Open-access Casa, rua, escola: gênero e escolarização em setores populares urbanos

Casa, calle, escuela: género y escolarización en sectores populares urbanos

Resumos

Este artigo deriva de pesquisa que buscou compreender o papel da socialização familiar na construção de trajetórias escolares diferenciadas por sexo, a partir do olhar de 25 crianças de camadas populares de uma escola municipal de São Paulo. Por meio de observações e entrevistas, obtiveram-se informações sobre a participação de meninas e meninos nos afazeres domésticos, nas práticas de lazer e na circulação pelo espaço público. Conclui-se que a socialização familiar tende a estimular um desempenho superior das meninas tanto pela construção de feminilidades pautadas por responsabilidade e disciplina, quanto pela significação positiva da escola enquanto um espaço de recreação e sociabilidade, em face das inúmeras restrições que as garotas sofrem no seu cotidiano na família, na casa e na rua.

Rendimento Escolar; Feminilidades; Masculinidades; Sociologia da Infância


Este artículo deriva de una investigación que intentó comprender el papel de la socialización familiar en la construcción de trayectorias escolares diferenciadas por sexo, a partir de la mirada de 25 niños de capas populares de una escuela municipal de São Paulo. Por medio de observaciones y entrevistas, se obtuvieron informaciones sobre la participación de chicas y chicos en los quehaceres domésticos, las prácticas de recreación y la circulación por el espacio público. Se concluye que la socialización familiar tiende a estimular un desempeño superior de las chicas, tanto por la construcción de femineidades pautadas por responsabilidad y disciplina, como por la pela significación positiva de la escuela como un espacio de recreación y sociabilidad, frente al sinnúmero de restricciones que sufren las niñas en su día a día en la familia, el hogar y la calle.

Rendimiento Escolar; Femineidades; Masculinidades; Sociología de la Infancia


This article is based on a research that aimed at understanding the role of family socialization in the construction of gender-biased educational trajectories from the point of view of 25 children from low-income families of a public school of São Paulo. Information regarding the participation of girls and boys in housework, leisure practices and circulation in the public space were gathered through observation and interviews. It can be concluded that family socialization tends to stimulate a better performance of girls through the construction of femininities rooted in responsibility and discipline, as well as through the positive significance of the school as a recreational and sociability space, in view of the several restrictions that girls endure in their daily lives, at home and on the street.

Academic Achievement; Femininities; Masculinities; Sociology of Childhood


Ao longo do século XX, a sociedade brasileira presenciou intensas transformações no que diz respeito ao direito à educação de populações até então excluídas das escolas, entre as quais as mulheres. Se, no passado, a privação ou segregação do acesso à educação dificultava a escolarização da população feminina, esse cenário foi sendo modificado à medida que a democratização do ensino se consolidava no Brasil. Com a expansão das vagas a partir da segunda metade do século passado, somada à equivalência dos diplomas em nível médio, ocorreu o fenômeno que ficou conhecido como reversão do "hiato de gênero" (ROSEMBERG; MADSEN, 2011), isto é, a correção de desigualdades históricas fundadas sobre a diferença sexual.

Embora orientadas por políticas universalistas de expansão do acesso à educação, essas medidas tiveram como um de seus efeitos a produção de uma novadiferença, na medida em que, na atualidade, as mulheres se tornaram as principais beneficiadas pela democratização do acesso ao ensino. A título de exemplo, entre a população com 60 anos ou mais, as taxas de analfabetismo atingiram, em 2014, 27,4% para mulheres e 24,9% para homens; no entanto, entre jovens e adultos de 15 a 29 anos, esse quadro se inverte, com taxas de 1,9% para elas e 3,6% para eles (IBGE, 2014). Na mesma linha, observa-se que as mulheres compõem, hoje, a maioria do alunado em nível médio, alcançando 53,5% das matrículas (INEP, 2013). Embora diminutas à primeira vista, essas diferenças apontam para o fenômeno de que as mulheres têm se escolarizado mais do que os seus pares do sexo masculino, ao percorrerem trajetórias escolares menos acidentadas e com maiores possibilidades de sucesso na idade adequada, em tendência descrita internacionalmente para uma parcela considerável do globo (UNESCO, 2012; OECD, 2015).

Com o intuito de compreender essas desigualdades, faz-se necessário investigar quais as relações entre gênero e a escolarização de crianças e jovens. Para tanto, desde a década de 1990, vem se desenvolvendo no Brasil um campo de estudos que, lançando mão do conceito de gênero, se debruça sobre aspectos relativos ao sexo dos estudantes nos processos socioculturais de produção do "fracasso" ou do "sucesso" escolar. Nesse contexto, várias pesquisas têm se ocupado de investigar o papel da instituição escolar na construção de masculinidades e feminilidades e seus efeitos sobre a configuração de "ofícios de aluno/a" em maior ou menor conformidade às expectativas escolares (e.g. BRITO, 2006; PEREIRA; CARVALHO, 2009). Essa abordagem, em resumo, é fruto do amadurecimento de um campo de pesquisas que, apropriando-se do conceito de gênero enquanto uma ferramenta analítica capaz de deslindar o exercício de poder nas relações entre os sexos, deixou de se perguntar meramente sobre as diferenças entre homens e mulheres e passou a questionar também as distinções entre os homens e entre as mulheres.

Muito embora a sociologia da educação tenha produzido importantes estudos sobre as relações entre famílias e escolas, ainda faltam pesquisas sobre a construção das diferenças de gênero no interior das famílias e sua influência sobre a escolarização das crianças. Essa ausência é ainda maior quando se trata de tomar os próprios meninos e meninas como sujeitos de pesquisa. Na ausência de tais aprofundamentos, a lacuna resultante tende a reforçar uma ideia recorrente entre os educadores e educadoras, que responsabilizam a socialização familiar pelas expressões de gênero das crianças na escola, com a tendência de atribuir às famílias a origem das posturas, dos comportamentos e do interesse (ou desinteresse) dos meninos e meninas pela escola, de acordo com revisão de Carvalho (2013). Dessa forma, mantêm-se opacas a compreensão acerca das famílias, em particular aquelas de setores populares, e as relações entre seus distintos membros.

Partindo dessas considerações, o objetivo da pesquisa que deu origem a este artigo foi entender como crianças de camadas populares urbanas percebem e ressignificam a postura de suas famílias diante de diferenças e semelhanças de gênero no que tange a regras e controles, usos do tempo e do espaço, atividades de trabalho e de lazer, entre outras práticas realizadas fora da escola. Pretendeu-se investigar as relações entre tais práticas e a escolarização de meninos e meninas, tendo como referencial as construções de masculinidades e feminilidades na infância e procurando verificar se e como as desigualdades na escolarização podem estar relacionadas à socialização de gênero no âmbito familiar.

Para tanto, buscamos estudar as relações de gênero no âmbito familiar a partir de uma perspectiva atenta às feminilidades e masculinidades, aqui entendidas como um conjunto de práticas que expressam os gêneros em dado contexto social, em diálogo com a obra de Raewyn Connell (2005). Optou-se por tal recorte teórico tendo em vista que um olhar sobre as masculinidades e feminilidades permite uma aproximação com a diversidade de formas de "ser menino" e "ser menina", as quais se encontram imbrincadas a relações de poder, expressas por meio de inúmeras práticas cotidianas. É com atenção a essas práticas, tal como relatadas pelas próprias crianças, que a pesquisa procurou entender as relações de gênero no ambiente familiar.

