade-série. Os resultados indicam que os turnos escolares produzem efeito de incremento no nível geral de segregação escolar e que os estudantes são selecionados para diferentes turnos, principalmente em função de seu percurso escolar pregresso, o que reforça a impressão da existência de uma espécie de tracking informal, na rede escolar estudada.
Segregação escolar, turnos escolares, política educacional
RESUMEN
El artículo analiza estándares de segregación entre e intra escuelas y aporta datos para toda la red municipal de educación de Rio de Janeiro, desde 2004 hasta 2010. El diseño del estudio posibilita medir el efecto neto producido por la distribución de los alumnos entre los turnos de la mañana y de la tarde en la segregación escolar. Para ello se utilizó un indicador denominado Índice de Segregación, que considera cuatro características de los estudiantes: condición de pobreza, color/ raza, educación parental y distorsión edad-año escolar. Los resultados indican que los turnos escolares producen un efecto de incremento en el nivel general de segregación escolar y que los estudiantes son seleccionados para distintos turnos principalmente en función de su recorrido escolar anterior, lo que refuerza la impresión de que hay una suerte detrackinginformal en la red escolar estudiada.
Segregación escolar, turnos escolares, política educativa
ESTE ARTIGO ANALISA O IMPACTO DA ALOCAÇÃO DE ALUNOS NOS DIFERENTES TURNOS escolares sobre os níveis de segregação na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro. A política em questão ocorre na maioria das cidades brasileiras e em outros países em desenvolvimento. O desenho do estudo possibilita medir o efeito líquido dessa política e estabelecer uma comparação entre os níveis de segregação existentes e um cenário hipotético onde tais políticas estivessem ausentes. Os testes podem conduzir a dois resultados: 1) ausência de impacto e; 2) aumento no nível de segregação. Dada a inexistência de uma legislação específica que regule a alocação de estudantes entre os turnos, o modelo hipotético supõe alocação aleatória. É isso o que ocorre?
O conceito de segregação aqui adotado refere-se à distribuição desigual de estudantes que compartilham uma característica específica em um conjunto de escolas. A mensuração foi feita com base no Índice de Segregação (Segregation Index) GS. Foram adotados quatro diferentes indicadores de desvantagem potencial de estudantes e, a partir deles, calculados seus respectivos índices de segregação: pobreza, educação dos pais, cor1 e distorção idade/série (atraso escolar). O conceito de segregação não deve ser tomado como sinônimo de discriminação ou injustiça. Pode-se afirmar, com base nesse cálculo, que a segregação é quase inevitável. Entretanto, deve-se destacar também a importância de reconhecer a ocorrência do fenômeno, a fim de distinguir entre o que seria uma segregação "razoável" ou esperada e o que pode ser caracterizado como desigualdade e políticas e práticas que a favorecem.
Evidências de diferentes países sugerem que a segregação escolar é um fenômeno universal, decorrente de fatores como segregação residencial, políticas educacionais e escolha parental. Esses fatores, por sua vez, estão reconhecidamente relacionados ao isolamento social, econômico e cultural (HARRIS, 2011). Este artigo focaliza apenas um fator de segregação, uma prática ou política educacional específica. Assim, boa parte da variação nos níveis de segregação não será explicada nos nossos modelos. Questões como o impacto da segregação residencial, da escolha parental e de outros elementos da política educacional devem ser consideradas em trabalhos futuros para que se possa conhecer melhor as causas da segregação em redes escolares públicas no Brasil.
No debate internacional sobre segregação escolar duas questões cruciais se destacam. A primeira se refere ao impacto do agrupamento de estudantes com características semelhantes. Haveria potencialmente mais benefícios ou efeitos nocivos no ato intencional de agrupar estudantes que compartilham determinadas características? As evidências coletadas em diferentes sistemas educacionais indicam efeitos distintos para a segregação. De um lado, é razoável supor que agrupar estudantes com características/necessidades específicas pode ser eficaz quando se pretende aplicar políticas direcionadas a ajudar tais grupos. De outro lado, há fortes indícios de que agrupar alunos com características específicas pode impactar a forma como eles são tratados nas escolas, assim como a qualidade do ensino, os níveis gerais de desempenho e as probabilidades de acesso ao ensino superior; observa-se ainda uma associação cada vez mais direta entre desempenho acadêmico e nível socioeconômico (HAAHR et al., 2005; EGGRES, 2005; BRITO; COSTA, 2010; ROSENTHAL; JACOBSON, 1968).
A segunda questão diz respeito ao papel das políticas educacionais nos níveis de segregação. Será que as políticas educacionais têm impacto no nível geral de segregação? É razoável presumir que políticas que deliberadamente separam estudantes baseadas, na cor, por exemplo, perderam legitimidade ao longo do tempo, como o sistema do apartheid na África do Sul, que tende a ser considerado injusto e ilegal nos países democráticos.
Todavia, a decisão de agrupar intencionalmente estudantes com características similares também pode ser vista como justa e desejável, quando dirigida a tornar sistemas educacionais menos estratificados, ao menos em termos de desempenho dos estudantes.
Procedimentos diferenciadores podem ser aplicados com a intenção de reduzir desigualdades sociais. A nova compreensão do que seria justo em termos de oportunidades educacionais cria também uma nova oposição entre sistemas educacionais mais unitários ou mais segmentados, com diferentes tipos de escolas, currículos e incentivos. De qualquer forma, novas políticas que objetivam enfrentar desigualdades sociais pré-existentes podem inadvertidamente ampliar a segregação. Esse efeito adverso deveria ser considerado seriamente por pesquisadores e gestores, dado que pode interferir nos potenciais benefícios da política.
