RESUMO
O artigo mostra, na primeira parte, a necessidade de se pensar a formação de professores como uma formação profissional. Para isso, é fundamental construir um novo lugar institucional, que traga a profissão para dentro das instituições de formação. Entre partes, defende-se que a formação deve consolidar a posição de cada pessoa como profissional e a própria posição da profissão. Na segunda parte, é abordada a necessidade de reorganizar o lugar da formação de professores, desdobrando o conceito de posição em cinco movimentos: disposição pessoal, interposição profissional, composição pedagógica, recomposição investigativa e exposição pública. O texto conclui com uma coda, na qual se insiste sobre a importância da profissão para a formação e da formação para a profissão.
Palavras-chave: Formação de Professores; Formação Profissional; Ensino Superior; Universidades
ABSTRACT
The first section of the article discusses the need to think about teacher training as professional education. For this, it is fundamental to build a new institutional place, so that the profession occupy its place within the training institutions. Between the two sections, it is argued that training should consolidate the position of each person as a professional as well as the position of the profession itself. In the second section, the need to reorganize the place of teacher education is discussed, unfolding the concept of position in five movements: personal disposition, professional interposition, pedagogical composition, research recomposition and public exposition. The text concludes with a coda, which stresses the importance of the profession to the education of teachers and of teacher education to the profession.
Keywords: Teacher Education; Professional Training; Higher Education; Universities
RÉSUMÉ
Dans la première partie, l’article se concentre sur le besoin de penser la formation des enseignants comme une formation professionnelle. Pour cela, il est fondamental de construire un nouvel espace institutionnel qui accorde un rôle à la profession au sein des institutions de formation. Entre les deux parties, on soutient que la formation doit consolider la position de chaque individu comme professionnel, ainsi que la position de la profession enseignante. La deuxième partie avance le besoin de réorganiser la place de formation des enseignants, tout en déployant le concept de position en cinq mouvements : disposition personnelle, interposition professionnelle, composition pédagogique, recomposition investigatrice et exposition publique. Le texte se termine par une coda, dans laquelle on souligne l’importance de la profession pour la formation et de la formation pour la profession.
Mots-clés: Formation des Enseignants; Formation Professionnelle; Enseignement Supérieur; Universités
RESUMEN
El artículo muestra, en la primera parte, la necesidad de pensar la formación de profesores como una formación profesional. Para ello, es fundamental construir un nuevo lugar institucional, que traiga la profesión adentro de las instituciones de formación. Entre las dos partes, se defiende que la formación debe consolidar la posición de cada persona como profesional y la propia posición de la profesión. En la segunda parte, se aborda la necesidad de reorganizar el lugar de la formación de profesores, desplegando el concepto de posición en cinco movimientos: disposición personal, interposición profesional, composición pedagógica, recomposición investigativa y exposición pública. El texto concluye con una coda, en la que se insiste en la importancia de la profesión para la formación y de la formación para la profesión.
Palabras-claves: Formación de Profesores; Formación Profesional; Enseñanza Superior; Universidades
Abertura 1
Há 30 anos , em 1987, foi publicada a minha primeira tese de doutoramento , sobre a história da profissão docente, com o título O tempo dos professores. Recorri ao conceito de profissionalização, na época inusual nas línguas românicas, não para estabelecer uma lista de atributos, mas para estudar o processo histórico de constituição da profissão docente.
Há 25 anos, em 1992, coordenei a publicação de uma trilogia de livros - Os professores e a sua formação, Profissão professor e Vidas de professores -, na qual se dava a conhecer, em língua portuguesa, autores que, desde então, pertencem à nossa biblioteca, como Carlos Marcelo García, Donald Schön, Ivor Goodson, José M. Esteve, Kenneth Zeichner, Michael Huberman ou Thomas Popkewitz, além de Lee Shulman, Pierre Dominicé e Philippe Perrenoud, entre tantos outros.
Este período, 1987-1992, coincide com a consagração de uma nova abordagem marcada pela “universitarização” da formação docente e pelas ideias de “professor reflexivo” e de “professor pesquisador”. As escolas normais, instituições com uma história de grande significado, foram sendo progressivamente substituídas pelas universidades.
Esta transição trouxe avanços significativos para o campo da formação docente, sobretudo na ligação à pesquisa e na aproximação dos professores ao espaço académico das outras profissões do conhecimento. Mas, nos últimos anos, tem vindo a crescer um sentimento de insatisfação, que resulta da existência de uma distância profunda entre as nossas ambições teóricas e a realidade concreta das escolas e dos professores, como se houvesse um fosso intransponível entre a universidade e as escolas, como se a nossa elaboração académica pouco tivesse contribuído para transformar a condição socioprofissional dos professores.
A pergunta que orienta este texto é muito simples: como construir programas de formação de professores que nos permitam superar esta distância, recuperando uma ligação às escolas e aos professores enfraquecida nas últimas décadas, sem nunca deixar de valorizar a dimensão universitária, intelectual e investigativa?