Metodologia

Este artigo é fruto de uma pesquisa de mestrado, cujo trabalho empírico aconteceu no segundo semestre de 2012. Foi adotada uma metodologia qualitativa, inspirada na etnografia e centrada na realização de observações e entrevistas semiestruturadas. Desse modo, ao longo de cinco meses, acompanhou-se, em uma escola da rede municipal de São Paulo, uma turma do 3º ano do ensino fundamental, composta por 25 crianças, entre as quais 14 meninas e 11 meninos, em uma frequência de duas a três vezes por semana. Durante esse período, procurou-se interagir com o maior número de crianças possível no decorrer do dia letivo, o que incluía as aulas, os recreios e demais eventos que pudessem reunir os alunos e a comunidade. Ao mesmo tempo, colocou-se como imperativo diluir certas fronteiras a priori existentes entre o pesquisador adulto, do sexo masculino - ali presente no exercício do trabalho de campo -, e o conjunto de meninos e, especialmente, meninas da turma estudada.

Após um mês de interações informais, as crianças foram convidadas individualmente ou em duplas, com base em suas afinidades, para uma sala reservada na escola, onde eram entrevistadas com uso de um gravador.1 Ao todo, 20 crianças foram entrevistadas (12 meninas e oito meninos), e não houve nenhuma dupla mista. Nas entrevistas, buscou-se captar detalhes a respeito da rotina das crianças e do conjunto de atividades empreendidas por elas fora da escola, com especial atenção para o ambiente familiar, a residência e a rua. Indagou-se, por exemplo, que tipo de regras existiam no ambiente domiciliar, com quais atividades ocupavam suas tardes e como era o compartilhamento ou partilha de tarefas e brincadeiras entre eventuais irmãos. Embora não tenha sido estudada diretamente, a família aparece, neste trabalho, como uma unidade de análise por meio da fala das crianças, isto é, naquilo que meninos e meninas diziam e representavam sobre suas famílias em seu dia a dia. Essa escolha - de priorizar as crianças como interlocutoras da pesquisa - esteve amparada nas reflexões oriundas da sociologia da infância (FARIA; FINCO, 2011), que jogam luz sobre o protagonismo dos sujeitos em seu processo de socialização.

Das 25 crianças da turma, 13 moravam em uma imensa favela nas redondezas da escola e outras dez viviam em bairros periféricos não propriamente entendidos como favelas,2 na medida em que havia propriedade legal dos terrenos e urbanização (ruas asfaltadas, serviço de esgoto, etc.). Todas as crianças pertenciam a setores populares, seus pais, mães e/ou responsáveis eram pouco escolarizados e trabalhavam em ocupações de baixa qualificação. Nove delas viviam em famílias nucleares completas, oito em famílias monoparentais femininas e quatro em outros tipos de arranjo.3 A maioria das crianças vivia em famílias compostas por quatro ou cinco membros (houve apenas um caso de filha única). Suas idades se concentravam entre oito e nove anos, havendo três casos de crianças mais velhas do que a média da sala, sendo uma delas um garoto de 13 anos.

Contatos contínuos dos pesquisadores com os meninos e as meninas e uma entrevista com a professora responsável pela turma permitiram estabelecer uma noção sobre o desempenho escolar dessas 25 crianças. Não se procurou atribuir notas ou conceitos a elas, em virtude da dificuldade, enunciada pela própria docente, em efetuar uma avaliação escolar que pudesse ser traduzida em uma medida de desempenho. Optou-se, assim, por enfatizar as relações construídas entre as crianças e o processo de escolarização, buscando identificar quais alunos se aproximavam ou não de posturas esperadas pela docente, assim como quais deles exibiam os maiores avanços de aprendizagem ao final do ano letivo. Desse modo, entre as crianças consideradas pela professora mais participativas e com desempenho superior, destacavam-se seis meninas e cinco meninos. No grupo "mediano", estavam seis meninas e apenas um menino. Já entre os/as alunos/as com maiores dificuldades de aprendizagem e disciplina, foram elencados cinco meninos e somente duas meninas. Viu-se, portanto, uma tendência, por parte da professora, em avaliar os meninos como estudantes de pior desempenho - e as observações do cotidiano escolar confirmaram esse fenômeno.

Afazeres domésticos: quem faz o quê?

Embora não seja recente a inserção dos afazeres domésticos4 como objeto de estudo da produção acadêmica brasileira, essa temática tem ganhado mais fôlego desde as últimas duas décadas, fruto dos esforços feministas de pautar o tema na agenda das políticas públicas, assim como na produção de conhecimento em Ciências Humanas (BRITES, 2013). Essas demandas têm apontando no sentido tanto de se aperfeiçoar a geração de dados sobre essa modalidade de trabalho, quanto de se aprofundar a reflexão acadêmica na temática. Sem deixar de discutir a participação de mulheres adultas, é importante também trazer à tona mais elementos para se pensar a participação masculina, bem como o envolvimento de crianças e jovens de ambos os sexos na divisão do trabalho doméstico.

Nesta pesquisa, foram encontrados inúmeros indícios da existência de uma divisão sexual do trabalho entre os pais e as mães das crianças estudadas, o que foi considerado por nós o ponto de partida para entender o envolvimento das próprias crianças nessas rotinas. Tais resultados vão ao encontro do padrão amplamente descrito em sociedades que, como a brasileira, imputam às mulheres a maior carga de serviços domésticos (RIBEIRO, 2009; ARTES; CARVALHO, 2010), numa divisão sexual do trabalho marcada pela oposição entre os gêneros como um de seus traços culturais (HEILBORN, 1997). Na turma estudada, uma quantidade significativa de crianças vivia em famílias monoparentais femininas, o que delegava centralidade ao papel da mãe no ambiente doméstico. Porém, mesmo nas famílias que contavam com a presença de pai e mãe, a divisão sexual do trabalho mostrou-se evidente, ainda que nem sempre enunciada nas falas das crianças, como fez Gisele5 ao afirmar que "quem faz tudo é a minha mãe!". Ao declarar que colaboravam nos serviços domésticos, as crianças frequentemente denunciavam que essa ajuda dirigia-se ao trabalho exercido pelas suas mães:

Às vezes eu faço. Eu ajudo a minha mãe. Ajudo a minha mãe a cozinhar. (Giovana)

Às vezes eu ajudo a minha mãe. (Lourenço)

Além de mães e pais, outras mulheres da família, tais como avós ou irmãs mais velhas, podiam igualmente contribuir na realização dos afazeres domésticos. É o caso das duas irmãs de Enzo, que dividiam com sua mãe a responsabilidade pelos serviços domésticos, ou da irmã (20 anos) de Lourenço, que ajudava a limpar a casa quando regressava do seu emprego em um shopping center da região. O mesmo pode ser dito da avó de Iara que, além de contribuir na execução dos serviços de casa, também frequentava algumas reuniões escolares.