Há muitos exemplos de políticas que podem, de forma não intencional, impactar os níveis de segregação. As escolas charter, nos Estados Unidos, são exemplo de uma tentativa de tornar o sistema educacional mais diverso e atraente. Outro exemplo é o sistema de tracking na Alemanha ou Hungria. Há fortes evidências de que a seleção de estudantes em sistemas formais de tracking está altamente correlacionada com seu nível socioeconômico. A iniciativa de direcionar estudantes a um caminho pode, ao menos em alguns casos, resultar não muito diferente de selecioná-los por nível socioeconômico. Um terceiro e derradeiro exemplo é a política de escolha escolar que, dentre outros objetivos, busca incrementar a escolha parental. Não há consenso entre pesquisadores sobre os impactos das políticas de incentivo à escolha escolar na segregação escolar (GORARD; TAYLOR; FITZ, 2003).
Essas políticas se propõem a assegurar a qualidade e a equidade dos sistemas educacionais, apesar de haver evidências de que tais objetivos são difíceis de conciliar. Para resolver essa equação, há projetos de pesquisa desenhados de modo a permitir estimar não somente os efeitos intencionais, mas também os não intencionais de tais políticas, e que podem ser de grande utilidade para os gestores.
Este artigo se divide em seis seções, incluída esta introdução. A próxima seção contextualiza o sistema educacional municipal do Rio de Janeiro, trazendo dados sobre a política de alocação de alunos nos turnos escolares. Na sequência, descreve-se o desenho do estudo, apresenta-se o Índice de Segregação e as principais variáveis utilizadas para descrever os alunos em desvantagem potencial. A quarta seção descreve os padrões de segregação escolar na rede municipal. A quinta traz os resultados do impacto da alocação de alunos nos turnos escolares sobre a segregação. A sexta e última parte retoma e discute os resultados, tratando de seus possíveis usos futuros para políticas educacionais.
A CIDADE DO RIO DE JANEIRO E SEU SISTEMA EDUCACIONAL
A cidade do Rio de Janeiro tem o maior sistema educacional municipal público do Brasil, no ensino fundamental. São cerca de 1.300 escolas, oferecendo educação pré-escolar e ensino fundamental, com mais de 600 mil alunos neste último nível. Este artigo se dedica apenas ao período da educação obrigatória, ensino fundamental, analisando sua população total nas cerca de 900 escolas municipais que atendem a esse nível.
No Brasil, cerca de 18% dos estudantes do ensino fundamental frequentam escolas privadas. No Rio de Janeiro, esse número é maior, atingindo 25%. Infelizmente, no momento da redação deste trabalho, não nos seria possível incluir dados sobre a rede privada, de forma a proporcionar um tratamento mais completo, que considerasse toda a população nas escolas fundamentais.2 Dado que as escolas privadas são frequentadas majoritariamente pela classe média e pela elite econômica, é razoável supor que os níveis de segregação aqui apresentados estão subestimados. Os dados utilizados referem-se a uma parte mais homogênea da população, sendo mais provável que parte da variação que influenciaria o índice de segregação tenha sido deixada de fora.
Estudos anteriores na cidade destacam um padrão singular de segregação residencial que combina proximidade espacial com distância social. A sociologia urbana vem demonstrando há muito tempo que o isolamento de certos grupos (por exemplo, famílias pobres) em partes remotas da cidade reduz as oportunidades de interação e pode exercer impacto negativo sobre indivíduos das vizinhanças mais desfavorecidas, em acréscimo à desvantagem já associada à condição de pobreza (WILSON, 1987). Esse padrão de segregação residencial, denominado centro-periferia, é comum em muitas cidades norte-americanas e europeias.
Contudo, Ribeiro e Koslinski (2009) demonstraram que o modelo centro-periferia não pode ser aplicado plenamente no Rio de Janeiro e, presumivelmente, a outras grandes cidades de países em desenvolvimento. Em muitas situações, tais cidades apresentam um padrão mais complexo de segregação residencial, com algumas aglomerações de comunidades pobres (bolsões de pobreza) espalhadas por toda a cidade, inclusive em áreas mais abastadas.
Alves, Lange e Bonamino (2010) publicaram um mapa da cidade do Rio de Janeiro com o Índice de Desenvolvimento Social IDS para todas as regiões da cidade. É possível identificar dois processos concomitantes de segregação. O primeiro, semelhante ao de muitas cidades europeias, mostra a área mais afluente, próxima à costa, em contraste com a área menos desenvolvida. Entretanto, os mesmos ma-pas sugerem que áreas que apresentam alto padrão de IDS podem estar próximas de vizinhanças empobrecidas. É o fenômeno das favelas que caracteriza esse padrão urbano. Cerca de 25% da população que mora nas áreas de maior valorização imobiliária reside, de fato, em favelas. É possível observar pessoas de classes alta, média e baixa vivendo muito próximas, mas com pequena interação social (RIBEIRO et al., 2010).
