RESUMO
Este artigo propõe refletir acerca da relação entre a Psicanálise e a Educação enquanto campo de saber produzido por meio da práxis educativa. O saber subjetivo implicado com o ato educativo e os laços sociais produzidos no cotidiano escolar são dimensões estruturantes à prática e à formação do profissional da educação, no que tange à relação do sujeito com o desejo e o saber. Em contraste à tradicional visão da psicologia “aplicada à Educação”, certa leitura da Psicanálise tem contribuído para pensarmos os laços sociais produzidos em nome da Educação, caminho aberto para refletirmos a implicação do sujeito na formação e profissão docente.
Palavras chave: Educação; Psicanálise; Fracasso Escolar; Formação de Professores
ABSTRACT
This article aims to reflect on the relationship between Psychoanalysis and Education as a field of knowledge produced through educational praxis. The subjective knowledge intertwined in the educational act, and the social ties produced in daily school life are the structuring dimensions of the practice and training of education professionals, regarding the subject’s relation to desire and knowledge. In contrast to the traditional view of Psychology “applied to Education”, a different interpretation of Psychoanalysis has contributed to our thinking on the social ties produced in the name of Education as an open path for reflection on the subject’s involvement in teacher training and teaching profession.
Keyword: Education; Psychoanalysis; School Failure; Teacher Education
RESUMEN
Este artículo propone una reflexión acerca de la relación entre el Psicoanálisis y la Educación como campo de saber producido por medio de la praxis educativa. El saber subjetivo implicado con el acto educativo y los lazos sociales que se producen en el día a día escolar son dimensiones que estructuran la práctica y la formación del profesional de la Educación en lo que atañe a la relación del sujeto con el deseo y el saber. En contraste con la tradicional visión de la Psicología “aplicada a la Educación”, algunas lecturas del Psicoanálisis han contribuido para pensar los lazos sociales que ocurren en nombre de la Educación, camino abierto para reflexionar sobre la implicación del sujeto en la formación y profesión docente.
Palabras-clave: Educación; Psicoanálisis; Fracaso Escolar; Formación de Docentes
RÉSUMÉ
Cet article propose une réfléxion sur la relation entre la Psychanalyse et l’Éducation en tant que champ du savoir produit par la praxis éducative. La connaissance subjective sous-jacente l’acte éducatif et aux liens sociaux de la vie quotidienne de l’école sont des dimensions structurantes de la pratique et de la formation des professionnelles de l’Éducation, en ce qui concerne le rapport du sujet avec le désir et le savoir. Contrairement à la vision traditionnelle de la Psychologie «appliquée à l’Éducation», une certaine lecture de la Psychanalyse contribue à penser les liens sociaux produits au nom de l’éducation, et ouvre un chemin pour la réfléxion sur l’implication du sujet dans la formation et la profession d’enseignant.
Mots-clés: Education; Psychanalyse; Échec Scolaire; Formation des Enseignants
Ao abordar os desafios contemporâneos acerca da formação docente, retoma-se o passado, ao mesmo tempo que se coloca em debate uma série de questões que vão desde as ditas transformações instauradas com a famigerada pós-modernidade e suas implicações na constituição dos sujeitos, incluindo o debate acerca da própria formação psicológica desses profissionais, a pluralidade discursiva de saberes e práticas existentes, a dicotomia entre teoria e prática na formação educacional, o abismo entre o sujeito abstrato-universal das teorias e os sujeitos concretos, as “ilusões (psico)pedagógicas”, os discursos do “fracasso escolar”, passando pelos diferentes paradigmas de profissionalização, num contexto marcado pelo recrudescimento tecnocientificista e utilitarista em detrimento de concepções mais processuais no campo educacional. Em suma, tais questões interrogam a função social e política de todo conhecimento na constituição de nossas sociedades consideradas “ultraliberais”.
Como sabemos, a história da educação brasileira é uma história arbitrária que nos remete ao nosso violento processo de colonização cultural e social, constitutivo de uma sociedade extremamente autoritária, permeada por injustiças, desigualdades e abismos psicossociais. Nesse percurso, podemos dizer que as práticas sociais quase sempre legitimaram a opressão, o controle e a estratificação social dos diferentes e das classes populares. Uma reflexão constante para quem pesquisa e trabalha com processos psicossociais e socioeducativos refere-se aos efeitos simbólicos e concretos das práticas discursivas, isto é, se elas produzem laços sociais voltados à formação e subjetivação dos sujeitos em substituição e superação às práticas educacionais que se revelam uma trama de relações que geram suporte a toda forma de estigmatização e discriminação social em relação à diversidade sociocultural presente nas instituições socioeducativas.
Atualmente, o processo de democratização da educação e do sistema de ensino, no Brasil, tem implicado aos profissionais de educação o reconhecimento da heterogeneidade e pluralidade humana, da igualdade de direitos e da justiça social, em termos de ações afirmativas em relação aos grupos socioculturais que foram injustiçados e marginalizados ao longo do tempo, representando uma parcela considerável de crianças e adolescentes que são sistematicamente excluídos da escolarização formal e da educação pública.
Gadotti (2012) lembra que “a luta por uma educação social emancipadora precisa ser travada no interior do Estado e, portanto, na própria escola formal (pública)”, não no sentido de opor de modo maniqueísta educação escolar e educação social, mas para se enfatizar a função social de toda educação, em que o próprio sistema educacional precisa ser “formado” socialmente para repensar a estrutura da sociedade e da escola. Trata-se, primeiramente, do desafio de reconhecer o papel sociopolítico da educação, como projeto político de sociedade, que ocorre ou deveria ocorrer tanto dentro como fora da escola, em detrimento de uma visão conservadora, elitista ou meramente economicista e pragmática de educação e ensino.
A democratização da escola e o direito à educação ainda são realidades bastante questionáveis em nossa sociedade. Dados de agências nacionais e internacionais mostram como a educação e o ensino ainda são “bens sociais” pouco acessíveis para a população infanto-juvenil pobre brasileira, seja porque alguns não chegam à escola, como cerca de 8% da população entre 4 e 17 anos que estão atualmente fora da escola, seja porque abandonam prematuramente a educação básica e, mais ainda, porque muitos terminam o ensino fundamental sem saber ler e escrever minimamente. Em relação aos demais países da América Latina, os indicadores e as estatísticas acerca da educação indicam certo aumento na “quantidade” do sistema, mas “sem qualidade” educacional, no que concerne ao ensino brasileiro como um todo, tanto público como privado (PREAL, 2009).
Quando abandonamos certas leituras técnicas acerca da qualidade da educação e nos voltamos ao dia a dia das escolas, aos discursos correntes, à cultura, às práticas recorrentes e às narrativas cotidianas, podemos deixar o mundo abstrato e aparente criado pela racionalidade prático-formal dominante e nos aproximarmos das tramas e histórias individuais e coletivas enquanto práticas discursivas que nos ajudam a estudar alguns efeitos dos laços sociais produzidos no cotidiano da escola.
Diversas cenas cotidianas nos auxiliam como ilustração: alunos reclamando da falta de professores; falta de espaços para estudar na escola; falta de interesse dos próprios alunos pelo ensino que é ofertado na escola pública. Se pararmos para escutar esses alunos, talvez identifiquemos algo de verdadeiro: “a escola não se importa com eles”. Uma possível avaliação por parte desses alunos em relação ao sistema de ensino que conhecem: um sistema construído para não formar, que despreza seus esforços quando simplesmente não garante professores implicados com o dia a dia da escola.
Mas será que a escola realmente não se importa com eles? Não está “nem aí” para eles? Uma das principais queixas dos profissionais da escola consiste justamente no oposto: “os alunos não querem saber de nada” (PEREIRA, 2008). Cabe ainda perguntar se os alunos não estão “nem aí” para a escola do mesmo modo que a escola também não está “nem aí” para os alunos? Será que tudo se passa como se os alunos fizessem de conta que estudam e os professores fizessem de conta que ensinam, ambos regidos por certo conformismo, impostura e cinismo?