Diante das crianças, a participação das mães e irmãs mais velhas nas tarefas domésticas podia servir como um modelo de atividades desenvolvidas por mulheres e, portanto, como a configuração de um leque de atividades femininas, expressões de feminilidades que compunham o cotidiano de adultos e crianças. Sylvie Octobre (2010), em pesquisa na França, destaca que a "educação implícita", realizada por meio de práticas generificadas que, ao servirem de exemplo, orientam as construções de masculinidades e feminilidades das crianças, é capaz até mesmo de suplantar a "educação explícita", exercida por regras e normas declaradas. Logo, a possibilidade de uma igualdade de gênero entre as crianças, no âmbito doméstico, já estaria de antemão condicionada à própria divisão de trabalho existente entre os adultos, a qual demonstrava, na prática, que eram as mães as maiores responsáveis pela organização e manutenção da unidade doméstica.

Todas as crianças da turma estudada, independentemente do sexo, envolviam-se em algum grau com os afazeres domésticos: arrumação de sua própria cama e de seu material escolar e, por ventura, organização de seu próprio quarto. Já as diferenças entre os sexos tornaram-se mais acentuadas no tocante às práticas voltadas para a manutenção da unidade doméstica como um todo. A esse respeito, constatou-se uma divisão sexual do trabalho doméstico, em que a participação das meninas era bem mais expressiva do que a dos meninos. Para muitas meninas, as tarefas domésticas eram executadas como parte da rotina, sendo a mãe a figura que delegava responsabilidades, tornando-se a referência em torno da qual as tarefas eram cumpridas:

[Minha madrasta] pede pra mim arrumar a cama, varrer a casa, enquanto ela tá dormindo. Aí, ela acorda e faz o resto. (Débora)

Eu ajudo a minha mãe a cortar... minha mãe me manda cortar tomate, cenoura, quiabo. (Larissa)

O engajamento das garotas nas tarefas mencionadas, ao ser entendido como uma "ajuda" à figura materna, refletia uma partilha do trabalho não apenas entre os dois sexos, como também entre adultos e crianças - é emblemático que a madrasta de Débora delegasse à menina a limpeza da casa enquanto descansava. Há indicações para se concluir, também, que em muitos casos o envolvimento das meninas tendia a acontecer com alguma naturalidade, o que não dispensava a existência de punições caso alguma transgressão se fizesse presente - a título de ilustração, Fabiana contou que sua mãe não precisava encarregá-la de nenhuma tarefa doméstica porque ela mesma já conhecia suas responsabilidades; sabia, também, e por experiência própria, que seria punida fisicamente caso não as cumprisse.

Quando tinham irmãs em faixas etárias similares ou mais velhas, a partilha do serviço de casa era comum, cada uma ciente do seu papel na manutenção do domicílio. O mesmo não se pode afirmar a respeito da presença de irmãos do sexo masculino com idades próximas ou mais velhos. Na existência de caçulas, pelo contrário, a participação das meninas na organização familiar aumentava, uma vez que elas se tornavam parcialmente responsáveis por eles também. Exemplo disso é o papel que Débora exercia para com seu irmão, a ponto de, certa vez, a garota ter levado bronca da madrasta após ele ter gastado todas as moedas do cofrinho - a justificativa era de que ela, na condição de irmã mais velha, deveria ter atentado para que o irmão não cometesse esse equívoco. Um grau de responsabilidade equivalente também foi observado em Thaís, que era incumbida de acompanhar seu irmão em suas eventuais visitas a amigos: "[Minha mãe] manda eu ir pra lá só pra mim poder cuidar dele." O cuidado com os irmãos mais novos por parte das meninas tende a ser justificado, na literatura, pelo critério etário (PUNCH, 2010), como se o fato de elas serem mais velhas explicasse, por si só, o porquê de se engajarem no cuidado deles. Todavia, é essencial revelar o caráter de gênero por trás de tal asserção, posto que uma tarefa típica de uma irmã mais velha pode não encontrar simetria em um irmão mais velho, constatação que é corroborada pelos resultados da presente pesquisa: nenhum dos três meninos que possuíam irmãos/irmãs mais novos disseram ter algum tipo de compromisso no cuidado dos caçulas.

Na trama de relações familiares, as atividades desempenhadas por meninas reverberavam a divisão de trabalho parental - fenômeno que tem sido descrito com frequência na literatura nacional e internacional (WHITAKER, 2002; NILSEN; WÆRDAHL, 2014). Mais do que participações esporádicas ou pontuais, o envolvimento das garotas na rotina dos serviços domésticos é revelador de um sistema de relações sociais que, no interior da família, constrói gênero de modo a garantir acessos desiguais a patamares de poder por meninos e meninas.

Nesse tocante, revelou-se altamente informativa a tensão entre duas categorias que, segundo já salientado por Heilborn (1997), ordenam o universo das relações familiares quando descrito pelo ângulo das crianças e jovens: obrigação e ajuda. Nas entrevistas, evidenciou-se que Débora, que tinha um irmão mais novo estudando na mesma escola e outro ainda bebê, era encarregada de executar variados serviços domésticos no dia a dia. Porém, ao ser questionada sobre quem "ajudava" mais em casa, ela prontamente respondeu que era o seu irmão. Numa leitura rápida, essa informação entra em conflito com a maior participação de Débora naquelas tarefas. Em tempo, tal achado sugere que Débora não enxergava o seu trabalho como uma "ajuda": para ela, os afazeres domésticos eram parte de sua responsabilidade. Quem "fazia" era ela; quem "ajudava", o seu irmão. Na mesma linha, Thaís reconhecia que o seu irmão caçula, de apenas quatro anos, "ajudava" nas tarefas domésticas: seu dever era auxiliar na arrumação da cama, ao passo que Thaís se encarregava de outros serviços, como manter a casa limpa ("Eu gosto de limpar"), passar pano nos móveis e ajeitar a cama e o sofá. Mesmo desempenhando um número maior de atividades em comparação ao seu irmão, Thaís não atribuía à sua participação o mesmo status de "ajuda". Para essas meninas, o ato de contribuir nas tarefas domésticas não ganhava o mesmo peso se praticado por meninas ou por meninos.

Em suma, dois sentidos de "ajuda" foram encontrados nesta pesquisa. Um primeiro significado remetia ao papel que as meninas desempenhavam perante suas mães e "responsáveis" na organização da unidade residencial, como se a partilha das tarefas domésticas entre adultos e crianças demandasse a "ajuda" tão somente das meninas - ajuda essa que, de acordo com Kosminsky e Santana (2006), naturaliza um conjunto de diferenças de gênero subscritas em uma situação desigual e injusta. Contrariamente, um segundo sentido desse conceito subjazia à díade "obrigação" versus "ajuda", isto é, "o trabalho doméstico reveste-se de um conteúdo de 'obrigação' para as meninas e para os meninos como ajuda condicionada à vontade deles" (HEILBORN, 1997, p. 312, grifo da autora). Trocando em miúdos, a "ajuda" desempenhada pelas meninas às suas mães e irmãs mais velhas seria, se posta lado a lado com as eventuais contribuições dos meninos, uma "obrigação".