É razoável supor que esse tipo de segregação residencial teria um impacto redutor na segregação escolar. Estudos anteriores, contudo, mostram o contrário (RIBEIRO; KOSLINSKI, 2009; BRUEL; BARTHOLO, 2012; COSTA; KOSLINSKI, 2011; COSTA, 2008). Podem-se apontar ao menos dois níveis de estratificação escolar: 1) segmentação regional, conforme os padrões de desigualdade socioeconômica; 2) segmentação interna em cada região da cidade. A distribuição de estudantes entre as escolas públicas municipais parece obedecer a um padrão complexo, que ultrapassa e conjuga aspectos socioeconômicos, segregação residencial e desempenho acadêmico. Ressalte-se, contudo, que nossas pesquisas anteriores trabalharam com um número limitado de escolas, implicando possíveis vieses de seleção (BRUEL; BARTHOLO, 2012; COSTA; KOSLINSKI, 2011; COSTA, 2008). Esta, talvez, seja a primeira tentativa de medir a segregação escolar em uma grande cidade brasileira usando dados para todas as escolas públicas.
O papel do território é algo a ser investigado em estudos futuros. Por ora, nosso foco está na análise do impacto de uma política educacional nos níveis de segregação. Alguns defendem que essa é a questão mais relevante para o campo da educação (HARRIS, 2011). Em termos gerais, o sistema educacional municipal, não somente no Rio de Janeiro como também em outras cidades, pode ser descrito como um sistema abrangente, universalista (comprehensive). Não há grandes diferenças entre as escolas e, ao menos em teoria, todas deveriam oferecer o mesmo currículo.
Mais recentemente, tem havido algumas iniciativas de criar diferentes "tipos de escolas" no Rio de Janeiro, especialmente em áreas mais vulneráveis. Um exemplo é a política denominada Escolas do Amanhã, iniciada em 2009, envolvendo 150 escolas localizadas em áreas pobres ou caracterizadas como escolas com severos problemas de baixo desempenho acadêmico. Essa política, que pretende promover a melhoria do desempenho nessas escolas, provê recursos adicionais para que elas possam estender seus horários de funcionamento diário e oferecer um leque diversificado de atividades aos alunos. Há, ainda, um incentivo econômico aos professores que aceitam trabalhar nessas escolas. O foco principal é recrutar profissionais mais experientes e motivados para esse trabalho. O currículo, no entanto, mesmo nas Escolas do Amanhã, não varia muito em relação às demais escolas municipais.
A legislação carioca acerca da matrícula escolar vem sendo analisada e combina duas abordagens distintas. De um lado, os pais dispõem de liberdade de escolha. Não há restrições formais para a matrícula relacionada com a moradia dos alunos, mesmo porque o transporte público gratuito para estudantes das escolas públicas permite maior mobilidade para acessar escolas em bairros distantes. Entretanto, as escolas têm controle sobre a escolha de seu alunado, especialmente quando ocorre sobredemanda (BRUEL; BARTHOLO, 2012; BARTHOLO, 2013). Dado que as escolas desfrutam de diferentes reputações, é mais provável que a sobredemanda ocorra principalmente em dois cenários: a) regiões de maior densidade populacional e baixa oferta escolar, e b) escolas que possuem elevada reputação que se traduz em melhor desempenho. Se essas suposições estiverem corretas, os níveis de segregação podem sofrer alguma influência da legislação corrente.
A movimentação não regulada de estudantes entre as escolas é outra questão observada em diferentes sistemas educacionais. Saporito (2003), analisando o impacto das Magnet Schools, da Philadelphia, mostrou que as transferências não são aleatórias e podem aumentar os níveis de segregação. Bruel e Bartholo (2012) observaram algo similar, ao analisar escolas públicas no Rio de Janeiro. A falta de transparência e a existência de brechas na legislação atual que regula as transferências de alunos permitem a adoção de diferentes procedimentos por parte das direções e administrações escolares, tais como entrevistas informais, seleção baseada em desempenho anterior (boletins escolares) ou outros critérios.
Evidências recentes mostram que as famílias dos estudantes fazem uso de suas relações pessoais com membros da administração escolar para ter acesso às escolas de maior prestígio (COSTA; KOSLINSKI, 2012). No Brasil, práticas patrimonialistas por parte de servidores públicos reforçam a percepção de que nem todos os indivíduos são iguais (COSTA; PRADO; ROSISTOLATO, 2013). Talvez todas essas questões estejam relacionadas ao fato de que a gestão escolar participa ativamente em todo o procedimento de matrícula e transferência de alunos. É a isso que parte da literatura internacional sobre estratificação escolar se refere quando menciona os diretores como "guardiões" (gatekeepers) da escola.
Mais de 90% das escolas públicas municipais no Rio de Janeiro têm dois ou mais turnos escolares. A "política de turnos" foi e ainda é uma solução para o número crescente de estudantes matriculados no ensino fundamental no Brasil, nas últimas décadas, diante da insuficiência de escolas. Durante o século XX, em apenas quarenta anos, o processo de urbanização rapidamente inverteu a proporção da população vivendo em áreas urbanas e rurais. Há dados da década de 1970 que mostram a existência de escolas com quatro turnos de aula. Hoje, a situação mais comum é uma escola com dois turnos diurnos, manhã e tarde, mas ainda é possível observar, ainda que raramente, escolas com um terceiro turno diurno. Muitas ainda têm um turno noturno, para adultos. Sem dúvida, há um esforço para aumentar o número de horas diárias que os alunos passam nas escolas, o que necessariamente demanda apenas um turno diurno por escola.