A pergunta é fácil. A resposta é difícil. Neste artigo, argumenta- se que é necessário pensar a formação de professores como uma formação profissional universitária, isto é, como a formação para o exercício de uma profissão, a exemplo da medicina, da engenharia ou da arquitectura.
PRIMEIRA PARTE
REPENSANDO O CAMPO DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES
O campo da formação de professores desenvolveu-se muito nos últimos 50 anos, alargou sua influência e deu origem a uma produção científica de grande relevância. Hoje, é impossível acompanhar os milhares de textos publicados anualmente sobre temas de formação docente. Mas, desde o início do século, percebe-se um sentimento de insatisfação, acentuado por políticas de desprofissionalização, de ataque às instituições universitárias de formação docente e de privatização da educação (ZEICHNER, 2010a). Em conjunto, estas tendências configuram “um programa de reforma educacional baseado nos princípios de mercado das economias neoliberais” (COCHRAN-SMITH et al., 2015, p. 117).
A desprofissionalização manifesta-se de maneiras muito distintas, incluindo níveis salariais baixos e difíceis condições nas escolas, bem como processos de intensificação do trabalho docente por via de lógicas de burocratização e de controlo. O discurso da eficiência e da prestação de contas tem reforçado políticas baseadas em “medidas de valor acrescentado”, que remuneram os professores em função dos resultados dos alunos, desvalorizando assim outras dimensões da profissionalidade (DARLING-HAMMOND, 2016). O regresso de ideologias que afirmam a possibilidade de atribuir funções docentes a pessoas que tenham “notório saber” de uma dada matéria, como se isso bastasse, também contribui para o desprestígio da profissão.
Apesar de terem origens distintas, estas políticas confluem numa desprofissionalização do professorado. Naturalmente, elas têm em comum a crítica às instituições universitárias de formação de professores, acusadas de irrelevância e de serem “uma indústria de mediocridade” (GREENBERG; WALSH; MCKEE, 2013, p. 1). A acusação surge à cabeça do relatório produzido, em 2013, pelo National Council on Teacher Quality, dos Estados Unidos da América. Não se trata de um documento isolado, mas antes de uma série de textos com grande repercussão junto à opinião pública, que vão difundindo uma imagem negativa das Faculdades de Educação (“Schools of Education”).
Construídos muitas vezes a partir de argumentos sólidos e de diagnósticos pertinentes, tais textos procuram instaurar novas formas de regulação da formação e da profissão docente (FURLONG; COCHRAN-SMITH; BRENNAN, 2009). De um ou de outro modo, são portadores de uma visão técnica, aplicada, “prática”, do trabalho docente, esvaziando as suas dimensões sociais, culturais e políticas. O que melhor caracteriza estes movimentos reformadores é a construção do que designam por “caminhos alternativos”, que se definem, quase sempre, por modelos rápidos de formação de professores (“fast-track teacher preparation”), através de seminários intensivos de poucas semanas ou de processos de formação unicamente em serviço (no “chão da escola”, dir-se-ia no Brasil) (ANDREWS; RICHMOND; STROUPE, 2017; BEACH; BAGLEY, 2013; SCOTT; TRUJILLO; RIVERA, 2016).
Estas tendências interligam-se com processos poderosos de privatização da educação. Não se trata, como no passado, de consolidar escolas privadas como alternativa às escolas públicas. O projecto político da privatização é, hoje, conduzido em nome da “salvação” da dimensão pública da educação. Já não se trata de edificar escolas ou colégios privados, mas de tomar conta dos rumos da educação pública, através de formas de gestão privada, da contratação de empresas pelas entidades públicas ou da passagem para grupos privados de funções pedagógicas, curriculares ou formativas (RAVITCH, 2010, 2013). Um entendimento errado das consequências da revolução digital ou da conectividade para a aprendizagem contribui, também, para acentuar a erosão dos professores e da escola pública.
Em face desta situação, como agir? Segundo Zeichner, Payne e Brayko (2015), estamos perante um movimento para desmantelar o sistema universitário de formação de professores, substituindo-o por um conjunto de programas empresariais que vão piorar a já difícil situação das escolas públicas e do professorado. De forma esquemática, os autores sugerem que há três grupos principais neste debate:
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os defensores, grupo que traduz uma atitude defensiva por parte de muitos professores das instituições universitárias de formação de professores. Não aceitam críticas vindas de fora e entrincheiram-se num discurso autojustificativo. Querem continuar a agir do mesmo modo, protegendo a sua condição e recorrem a sofisticadas elaborações teóricas apenas para legitimarem o seu imobilismo;
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os reformadores, como eles próprios se denominam, que dão voz às ideologias anteriormente descritas. De um modo geral, são pessoas que vêm de fora das universidades e que manifestam uma atitude muito crítica em relação às Faculdades de Educação. Argumentam que é necessário “explodir” o sistema actual e construir no seu lugar alternativas que se fundam na desregulação, na competição e nos mercados;
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os transformadores, grupo constituído por todos aqueles que, dentro e fora das universidades, reconhecem a necessidade de uma mudança profunda do campo da formação de professores, mas que não aceitam a sua substituição por lógicas de mercado e de desintegração de instituições, pois consideram que, apesar das suas fragilidades, têm um papel insubstituível na afirmação dos professores e da educação pública.