Entre os meninos, por sua vez, raros foram os casos em que eles manifestaram não ter nenhum envolvimento nos serviços de casa. Ao contrário, muitos deles enumeraram situações em que sua participação se efetivava, o que, pouco adiante na conversa, logo descortinava uma responsabilidade mínima:

Eu guardo o sapato, às vezes eu lavo a louça... compro alguma coisa [...]. Eu também sei cozinhar. [Pesquisador: Você sabe?] Arroz. [Pesquisador: O que mais?] Um monte de coisa... (Karlos)

Eu arrumo a minha cama. Eu varro a casa. [...] Só às vezes, só às vezes... (Vítor)

Eu lavo a louça, às vezes [...]. Ajudo a passar o pano nos móveis e também ajudo a varrer o chão [...]. Eu gosto... e minha mãe manda. (Enzo)

Eu lavo mais a louça. [Pesquisador: Todo dia?] Todo dia, não, mas alguns dias [...]. O quarto eu arrumo todo dia. (Leonardo)

Assim, a participação dos garotos nos serviços domésticos, quando extrapolava para atividades orientadas ao coletivo, era caracterizada pela sua baixa frequência e ralo comprometimento. Ademais, é possível supor que talvez alguns meninos estivessem escondendo nas falas seu envolvimento com as tarefas domésticas, com medo de serem vistos pelo pesquisador ou por eventuais colegas como "meninas" ou, no mínimo, "menos masculinos". À parte das possíveis manobras para esconder o envolvimento nos serviços de casa, diversas táticas podiam ser adotadas pelos garotos para evitar o cumprimento dessas tarefas, como relatado por eles mesmos ou pelas meninas em relação aos irmãos. À guisa de exemplo, Vítor afirmou que quando não estava "com vontade" de lavar a louça, saía de casa logo após o almoço e ficava atento para ver se sua mãe já havia lavado.

Entretanto, essas estratégias não pareciam ser adotadas com frequência, pois talvez nem sequer houvesse necessidade: o papel desempenhado por mães e eventuais irmãs parecia suprir a demanda por serviço doméstico. Em decorrência disso, os contrastes entre os sexos se evidenciavam. Em um caso particular, Juliano expressou de forma bem clara qual era a posição dos homens que habitavam em sua residência. Ao ser interrogado se existia participação masculina nas tarefas domésticas, sua resposta foi emblemática: "Lógico que não!". Essa postura foi raramente encontrada nas entrevistas, e a tentativa, por parte dos meninos, de valorizar o pouco que eles relatavam cumprir se fez presente, sugerindo que há um fraco suporte à ausência completa e declarada de participação dos rapazes nessas rotinas, muito embora o trabalho doméstico continue sendo uma prática feminilizada.

Exceções, no entanto, também foram observadas na turma estudada. Entre todos os garotos entrevistados, um menino que sem dúvida executava os serviços domésticos cotidianamente era Lourenço. Filho caçula de uma família composta por mãe, uma irmã e dois irmãos, Lourenço disse, em tom desolado, que não tinha com quem brincar porque todos os seus irmãos eram muito mais velhos. Conquanto pudesse variar sua participação nas tarefas domésticas, a entrevista iluminou que o garoto espontaneamente se engajava nesses serviços, iniciativa que parecia estar condicionada ao fato de Lourenço despender a maior parte do dia em casa, com escassas opções de entretenimento e sociabilidade. Em consequência dessa sensação de tédio, Lourenço foi inequívoco: "Ué, não tem nada pra fazer, aí eu arrumo a casa quando tá 'tudo' suja!".

Não obstante esse caso, a menor participação masculina permanecia evidente entre a turma estudada, tornando-se ainda mais visível quando contrastada com a responsabilização das meninas. Nas fratrias mistas, alguns depoimentos apontavam que as meninas percebiam o quanto estavam sobrecarregadas se comparadas aos seus irmãos. Iara, por exemplo, reconhecia que seu irmão não arrumava o próprio quarto e tampouco considerava as cobranças oriundas de sua mãe. Em contrapartida, a garota estava ciente de que ela não podia faltar com suas responsabilidades, sob o risco de levar castigos físicos. Da mesma forma, Débora falou que, na ausência da mãe, era ela quem se encarregava do serviço doméstico, ao passo que seu irmão ficava livre para as atividades de lazer: "Quando ela [mãe] ia fazer um curso, né, eu tinha que arrumar toda a casa sozinha, enquanto meu irmão tava jogando video game".

Ao mesmo tempo, a menor participação dos meninos, em nenhum momento, foi denunciada como um privilégio relacionado ao seu sexo. Ao contrário, tais diferenças tendiam a ser tratadas a partir de um prisma individualizante, creditando a pouca participação deles à ausência de aptidões inatas ou a traços de personalidade. "Preguiçoso" foi o adjetivo empregado tanto por Iara quanto por Débora na caracterização de seus respectivos irmãos, assim como o termo que Vítor adotou para si mesmo. De acordo com Carvalho, Senkevics e Loges (2014), essa justificativa também é adotada por mães na ocasião de descrever as participações desbalanceadas entre seus filhos e filhas na realização do trabalho doméstico. O termo "preguiçoso" cumpre, nesse contexto, a função de uma desculpa que interessa a certa configuração das relações de gênero, como uma justificativa para o exercício de determinadas masculinidades.

Em suma, a execução de uma rotina de afazeres domésticos é marcada por um misto de sentimentos antagônicos de rejeição, aceitação resignada e mesmo participação com iniciativa. Assim, dois processos contraditórios manifestavam-se em relação à divisão das tarefas domésticas: por um lado, a naturalização de uma atribuição de responsabilidades marcada por gênero, que não apenas imputava às meninas a maior carga de serviço, como também fortalecia a noção de que os afazeres domésticos eram atividades eminentemente femininas; por outro, a expressão de formas de resistência à imposição desse padrão, as quais, embora aparentemente se efetivassem pouco na prática, orientavam criticamente a percepção das meninas sobre as discrepâncias que eram experimentadas no dia a dia das interações familiares.