Tudo, com exceção do prédio e da direção, pode mudar de um turno a outro: professores, administração e até materiais de trabalho. Em alguns casos, o turno representa uma mudança no nível escolar atendido (primeiro ou segundo segmento), enquanto, em outros, o nível atendido pode ser o mesmo. Talvez a informação mais relevante para os propósitos desta pesquisa seja o critério de alocação de estudantes pelos turnos. Dado que não há regulação específica, a burocracia educacional tem autonomia para organizar a alocação dos alunos. Pode-se dizer que a equipe de direção escolar tem controle total ou parcial sobre três momentos da admissão de alunos: a matrícula inicial na rede pública; as transferências de alunos entre escolas; e a alocação de alunos nos turnos e turmas. Na realidade, o que caracteriza a política de turnos é a ausência de qualquer regulação quanto à alocação de alunos exceto para o turno noturno, para o qual há barreiras etárias.
É importante fazer uma distinção entre o que denominamos "política de turnos" e o que seria uma definição mais rigorosa de "política educacional", que apresenta um conjunto de leis e regulamentos voltados a questões de interesse público. Os dois turnos diurnos são de tal forma naturalizados que parecem prescindir de qualquer regulação e controle externo quanto à alocação de alunos.
Este estudo busca responder a uma questão principal: a distribuição de alunos pelos turnos escolares tem algum impacto nos níveis de segregação? Dito de outra maneira: há uma distribuição aleatória dos alunos? Estudos anteriores analisaram essa questão em um número limitado de escolas, potencialmente com viés de seleção amostral e com desenho de pesquisa mais pobre. A falta de boas evidências tem limitado o debate sobre a questão.
MÉTODOS
O artigo apresenta dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro SME-RJ para todas as escolas, de 2004 a 2010. O Índice de Segregação foi adotado considerando todos os indicadores de desvantagem potencial disponíveis, amplamente reconhecidos no Brasil e em outros países, por se correlacionarem com o desempenho dos alunos.
O GS indica a proporção exata dos alunos em desvantagem que deveriam trocar de escola (ou turnos), de forma a que não houvesse qualquer segregação quanto à característica específica expressa no indicador. A fórmula abaixo descreve o GS:
GS = 0.5 * {Σ |Fi / F Ti / T|},
onde "Fi" é o número de alunos em desvantagem potencial na escola "i", e "i" varia de 1 até o número total de escolas na rede; "F" é o número total de alunos em desvantagem potencial nas escolas públicas do Rio de Janeiro; "Ti" é o número de alunos na escola "i", e "i" varia de 1 até o total de escolas na rede; "T" é o total de alunos nas escolas públicas do Rio de Janeiro (GORARD; TAYLOR; FITZ, 2003).
O índice apresenta um valor simples para um conjunto de escolas, indicando o quão desigual é a distribuição de estudantes com uma característica compartilhada. Dada a existência de diversos índices no "mercado", é importante avaliar a adequação, em termos de vantagens e desvantagens, de cada indicador, antes da escolha de um deles. Gorard (2009), tratando de um índice específico de pobreza, destaca quatro propriedades desejáveis a serem apresentadas pelos indicadores, independentemente do campo de pesquisa no qual são usados:
1) invariante organizacional, de tal forma que se uma escola é dividida em duas, ou se duas escolas se fundem, com a mesma proporção de FSM3 em todas, então o valor do índice permanece o mesmo; 2) variante por tamanho ou escala, de forma que se o número de estudantes FSM e não-FSM é multiplicado por uma constante em todas as escolas, o valor do índice permanece inalterado; 3) invariante composicional, de forma que se o número de alunos FSM é multiplicado por uma constante em todas as escolas, o valor do índice permanece o mesmo e; 4) afetado por transferências, de maneira que se um aluno FSM troca de uma escola com mais alunos FSM para outra com menos, o valor do índice diminui. (GORARD, 2009, p. 644)
A invariância organizacional é uma propriedade chave para o desenho apresentado neste estudo. Para medir o impacto da alocação dos alunos entre os turnos escolares, o índice de segregação adotado deve ser invariante na sua organização. Um exemplo simples, usando dados simulados, pode ajudar a clarear o que foi dito. Imagine-se um sistema escolar com apenas duas escolas e 200 alunos, divididos em números iguais entre elas. Se a escola "A" possui 30 alunos considerados pobres e a escola "B" apenas 10, o índice deve ser capaz de flagrar um grau de segregação. Nesse caso, o GS apresentaria 25% de nível de segregação. Assumindo-se que ambas as escolas têm dois turnos, cada turno com 50 alunos, se os alunos em desvantagem potencial fossem igualmente distribuídos entre os turnos, o nível de segregação calculado pelo GS, considerando-se cada turno escolar como uma unidade autônoma, não mudará. A simulação na Tabela 1 pode demonstrar isso.
O índice captura corretamente que, se uma escola for dividida em duas, mantendo-se a mesma proporção de alunos em desvantagem em ambas, a segregação permanece a mesma. Contudo, se a alocação de estudantes entre turnos concentra os do grupo em desvantagem em um turno específico, então o GS aumenta.
A simulação na Tabela 1 mostra ainda uma distribuição não aleatória de estudantes em desvantagem através dos turnos. Os turnos A1 e B1 apresentam mais estudantes pobres do que seria esperado em uma distribuição equilibrada A1 com 25 e B1 com 9. Nesse caso, o GS sobe para 38%. Esse é um exemplo de como as escolas podem se tornar mais segregadas após a alocação dos estudantes pelos turnos.