E mesmo se tivéssemos boas condições materiais e humanas na maioria das escolas públicas do país, será que seriam apenas esses os fatores que definiriam outra realidade social e escolar, outro engajamento do aluno, do professor, do adulto com a educação em geral? Tendo em vista que os mesmos problemas ocorrem em países cujos sistemas de ensino são considerados de excelência, em que a escola laica, obrigatória e gratuita foi universalizada há tempos, devemos ser cuidadosos com o reducionismo que opera tal leitura. Certamente não desconhecemos as condições sociopolíticas e infraestruturais que produzem um sistema de ensino historicamente dividido, marcado por contradições de diferentes ordens e dimensões. No entanto, há um nível primário de condições simbólicas e imaginárias para a ação humana que requer voltarmos a atenção para a inserção social dessa escola enquanto dispositivo simbólico que produz efeitos sobre a formação psíquica do sujeito, principalmente quando é consenso que vivemos uma crise de sentido na escola e na Educação contemporânea ou, melhor dizendo, uma crise do desejo (CHARLOT, 2013; PEREIRA, 2008; OTTAVI, 2009).
Está certo que as reivindicações por melhorias estruturais e condições de trabalho educativo são questões concretas e justas, principalmente numa sociedade como a brasileira, em que o atraso educacional e o descaso com a educação pública são marcas históricas das elites governantes. Mas também é fundamental se interrogar: o que de fato a sociedade demanda dessa escola? O que a escola pretende com esses alunos? Qual a posição desses alunos, o que desejam em relação à escola? Sabemos que a “indisciplina” e as “dificuldades de aprendizagem” dos alunos tornaram-se “queixas escolares” no mundo todo. Entretanto, a questão da relação com o saber e o sentido da aprendizagem permanecem apagados nesse debate, ou seja, questões centrais que passam “despercebidas” aos discursos acadêmicos e ao discurso pedagógico dominante. Como destaca Ottavi (2009), existe uma forte tendência nas ciências da Educação que consiste em negar o mal para atribuir preconceitos, principalmente quando os obstáculos atuais à aprendizagem ameaçam uma convicção profunda e constitutiva de nossa cultura ocidental cuja escola possui a função de “emancipar” os indivíduos, seja sob a figura de cidadania, seja sob a figura de “desenvolvimento” da personalidade.
Para outros pensadores e pesquisadores, vivemos atualmente em um cenário de enfraquecimento das instituições da Modernidade enquanto referências nos processos de socialização, que tende a alterar o vetor da transmissão, do ensino e da aquisição do conhecimento, aumentando as vicissitudes na relação entre jovens, educadores e nossos dispositivos educativos, sejam estes formais ou não formais. Entre outros, Jean-Pierre Lebrun (2010), Charles Melman (2003) e Dany-Robert Dufour (2005) avançaram na tese de que as grandes mudanças antropológicas de nossa civilização envolvem uma nova economia psíquica fundada sobre a prevalência do gozo sobre o desejo e o pensamento, numa busca infinita de excitação-satisfação e numa relação de adição com os objetos, enquanto efeitos do discurso capitalista hegemônico. Em tal perspectiva, assistiríamos cada vez mais à recusa da autonomia subjetiva frente ao objeto, o solipsismo do gozo narcisista, do mito self- made man e da indiferença nas relações afetivas.
A denominada crise da autoridade e da tradição, o apagamento das diferenças geracionais e dos marcadores simbólicos de outrora, a desautorização do educador, a apatia, a violência, a impotência, a perda de sentido/desejo nas escolas, a ênfase tecnicista no ensino e a busca por resultados imediatos em detrimento da formação social e cultural dos mais novos, junto ao empuxo ao gozo, ao consumo e ao utilitarismo neoliberal são alguns dos “retratos do mal-estar contemporâneo na educação” (VOLTOLINI, 2014).
Embora o sistema educativo não tenha alterado seus objetivos primordiais (desenvolvimento pessoal, utilidade social e profissional, formação à cidadania e/ou à democracia), o sentido da educação e da escolarização sofreu mudanças ao longo do tempo, obviamente. Se, na primeira metade do século XX, os discursos de “moralizar o povo” e “formar as elites dirigentes” caracterizaram o denominado Estado Educador, com sua escola republicana do final do século XIX, nos anos de 1960 tal imaginário recebeu as marcas do ideário do Estado Desenvolvimentista (CHARLOT, 2013). A relação entre capital, educação e trabalho caracteriza bem o período desenvolvimentista, em que a educação é reapresentada na lógica do discurso econômico, com forte influência da economia da educação e das teorias do capital humano. Pode-se inferir que a função social da educação subordinou-se às exigências e às demandas de desenvolvimento econômico dos países no período da Guerra Fria, no qual as reformas educacionais redirecionaram estrategicamente a escola para a formação do trabalhador para o processo de produção. Com a globalização financeira e a hegemonia neoliberal, nos anos de 1980, a emergência do Estado Regulador aprofundou o viés economicista e utilitarista no campo educacional. O mercado passou a ser o modelo para as regulações, operações e instituições do Estado, reforçando a inscrição da educação como mercadoria, isto é, o ensino passou a ser cada vez mais gestado e produzido na lógica do mercado, da produtividade, da concorrência, da eficácia, do rendimento, da avaliação de resultados, do pagamento por desempenho, entre outros.
Podemos observar que aquilo que fazia parte de um pacto tácito em relação aos próprios objetivos e finalidades educacionais tornou-se um debate público recorrente no “espetáculo” midiático e informacional. O imaginário social e educacional segue de perto o discurso econômico, enquanto as finalidades produtivas e financeiras reinscrevem a educação e o ensino como “comodities” especiais no mercado competitivo globalizado. A influência de organismos internacionais como a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico - OCDE - na determinação política, no planejamento e na gestão de conteúdos e resultados educacionais segue ditando a padronização dos sistemas de ensino em nível mundial, alimentado pelo espetáculo informacional das avaliações internacionais de qualidade da educação, pressionando os governos a competir por melhores índices e resultados.
Atualmente, como destacam os trabalhos de Charlot (1979, 2000a, 2013), vivemos uma confusão em relação ao sentido e às finalidades educativas que retratam uma crise mais ampla de nossas sociedades, em que “há cada vez mais alunos que vão à escola apenas para passar de ano, sem encontrar nela sentido, prazer” ou desejo de aprender (2013, p. 59). Ao que tudo indica, não se trata mais da questão de alfabetizar uma criança, de formar uma pessoa, de cultivar um aluno, mas de cinicamente capacitá-lo e instrumentalizá-lo com as chamadas técnicas “bem-sucedidas”, visando à preparação para as inúmeras avaliações externas, aos renovados testes de mensuração de resultados (entenda-se “aprendizagem”), cujos efeitos regem a política, os sistemas de ensino, a organização do trabalho escolar, a relação entre os sujeitos, a relação do aluno e do professor com o próprio saber (PASSONE, 2014, 2015a, 2015b).
Nesse contexto, defrontamo-nos com paradigmas distintos de formação docente, que também refletem as contradições entre uma visão meramente tecnicista em oposição a um modelo de formação crítico- reflexiva e sociopolítica. O paradigma tecnicista visa a transformar os sujeitos em meros técnicos ou autômatos, flexíveis e substituíveis, isto é, retrato de uma formação docente anônima, descontextualizada da realidade histórica e sociocultural da maioria de nossas crianças, adolescentes e jovens, desvinculada de toda relação do sujeito do desejo e do saber, ou, como nos ensina a Psicanálise, desvinculada de toda filiação simbólica, de toda relação de transferência e desejo, que constituem os laços sociais necessários à constituição dos sujeitos.