As reflexões, neste artigo, situam-se no interior deste último grupo. Parte-se de um diagnóstico crítico do campo da formação de professores não para o desmantelar, mas para nele buscar as forças de transformação. Estamos perante um momento crucial da história dos professores e da escola pública. Precisamos repensar, com coragem e ousadia, as nossas instituições e as nossas práticas. Se não o fizermos, estaremos a reforçar, nem que seja por inércia, tendências nefastas de desregulação e privatização. A formação de professores é um problema político, e não apenas técnico ou institucional.
O SENTIDO DA MUDANÇA : UMA FORMAÇÃO PROFISSIONAL DOS PRO FESSORES
O primeiro passo da mudança é reconhecer a existência de um problema. Para quem defende que as estruturas actuais de formação de professores são adequadas e que o único “problema” é a falta de apoio, de condições ou de recursos, a mudança não se faz necessária. Este texto dirige-se a todos aqueles que se encontram na urgência de uma transformação do campo da formação docente.
Existem, hoje, muitas iniciativas e experiências que buscam um caminho novo para a formação de professores. As mais interessantes centram-se numa formação profissional dos professores, isto é, numa ideia que parece simples, mas que define um rumo claro: a formação docente deve ter como matriz a formação para uma profissão.
[Escólio primeiro - Muitos se perguntarão sobre a pertinência de recuperar o conceito de profissão numa era marcada pela “crise das profissões”, por profissões híbridas e por novas formas de relação ao trabalho. A razão é simples. Nas últimas décadas tem havido uma diluição da profissionalidade docente, devido a duas razões principais. Por um lado, a degradação das condições de vida e de trabalho, verificando-se em muitos países a existência de processos de desprofissionalização e até de desmoralização dos professores. Por outro lado, a proliferação de discursos que descaracterizam a profissão docente, através do recurso a conceitos como “educador” ou mesmo “pedagogo” que, apesar da sua importante carga filosófica e política, traduzem uma certa vaguidade e até vacuidade. No caso do Brasil, esta diluição está também presente nos programas de formação de professores. Nas licenciaturas em Pedagogia surge, por vezes, a ideia de que “ser pedagogo” é mais amplo e prestigiante do que “ser professor” (é certo que a profissão docente deve alargar-se a missões de gestão, de pesquisa, de animação e de acção pública, mas a partir de um núcleo identitário docente, e não ao contrário, numa diluição da profissão numa miríade de ênfases ou perfis). Dito de outro modo: muitas vezes, o foco não é a formação de professores. Nas outras áreas, a diluição verifica-se através de cursos de licenciatura que, na verdade, pouco ou nada valorizam a formação docente. São bacharelados disfarçados, não são licenciaturas. Quantas vezes estes alunos (licenciandos) têm pior acolhimento do que os outros alunos? Piores horários? Piores condições de estudo e de trabalho? Quantas vezes ouvem os professores universitários aconselhá-los a seguirem outros cursos, a darem outro rumo às suas vidas? Por tudo isto, é necessário reforçar as dimensões profissionais na formação de professores, não numa perspectiva limitada ou redutora, mas procurando construir modelos de formação que renovem a profissão e que sejam renovados por ela.]
Hoje, reconhece-se que a universitarização da formação de professores trouxe ganhos significativos, nos planos académico, simbólico e científico, mas perdeu-se um entrelaçamento com a profissão que caracterizava o melhor das escolas normais.
[Escólio segundo - Erradamente, olhamos por vezes para as escolas normais como instituições desajustadas e marcadas por uma visão tecnicista e empobrecedora da profissão. Este diagnóstico é justo se considerarmos a fase final da sua história. Mas, ao longo de mais de cem anos, desde meados do século XIX, as escolas normais desempenharam um papel muito importante não só na formação de professores, mas também no desenvolvimento de meios e métodos de ensino, na produção de materiais didácticos e na inovação pedagógica, no lançamento de iniciativas de aperfeiçoamento do professorado, no associativismo docente, nas publicações sobre educação e ensino (livros e jornais) e no apoio às políticas públicas. As escolas normais consagraram processos de mobilidade social e de afirmação do papel das mulheres, tendo sido fundamentais para construir o modelo escolar, para consolidar a escola pública e para produzir a profissão de professor.]
Por isso, torna-se imprescindível construir modelos que valorizem a preparação, a entrada e o desenvolvimento profissional docente. Trata-se, no fundo, de responder a uma pergunta aparentemente simples: como é que uma pessoa aprende a ser, a sentir, a agir, a conhecer e a intervir como professor? Para responder temos de proceder a três deslocações. A primeira deslocação leva-nos a valorizar o continuum profissional, isto é, a pensar a formação inicial em relação com a indução profissional e com a formação continuada. Mas obriga-nos também a ligar os diversos momentos da formação com o conjunto da vida profissional docente: como é que se atraem e se recrutam os estudantes para as licenciaturas? Como é que se organiza a formação em permanente vaivém com as realidades escolares? Como é que se entrelaça a formação e a profissão? Como é que se constroem modalidades de residência docente que permitam uma entrada mais acompanhada e segura na profissão? Como é que se integra, no exercício profissional, uma dinâmica de reflexão, de partilha e de inovação durante a qual nos vamos formando em colaboração com os nossos colegas?