Quatro características de desvantagem foram escolhidas, baseadas em estudos internacionais relativos ao tema da segregação escolar. A escolaridade dos pais é um dos melhores preditores da trajetória escolar das crianças ao longo do tempo. Mesmo em países com altas taxas de mobilidade social, características parentais, como ocupação e escolaridade, são os melhores preditores do sucesso escolar dos filhos (GORARD; SEE, 2013).
Na base de dados utilizada, a educação dos pais é uma variável ordinal, com cinco possíveis posições ascendentes: 1) não escolarizado; 2) não completou o ensino fundamental; 3) concluiu o ensino fundamental; 4) concluiu o ensino médio e; 5) ingressou no ensino superior. De modo a construir os índices de segregação, a variável foi reduzida, gerando dois grupos em potencial desvantagem: 1) pais que não concluíram o ensino fundamental EducEF e; 2) pais que não concluíram o ensino médio EducEM.
O "gradiente de pobreza" é talvez o mais importante tema no campo da educação e justiça social. Superar desvantagens na educação é, entre outras coisas, reduzir a distância entre estudantes em condições de pobreza e o restante da população. Se um governo tiver de escolher apenas um indicador para mapear a segregação escolar, pobreza seria, provavelmente, o escolhido.
Desde 1990, o Governo Federal do Brasil, junto com administrações estaduais e municipais, tem implementado programas sociais que tentam reduzir a pobreza. Os programas de transferência de renda, utilizando um cadastro nacional (Número de Inscrição Social NIS),4 têm tornado possível identificar as famílias que são elegíveis a receber tal benefício.
Essa é uma variável simples, binária, que permite saber o número total de alunos em cada escola que provavelmente vivem em situação de pobreza. Adotamos, assim, a existência de um registro do NIS no cadastro dos alunos na SME-RJ como proxy de desvantagem econômica. Esse não é um indicador perfeito de tal condição, principalmente porque antigos registros podem não ter sido atualizados, conforme as pessoas tenham se retirado dos programas de transferência de renda. É provável a existência de um número desconhecido de casos falsos positivos. Contudo, falsos negativos são improváveis, pois o registro do NIS junto à rede de ensino é condição para cadastramento em tais programas.
A terceira variável, cor do aluno, vem sendo usada nas ciências sociais para avaliar desigualdades sociais, não somente relacionadas a oportunidades educacionais, mas também no mercado de trabalho, exposição à violência etc. Essa variável, coletada conforme os valores adotados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE , foi recodificada para duas variáveis potencialmente indicativas de pertencimento a grupos em desvantagem: alunos não brancos e alunos pretos.
A última variável, denominada distorção idade-série, compreende informações de todos os alunos que não seguiram o fluxo escolar regular em termos de idade-série. Para detectar a distorção, duas variáveis foram usadas: a data de nascimento e a série frequentada. O grupo em desvantagem potencial é composto por alunos que: a) foram reprovados em alguma série retenção; b) foram matriculados no primeiro ano do ensino fundamental com sete anos ou mais; c) abandonaram a escola e retornaram após algum tempo. A variável apresenta valores correspondentes a um ou mais anos de distorção (Distorção 1) ou dois ou mais anos de distorção (Distorção 2).
O desenho de pesquisa compara os níveis de segregação, calculados com o GS, tomando cada turno escolar como uma unidade de análise, diferindo da abordagem habitual, que considera a escola inteira como unidade básica (desconsiderando a atribuição de turnos, dado que eles inexistem em muitos contextos. Quaisquer diferenças observadas a cada ano devem ser atribuídas ao "efeito turno". A análise apresenta três diferentes abordagens, de forma a tornar os resultados mais confiáveis: 1) todos os alunos matriculados na educação fundamental; 2) alunos matriculados no primeiro segmento do ensino fundamental; e 3) alunos matriculados no segundo segmento do ensino fundamental.
Esse desenho foi pensado para proporcionar duas informações importantes. A primeira é o efeito líquido de uma política educacional específica. Se alguma diferença for notada entre os níveis do GS referentes às escolas como um todo e os mesmos indicadores calculados considerando os turnos escolares como unidades autônomas, será possível afirmar que o aumento se deve exclusivamente à política de turnos. Todos os demais elementos que possam influenciar a segregação escolar, como a segregação residencial ou a escolha dos pais, estão controlados por esse desenho.
O segundo ponto importante é descartar qualquer explicação alternativa plausível, caso se encontre algum efeito associado à alocação nos turnos. O desenho busca responder a essa ameaça de duas formas. A primeira é replicando as estatísticas por sete anos (2004 a 2010). Se o resultado for constante, apresentando um padrão estável, é improvável que possa ser atribuído a alguma flutuação dos dados (erro) em algum ano. A segunda é calculando o "efeito turno" separadamente para estudantes no primeiro e no segundo segmento de ensino fundamental. O desenho previne que esse efeito seja confundido com um "efeito segmento".
Isso poderia acontecer por duas razões: a) algumas escolas oferecem todas as séries do ensino fundamental e organizam seus turnos de acordo com as séries (por exemplo, os mais jovens separados dos mais novos por turno); b) a proporção de alunos em desvantagem potencial nos dois segmentos é diferente (principalmente devido à evasão e à retenção ao final de cada ano escolar).