O lazer em casa: brincar ou... dormir

Em suas residências, o leque de atividades desempenhadas pelas crianças nos momentos de lazer apresentou, novamente, forte diferenciação por sexo. Apenas as meninas declararam brincar de boneca, casinha, comidinha e faz-de-conta sobre temáticas familiares, brincadeiras que são tradicionalmente associadas às feminilidades, pois remontam a um imaginário ligado à maternidade, ao cuidado e ao ambiente doméstico. Outras atividades, reconhecidamente masculinas, compunham a rotina dos garotos e, por isso, não eram tão facilmente apropriadas pelas meninas, tais como o video game:

Eu brigo com ele [irmão], porque ele não deixa eu jogar. Sempre que eu vou jogar, ele tá lá! (Larissa)

Quem joga mais é o meu irmão de 25 anos e o de 16. Eles ficam jogando mais. [...] Eles deixam eu jogar também. (Giovana)

Já os celulares eram o correspondente feminino do video game. Ainda que a maioria das garotas não possuísse seus próprios aparelhos de telefonia móvel, elas frequentemente relataram tomar emprestados os celulares de suas mães ou irmãs e passar algumas horas da tarde entre jogos e músicas. Curiosamente, tais práticas adquiriram em suas falas um caráter transgressor, possivelmente pela desconfiança, por parte dos membros da família, de que as meninas pudessem utilizar os celulares para fins considerados inadequados ou consumissem seus créditos:

Eu escuto música no celular da minha irmã. Aí, quando ela vem, eu tiro o fone [de ouvido] e vou jogar joguinho [risos]. (Natália)

[Minha mãe] fala, assim, que não é pra mim mexer no celular. Aí, por enquanto que ela vai trabalhar, eu fico só, assim, aí eu pego [o celular]. (Gisele)

No geral, a discrição no manuseio dos telefones portáteis, somada ao controle no uso dos video games, reduzia as possibilidades de lazer para as meninas dentro de casa. Em contraste, a liberdade que seus irmãos tinham com os consoles indicava uma rotina de entretenimento desigual no interior do domicílio. Há de se lembrar que Débora reconheceu a sobrecarga de trabalho doméstico diante do dispêndio de tempo do seu irmão com os jogos. De modo semelhante, Vítor, Juliano e Karlos, para citar alguns exemplos, não eram encarregados rotineiramente de nenhum serviço doméstico, ao passo que jogavam livremente seus consoles, além de terem amplo acesso ao ambiente da rua. Mais do que atividades associadas em maior ou menor grau a significados de gênero, as práticas de lazer sugeriam que os cotidianos das crianças eram recortados por um misto de possibilidades e restrições que, em última análise, tendiam à maior liberdade para com o entretenimento dos meninos.

Em um meio social no qual o acesso à rua não estava isento de formas de controle, o lazer no interior do domicílio aparecia como a maneira preponderante, senão a única, de as crianças - especialmente as meninas - dedicarem um tempo para si, gasto com entretenimento e não apenas com os encargos da escola ou da residência. Nesse sentido, o aparelho televisor e o computador ganharam lugar de destaque em suas falas, de modo que sentar diante da tela era um constante passatempo ou muitas vezes a única oportunidade para algumas crianças se entreterem, sobretudo aquelas pertencentes ao sexo feminino. À guisa de exemplo, Bianca relatou parte do seu dia na companhia de Larissa da seguinte maneira: "Nós fica mexendo no computador, ou nós assiste TV e dorme". É patente certa ausência de alternativas. Como essas garotas não estavam autorizadas a brincar na rua, restavam a elas a televisão, o computador, algumas brincadeiras e... dormir. Para Gisele, a situação era semelhante: "Hum... assim... durante o dia... [pensando]... Eu fico só... assim, às vezes brincando de boneca, às vezes dormindo". Escassas oportunidades de lazer, poucas saídas à rua, baixo exercício da sociabilidade e, de quebra, uma sobrecarga de serviços domésticos compunham aspectos mais comumente encontrados nas rotinas das garotas. Já apontara Duque-Arrazola (1997, p. 370), há quase duas décadas, que essa temporalidade regrada das meninas garante, ao mesmo tempo, "ao menino privilégios, tempos livres de usufruto pessoal para sua recreação e convívio com os amigos".

Diferem, também, as maneiras como os jogos e brincadeiras estimulam ou não, entre as crianças, a apropriação do espaço, de modo a influenciar suas frequências a ambientes exteriores. Em pesquisa com meninos e meninas de sete a treze anos em Viçosa (MG), Pinto e Lopes (2009) notaram que existe uma tendência de as meninas praticarem jogos e brincadeiras que demandam espaços menores para sua execução, quando não o próprio domicílio, ao passo que o entretenimento masculino envolve áreas mais amplas. É instigante pensar, por exemplo, em um jogo de futebol, no que diz respeito ao caráter masculinizado da atividade e na inevitabilidade de que ele seja praticado em ambientes exteriores; ou, para citar outro exemplo, em uma brincadeira de casinha, feminilizada por excelência, e sua referência à interioridade (TRAVERSO-YÉPEZ; PINHEIRO, 2005). Em outras palavras, há um ciclo de retroalimentação entre o gênero de um jogo/brincadeira e sua relação com o espaço: o entretenimento das meninas é construído, em grande parte, a partir de uma área de menor extensão. Em oposição, o lazer dos meninos evoca certas masculinidades que estejam aptas a frequentar o espaço público: a rua, consequentemente, se torna o palco em que se praticam tais jogos, ao mesmo tempo, em que os meninos se constroem como tais.

Para eles, o lazer parecia se configurar por um leque abrangente de atividades que se alternavam entre aquelas realizadas no interior do domicílio e outras praticadas nos espaços exteriores, com amplas possibilidades para os meninos se deslocarem de um ambiente para outro. Nas falas a seguir, percebe-se que a rotina dos garotos tendia a ser mais agitada no que tange ao entretenimento, havendo até a possibilidade de se escolher entre ficar em casa ou brincar na rua, dependendo do horário do dia ou da presença de amigos convidando-os para sair:

Às vezes passo o dia vendo TV. Às vezes chegam meus amigos me chamando pra brincar. Aí eu vou. (Gustavo)

Se não tem amigo [me chamando para brincar], eu fico lá o dia todo assistindo [TV]. (Leonardo)

Eu tenho uma caixa cheia de jogos de video game. [...] Eu vou pra rua, jogo bola com os moleques. (Vítor)

A exceção, entre os meninos, é Lourenço, já citado na seção anterior pelo seu envolvimento nos afazeres domésticos. Conforme mencionado, Lourenço vivia com irmãos mais velhos e tinha pouca companhia para brincar em casa. Ademais, o garoto também não tinha autorização para frequentar a rua. Em casa, poucas atividades de lazer estavam a seu dispor: "Dá cinco horas é a minha vez de mexer no computador. Aí eu fico até às seis horas. Depois é meu irmão. Aí eles [dois irmãos] vão pra escola e aí eu vou mexer no computador: a tarde inteira para mexer". Ao revelar que tinha a permissão para "mexer" no computador "a tarde inteira", no fundo, o menino informava a ausência de alternativas a que tinha acesso, pois, diante da tela do computador, suas atividades limitavam-se a navegar pela internet e jogar alguns jogos. O tédio que Lourenço sentia era, de fato, o principal motor para que o garoto espontaneamente colaborasse na organização da casa. Trata-se de apenas um caso entre os meninos, mas podemos deduzir que, entre garotas afetadas pela mesma rotina entediante, a falta de lazer poderia ser um estímulo para o serviço doméstico, ou, por que não, a responsabilização pelos serviços de casa poderia tornar suas tardes mais tediosas, repetitivas e controladas.