Para além desse “deserto do real”, também é preciso reconhecer que, para muitas crianças e adolescentes, as práticas educativas existentes continuam sendo um espaço privilegiado de constituição de vínculos sociais, principalmente do ponto de vista do convívio entre os pares, como destaca Charlot (2000a, 2013). Um local permeado de saberes, acontecimentos e experiências que, no conjunto do tecido social, engendra um lugar central à escola enquanto instituição de “cuidados” aos mais novos. Em sua “Sociologia do Sujeito”, com forte aporte da Psicanálise e da Psicologia sócio-histórica, Charlot (2000a, p. 33) lembra que o sujeito é um ser humano, portador de desejos que os guia, ao mesmo tempo que é constituído por meio de relações com outros sujeitos, estes também desejantes; um ser social, que nasce e cresce em uma família, que integra um espaço social e estabelece relações sociais; e um ser singular, que possui uma história, que interpreta o mundo, dá sentido à posição que ocupa nele, às relações que estabelece com os outros e à sua própria identidade.
Ao agir “no e sobre o mundo”, esse sujeito “se produz ele mesmo, e é produzido por meio da educação”, embora, muitas vezes, a cultura e a organização escolar acabem por doutrinar, mistificar ou impossibilitar a vida dos mais novos, no âmbito de seu percurso escolar. Isso não nega o fato de que somos herdeiros de uma história e podemos simplesmente assumi-la alienadamente como destino ou, por meio dessa história, sonhar com novos mundos e inscrever outros percursos às nossas vidas. No entanto, também sabemos pela própria experiência clínica que um meio social que produz mais “traumatismos” do que condições ao educar acaba por retirar do sujeito sua capacidade criativa de sonhar, construir fantasias e pensamentos, como mostra a Psicanálise em relação ao psiquismo, ou seja, cria-se um estado “desiderativo” que retira força da função criativa de elaborar singularmente suas vivências cotidianas. Não há dúvidas de que a função social da educação passa pela reflexão dos meios de vida social em que vivemos, pela denúncia das relações de violência, opressão, alienação e exploração que ocorrem tanto na sociedade em geral de forma mais explícita como nas práticas sociais de modo sutil e dissimulado, lembrando que o sujeito é esse que, mesmo dominado e subjugado, continua sendo um sujeito.
A Psicanálise apresenta uma concepção de sujeito e subjetividade radicalmente diferente. O sujeito é esse que tende a evadir-se das imputações culturais e de seus modos de civilização. Nesse sentido, o sujeito não é idêntico às formas de identificações que a civilização lhe impõe, ao contrário, o sujeito é esse que retrata uma verdadeira objeção aos constrangimentos e imposições sociais, isso que resta irredutível a toda forma de normalização e homogeneização.
Freud destacou em Psicologia das massas e análise do eu (1996/1921) que o homem é um animal da horda, isto é, ele “não aceitaria e resistiria sempre à homogeneização do seu ser e manteria a sua diferença face ao outro como signo maior de sua condição ética e política” (BIRMAN, 2005, p. 39). Em Análise terminável e interminável (1996/1937), Freud apresenta sua conclusão de que governar, educar e psicanalisar são práticas impossíveis, na medida em que o sujeito resistiria a qualquer tentativa do outro de homogeneizá-lo, de apagar a marca de sua singularidade - marca tanto da dimensão inconsciente presente nas práticas sociais como de suas possibilidades históricas e libidinais, enquanto sujeito de desejo e sujeito de uma história.
No decurso da história das civilizações, construímos diferentes formas de expressar e enunciar nossos valores, sentimentos e ideias, por meio das quais julgamos nossa existência: o saber mítico-poético, religioso, filosófico e científico são alguns exemplos. No fundo, a práxis educacional busca garantir aos sujeitos a defrontação com essas diferentes formas de expressão da significação existencial criadas pelo homem, permitindo a filiação simbólica com o mundo, de acordo com a singularidade de cada um. Desse modo, a educação forjada por meio da escolarização moderna representa um laço social recente de nossa cultura que busca introduzir os mais novos no mundo da cultura, do saber, do conhecimento, etc.
O que o homem é hoje, como ele vive, o que ele pode se tornar constitui nossa reflexão filosófica e histórica acerca da própria condição humana, das possibilidades de vir a ser da organização societária, de nossa própria constituição e formação humana. Como diz Gramsci (1995, p. 38), “o que o homem pode se tornar, isto é, se o homem pode controlar seu próprio destino, se ele pode se fazer, se ele pode criar sua própria vida”.
Nesse processo ocorre também a constituição subjetiva, como nos leva a pensar a Psicanálise, para dizer de uma “educação preparada para a realidade impossível do desejo”, um referencial que concebe “pensar a educação no interior do campo da palavra e da linguagem animada pelo desejo e, dessa forma, colocar em relevo o seu estofo de laço social” (LAJONQUIÈRE, 2010a, p. 78). Como propõe Lajonquière (2010a, p. 63): “educar é transmitir marcas simbólicas que possibilitem à criança conquistar para si um lugar numa história, mais ou menos familiar, e, dessa forma, poder se lançar às empresas do desejo”.
Na vertente da práxis educacional que se construiu no campo da Psicanálise e Educação, compreende-se o complexo fenômeno da educação como um conjunto de práticas sociais mediadas pelo Outro social, por diversas instituições formais e não formais, que envolvem processos de hominização, socialização e subjetivação. A educação, quando tratada de modo mais amplo, pode ser pensada como constitutiva do psiquismo humano, possibilitando aos sujeitos se posicionarem em relação à sua história, cultura, sociedade, ao outro e a si próprio. Tais práticas produzem sentidos e significação acerca da realidade social dos sujeitos, grupos, coletivos, etc. Elas ocorrem nos grupos de convivência e nas diversas instituições da sociedade, tais como família, escola, trabalho, meios de comunicação, grupos comunitários, postos de saúde, entidades socioeducativas (organizações não governamentais, programas e políticas sociais), redes sociais, etc. Trata-se das diversas mediações discursivas que produzem laços sociais e representam o desafio permanente de refundar o mundo do socius e da História. De modo específico, a Psicanálise tem contribuído para pensarmos os laços sociais produzidos em nome da Educação, caminho aberto para refletirmos a implicação do sujeito na formação e na profissão docente que, ao menos em tese, deveria ser sempre um educador social, no sentido amplo do termo.
Assim, consideramos que um dos grandes desafios à formação e prática docente consiste em dotar o professor de perspectivas analíticas que o auxiliem a identificar certas ilusões e mistificações, no campo das ciências da educação, como os discursos que produzem “situações de fracasso escolar”, de modo que o educador possa se apreender implicado dialeticamente em sua práxis, isto é, em que o educador possa assumir-se em relação à sua própria atividade e consiga propor uma prática que sirva de alternativa frente ao histórico modelo escolar seletivo de ensino, que rotula e exclui as diferenças e os diferentes, por meio de preconceitos de raça, gênero, classe social e psíquico. Como destaca Enriquez (1990, p. 13), Freud e Marx nos ensinaram sobre a “não validade de toda teoria que não seja a expressão de uma prática social, que deve ser acompanhada sistematicamente, e continuamente refletida e interrogada”. Nessa vertente, o saber subjetivo acerca das relações educativas implicadas no ato educativo e a produção de laços sociais no cotidiano escolar são dimensões estruturantes no que tange à relação impossível do sujeito com o saber.
Desse modo, a abordagem do real educacional e social de nosso tempo coloca em primeiro plano os estreitos vínculos entre os processos de constituição subjetiva e o contexto sociocultural, político e econômico. A problematização da realidade psicossocial instituída junto aos processos educativos torna-se um compromisso à formação e prática docente, visando à promoção de uma práxis educativa que busque superar a face imediata das relações, face essa caracterizada pela falta de mediação simbólica, por situações irrefletidas que se constituem, na maioria das vezes, em formas coercitivas e discriminatórias de lidar com as situações. De outro modo, busca-se inscrever a face da alteridade, isto é, do encontro e do reconhecimento da singularidade do outro semelhante e do Outro da cultura; alteridade que se constitui como relações marcadas por outros sentidos, que se concretiza no laço social entre uma criança e um adulto, levando em conta as distintas realidades socioculturais dos sujeitos, grupos, instituições e organizações sociais e educativas.