PADRÕES DE SEGREGAÇÃO AO LONGO DO TEMPO
Os níveis de segregação escolar para os alunos da rede municipal, de 2004 a 2010, são descritos na Tabela 2. Inicialmente, há dois pontos a destacar. O primeiro é o fato de os níveis no GS serem bem diferentes para os diversos indicadores. Não se trata de uma surpresa e é possível observar três indicadores com valores mais elevados: GS Distorção 2, GS EducEF (pais que não concluíram o ensino fundamental) e GS NIS (benefício em programa de transferência de renda). A segunda questão de destaque diz respeito aos padrões de segregação ao longo do tempo. Todas as variáveis, com exceção das indicativas de distorção idade-série, declinam no período analisado. Haveria alguma explicação plausível para esse resultado?
O fato de esse declínio ser constante, especialmente considerando cor e educação parental, exige atenção. No período analisado, não há mudanças óbvias nas políticas educacionais, em especial nos procedimentos de matrícula dos alunos, ou alguma outra explicação alternativa que pudesse auxiliar na compreensão do fenômeno. A explicação mais plausível está relacionada aos dados faltantes (missing) no banco de dados, que podem influenciar todos os indicadores, exceto aqueles referentes à distorção, cujos registros são precisos e completos para todos os anos. A Tabela 3 apresenta os dados com as proporções de alunos em desvantagem e de dados faltantes para cada variável.
Os dados ausentes são um desafio em qualquer pesquisa, principalmente porque podem interferir nos resultados e conduzir a interpretações indevidas. Nos desenhos longitudinais o risco é ainda maior, dado que a qualidade dos dados pode variar com o passar dos anos. Resultados da Tabela 3 indicam que: a qualidade dos dados é melhor nos anos mais recentes (2007-2010); os dados faltantes não são distribuídos aleatoriamente, com uma proporção maior de estudantes em desvantagem presentes no grupo missing. Há evidência empírica de que, quando os indicadores de pobreza crescem, os níveis de segregação tendem a diminuir, como uma espécie de efeito de "igualdade na pobreza". O quadro inverso é igualmente verificável (GORARD; TAYLOR; FITZ, 2003).
Seja como for, uma análise detalhada do banco de dados permite uma compreensão mais profunda do problema dos dados faltantes. Separando os dados, não somente por ano, mas também considerando a alocação dos alunos pelo primeiro ou segundo segmento, é possível observar que os dados são melhores não somente para os anos mais recentes, mas também para os alunos mais jovens (do primeiro segmento), como se observa na Tabela 4. Uma explicação razoável pode estar relacionada com o fato de que esses alunos entraram no sistema educacional mais recentemente, quando os protocolos de registro de dados melhoram significativamente.
Se for verdade que os dados faltantes não são aleatoriamente distribuídos e inflacionam artificialmente o GS, então seria de se esperar que os valores do índice, calculados separadamente para cada segmento, apresentassem padrões diferentes. As tabelas 5 e 6 mostram as tendências para todos os indicadores disponíveis de desvantagem potencial para os segmentos.
Os dados corroboram a hipótese inicial que considera a influência dos dados faltantes no GS e reforçam a ideia de que esses não estão distribuídos aleatoriamente. Esse é um achado relevante, que será considerado para futuras interpretações neste artigo. De fato, virtualmente todos os estudos longitudinais que usam dados secundários enfrentam problemas semelhantes, e a questão real não é se há ou não dados faltantes, mas como os pesquisadores tratam o problema e levam essa questão em consideração em suas interpretações (YORKE, 2011).
A questão que aflora é: qual o perfil dos alunos que apresentam dados faltantes? Gorard (2012) realizou análise com alunos que não apresentavam informações sobre a elegibilidade ao programa de refeição escolar gratuita FSM em escolas públicas inglesas. Os achados mostram que o grupomissingapresentava desempenho inferior, mesmo quando comparado com alunos em desvantagem potencial. Eles foram, então, classificados como "em maior desvantagem". Bartholo (2014) replicou o mesmo modelo usando dados da Prova Rio de 2010 e encontrou resultado semelhante: alunos com dados faltantes quanto a indicadores de desvantagem potencial apresentaram resultados mais baixos, compatíveis com os classificados como em desvantagem. A análise sugere a necessidade de melhores sistemas de informação em determinadas circunscrições escolares, bem como um uso prudente dos dados existentes.
HÁ UM EFEITO TURNO? A DISTRIBUIÇÃO DOS ALUNOS PELOS TURNOS É ALEATÓRIA?
Os turnos escolares são uma realidade em mais de 90% das escolas municipais do Rio de Janeiro. Sabe-se que esse fenômeno acontece na maioria das cidades do Brasil e em muitos países em desenvolvimento. A questão principal com os turnos escolares é que eles podem representar duas ou três escolas bem diferentes coabitando no mesmo prédio. Uma tentativa de estimar o "efeito mistura" (compositional effect) (HARKER; TYMMS, 2004) nas escolas deveria considerar cada turno escolar como uma instituição autônoma (BARTHOLO, 2014).
Do ponto de vista metodológico, o desafio é agregar os dados de alunos em diferentes arranjos: 1) cada prédio escolar como uma unidade; 2) cada turno escolar como uma unidade de análise. Esse parece ser o desenho mais apropriado para medir o impacto dos turnos escolares nos níveis gerais de segregação. Desde que não haja uma política específica que oriente a distribuição de alunos entre os turnos, uma distribuição aleatória poderia ser esperada.
A análise será apresentada em três etapas: 1) todos os alunos nas escolas municipais de 1º a 9º ano; 2) alunos matriculados no primeiro segmento; 3) alunos matriculados no segundo segmento. O desenho mede o efeito líquido dos turnos, permitindo descartar explicações alternativas.