Aos fins de semana, a situação não parecia substancialmente diferente daquilo que se apresentava para as crianças nos demais dias. Para os meninos, os sábados e domingos pareciam ser extensões de suas tardes livres para o entretenimento e a circulação na rua. Para muitas meninas, foram constatados dois cenários distintos nos fins de semana. De um lado, a possibilidade de dedicar-se ao lazer, com eventuais e controladas saídas à rua, e o envolvimento em atividades menos recorrentes, tais como fazer compras ou ajudar a mãe no preparo de refeições consideradas especiais, pois eram aos sábados, domingos e feriados que as meninas encontravam mais possibilidades para sair de casa, geralmente acompanhadas de adultos para passear no shopping, supermercado ou feiras:

Tem vezes que eu vou pro shopping. Vou pro [supermercado]. [...] E tem vezes que nós vai pra feira. (Natália)

Todo domingo eu tenho que ir no [supermercado] com a minha tia. (Bruna)

A minha irmã e a minha mãe, às vezes elas fazem bolo. Aí, a gente vai passear no shopping. Fica no parquinho. (Giovana)

Por vezes, as eventuais saídas durante os fins de semana adquiriam até mesmo um caráter de obrigatoriedade, como mostrado por Bruna ao afirmar que aos domingos "tem que ir" ao supermercado. Além da frequência a ambientes relacionados a compras e, quando não, à própria manutenção do domicílio - o que novamente remete à participação das meninas nos afazeres domésticos -, os espaços de lazer se reduziam, em outros casos, a um parque próximo da favela ou a alguma área externa nas imediações da residência. Brincar na rua, em si, continuava sendo uma eventualidade: "Às vezes eu fico um pouquinho na rua", foi a maneira pela qual Gisele expressou essa particularidade, realizada apenas aos fins de semana e com a supervisão de um adulto. Ainda que não tenha sido explicitado pela maioria das meninas, é possível deduzir que os fins de semana podiam ser uma extensão de suas rotinas entediantes, a exemplo das falas a seguir:

Eu não gosto de final de semana. [...] É ruim... é chato demais ficar em casa. (Pâmela)

É [concordando], ficar em casa... sem fazer nada. (Thaís)

Em que pese o dia livre para brincar - ou nem tão livre, em razão dos afazeres domésticos -, o eventual tédio que algumas meninas sentiam diante da escassez de opções de lazer em casa, bem como da baixa circulação no espaço público, podia ser potencializado aos sábados e domingos. Em razão disso, essas mesmas meninas apontaram que a escola oferecia mais oportunidades de lazer do que elas habitualmente tinham ao seu dispor em casa:

É, assim, eu venho pra cá [escola], é mais divertido. [...] A gente brinca, faz coisas... (Pâmela)

Tem mais tempo pra brincar [na escola]. [...] Que em casa a gente ajuda a mãe e tal. (Thaís)

Na escola, o recreio, o parque e o pátio forneciam praticamente as únicas oportunidades de exercer algo que lhes apetecia fora das obrigações cotidianas. Esse quadro é precisamente o oposto da situação descrita por Vítor:

Eu prefiro brincar na rua, porque na rua eu tenho bastante tempo pra brincar, e na escola eu tenho quase nada. (Vítor)

Ou também por Karlos, na conversa abaixo:

Pesquisador: Você gosta de brincar mais aqui [na escola] ou lá [na rua]?

Karlos: Lá! Que dá pra ficar até mais tarde. Aqui, não dá.

Ora, estamos nos referindo a crianças da mesma idade que residiam em regiões similares. Suas percepções da escola e de casa, a despeito das semelhanças que caracterizavam seus entornos, eram radicalmente distintas e ilustram o quanto as vivências das crianças as muniam com olhares múltiplos, por vezes contrastantes, sobre seus cotidianos. Mais do que generalizar a experiência de Thaís e Pâmela para todas as moças ou a de Vítor e Karlos para os rapazes, o que essas falas mostram é a importância de se prestar atenção em seus contextos, os quais tendem a ser organizados de maneira dicotômica em termos de gênero. Se há uma polarização entre os sexos, devemos nos perguntar que mecanismos a produzem e a sustentam. E, nesse tocante, vemos que o balanço trabalho-lazer parece ser chave para a construção de masculinidades e feminilidades no âmbito familiar.

Acesso à rua: liberdade ou restrição?

Eram as idas e vindas para a escola os poucos instantes que muitas das crianças tinham para usufruir o espaço da rua, em especial as garotas. A maioria das meninas parecia se encontrar em situações de quase confinamento doméstico, para as quais a "rua" era retratada como um ambiente que guardava diversos perigos. Com exceção de Lourenço, todos os riscos que o espaço público podia oferecer às crianças foram relatados por garotas e variaram dentro de um imenso leque de possibilidades: desde a potencial ameaça de ser atropelada até a existência de um "carro preto que passa e pega as crianças", passando pela presença de "gente fumando e bebendo" e o risco de pegar friagem e adoecer. Para além de uma aversão pessoal aos ambientes exteriores, tratava-se de um rígido controle imposto por familiares, em especial as mães. De fato, a quebra de normas como essa era digna de punição:

Minha mãe mandou eu não sair [de casa]. E eu fui lá pra casa da minha amiga. Aí quando eu cheguei lá, ela [mãe] me viu na rua, aí eu levei uma bronca dela. (Thaís)

Minha mãe não me deixou sair pra rua. Eu saí. Daí, quando ela chegou, ela brigou comigo. (Débora)

Embora morassem na mesma região e em domicílios proximamente localizados, Thaís e Débora raramente se viam fora da escola. Por não desenvolverem nenhuma atividade extraescolar no contraturno, elas passavam as tardes restritas ao ambiente doméstico com raras e breves saídas para residências vizinhas. Esse padrão, caracterizado pelo dispêndio de maior parte do dia em casa, também foi encontrado na rotina de Débora, Gisele, Bruna e, entre os meninos, Lourenço. À primeira apetecia jogar futebol, atividade que, quando realizada, acontecia apenas no quintal de casa. Entretanto, em sua fala ficou evidenciado que, nos arredores de seu domicílio, havia um espaço onde "os meninos" ficavam jogando e tocando bola. Apesar de acontecer nas imediações de sua residência, Débora ficava limitada ao ambiente doméstico, tendo autorização para sair à rua apenas ocasionalmente e com supervisão familiar: "Não posso andar na rua, porque tem gente fumando. [...] Meu pai, às vezes ele deixa eu ficar lá na rua um pouco, só quando não tem gente fumando e gente bêbada lá".

Além desses casos, cinco outras meninas estavam regularmente engajadas em atividades extraescolares no contraturno e, por isso, encontravam pouco tempo para saírem à rua, dado que o término de suas atividades diárias coincidia com o fim da tarde. Para essas garotas, a ausência de tempo se sobrepunha aos riscos da rua, que tampouco deixavam de ser citados. Porém, algumas delas encontravam, em sua rotina apertada, alguns instantes para frequentar o espaço público, tal como Iara, que alegou brincar na rua, mas "só um pouquinho".