HISTÓRIA COMO SÍNTESE PRESENTE DO PASSADO: OS DISCURSOS DO FRACASSO ESCOLAR
Tomar a história para além da sucessão cronológica implica pensá-la como “síntese presente do passado”, como diz Lacan (1986, p. 48), em que a repetição e transferência de trabalho conduzem à produção de uma história em cujo ponto de gravitação se situa o sujeito. Uma história mais ou menos renovada, mas sempre singular. Se, do ponto de vista psíquico, o (sujeito do) inconsciente é atemporal, do ponto de vista histórico, ele é político (PEREIRA, 2014). Dizer que o “inconsciente é a política”, como aponta Lacan,2 retrata certo deslocamento do inconsciente: retirá-lo das “profundezas e para fora da esfera solipsista, para colocá-lo na Cidade e fazê-lo depender da história, da discórdia do discurso Universal a cada momento da série que nela se cumpre” (MILLER, 2011, p. 7).
Em função de tal abordagem, tomamos em análise os discursos do “fracasso escolar” para situarmos certos pontos e questões que retornam sempre ao mesmo lugar, a saber, como “psicopatologização das diferenças” e “estigmatização das desigualdades sociais” - enquanto traços historicamente presentes nas práticas escolares e socioeducativas. Desse modo, apresentamos alguns recortes de aspectos históricos do ensino no Brasil, tendo como escopo o lugar que os discursos ocupam na produção do “fracasso escolar”.
Nisso não há nada de espantoso, visto que o discurso - como a Psicanálise nos mostrou - não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é objeto do desejo; e visto que - isso a história não cessa de nos ensinar - o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. (FOUCAULT, 2000, p. 10)
Como dispositivo simbólico, a escola produz materialidade a um conjunto de práticas discursivas, como esclarece Foucault (2000), em que os discursos revelam seus efeitos no que diz respeito ao real, sua relação com o desejo e com o poder, dando consistência às relações, representações e realidades dos sujeitos, grupos e instituições. Tais práticas também produzem discursos e representações acerca dos alunos que acabam por determinar e produzir as relações existentes na escola. Tal fundamento possibilita-nos pensar e tratar o “fracasso escolar” produzido a partir dos laços sociais e seus efeitos na escola pondo em análise os discursos que dominam o campo social escolar. Como esclarece Kupfer (2007, p. 127):
As crianças se tornam fracassadas escolares a partir do modo como a escola aborda, ataca, nega e desqualifica o degrau, a diferença social, o desencontro de linguagens entre as crianças de extração pobre, de um lado, e a escola comprometida com outras de extrações sociais, de outro.
Nesse caso, tomamos o “fracasso escolar” como um significante, o que implica considerá-lo numa cadeia discursiva que produz seus efeitos sobre os sujeitos, isto é, que estrutura uma significação social em torno da “situação de fracasso” que, concomitantemente, carrega em seu âmago a exclusão da linguagem e do meio social. Nesse caso, cabe-nos perguntar, como o discurso escolar situa a criança ou o aluno nessa relação? Qual lugar ocupa um aluno no discurso do Outro (família, escola, sociedade)?
Na sociedade Moderna, o significante escola marca um lugar de reconhecimento social para uma criança. No entanto, tal lugar pode “aprisionar a criança numa rede de relações perversas que distorcem ou eliminam o sentido de estar na escola” (KUPFER, 2007). Desse modo, ao problematizarmos os discursos do “fracasso escolar”, consideramos certa posição subjetiva na linguagem, que bem pode se tornar (des)subjetivada de acordo com a maneira como o aluno está situado como objeto ou sujeito no interior desses discursos.
Como produção sócio-histórica, podemos considerar que os discursos do “fracasso escolar” que conhecemos estão indissociavelmente articulados aos discursos da avaliação, tomando a avaliação no sentido de uma “limpeza de chaminé”, como dizem Miller e Milner (2006), em que tudo aquilo que não funciona deve ser substituído. No caso do ensino, um cognitivo “estragado” por um que funcione, que trabalhe e que produza de acordo com as expectativas esperadas, lembrando que não se demanda pouco de uma criança nesse início de século XXI.
Jerusalinsky (1999) comenta que, desde o fim do século XVII, ao se estabelecer um desempenho escolar suposto como “natural” e/ou “necessário”, a avaliação produziu um standard, um “sujeito infantil” suposto normal e fundado em expectativas imaginárias impossíveis. Como contraste dessa suposta normalidade implícita à padronização da educação, a avaliação determinou “um eixo com relação à qual todas as crianças ficam comparadas”, ocasionando a emergência tanto de uma “psicopatologia das aprendizagens” como de uma “psicopatologia da adaptação escolar”, criando um campo de práticas e saberes específicos direcionados ao “tratamento” e à “educação” daqueles grupos e indivíduos que se desviam desse padrão (JERUSALINSKY, 1999, p. 179).
O desconhecimento sistemático de certos pontos deixa o campo livre aos discursos pedagógicos hegemônicos, esses que voltam sempre a individualizar, culpabilizar e vitimizar o aluno pelo “fracasso escolar”, seja pelo viés da medicina, da psicologia, da sociologia ou, como atualmente, pelo viés das “neurociências”, que encontra apoio e suporte comum na ciência farmacológica sustentada pelo capital. A “resistência” de refletirmos acerca de nossa história educacional, principalmente sobre isso que fracassa, somente reforça as ilusões produzidas e cultivadas no campo educacional, como as já conhecidas “ilusões (psico)pedagógicas” (LAJONQUIÈRE, 1999), as quais operam sistematicamente para desimplicar o sujeito de suas ações e para tamponar a (in)determinação real do inconsciente, que não cessa de não se escrever, no âmbito de nossas práticas sociais e educativas. Tal é o ponto de nervura de que todo discurso foge, isto é, a implicação do sujeito com seu não saber, com o impossível saber do desejo.
Nossa história educacional é uma história da educação “bancária”, como afirma Freire (1981), em detrimento da educação popular e social. Do ponto de vista histórico, as políticas de formação dos professores acompanharam o retardatário processo de instituição da Educação ou sistema de ensino público no Brasil, isto é, constituíram-se enquanto mecanismos de controle e submissão das camadas populares, como um sistema educacional rígido, seletivo e estigmatizante do ponto de vista da estratificação social, que pouco visava às demandas de uma educação formadora da polis. Um sistema de ensino que não correspondia às inspirações de um Estado Educador, como aconteceria em outras partes do mundo, como na Europa, na América do Norte e em parte da Ásia.
No Brasil, a história da psicologia escolar e educacional também mistura-se com a institucionalização da escola da República (PATTO, 1981, 1999). Os ideais do movimento higienista e os pressupostos “científicos” do escolanovismo colaboraram para a incorporação dos discursos psicológicos às práticas educativas e à popularização da “psicologia aplicada à educação”. Assim, no final do século XIX, surgiram os primeiros laboratórios experimentais de pedagogia criados junto às Escolas Normais, para proporcionar uma formação psicológica aos professores primários. Concomitantemente, foram criadas as clínicas de higiene mental voltadas à profilaxia e à prevenção, principalmente à infância assistida, com base no modelo médico higienista e com forte incorporação da psicanálise pelo viés da medicina da época.
As teses ou discursos que analisam e justificam os motivos pelos quais uma criança enfrenta dificuldades na escola variam conforme a época e o contexto sociopolítico, obviamente. A ênfase na mensuração psicométrica, com os testes de inteligência e personalidade, paralelamente ao modelo clínico profilático, caracterizam os discursos na primeira metade do século XX, com forte inclinação à classificação, adaptação e normalização das crianças e jovens. Aos alunos avaliados com dificuldades escolares eram propostas ações de reeducação, com a multiplicação de serviços especializados e assistenciais.