A Tabela 7 apresenta os percentuais relativos de incremento do efeito turno, considerando todos os indicadores de desvantagem potencial. Os resultados foram calculados segundo a fórmula abaixo, onde "GSte" é o GS calculado para os turnos como unidade e "GSpe" é o GS para a escola inteira (prédio escolar) como unidade de análise.
{GSteGSpe}/GSpe
Os cálculos do "efeito turno" foram replicados 49 vezes (sete indicadores para sete anos), considerando todos os alunos e séries. Todos os valores na Tabela 7 apresentam um impacto positivo na segregação escolar, com exceção do GS para não brancos, em 2008. Isso pode ser importante, porque revela um padrão do efeito do turno sobre o nível geral de segregação.
Todavia, o impacto não é linear, comparando-se diferentes indicadores. É possível dividi-los em três diferentes grupos, tomando como referência o percentual de incremento no GS: 1) impacto positivo muito baixo educação parental e alunos não brancos; 2) impacto positivo médio pobreza e alunos pretos; e 3) impacto positivo alto Distorção 1 e 2.
Os dados sugerem que o efeito turno, por exemplo, amplia em cerca de 50% a segregação escolar para Distorção 1. Teoricamente, se não houvesse turnos escolares, haveria menor segregação considerando-se to-dos os indicadores, com redução, em alguns casos, de até 50% nos valores nominais.
A próxima questão é: os resultados serão semelhantes se calcularmos os indicadores separando os alunos do primeiro e segundo segmento do ensino fundamental? A Tabela 8 mostra os resultados para o primeiro segmento ao longo de sete anos. Os padrões são um tanto diferentes. É possível observar que o tamanho do efeito de incremento para os turnos escolares se tornou menor para educação dos pais, cor dos alunos e pobreza. É possível ainda observar um efeito de dois dígitos de crescimento para os alunos pretos nos últimos quatro anos os mais confiáveis nas bases acervo, com um incremento relativo de 13% no nível de segregação.
Os novos cálculos para distorção idade-série no primeiro segmento evidenciam que essa variável apresenta os maiores aumentos relativos. Em relação à Distorção 1, os dados mostram um aumento médio relativo de cerca de 50%, com a possibilidade real de o efeito dobrar os níveis gerais de segregação escolar. O impacto da Distorção 2 é um pouco menor, mas ainda grande e significativo, respondendo por cerca de um terço da variação na segregação escolar. Comparados os resultados nas tabelas 7 e 8, pode-se afirmar que alunos muito jovens (em geral entre 6 e 11 anos) estão sendo sistematicamente selecionados por suaperformance acadêmica. Estudos futuros devem tratar esse tracking no nível individual. Algumas questões que os dados suscitam: as escolas realocam seus alunos pelos turnos, baseadas em seus desempenhos acadêmicos? Em que período do processo de escolarização essa espécie de tracking ocorreria?
A Tabela 9 traz as porcentagens com o aumento relativo nos indicadores de segregação para os alunos matriculados no segundo segmento. Há padrões semelhantes aos observados no primeiro segmento? Sim. Mais uma vez, comparando-se as tabelas 9 e 7 é possível observar que boa parte da variação para os indicadores de educação parental, cor e pobreza, desaparece. Cabe ressaltar que, assim como foi observado na Tabela 8, GS para alunos pretos apresenta um aumento relativo de dois dígitos para todos os anos analisados.
A distorção idade-série, novamente, apresentou o maior incremento relativo para os turnos escolares. Os dados são ainda maiores quando comparados com os da Tabela 8, o que sugere que o tracking se intensifica ao longo das transições escolares. Parece que o sistema escolar seleciona/"entrilha" consistentemente os alunos, baseado no desempenho pregresso. Isso pode explicar por que todos os indicadores apresentam um impacto positivo, ainda que menor. Apesar de não haver política formal de tracking, parece claro que há uma modalidade informal do procedimento para os alunos em atraso escolar.
Os cálculos apresentados até o momento não permitem observar onde é mais provável que os alunos em desvantagem potencial sejam agrupados, no turno da manhã ou da tarde. As tabelas 8 e 9 apenas indicam que a distribuição dos estudantes em desvantagem nos turnos é desigual. Entrevistas com direções escolares, professores e famílias sugerem que o turno da manhã concentra normalmente alunos com características desejáveis e o turno da noite os "alunos problema" ou aqueles com dificuldades de aprendizagem (BRITO; COSTA, 2010). A Tabela 10 mostra uma análise descritiva com dados dos turnos da manhã e da tarde, em 2010. Fica claro que o turno da manhã recebe menos alunos em condições de desvantagem.
Algumas questões podem ser propostas a partir do resultado acima. Como se articulam pedagogicamente as razões para o tracking sistemático de alunos com desempenho mais baixo? Quais são os fundamentos pedagógicos para a realização do tracking sistemático de alunos com trajetória escolar irregular (baixo desempenho)? Quais os impactos dessa política sobre o aprendizado, as expectativas futuras e os padrões de sociabilidade desenvolvidos pelos alunos? Essas não são questões originais, mas praticamente não circulam no Brasil.
CONCLUSÃO
O impacto não intencional de políticas educacionais na segregação escolar é um tema relevante por suas relações com as oportunidades educacionais e a justiça social. Há evidências sólidas de que a segregação escolar pode ter efeitos danosos, com impactos expressivos sobre estudantes em maior condição de desvantagem, especialmente quanto as suas aspirações de futuro, à qualidade do ensino que recebem, a sua trajetória escolar posterior, bem como provocando aumento na associação entre desempenho acadêmico e status socioeconômico (EGGRES, 2005). Se essas suposições são corretas, pesquisadores e gestores deveriam es-tar atentos aos riscos e potenciais efeitos adversos de práticas ou legislações que possam ampliar os níveis de segregação escolar.