A segunda deslocação conduz-nos a um olhar sobre as outras profissões universitárias e a buscar nelas uma fonte de inspiração. A referência mais óbvia é a formação médica, porque se trata, também, de uma profissão do humano. Não é por acaso que, historicamente, sempre houve muitas analogias entre a formação dos médicos e dos professores. Hoje, é no campo da medicina que se encontra uma das reflexões mais sofisticadas sobre o sentido da formação para uma profissão. Menciona-se, a título de exemplo, o novo currículo da Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard. A formação de professores bem se podia inspirar em muitos dos seus princípios orientadores, assim apresentados:
Em agosto de 2015 iniciou-se um novo currículo inovador - Pathways. Esta revisão ousada do currículo de formação médica incorpora abordagens pedagógicas que promovem aprendizagens activas e o pensamento crítico, uma experiência clínica precoce e experiências científicas de clínica avançada e de formação personalizada nas áreas básicas e na relação com as populações, de modo a proporcionar caminhos individualizados de formação para cada estudante. ( HARVARD MEDICAL SCHOOL - HSM, 2015 )
Não se trata de adoptar uma visão hospitalar ou de copiar os modelos médicos, mas antes de compreender o que deve ser a matriz de uma formação profissional universitária terceira deslocação situa a necessidade de definir a especificidade da formação profissional docente. Numa série de trabalhos de grande relevância, Lee Shulman procurou definir os contornos da pedagogia própria de cada profissão (“the signature pedagogies of the professions”). Segundo o autor, há sempre uma síntese de três aprendizagens: uma aprendizagem cognitiva, na qual se aprende a pensar como um profissional; uma aprendizagem prática, na qual se aprende a agir como um profissional; e uma aprendizagem moral, na qual se aprende a pensar e agir de maneira responsável e ética (SHULMAN, 2005a, 2005b). As profissões do humano lidam com a incerteza e a imprevisibilidade. Preparar para estas profissões exige sempre uma boa formação de base e uma participação dos profissionais mais experientes. Podemos ter alguma dificuldade em identificar as “boas práticas”, mas, intuitivamente, conseguimos reconhecer facilmente as “más práticas” (SHULMAN, 2005c). É o caso, infelizmente, de muitos programas de formação de professores.
Nestas três deslocações prevalece a necessidade de pensar a formação de professores em programas coerentes de preparação para o exercício da profissão docente. Talvez não haja melhor maneira de ajuizar o estado de uma profissão do que analisar a forma como cuida da formação dos seus futuros profissionais. E, se fizermos esta pergunta, deparar-nos-emos com uma resposta dura, e até dolorosa, no campo da formação de professores. A imagem da profissão docente é a imagem das suas instituições de formação.
UM NOVO LUGAR INSTITUCIONAL PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Para avançar no sentido de uma formação profissional universitária, é necessário construir um novo lugar institucional. Este lugar deve estar fortemente ancorado na universidade, mas deve ser um “lugar híbrido”, de encontro e de junção das várias realidades que configuram o campo docente. É necessário construir um novo arranjo institucional, dentro das universidades, mas com fortes ligações externas, para cuidar da formação de professores.
Em 1994, numa palestra em São Carlos, Paulo Freire referia a necessidade de “lançar as universidades brasileiras na responsabilidade de cuidar do magistério público” (FREIRE, 1994). Desde então, foram muitos os textos, as declarações e os discursos que levantaram esta mesma urgência. Mas pouco foi feito, e as universidades continuam fechadas nas suas fronteiras, com pouca capacidade para dialogarem com os professores e para se comprometerem com as escolas públicas. Já dissemos tudo o que era preciso ser dito. Sabemos muito bem o que é preciso fazer. Seremos capazes?
[Escólio terceiro - No Brasil, tem havido um diagnóstico muito crítico da situação da formação de professores (ver, por todos, GATTI, 2009 ; GATTI; BARRETTO; ANDRÉ, 2011 ). Por um lado, faltam professores qualificados em várias disciplinas, tornando difícil responder ao aumento de alunos, sobretudo no ensino médio. Por outro lado, os professores são maioritariamente formados em instituições privadas, regra geral de duvidosa qualidade, situação que se tem vindo a deteriorar com o recurso incontrolado a modalidades de educação a distância. Mas, ao mesmo tempo, as universidades públicas, dotadas de um corpo docente qualificado e de boas condições académicas e científicas, revelam uma grande incapacidade de proceder a mudanças institucionais de fundo. É certo que o Brasil tem uma legislação avançada e muito interessante, bem como programas originais e de grande relevância, como o Pibid, mas a realidade geral do campo da formação de professores é frágil. A urgência da mudança é óbvia. O que está em causa não é apenas a formação de professores, mas o próprio futuro do magistério e da educação pública brasileira.]