Entre as décadas de 1940 e 1950, dominou a ideia das aptidões e dons inatos, como a inteligência congênita, a maturidade, a prontidão para o aprendizado, por um lado, e as teses interacionistas, como a influência ambiental, a psicogênese cognitiva e a formação sociocultural da mente, por outro. As teorias das “privações” e das “carências” (alimentares, afetivas, cognitivas, linguísticas e culturais) tornaram-se as explicações predominantes no que concerne às justificativas para o “fracasso escolar” (PATTO, 1999). Por um lado, o “fatalismo biológico”, em que a criança não aprendia por falta de habilidades intelectuais decorrente de fatores genéticos e, por outro, o “fatalismo social”, segundo o qual as dificuldades intelectuais eram então decorrentes da falta de estimulação ambiental na vida precedente do escolar (CAMPOS, 2008).
Nos anos de 1970 e 1980, a Sociologia reprodutivista seria incorporada pelo imaginário pedagógico e, como destacam os trabalhos de Patto (1999) e Charlot (2000a), alimentaria uma série de desvios e exageros interpretativos acerca das teses de Bourdieu e Passeron (1970). As diferentes posições sociais eram interpretadas em termos de origem social, de deficiências e de causalidade. Na prática, isso representou um dispositivo perverso de estigmatização das classes populares a partir do qual, de acordo com a origem social e cultural, os alunos eram estigmatizados, desvalorizados e representados como “deficientes”, “diferentes” e “inferiores”.
A partir dos anos de 1960, os discursos do “fracasso escolar” tornaram- se cada vez mais evidentes por julgarem os alunos incapazes de acompanhar o ritmo da aprendizagem, “os diferentes (setores populares) já chegam à escola reprováveis”, como diz Arroyo, eles eram “rotulados por meio da cultura escolar, estigmatizados como diferentes, incapazes, indiferentes, inferiores, déficits culturais, etc.”. A redução do direito à educação a um processo disciplinar de ensino-aprendizado baseado na mensuração favoreceu uma cultura escolar em que a “escola legitima condutas, currículos, avaliações, grades, disciplinas, tornando os tradicionais processos de exclusão popular, explicáveis e legítimos, pedagógica e socialmente” (ARROYO, 1992, p. 49).
Por volta dos anos de 1970, uma série de críticas se seguiu em relação à escola, chegando mesmo a questionar acerca do papel da escola e da escolarização na sociedade (ILLICH, 1970; MANNONI, 1976). O discurso compensatório surgiria com o intuito de equalizar as desigualdades sociais, com a implementação de programas de educação compensatória voltados ao pré-escolar e às crianças pequenas. O discurso dominante era o de minimizar as desvantagens desses grupos, embora o que na prática se constituiu foi a oferta precária de atendimento compensatório ao pré-escolar (ROSEMBERG, 1999). Em síntese, se até os anos de 1960 a escola era vítima do contexto social e do tipo de alunos que recebia, a partir dos anos de 1970, a atribuição do fracasso passou a focar o processo escolar, isto é, a cultura escolar e a organização dos sistemas de ensino (ARROYO, 1992).
Há ainda muita mistificação e ilusão no campo pedagógico. Como diz Charlot (2000a, p. 14), em relação à finalidade ideológica, o “debate sobre o ‘fracasso escolar’ enquanto desigualdade social pode ser desviado para a questão da ineficiência pedagógica dos docentes... e viceversa”. Com efeito, no seio da cultura escolar, certos discursos alimentam a produção do “fracasso escolar”.
Hoje sabemos o quanto a sociologia da reprodução foi mistificada pela cultura escolar, criando uma falsa correlação entre a origem social do aluno e seu desempenho na aprendizagem. No entanto, como destaca Charlot (2000a, p. 23), a origem social não é a causa do fracasso, “é verdade que o ‘fracasso escolar’ tem alguma coisa a ver com a origem social, mas a origem social não produz o fracasso escolar”. O que se oculta nesse discurso acerca do fracasso é que, mesmo em condições socioculturais de classes abastadas, também encontramos o dito “fracasso escolar” e vice-versa, há alunos de classes populares que conseguem relativo sucesso escolar, não sem esforço, obviamente. Do mesmo modo que os discursos em torno do fracasso escolar funcionam como profecias autorrealizadoras, a montagem simbólica das escolas, ao afirmarem que “qualquer um pode ser bem-sucedido”, criam as “condições para que qualquer um o seja, embora isso exija um investimento pessoal maior quando se trata das moças ou dos jovens das camadas populares” (CHARLOT, 2013, p. 142).
Entretanto, para o imaginário pedagógico e o discurso social, a criança pobre aprende menos que as outras, sendo que a origem social da criança funciona como um “oráculo”, bem ao tom das “profecias autorrealizadoras”, como demonstra o trabalho de Rosenthal e Jacobson (1981), em que as expectativas e preconceitos dos educadores em relação aos alunos determinam, para o bem ou para o mal, os destinos escolares dos estudantes. Os discursos da origem social, do reproducionismo e das deficiências justificariam todo e qualquer “fracasso escolar”, solapando possíveis práticas formativas junto aos sujeitos.
No sentido oposto, Charlot (2000a) questiona se o fracasso escolar existe enquanto objeto científico, enfatizando que “o que existe são alunos em situação de fracasso”. São alunos em “situação de fracasso escolar”, isto é, são “histórias escolares que deram errado”. Com efeito, o fracasso é real: “alunos que não aprendem ou não acompanham o ensino”; “alunos que não adquiriram os saberes que deveriam adquirir”; “alunos não orientados”, etc. As relações significantes e constitutivas dos sujeitos com relação ao saber nos remetem à história relacional dos sujeitos com a escola e com as diferentes práticas de linguagem e saberes que atravessam a vida de uma criança.
Como dispositivo simbólico, a escola possui suas próprias regras e leis, explícitas e implícitas, que também circunscrevem atividades, tarefas e trabalhos, de modo mais ou menos diretivo. O modo como esse dispositivo demanda a um aluno pode favorecer ou dificultar que este venha a se precipitar como sujeito cognoscente e desiderativo nesse espaço. A escola é uma instituição que, para além de toda idealização que a sustenta, constitui-se de modo singular, pois é construída por meio de laços sociais cujos efeitos também são singulares. O problema começa quando se nega ao aluno a experiência escolar, enquanto dispositivo simbólico que a escola representa, isto é, quando se nega o contato e a relação com as diferentes “práticas linguageiras”.
Como mostra Charlot (2000b, p. 130), uma das fontes fundamentais de “fracasso escolar” de uma criança consiste “na relação com a linguagem, que é também uma relação com o saber, a escola, o mundo, os outros, consigo mesmo”. A relação com o saber de cada um remete à sua relação singular com a linguagem, considerando-a em sua função constitutiva aos sujeitos. O autor analisa como os estudos originais sobre a relação entre a linguagem e o “fracasso escolar” reiteram os discursos em que as dificuldades do aluno de acompanhar o ritmo da escola estiveram relacionadas às carências ou déficits de linguagem das classes populares, o que justificaria o baixo aprendizado, a reprovação e o abandono da escola por parte desses alunos. Em um segundo momento, a relação com a linguagem do aluno passou a ser valorizada, como portadora de sua cultura, seus valores sociais e pessoais. A linguagem popular começou a ser reconhecida e abordada como meio de expressão e comunicação, associada às próprias trajetórias e identidades dos alunos. Esse movimento frisou a importância de se considerar esse saber em relação ao instituído formalmente pela cultura escolar, de modo a incorporar e respeitar a diversidade sociocultural existente nas escolas.
No entanto, não é suficiente considerar o respeito à cultura, à linguagem e aos valores dos sujeitos sem reconhecer a complexa relação entre diversidade sociocultural e desigualdade social nas instituições escolares sem possibilitar aos diferentes sujeitos e grupos sociais a defrontação com “certas práticas escolares diferentes daquelas da vida cotidiana, notadamente práticas linguareiras específicas” (CHARLOT, 2000b, p. 125).