As medidas descritivas apresentadas neste estudo perfazendo um total de 147 mostram com clareza que a política de turnos tem impacto sobre os níveis de segregação geral. Comparando os diferentes indicadores utilizados, é possível afirmar que estudantes são usualmente selecionados e alocados com base em seu desempenho acadêmico pregresso, medido através da variável Distorção idade/série. Não apenas os valores do GS para tais variáveis são mais altos, como também o efeito-turno sofre maior incremento quanto a essas variáveis. Há dois processos de segregação no interior do sistema escolar. O primeiro, mais óbvio, com amplo reconhecimento na literatura internacional, diz respeito à segregação entre escolas, apontado quando se tratam os dados no nível das escolas. O segundo, que foi de nosso interesse particular neste estudo, se refere a um processo de segregação operado no interior das escolas, dado que se refere à diferenciação entre turnos. Podemos tratar esses dois processos como uma espécie de segregação em dois estágios. O primeiro é influenciado por aspectos da segregação residencial, escolhas dos pais, mas também, em alguma medida, por mecanismos seletivos no âmbito da burocracia educacional. O segundo estágio, que denominamos efeito-líquido da alocação em turnos, ou efeito-turno, pode ser atribuído quase exclusivamente a procedimentos seletivos no interior das escolas, portanto amplamente controlados pela burocracia escolar.
A despeito da ausência de regulação específica para alocação de alunos entre os turnos, a regularidade nos resultados das medições sugere haver um processo sistemático, deliberado. Entre as 147 medidas, para sete variáveis, por sete anos, 141 mostraram elevação significativa nos níveis de segregação, após a distribuição dos alunos em turnos. Até onde sabemos, esse é o primeiro estudo que efetua tais medições para o conjunto de uma rede escolar, a maior do país nesse nível de ensino. Nossos estudos anteriores trabalharam com número limitado de casos e potenciais vieses de seleção.
Não é possível afirmar, partindo dos modelos aqui apresentados, quais seriam os efeitos líquidos de cada fator no processo de segregação associado aos turnos escolares, dado que não foram aplicados modelos multivariados que permitissem distinguir os pesos relativos da distorção idade-série, cor, educação parental e condição de pobreza, em modelos com controles recíprocos. É provável, inclusive pelo peso bruto bem maior, que a distorção etária seja o principal fator. Como se sabe, as redes escolares têm por hábito enturmar os alunos por idade, o que significa que as chances de segregação aumentam conforme as séries avançam e os alunos ficam mais velhos. O atraso escolar funcionaria como uma espécie de resumo dos fatores de segregação. Assim, não chega a surpreender o fato de o aumento da segregação por Distorção ser maior no segundo segmento. Afinal, são alunos com mais chances de estarem defasados, podendo o fenômeno se manifestar mais intensamente.
A redução nos indicadores de segregação do primeiro para o segundo segmento se dá por um efeito estritamente estatístico: a redução brusca no número de escolas que atendem ao segundo segmento aumenta as chances de observarmos escolas mais misturadas (menor segregação). O efeito oposto é observado quando as escolas são divididas em turnos, simulando a situação de serem escolas distintas. Nesse caso é provável que a alocação de alunos nos turnos aumente os níveis gerais de segregação. O que observamos, no entanto, é que o aumento em algumas variáveis é maior, sugerindo um processo intencional de seleção dos alunos.
Nossa intenção foi chamar atenção para a necessidade de se abrirem discussões, não sociológicas propriamente, mas sobretudo pedagógicas, sobre o fenômeno da alocação de alunos nessa espécie de tracking informal identificado pelos turnos escolares. Sabe-se que a alocação de alunos entre turmas por grupos de habilidade é prática mundial e, provavelmente, amparada em razões pedagógicas sólidas. Entretanto, a distribuição entre turnos parece revestida de outros aspectos, dado que pode estar associada à produção de ambientes escolares fortemente diferenciados nos aspectos que parecem mais relevantes para o favorecimento do aprendizado e do desenvolvimento de outras habilidades desejáveis na escola, consubstanciados no que ganha a denominação de "clima escolar". A pergunta é: ao classificar e designar alunos com condições reconhecidas de desvantagem potencial para ambientes escolares separados como os turnos , não se estaria em alguma medida contribuindo para acentuar características reprodutivas do sistema educacional, por meio das profecias autorrealizáveis?
Nossos estudos em curso pretendem escrutinar os efeitos des-se tipo de arrumação escolar no desempenho acadêmico dos estudantes, buscando contribuir para o debate inaugurado pelas teorias da eficácia-escolar, que permanece chamando à conciliação entre qualidade e equidade.
Recebido em: MAIO 2013|
Aprovado para publicação em: JUNHO 2014
Os autores agradecem a Stephen Gorard, da Durham University, do Reino Unido, por seus comentários e ajuda.
Trabalho financiado com recursos da Capes (Observatório da Educação 2010), CNPq (Produtividade em Pesquisa) e Faperj (APQ1).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
07 Jan 2015 -
Data do Fascículo
Set 2014
Histórico
-
Aceito
Jun 2014 -
Recebido
Maio 2013