Devemos continuar o nosso exercício de denúncia da situação da escola pública e da formação de professores. Mas este diagnóstico só tem sentido se for acompanhado por gestos, por iniciativas de mudança, pela coragem da acção.
Trata-se de edificar um novo lugar para a formação de professores, numa zona de fronteira entre a universidade e as escolas, preenchendo um vazio que tem impedido de pensar modelos inovadores de formação de professores. Neste lugar, deve assumir-se um “imperativo de profissionalização” (ANDREWS; BARTELL; RICHMOND, 2016). Dito de outro modo: é neste lugar que se produz a profissão de professor, não só no plano da formação, mas também no plano da sua afirmação e reconhecimento público.
Este lugar tem de juntar pessoas comprometidas tanto com o trabalho universitário como com o futuro da profissão docente. Há uma pergunta central que deve orientar este lugar: como acolher os estudantes das licenciaturas e torná-los professores, capazes de se integrarem na profissão e contribuírem para a sua renovação?
São quatro as características deste novo lugar, cuja configuração se aproxima de certas intenções iniciais das Escolas Superiores do Professorado e da Educação, em França, ou das propostas de “terceiro espaço” formuladas por Kenneth Zeichner (2010b), avançando, porém, para novas dimensões e modelos organizativos.
1ª característica - Uma casa comum da formação e da profissão
A primeira característica deste lugar é o seu carácter híbrido, de ligação, de vínculo entre distintas realidades. Não se trata de propor mais uma reorganização interna das universidades ou das licenciaturas, mas sim construir um “entre-lugar”, um lugar de ligação e de articulação entre a universidade, as escolas e as políticas públicas. É uma “casa comum” da formação e da profissão, habitada por universitários e representantes das escolas e da profissão, com capacidade de decisão sobre os rumos da formação inicial, da indução profissional e da formação continuada. Esta proposta recusa não só uma visão aplicada, translacional, da ciência universitária para o trabalho escolar, mas também uma visão técnica, praticista, fechada nas virtudes do chão da escola ou na “glorificação da prática” (ZEICHNER; PAYNE; BRAYKO, 2015, p. 123). O segredo deste “terceiro lugar” está numa fertilização mútua entre a universidade e as escolas, na construção de um lugar de diálogo que reforce a presença da universidade no espaço da profissão e a presença da profissão no espaço da formação.
2ª característica - Um lugar de entrelaçamentos
A força deste lugar encontra-se na possibilidade de construir novos entrelaçamentos que vão muito além da tradicional relação universidade- escolas. É preciso que toda a formação seja influenciada pela dimensão profissional, não num sentido técnico ou aplicado, mas na projecção da docência como profissão baseada no conhecimento. A formação deve funcionar em alternância, com momentos de forte pendor teórico nas disciplinas e nas ciências da educação, seguidos de momentos de trabalho nas escolas, durante os quais se levantam novos problemas a serem estudados através da reflexão e da pesquisa. Há duas palavras-chave: convergência e colaboração. O ensino das disciplinas não pode ser verticalizado, devendo integrar-se, horizontalmente, em temáticas de convergência. Nada substitui o conhecimento, mas o conhecimento de que um professor de Matemática necessita é diferente daquele que se exige a um especialista de Matemática. Não é um conhecimento menor ou simplificado. É um conhecimento diferente, ancorado na compreensão da disciplina, da sua história, dos seus dilemas e, acima de tudo, das suas potencialidades para a formação de um ser humano. A colaboração é a segunda palavra-chave. Nada se constrói no vazio. A colaboração organiza-se em torno de um trabalho conjunto sobre o conhecimento. Importante é construir um percurso integrado e colaborativo, coerente, de formação.
3ª característica - Um lugar de encontro
Ao sugerir a criação de um lugar de encontro, não estou a falar de uma adição ou de uma soma. O encontro de 1 + 1 produz uma nova realidade, diferente, distinta, da soma das partes. Neste lugar produz-se uma terceira realidade, com novos sentidos. Não se trata, apenas, de levar a universidade às escolas ou de trazer as escolas até a universidade, mas sim de construir um novo lugar, em conjunto, em colaboração, valorizando os conhecimentos e as experiências de todos (ZEICHNER; PAYNE; BRAYKO, 2015). Este ponto é particularmente importante, pois obriga a dar igual dignidade a todos os intervenientes no processo de formação. Sem isso, não há verdadeira cooperação ou participação, mas apenas paternalismo ou autoridade dos universitários sobre os professores. É fundamental que haja mobilidade entre as universidades e as escolas. É preciso que todos tenham um estatuto de formador, universitários e professores da educação básica. Só com igualdade de tratamento conseguiremos um encontro autêntico entre mundos que se conhecem mal e que vivem em situações de grande disparidade, tanto nas condições materiais de vida como na imagem social que deles se projecta. Só assim conseguiremos construir comunidades profissionais docentes, que sejam comunidades de aprendizagem e de formação, e não meras reproduções de uma “teoria vazia”, que tantas vezes marca o pensamento universitário, ou de uma “prática vazia”, infelizmente tão presente nas escolas.