Como diz Charlot (2000b, p. 130):
As diferenças entre as práticas linguageiras não são apenas efeitos das diferenças sociais, mas também condições para entrar nos vários usos da língua e dominá-los. Se a escola trancar-se nas tarefas de expressão e comunicação, preocupada com o reconhecimento da legitimidade dessas práticas, é certo que a reconhecerá, o que é bom, mas também deixará os alunos de bairros populares fora das demais práticas linguageiras, as que permitem a eles entrar em novos universos intelectuais, entender melhor o mundo, a vida e si mesmos, e portanto lhes permitem atingir novos graus de liberdade. Mas iniciar os jovens naquelas novas práticas não é fácil, porque eles fazem questão de falar como falam. Seu jeito de falar diz a sua identidade. Ao mudar essas práticas, eles arriscam trair, trair o grupo e trair-se, ainda que ampliem o leque de suas relações com o mundo, com os outros, consigo mesmos.
Destaca-se que tal relação com a linguagem escolar, de que nos fala Charlot (2000b), não é espontânea, ela precisa ser criada, cultivada, por meio da escola. A escola normalmente supõe que essa relação com a linguagem é natural e espontânea, que está simplesmente instaurada nas escolas, na relação com os saberes entre um aluno e um professor. Em suma, no âmago mesmo de suas práticas educativas cotidianas.
O sociólogo esclarece que há uma outra lógica que caracteriza o uso da linguagem no ambiente escolar e acadêmico. Em sala de aula, nós fazemos perguntas aos alunos cujas respostas já conhecemos de antemão, diferentemente da relação com a linguagem que temos no dia a dia, já que ninguém se pergunta acerca de uma questão que possui a resposta, como um endereço ou um nome que já conhecemos. Há um afastamento da realidade concreta do mundo das coisas para se reportar a um universo simbólico-imaginário que convoca o sujeito à recriação dessa realidade em termos psíquicos. É justamente esse “jogo” com a linguagem que possibilita um aluno a se interrogar sobre o desejo do outro, ao mesmo tempo que o mobiliza como sujeito de um saber.
A escola exige uma certa postura perante a linguagem. Por um lado, essa postura é artificial: não se fala assim na vida cotidiana. Mas, por outro lado, essa postura permite entrar em universos de saberes que não existem na vida cotidiana. Os alunos queixam-se porque sempre na escola “fala-se, fala-se, fala-se”, e, além disso, não se fala da mesma maneira que se fala na vida. E essa, porém, a tarefa específica da escola: permitir aos jovens entrar em mundos que não existem no dia-a-dia da vida, em atividades intelectuais específicas, em uma relação específica com a linguagem. Não é para afastar os jovens da vida, é sim para ajudá-los a melhor entender a vida e, se puderem, mudá-la. (CHARLOT, 2000b, p. 126)
A linguagem cotidiana e a linguagem empregada na escola são de ordens distintas. A linguagem cotidiana, ao lado dos instrumentos e dos costumes socioculturais que apreendemos desde a “educação familiar”, produz uma relação com o mundo e com os saberes, possibilitando que os sujeitos expressem e comuniquem suas ideias e sentimentos. É por meio das diferentes linguagens que se estabelecem as identidades e os vínculos sociais dos sujeitos. As pichações dos muros das escolas, as gírias, as conversas em chats e redes sociais dos adolescentes retratam bem essa característica da linguagem cotidiana na atualidade.
O ponto central, continua Charlot, “é possibilitar aos alunos entender que a linguagem permite ao mesmo tempo dizer, fazer e ser, dizer o mundo, fazer textos, ser enquanto se é o autor” (2000b, p. 122). Nesse caso, cabe-nos lembrar que a psicanálise concebe o ser falante como efeito do discurso, uma relação com a linguagem que ultrapassa a condição do ser no mundo, isto é, uma relação com a linguagem que, para se ter acesso a ela, é preciso tomá-la em outro nível que não o da consciência, como aponta o sujeito do desejo inconsciente - sexual e infantil. (GARCIA-ROZA, 2000)
Dito de outro modo, espera-se de um dispositivo escolar que ele sustente a função do Outro, isto é, uma relação com a linguagem fundada na alteridade do sujeito do desejo e na diferença. Um dispositivo simbólico que leve a sério a função significante da escola a partir da cadeia simbólica que se produz em relação ao Outro do discurso social e escolar e as condições de possibilidade ao sujeito.3 Sem a marca de tal diferença, a escola não se distinguiria da família, do bairro, do mercado, da pizzaria, do campo de futebol, do videogame, etc. O fundamento de tal condição é reconhecer o aluno e o educador como supostos sujeitos em função dos discursos e das práticas de linguagem em uma dada condição e situação, que requer a relação com diferentes saberes. Tal postura implica a alteridade, o Outro que demanda o encontro do aluno com o não saber e, fundamentalmente, como ele se arranja como sujeito do saber exposto às vicissitudes inerentes do aprender.
Fracasso como sintoma e acontecimento do sujeito
Será que a psicanálise pode nos dizer algo sobre o “fracasso escolar”? Acreditamos que sim, na medida em que seu nascimento está diretamente atrelado à fratura do discurso, do ato falho e do sintoma. Mas “de um tipo de fracasso que não tem, do outro lado do espelho, o sucesso como oposto-complementar”, como reporta Macêdo (2012, p. 4), pois se trata de “um fracasso sem par, melhor dizendo, de um fracasso ímpar”, ou seja, um fracasso do sentido em negativar o gozo do corpo.
Como propomos neste texto, uma outra forma de tratar o “fracasso escolar” consiste em considerá-lo efeito dos laços sociais e discursos produzidos no campo escolar. Evita-se, de algum modo, engrossar os discursos que apenas fixam, explicam e fomentam no real o dito “fracasso escolar”, apenas alimentando o sintoma, como podemos constatar nas chamadas “novas formas psicopatológicas” - discurso social de nossos tempos que segue creditando o “fracasso” na conta do aluno e de seus familiares. Em outra perspectiva, aposta-se na possibilidade de pensar o sujeito a partir da diferença e da heterogeneidade que constituem as práticas sociais e educativas.
Como afirmamos anteriormente, o sujeito nunca é homólogo às identificações que a civilização lhe impõe, ao contrário, o sujeito é esse que faz sintoma, objeção aos constrangimentos e às imposições sociais, isso que resta irredutível a toda forma de normatização. A força da descoberta freudiana consiste em mostrar que, na análise dos sintomas neuróticos, o lugar de existência do sujeito se encontra nas suas disfunções e não na sua aderência à ordem social. As maneiras e as formas como a cultura e a civilização autorizam a expressão de um sofrimento social e como organizam seus dispositivos de diagnósticos e tratamento pertencem integralmente a essa cultura. Como exemplo, a hiperatividade da criança pode ser considerada como esse sintoma que “agita” tanto as clínicas como o social, embora ninguém queira reconhecer que tais “patologias” são, em grande parte, reflexo dos valores de uma sociedade que se recusa a reconhecer-se naquilo que ela mesma produz (GORI, 2013).
Sob a luz da psicanálise, a oposição entre indivíduo e coletivo desloca-se para a condição pulsional e libidinal do sujeito em função da cultura enquanto dimensão do Outro na estruturação dos laços sociais, por meio dos discursos e das contingências que se estabelecem entre os seres falantes. Nesse caso, podemos pegar o “fracasso escolar” pelo seu avesso para pensar a cotidiana recusa de um aluno a um sentido imposto, como estratégia do sujeito do desejo, que se impõe contra os métodos de ensino “enlatados”, contra a “impostura do mestre”, contra os discursos de domínio que circulam no campo educativo, especialmente quando se trata de interrogar o nonsense da evasão e do abandono, bem como algumas “queixas escolares” recorrentes, tais como a falta de interesse, a falta de prazer, a indiferença, a desistência, a violência, etc.