Havia, também, diferenças na sensação de perigo da rua em função do local de moradia das crianças. A presença de favelas nas proximidades da residência apresentou-se como uma referência negativa para a região, em particular para as crianças que nela não habitavam: essas crianças, que moravam nas proximidades das favelas, ressaltaram o que significava ter, em sua vizinhança, um ambiente entendido como a fonte para as ameaças da rua. Em entrevista conjunta com Lourenço e Vítor - o segundo, morador da favela; o primeiro, de um bairro vizinho - evidenciaram-se os contrastes na ótica pela qual os dois percebiam o ambiente da favela e usavam-no ou não para justificar os limites da sua frequência à rua:

[Minha irmã] pediu pra eu ir lá na casa [...] do amigo dela [...]. Aí eu fui morrendo de medo que alguém me pegasse! Aí, eu fui correndo. [...] Lá é perto de favela e também tem essas coisas. (Lourenço)

Todo mundo me respeita ali na rua. [...] Eu moro na favela. [...] E eu não tenho problema nenhum com ninguém de lá. Meu pai gosta de todo mundo lá. (Vítor)

Ao passo que Lourenço descreveu seu medo de andar na rua, Vítor exprimiu tranquilidade e autoconfiança. Nas observações de campo e pela entrevista, reparamos que Vítor costumava fazer prova de sua masculinidade por meio do exercício de uma autoridade sobre seu irmão e suas irmãs, além de provocações de "mulherzinha" endereçadas ao pesquisador em campo. Como vimos no diálogo acima, sua relação com a rua, contrastando com a posição recuada de Lourenço, seguia o fluxo dessa masculinidade reafirmada. A segurança de Vítor esteve amparada na figura do pai, bem relacionado com "metade da favela" e, de acordo com a declaração que ele deu na sequência, disposto a, se for preciso, partir para agressão física a fim de zelar pela segurança do filho. Não por acaso o pai de Vítor era a referência do garoto no tocante ao domínio do espaço público e das interações que nele se estabeleciam, e que podia figurar como um "projeto de masculinidade" para o menino, no sentido empregado por Connell (1995, p. 190). Delineou-se uma hierarquia de masculinidades dentro da qual Vítor ocupava um lugar de dominância, pois na relação entre os dois garotos na entrevista se evidenciou uma posição de poder: Vítor, sem dúvida, tinha mais acesso à rua e isso lhe conferia privilégios, quer sobre o conjunto das meninas, quer sobre Lourenço. E esse privilégio era masculinizado - em tempo, Vítor acrescentou à sua descrição da rua aspectos relativos à força bruta de seu pai, certa dose de autoridade e uma corporeidade que significava o ambiente público como local de liberdade, segurança e respeito. A rua, a seu ver, era masculina.

Lourenço, por sua vez, não apresentava referências similares em sua casa - seus dois irmãos do sexo masculino eram adolescentes e seu pai se encontrava na Paraíba -, o que se somava ao fato de a presença da favela nas imediações ser enquadrada, em sua fala, como a representação de um perigo que a "rua" oferecia, assim percebida como uma entidade difusa. Em suma, era como se, para as crianças moradoras das favelas, não houvesse, na região, local com condições mais precárias que simbolicamente ocupasse o lugar de abjeção. Já para as demais crianças, as favelas constituíam-se como ambientes estereotipados em seus aspectos negativos, embora desconhecidos por dentro, e por consequência exerciam o papel de antagonista na relação que meninos e meninas construíam com seus locais de moradia. Exemplo disso é a interjeição "Deus me livre!" proferida por Bruna quando interrogada se vivia na favela, acompanhada pela seguinte explicação: "Tem tiroteio todo dia lá"; ou Enzo, que relatou tomar cuidado quando brinca na rua para que, desapercebido, não entre na favela. É sintomático, para citar novamente Lourenço, o retrato que ele pintou sobre essa mesma favela:

Eu ouvi que lá de noite tem polícia passando toda hora. [...] E, também, lá pra baixo da favela, também as 'polícia' vai lá e fica trocando tiro com os homens de lá. E eu nem sequer saio na rua quando... é... ouço os disparos. (Lourenço)

Ao iniciar sua fala com "eu ouvi que", Lourenço revela que sua constatação estava em grande parte baseada em rumores. Polícia, disparos e trocas de tiros com os "homens de lá" compunham esse imaginário da região vizinha e justificavam os limites de sua circulação no espaço público. Vítor, por outro lado, morava na favela caracterizada por Lourenço e em nenhum momento da entrevista realçou tais empecilhos.

Se, nos relatos anteriores, vemos duas crianças do mesmo sexo se relacionando com o espaço da rua de maneira contrastante a partir de locais de habitação distintos, um mesmo local de moradia também podia gerar interpretações divergentes, a depender do sexo da criança. Bruna e Karlos, por exemplo, residiam no mesmo logradouro, mas divergiam enormemente na forma como interagiam com o entorno de suas residências. Em entrevistas separadas, suas falas indicaram que ela enfrentava limitações no que tange à possibilidade de frequentar a rua, ao passo que ele entendia a rua como um local para brincar e circular livremente, corroborando a noção de que, em função de seu sexo, as meninas de setores populares urbanos tendem a ficar confinadas ao ambiente doméstico. Assim, vemos um paralelo com a divisão sexual do trabalho: uma mesma atividade está relacionada diferentemente com as crianças em razão de seu sexo - em casa, o que para uns significava obrigação, para outros era ajuda pontual; a rua significava ora espaço de possibilidades, ora de restrições.

De fato, não é exagero afirmar que o espaço público era entendido, pela maioria dos meninos, como uma extensão do lazer usufruído em casa. Nas entrevistas, notou-se que poucos riscos foram associados pelos meninos aos ambientes exteriores (ou, no limite, seus potenciais perigos não ganharam relevância em suas falas) e a rua era tratada com naturalidade:

Eu brinco na rua. (Juliano)

Dependendo do dia, eu jogo bola. Tem dia que eu posso andar de bike. (Alberto)

Às vezes chegam meus amigos me chamando pra brincar, aí eu vou. (Gustavo)

Eu posso sair de dia e posso ficar até de noite [na rua]. (Vítor)

Frequentar a rua trazia, para a maioria deles, oportunidades de lazer usualmente vetadas às meninas. Confirma-se a noção, anteriormente apresentada na literatura (PINTO; LOPES, 2009), de que os meninos constroem masculinidades tendo à disposição áreas mais amplas. E, nesse quesito, vale ressaltar uma distinção entre a rua e a escola: enquanto, na primeira, as possibilidades de acesso e circulação eram bastante discrepantes para meninos e meninas, na escola alcançava-se algum grau de igualdade no usufruto dos espaços. Sem negar que certos locais, tais como a quadra e o parquinho, eram frequentados mais por uns do que por outros, há de se reconhecer que eram a priorisimilares os espaços-tempos para conversar, correr e brincar, ou, ao menos, a noção de igualdade é uma premissa da instituição escolar e garante certa margem de autonomia para os sujeitos que nela se socializam (CHARLOT, 2009).