4ª característica - Um lugar de acção pública
Uma casa comum, um lugar de entrelaçamentos e de encontro, mas também de acção pública. Para formar um professor não bastam as universidades e as escolas. É preciso também a presença da sociedade e das comunidades locais (ZEICHNER; PAYNE; BRAYKO, 2015). A profissão docente sempre se caracterizou por uma forte intervenção pública, ainda mais necessária em “tempos de desumanização” (ANDREWS; BARTELL; RICHMOND, 2016). Não é possível formar professores sem uma abertura à sociedade, sem um conhecimento da diversidade das realidades culturais que, hoje, definem a educação. Esta “exposição” ou “imersão” valoriza os percursos formativos e dá-lhes uma maior espessura profissional (RILEY; SOLIC, 2017). Por isso, “quanto mais envolvermos os estudantes na vida das comunidades, melhor os conseguiremos preparar para trabalhar nos contextos em que virão a ensinar” (RICHMOND, 2017, p. 7). Tal como os médicos, que não poderão formar-se devidamente sem um contacto com a realidade social dos seus pacientes, também os professores não poderão construir a sua profissionalidade sem um conhecimento experiencial da diversidade das famílias e das comunidades dos seus futuros alunos.
Não há soluções simples. Mágicas. Não há atalhos. A formação de professores é um campo de grande complexidade, nos planos académico, profissional e político. Sabemos o que é preciso fazer. Teremos coragem para o fazer?
ENTRE-PARTES
Para concretizar a minha proposta, recorro ao conceito de posição, esclarecendo assim o título que escolhi para este artigo - Firmar a posição como professor, afirmar a profissão docente. Historicamente, sempre se procurou organizar a formação a partir de uma lista de atributos ou de qualidades do “bom professor”. Assim foi no tempo das escolas normais, desde o século XIX, com a definição das qualidades que um professor devia possuir. Depois, no tempo da Escola Nova, a questão das características necessárias ao “bom professor” voltou a ser matricial, logo seguida por um discurso comportamentalista.
No decurso do século XX, vulgarizaram-se as listas de conhecimentos, capacidades e atitudes que, nalguns casos, deram origem a um elenco interminável de “qualidades” do professor. Mais tarde, a trilogia do saber, saber fazer e saber ser foi completada com o saber estar, numa adaptação do Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI (DELORS et al., 1998). Finalmente, nas últimas décadas, assistiu-se à vulgarização de longas listas de competências, que procuram dar conta de tudo o que um professor deve ser capaz de pôr em acção no decurso do seu trabalho.
Apesar das suas diferenças, todas estas aproximações se baseiam no pressuposto de que é possível preestabelecer um conjunto de características definitórias do futuro profissional. São insuficientes e incapazes de traduzir a complexidade da profissão docente e dos seus processos de formação. A hegemonia recente de um discurso centrado nas competências tem-se revelado igualmente prejudicial a uma compreensão mais alargada e dinâmica da profissão docente (ver, por todos, PERRENOUD, 2000).
Mais interessante é a proposta de Guy Le Boterf (1995) sobre o conceito de competência profissional, no singular. Ao desenvolver a ideia de um repertório de meios ao dispor dos profissionais, ao falar da capacidade de improvisação e de decisão, ao referir que a competência depende das redes às quais se pertence e reveste sempre uma dimensão colectiva, ao insistir na importância da escrita e da comunicação e ao situar o problema do reconhecimento pelos outros, Le Boterf (1995) avança reflexões que são muito interessantes para pensar a formação profissional. Infelizmente, o seu trabalho tem tido pouco impacto no campo da formação docente.
Os temas da identidade profissional, sobretudo na forma como são tratados por Claude Dubar, revelam-se, também, de grande utilidade. Não se trata de definir uma identidade fixa, mas, bem pelo contrário, de compreender as múltiplas identidades que existem numa profissão e, sobretudo, de pensar a construção identitária como um processo. Nesse sentido, ninguém constrói a sua identidade profissional fora de um contexto organizacional e de um posicionamento no seio de um colectivo que lhe dê sentido e densidade (DUBAR, 1998, 2000).
Tanto Guy Le Boterf como Claude Dubar dão grande relevância ao conceito de habitus, no desenvolvimento teórico que lhe é dado por Pierre Bourdieu (2003, p. 207-208):
[...] o habitus engendra práticas ajustadas a uma determinada ordem, isto é, percebidas e apreciadas por aquele que as realiza, e também pelos outros, como sendo justas, correctas e adequadas, sem serem o produto da obediência a uma ordem no sentido imperativo, a uma norma ou às regras do direito.
O que interessa assinalar é a incorporação de um conjunto de “disposições duradouras”, e a possibilidade de este património ser transferível através de um processo de socialização profissional.
A literatura sobre este tema é abundante. Meu interesse prende- -se com o modo como o habitus pode conduzir à análise das posições, disposições e tomadas de posição. Por esta via, afasta-se de uma visão determinista para se colocar num campo de forças e de poderes em que cada um constrói a sua posição em relação consigo mesmo e com os outros (BOURDIEU, 1991). Esta deslocação parece-me muito interessante para pensar os professores e a sua formação.