Ao tratarmos a história da educação brasileira enquanto síntese presente do passado, identificamos os discursos do fracasso que mostram como as crianças, adolescentes e jovens são sistematicamente rotulados de acordo com sua origem étnica, econômica e social, normalmente desvalorizados e considerados deficitários e incapazes, restando- -lhes apenas tais estereótipos para representar na escola. O dispositivo escolar reproduz essa forma de exclusão e vitimização quando assinala o não reconhecimento da diversidade relacionada aos sujeitos, fazendo- -lhes emergir na posição de “coitadinho”, “pobrezinho” e “vítima”, um lugar determinado a priori, restando ao aluno somente desempenhar o papel do fracassado escolar.
Dito de outro modo, propomos trabalhar com a hipótese do “fracasso escolar” enquanto sintoma e acontecimento do sujeito, como dimensão simbólica que recorta o real e que marca o sujeito no seu gozo. Isso que não se faz sem laço social, sem história, sem conflito, sem falhas. Trata-se de ressignificar a noção de “fracasso escolar”, a qual passa a ser compreendida como “tentativa” do sujeito de se inscrever no laço social que articula o discurso escolar, principalmente quando seu reconhecimento é sistematicamente negado e, em relação a isso, se impõe um reconhecimento pelo pior, isto é, sem mediação simbólica e no nível acéfalo da repetição do gozo e da insubmissão.
Na perspectiva psicanalítica, o discurso é uma estrutura que “aparelha o gozo”, tornando possíveis os laços sociais, ou seja, ele envolve um conjunto de operações psíquicas que retrata o lugar necessário de alienação do sujeito no discurso do Outro, bem como de sua separação, a partir da posição impossível que situa o sujeito em relação à “causa” de seu desejo, de seu próprio saber ou mesmo em relação aos ideais e fantasias que o orientam a partir da injunção imaginário-simbólica ao real do sintoma.
Tal noção de discurso como laço social implica deslocarmos a análise de conteúdo e significado, enquanto referencial comum de análise nas ciências humanas, para compreendê-lo enquanto aparelhamento do gozo pela linguagem. Tal noção remete-nos sempre ao poder de dominação do significante que opera sobre a renúncia pulsional e instaura o sujeito do desejo. Seguindo essa linha, o discurso compreende os efeitos inconscientes da linguagem, ao mesmo tempo que funda e define a realidade psíquica e social para o sujeito, sempre instaurada por meio da fantasia.
No Seminário 17, o avesso da psicanálise, Lacan explica que o discurso cria uma função que determina um lugar; o discurso “retrata um lugar e sua função de lugar só pode ser criada pelo próprio discurso, cada um em seu lugar, isto só funciona dentro do discurso [...] toda determinação de sujeito, portanto de pensamento, depende do discurso” (LACAN, 1992, p. 144). Nessa perspectiva, “não há nenhuma realidade pré-discursiva. Cada realidade se funda e se define por um discurso” (LACAN, 1993, p. 45). Não se trata de pensar a linguagem enquanto um equivalente simétrico ao ser, conforme o pensamento filosófico, que define por meio do pensamento demonstrativo a existência de conformidade entre a linguagem e o ser, nem de ingressar no campo das teorias de comunicação, que consideram a linguagem um sistema intersubjetivo, uma mensagem a ser apreendida entre emissor e receptor. Com Lacan, diríamos, simplesmente, que a linguagem nos constitui, que somos “o resultado do emprego da linguagem”, que “a linguagem nos emprega, e é por aí que aquilo goza” (LACAN, 1992, p. 62). Como podemos apreender com Lajonquière (2010b, p. 242):
A linguagem deixa de ser um instrumento que reflete tanto a “realidade” quanto aos pensamentos mais ou menos “subjetivos”. A linguagem, a psicanálise reconhece sua eficácia simbólica, isto é, sua capacidade de produzir efeitos e transformações ou, se preferirmos, seu poder de estruturar um campo especificamente humano no interior do qual uma subjetividade, bem como um conjunto de objetos (de conhecimento), não são mais do que produtos pontuais do funcionar discursivo ou de permutações significantes. No que diz respeito ao sujeito, sabemos que a ordem da linguagem o constitui sujeito ao tempo que o sujeita, além de sua consciência, a uma particular trama de desejos inconscientes e a um conjunto de formações sócio-históricas inerentes a uma cultura. Esta sujeição múltipla advém ao sujeito por acréscimo na medida em que, [...] é inerente ao (des)encontro do organismo com a ordem do discurso.
Como ser no discurso, o sujeito pode ser compreendido como acontecimento que incide sobre um campo estruturado pela palavra e pela linguagem. Com relação à subjetivação, Lacan destacou que “a função da linguagem não é informar, mas evocar” o sujeito na fala do Outro, na medida em que “o que me constitui como sujeito é minha pergunta” (1998, p. 301), no que se estabelece como discurso, isto é, o que deseja o outro de mim? Questão que retorna invertida ao próprio sujeito: o que eu desejo?
A noção de real, como fala Lacan (1992), torna-se central na estrutura do discurso, como o inominável, ou impossível, isto é, da impossibilidade de se obter a verdade como um todo, ou, até mesmo, da ordem simbólica recobrir e dominar o real. Será justamente o fracasso de sentido que permitirá abordarmos o real que está em jogo. O fato de sujeitos apresentarem-se como “pura repetição do gozo” revela o impossível trabalho da linguagem, seja na educação ou na psicanálise, de inserir esse gozo em um discurso, aparelhá-lo à linguagem, articulá-lo com significantes.
Como apresentado em outro trabalho (PASSONE, 2013), ao sustentarmos que o dito “fracasso escolar” pode ser lido enquanto um sintoma inerente aos laços sociais, retomamos a positividade original da noção de sintoma, como mostrou Freud, ao remeter a uma mensagem que carece de sentido ou ser interpretada.
Assim, intenta-se um deslocamento da pergunta habitual “Por que Joãozinho não aprende?”, para afirmar e sustentar uma posição na qual o fracasso retrata o acontecimento do sujeito na estrutura. Em outras palavras, ali onde é dito fracasso educacional, está também o sujeito do desejo, enquanto desejo do desejo do Outro, bem como aponta para a possibilidade de uma prática educativa que precipite uma ruptura e a emergência da singularidade do sujeito em formação. (PASSONE, 2013, p. 55, grifo nosso)
Pensar o fracasso como sintoma possibilita retomar o negativo do sentido, um não saber para um sujeito, um grupo, uma instituição, mas que pode se revelar fértil epistemologicamente. Um não sentido sobre a causa de desejo, condição impossível que marca o sujeito como ser no discurso. Não se trata de retornar ao campo da psicologização, como mostram os trabalhos que buscam os determinantes inconscientes do comportamento, para explicar a situação de fracasso escolar de adolescentes analfabetos, alimentando os discursos do “fracasso escolar”. Também não se trata de uma leitura subjacente à criança, como identificar seu “estado afetivo”, analisar a função de suplência paterna, o Édipo do sujeito, etc., ou seja, não se trata de empregar a psicanálise no sentido ortopédico ou profilático, em relação a uma suposta evolução “normal” do sujeito. O sujeito fracassado é esse que já está ali, instaurado no laço social (discurso) como tal, enquanto traço produzido pelos discursos especializados na escola.
De outro modo, não se busca racionalizar acerca da falibilidade humana, nem de propor uma apologia ao fracasso, mas de abordá-lo como condição estrutural, na medida em que é justamente a falibilidade da linguagem que nos constitui como sujeitos falantes e singulares. Esse desencontro do real, esse choque e confronto que caracteriza a equivocidade da linguagem também colorirá as vicissitudes do aprender de cada sujeito. Trata-se, em última instância, de enfatizar o desencontro entre o sujeito (cognoscente e desiderativo) e o discurso social-escolar, ao mesmo tempo que se eleva a falibilidade humana como causa, para lembrar um dito espirituoso de Beckett (2012, p. 65): “Tentar de novo. Falhar de novo. Falhar melhor”.