Finalmente, assim como para as discrepâncias na responsabilidade pelas tarefas domésticas, as meninas também foram capazes de perceber desigualdades de acesso à rua. Como resultado disso, elas expressavam sutilmente incômodos como, por exemplo, a fala entristecida de Débora, que ficava impossibilitada de praticar sua atividade de lazer favorita (o futebol). Outra garota, Iara, brincava com sua irmã em casa, mas não com seu irmão de 15 anos, que passava a maior parte do dia empinando pipa na rua, voltando para casa só à noite. Segundo seu relato, o motivo para o irmão ter autorização para ficar até tarde na rua não estava relacionado ao fato de ele ser mais velho. Foram duas as principais justificativas para tal permissão: "Porque ele é menino e ele é chato dentro de casa". Aquilo que Iara descreveu como uma "chatice" no interior do lar devia-se ao fato de seu irmão não se prestar a nenhuma tarefa doméstica, logo não contribuía para a organização do domicílio. Há de se acrescentar que o irmão de Iara nem sequer arrumava sua própria cama, deixando também as roupas jogadas no chão do quarto. O não envolvimento nos afazeres domésticos, por parte dele, implicava uma "punição" um tanto peculiar: permanecer nos espaços exteriores. Já o quase confinamento da garota articulava-se à sua importância na execução dos serviços domésticos. Aos olhos de sua família, Iara dificilmente seria entendida como uma "chata".

Para além do gênero, outros elementos - como a localização da residência, a presença de irmãs/os mais velhas/os e a relação construída entre seus familiares e a "rua" - pareciam influenciar as distintas formas pelas quais as crianças interagiam com seu local de moradia. Isso não nos impede de concluir, porém, que o espaço público apareceu nas falas das crianças como um ambiente bastante masculinizado, evidenciando uma divisão entre espaço interior e exterior, meninas e meninos, a partir da qual os outros fatores atuavam para minimizar ou reforçar as desigualdades.

Conclusões

Ainda que a interface família-escola seja objeto de muitas discussões na sociologia da educação, esses estudos raramente são enriquecidos com olhares sobre as relações de gênero e sua importância para a compreensão da escolarização de meninas e meninos, em especial quando se tomam como sujeitos de pesquisa as próprias crianças. Foi nessa lacuna que a presente pesquisa procurou adentrar.

Pelos nossos achados, podemos pensar duas principais vias pelas quais os processos de socialização familiar, em camadas populares urbanas, poderiam atuar na produção de desigualdades de gênero na educação básica. Em primeiro lugar, a cobrança de que as meninas participassem da rotina de afazeres domésticos e, mais, fossem proativas para limpar e arrumar a casa, cuidar dos irmãos mais novos e assumir compromissos perante a organização domiciliar parecia servir como um incentivo ao desenvolvimento de posturas tais como organização, disciplina e responsabilidade. Esses atributos convergem com muitas das qualidades que a instituição escolar exige ou espera de seu alunado: manter algum grau de asseio; estar ciente de suas obrigações e cumpri-las com autonomia; adotar uma postura madura e responsável; ser assíduo e privar-se de parte do seu tempo de lazer para corresponder a expectativas advindas de adultos; etc. Não se trata apenas de obediência e submissão a regras, haja vista que várias pesquisas têm realçado o quanto educadoras/es esperam também certo grau de autonomia e iniciativa por parte dos/as alunos/as (BRITO, 2006; CARVALHO, 2009; PEREIRA; CARVALHO, 2009). No caso das meninas estudadas nesta pesquisa, constatamos que o ambiente de casa também estimulava alguns desses valores, na medida em que se configurava como palco para uma rotina mais rígida, restrita e controlada, que poderia lhes fornecer subsídios para um "ofício de aluna" caracterizado pela responsabilidade e o hábito de se engajar em obrigações com regularidade - fenômeno análogo à noção de "ordem moral doméstica" proposta por Bernard Lahire (1997).

Em contrapartida, os garotos - com regras mais frouxas em seus afazeres - encontrariam no domicílio e na rua outras possibilidades que não a privação do lazer em nome de um dever acima de suas vontades individuais. Não à toa, o único menino que regularmente executava as tarefas domésticas era Lourenço, estimulado por uma sensação de tédio, visto que a ausência de alternativas não lhe conferia outra opção de atividade a não ser a colaboração na rotina domiciliar. Essa exceção corrobora que o balanço trabalho-lazer se configura eminentemente enquanto uma oposição entre participar dos afazeres domésticos e dispor de oportunidades de lazer e circulação na rua.

Outro aspecto concernente à relação entre socialização familiar e escolarização das crianças diz respeito aos distintos significados que a instituição escolar adquiria para meninos e meninas de setores populares urbanos em função de seu cotidiano fora da escola. Não é difícil notar que o leque de atividades encontradas pelas meninas em seus lares recorrentemente as afastava de alternativas de lazer e sociabilidade. Nesse contexto, se comparada ao ambiente familiar e à própria sociabilidade exercida no espaço público, a escola poderia ser vista como uma instituição que "favorece o êxito das mulheres ou, pelo menos, não as discrimina tanto quanto os outros campos da sociedade", de acordo com Charlot (2009, p. 167). Apesar de existirem denúncias de que a escola é palco de situações de discriminação sexista, esses mecanismos, por si mesmos, não explicam tudo o que acontece em seu interior. E, nesse aspecto, percebe-se a ocorrência de uma significação positiva da escola, por parte da maioria das meninas, enquanto um espaço que lhes oferece aquilo do qual elas estão privadas em seus cotidianos regrados.

É essencial atentar para o quanto as masculinidades e feminilidades não são um produto definido ou fixado, senão um processo que está sendo reiteradamente construído (THORNE, 1993). Entre as crianças estudadas, o gênero associado às suas atividades de lazer, ou à ausência delas, descortinava cotidianamente a existência de formas reiteradas de socialização que priorizavam, às garotas, a atribuição de responsabilidades domésticas e menores possibilidades de lazer, em tendência oposta ao observado para os rapazes. Nesse sentido, são ainda atuais as conclusões de Duque-Arrazola (1997, p. 390) de que a escola "para alguns(mas) é um lugar de recreação e de encontro com colegas ou, contrariamente, para outros, sobretudo meninos, é um período que interrompe seu lazer na rua". Perceber a escola como espaço agradável e a ela comparecer prazerosamente - o que era muito mais frequente entre as meninas - pode se constituir num primeiro passo para a construção de trajetórias escolares bem-sucedidas e mesmo para uma aproximação proveitosa ao processo de construção de conhecimentos.

Se, por um lado, é verdade que não podemos estabelecer uma relação linear entre contribuir em casa e obter um desempenho satisfatório na escola, por outro, dispomos de elementos suficientes para afirmar que a socialização familiar, em particular entre crianças de camadas populares urbanas, é um processo altamente sexista que se arma sobre uma lógica binária: a participação nos afazeres domésticos e a privação do lazer em contraposição à circulação na rua. Logo, há um conjunto de práticas a partir das quais masculinidades e feminilidades são construídas, fornecendo referenciais distintos para se aproximar ou se distanciar do processo de escolarização. Outras pesquisas são necessárias, no entanto, para aprofundar em pontos tais como a influência nesses processos tanto da ocupação parental quanto das relações entre irmãos e irmãs.

Em vista dos resultados apresentados, concluímos que essas duas vias - a socialização familiar como um motor para a construção de feminilidades em sintonia com as expectativas escolares; e a significação positiva da escola em contraste com as rotinas familiares marcadas por controle e responsabilidade - sugerem caminhos para se entender as desigualdades de gênero na educação brasileira, eminentemente caracterizadas pelo desempenho superior das meninas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    Jun 2015
  • Aceito
    Jul 2015
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