A minha proposta constrói-se em torno do conceito de posição, que contém grandes potencialidades para compreender o processo como cada um se torna profissional e como a própria profissão se organiza interna e externamente. Evito, assim, uma reflexão influenciada por um conjunto de “qualidades essenciais”, deslocando o foco para um espaço de posições e de tomada de posições (ver também um debate sobre “o espaço posicional”, em BOLTANSKI, 1973).
Em primeiro lugar, é preciso compreender como se marca uma posição não apenas no plano pessoal, mas também no interior de uma dada configuração profissional. Depois, é fundamental perceber que as posições não são fixas, mas dependem de uma negociação permanente no seio de uma dada comunidade profissional. Nesse sentido, a posicionalidade é sempre relacional. Finalmente, é importante olhar para a posição como uma tomada de posição, isto é, como a afirmação pública de uma profissão.
O cruzamento de distintas fontes dicionarísticas e lexicais permite apreender a riqueza de significados do termo posição. É essa diversidade que possibilita traçar uma representação de cinco entradas para pensar a formação profissional dos professores:
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a posição é uma postura, a construção de uma atitude pessoal enquanto profissional;
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a posição é uma condição, o desenvolvimento de um lugar no interior da profissão docente;
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a posição é um estilo, a criação de uma maneira própria de agir e organizar o trabalho como professor;
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a posição é um arranjo, melhor dizendo, um rearranjo, a capacidade de encontrar permanentemente novas formas de actuar;
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a posição é uma opinião, uma forma de intervenção e de afirmação pública da profissão.
É neste inventário que se funda a proposta de formação de professores, apresentada na parte seguinte deste artigo.
SEGUNDA PARTE
CINCO POSIÇÕES PARA UMA FORMAÇÃO PRO FISSIONAL DOS PROFESSORES
A proposta seguinte aplica-se, com as devidas adaptações, a qualquer formação profissional universitária. O alicerce tem de ser, sempre, o conhecimento científico e cultural, sobretudo quando se trata do ensino. Devia ser desnecessário repetir esta afirmação, mas, infelizmente, ainda continuam a circular muitos discursos que, de uma ou de outra forma, tendem a desvalorizar o conhecimento.
Que discursos? Discursos sobre o digital, sublinhando a existência de um conhecimento disponível para todos e a todo o tempo: sim, mas não se pode confundir informação, e nem sempre autêntica, com conhecimento, nem abdicar de uma boa formação de base. Discursos sobre a “nova aprendizagem”, e a aprendizagem ao longo da vida, com novos processos e configurações: sim, mas a aprendizagem tem sempre como matéria-prima o conhecimento. Discursos sobre as neurociências e o cérebro, e as “competências socioemocionais”: sim, mas estas abordagens devem servir para compreendermos melhor o trabalho sobre o conhecimento, e não para o secundarizarmos. Discursos sobre a pedagogia e as didácticas, consideradas decisivas para o trabalho docente: sim, mas as pedagogias operam em cima de uma superfície de conhecimento ou então tornam-se práticas escorregadias, movediças. Discursos sobre a convergência, a necessidade de uma integração das disciplinas em temáticas e problemas: sim, mas isso não implica desconhecer o rigor e o método que são centrais para conseguir ensinar alguma coisa a alguém.
Poderia continuar esta enumeração de discursos que se tornam mais entusiásticos em tempos de incerteza e de mudança. Eu também faço parte destes discursos, pois reconheço a necessidade de procurar novos caminhos para pensar a escola e a educação. Mas procuro integrá- -los, sempre, a partir do lugar do conhecimento, pois sem isso tudo se torna volátil, enganador, etéreo, dificultando o esforço de educar. Não se trata de voltar a um passado que, na verdade, nunca existiu, nem de ceder perante uma pedagogia tradicional, transmissiva, empobrecedora das aprendizagens. Bem pelo contrário. Trata-se de compreender os desafios do conhecimento no nosso tempo, do conhecimento como ciência e como cultura, em toda a sua riqueza e complexidade.
Para mim, a escola tem dois pilares centrais: o conhecimento e a mobilidade social. O conhecimento é indissociável de lógicas pessoais e colegiais, de um conhecimento que reside também na experiência e nas “comunidades profissionais” que o produzem e difundem. A mobilidade social tem, sobretudo, uma dimensão pessoal, mas prolonga-se por expectativas que abrangem os grupos e as comunidades em que cada um está inserido.
Tendo estes princípios como base, desdobra-se a proposta de formação de professores, enquanto formação profissional universitária, em cinco entradas construídas a partir do conceito de posição.
DISPOSIÇÃO PESSOAL. COMO APRENDER A SER PROFESSOR?
Entrar num curso de formação para uma profissão do humano, como o ensino ou a medicina, não é a mesma coisa do que entrar para um outro curso qualquer. É preciso conhecer as motivações dos candidatos, o seu perfil, a sua predisposição para a profissão docente. É preciso dar-lhes um primeiro conhecimento da profissão, verificar se têm as condições e as disposições para serem professores.