Se, por definição, o real é o fracasso do simbólico, o fracasso do sentido em negativar o real do gozo justamente porque o simbólico não existe no real, então o sujeito, enquanto resposta do real, está fadado a simbolizar o impossível e a fracassar em relação a isso que “não para de não se inscrever como falta” cuja repetição implica a produção de um resto, que resiste à função ordenadora do funcionamento significante. Esse resto retrata a renúncia pulsional necessária à criação de laço social, por um lado, ao mesmo tempo que produz um mais-de-gozar, como fala Lacan da função do discurso como fundamento do laço social. Dito de outro modo, o fracasso revela o empreendimento de um sujeito, um movimento de situar-se no fio de um discurso, mesmo que a demanda seja desproporcional ou impossível de ser respondida em sua totalidade, como a impossibilidade de uma criança vir a ocupar esse lugar ideal, a exemplo do que se espera de um suposto rendimento escolar naturalizado como intrínseco ao desenvolvimento infantil.
Destaca-se, desse modo, que o fracasso implica sempre o Outro, no próprio nó do sintoma, que representa a aprendizagem. Um outro que pode servir de apoio, obstáculo, ameaça, modelo, mas que sempre remete à articulação da demanda e do desejo em relação ao pedido de um adulto. Como explica Lajonquière (2010b, p. 210), em De Piaget a Freud, “os erros/as vicissitudes do aprender nada têm de arbitrário, pois são o indício de alguma coisa que opera conforme mecanismos específicos, isto é, são produtos de um laborioso funcionar” inteligente e desiderativo. As tensões que advêm do campo do Outro, marcado por conflitos e contradições, são responsáveis pelas verdadeiras “vicissitudes que um sujeito suporta no aprender”.
O conflito e a falibilidade como condições subjetivas e inconscientes também podem ser compreendidos com base na sua dimensão real, como aquilo que se refere à impossibilidade de realizar o ideal de uma política ou um método pedagógico de modo pleno e satisfatório, ou mesmo de acordo com qualquer meta preestabelecida ou rendimento suposto idealizado. Trata-se, em última instância, de enfatizar o real do desencontro entre o sujeito (cognoscente e desiderativo) e o discurso social-escolar.
No avesso do fracasso, considera-se imprescindível reconhecer as práticas linguageiras que concorrem à formação psíquica dos sujeitos, que incluem a subjetividade, o outro, a diferença, o acontecimento, como aponta a existência desse sujeito inscrito por meio do laço social das práticas educacionais. Tal fracasso torna-se um problema para o sujeito na medida em que este é reduzido aos discursos do domínio, da padronização e do controle. Afinal, a criança responde ao real dependendo da posição (simbólica) em que é colocada.
Kupfer (2007, p. 133) assinala que
É possível supor que um ensino voltado para o sujeito, que recusa a técnica, que entende a educação como ferramenta para o sujeito do desejo, estará submetido aos limites que a psicanálise impõe à sua transmissão, uma vez que não se trata de informar, mas de permitir que um sujeito crie um estilo que trará a marca do sujeito do desejo.
Desse modo, considerar a presença do sujeito do inconsciente no ato educativo, como dimensão impossível da educação, implica ao menos abordar sua dimensão real, permitindo novas formas de simbolização e sublimação da pulsão, reconhecendo os diferentes estilos do sujeito com relação aos saberes. Assim, diferentemente da impostura de uma educação ideal, tratada em termos imaginários de completude que nada quer saber do desejo, temos o ideal da educação, com sua função histórica de transmitir saberes e introduzir os mais novos na cultura a partir de condições que possibilitam a subjetivação em vias do desejo, em que o núcleo real do dito fracasso escolar revela a existência de um saber fazer e saber viver com esse impossível, voltado menos para sua resolutividade, funcionalidade e homogeneização, e mais às possibilidades de lidar com isso que “insiste em não se inscrever”, propiciando a emergência de práticas criativas e necessárias, embora nunca suficientes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo buscou evocar a função primordial do sentido inconsciente e da finalidade do ato educativo, isto é, em nome do que se educa? Seria em nome da formação e subjetivação dos mais novos, ou somente em nome do rendimento, da produtividade e dos resultados das avaliações? Aqui reside toda a diferença entre tratar a educação de modo amplo, como parte da formação psíquica do sujeito, ou tratá-la do ponto de vista do custo-benefício, da concorrência, do desempenho escalonado e da aprendizagem mecânica. Paradoxalmente, hoje a escola luta para manter seu aluno dentro das salas de aula, para que ele aprenda o básico, seja alfabetizado, que alcance um desempenho “adequado” nas avaliações externas, etc.
Se a escola pretende se manter como significante em nossa cultura, ela não pode e nem deve ser produtora de conformismo e de impostura. As relações sociais entre alunos, profissionais e as instituições são mediadas por discursos que contribuem para inserir os alunos dentro de estereótipos étnicos, econômicos e sociais, restringindo os lugares dos seres falantes, enquanto seres significantes. São laços sociais determinados por discursos sociais, políticos e econômicos que ultrapassam todo o tecido social, situando as relações escolares como campo divergente, no sentido conflitivo do termo. Contrariamente, o ideal pedagógico visa a controlar e negar o conflito, na busca de harmonia e controle, na padronização reducionista do ensino, com a aplicação de seus métodos e suas teses acerca do ensino-aprendizagem, com o “desenvolvimento” da criança, sem reconhecer o “fracasso escolar” enquanto produto de suas próprias práticas e discursos. Em suma, uma cultura que oculta o conflito acaba gerando mais violência e intolerância e, por conseguinte, requer mais regras e normas, produzindo mais dependência, conformismo e/ou exclusão.
Para concluir, lembramos Lajonquière (2010a), para quem o educador afetado pela psicanálise pode dar seu testemunho de implicação (subjetiva) com o educar e, mais especificamente, sobre o desejo que está em jogo nesse ato. Educa-se em nome do quê? Tal resposta implica instaurar um espaço de enunciação em que o educador se autorize a questionar o discurso social e sua própria prática, interrogando o desejo anônimo de funcionalidade que domina os discursos pedagógicos e as políticas educacionais na atualidade. Tal posicionamento não tem a pretensão de suprimir o “mal-estar na educação”, objetivo extremamente complexo, da ordem do impossível, mas remete às possibilidades de inscrever práticas significantes, mais criativas e menos burocráticas, no dia a dia junto às crianças e alunos. Um saber acerca do desejo que, por se saber impossível, possibilita questionar as “ilusões psicopedagógicas” de controle e as “mistificações” ideológicas laboriosamente construídas ao longo dos tempos pelo imaginário escolar e pedagógico, isso que retorna como síntese presente de nosso passado educacional.
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Enunciado no Seminário A lógica do Fantasma, no momento em que ele ilustrava a posição masoquista, que consiste em se colocar na posição de ser rejeitado pelo Outro. Como explica Dufour (2005), o exemplo clínico que Lacan usa é o Vietnã, afirmando que nesse país se fez a guerra contra “pessoas, para convencê-las de que estavam erradas ao não quererem ser admitidas nas vantagens do capitalismo, enquanto elas, elas prefeririam ser rejeitadas”. Será nesse contexto que Lacan faz essa intrigante afirmação: “je ne dis même pas que ‘la politique c’est l’inconscoent’ - mais, tout simplement: l’inconscient c’est la politique!” (LACAN, s.d., p. 168).
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Para a psicanálise, o sujeito é efeito da linguagem, da cadeia simbólica que enlaça o corpo pulsional instituído pela própria condição de linguagem. Lacan lança uma noção de sujeito a partir da “articulação significante” em que “um significante representa o sujeito para outro significante”, portanto, efeito de uma cadência simbólica cujo sujeito é “interdito” no e pelo discurso que o antecede.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2017
Histórico
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Recebido
Fev 2016 -
Aceito
Jul 2016