Não é aceitável que em muitos países, e também no Brasil, a escolha de um curso de licenciatura seja uma segunda escolha, por falta de outras alternativas, por razões de horário (oferta de cursos nocturnos) ou por facilidade (cursos a distância). A primeira fragilidade da profissão reside, justamente, neste momento inicial.
Tornar-se professor é transformar uma predisposição numa disposição pessoal. Precisamos de espaços e de tempos que permitam um trabalho de autoconhecimento, de autoconstrução. Precisamos de um acompanhamento, de uma reflexão sobre a profissão, desde o primeiro dia de aulas na universidade, que também ajudam a combater os fenómenos de evasão e, mais tarde, de “desmoralização” e de “mal- -estar” dos professores.
Nas profissões do humano há uma ligação forte entre as dimensões pessoais e as dimensões profissionais. No caso da docência, entre aquilo que somos e a maneira como ensinamos. Aprender a ser professor exige um trabalho metódico, sistemático, de aprofundamento de três dimensões centrais.
A primeira é o desenvolvimento de uma vida cultural e científica própria. Facilmente se compreende que os professores, como pessoas, devem ter um contacto regular com a ciência, com a literatura, com a arte. É necessário ter uma espessura, uma densidade cultural, para que o diálogo com os alunos tenha riqueza formativa. Facilmente se compreende que quem não lê, muito, dificilmente poderá inspirar nas crianças o gosto pela leitura. E o mesmo se diga da Matemática, ou da História, ou das Artes, ou…
A segunda é a dimensão ética, a construção de um ethos profissional. Lee Shulman (2003) explica este assunto num texto breve, mas muito elucidativo, intitulado No drive-by teachers, referindo os condutores que, perante um acidente de carro, não param. O autor utiliza a metáfora para dizer que os professores têm de parar:
O meu argumento é que para ser professor, como para ser médico, não basta conhecer as últimas técnicas e tecnologias. A qualidade do ensino implica também um compromisso ético e moral - o que poderia ser designado por imperativo pedagógico. Os professores que possuem esta integridade sentem que não podem ver um acidente e continuar. Param e ajudam. ( SHULMAN, 2003 )
É interessante pensar, com Paul Ricoeur (1977), que “o discurso da acção precede o discurso ético” ou, dito de outra maneira, que há uma responsabilidade da acção e que o discurso ético não pode ser unicamente analítico e descritivo. No caso dos professores, a ética profissional tem de ser vista, sempre, em relação com a acção docente, com um compromisso concreto com a educação de todas as crianças.
A terceira dimensão é a compreensão de que um professor tem de se preparar para agir num ambiente de incerteza e imprevisibilidade. É evidente que temos de planear o nosso trabalho. Mas, tão importante como isso é prepararmo-nos para responder e decidir perante situações inesperadas. No dia a dia das escolas somos chamados a responder a dilemas que não têm uma resposta pronta e que exigem de nós uma formação humana que nos permita, na altura certa, estarmos à altura das responsabilidades.
INTERPOSIÇÃO PROFISSIONAL. COMO APRENDER A SENTIR COMO PROFESSOR?
O eixo de qualquer formação profissional é o contacto com a profissão, o conhecimento e a socialização num determinado universo profissional. Não é possível formar médicos sem a presença de outros médicos e sem a vivência das instituições de saúde. Do mesmo modo, não é possível formar professores sem a presença de outros professores e sem a vivência das instituições escolares. Esta afirmação, simples, tem grandes consequências na forma de organizar os programas de formação de professores.
Menciona-se frequentemente, e bem, a necessidade de uma maior ligação entre as universidades e as escolas. Mas falta por vezes um terceiro vértice, os professores. Claro que há professores nas escolas, mas nem sempre se reconhece devidamente o seu papel e a sua função formadora. Assim, apesar de presentes, acabam por estar ausentes, o que impede uma ligação forte entre profissionais e licenciandos (futuros profissionais).
Hoje, sabemos que é na colaboração, nas suas potencialidades para a aprendizagem e nas suas qualidades democráticas, que se definem os percursos formativos. O espaço universitário é decisivo e insubstituível, mas tem de se completar com o trabalho no seio de comunidades profissionais docentes. A profissão docente está a evoluir, rapidamente, de uma matriz individual para uma matriz colectiva.
Escólio quarto - O conceito de “comunidades de prática” tem sido muito utilizado para definir grupos de pessoas que partilham interesses comuns num determinado domínio do conhecimento humano e se envolvem num processo colectivo de aprendizagem que cria laços entre elas ( WENGER, 1998 ). Porém, entre os conceitos de “practice” e de “prática” há diferenças que tornam equívoco o seu uso em língua portuguesa. Prefiro, por isso, recorrer ao conceito de “comunidades profissionais docentes” para marcar as ideias de comunidade (o trabalho conjunto sobre um determinado tema ou problema), de profissional (trata-se de estruturar uma comunidade de profissionais e não um grupo livre de discussão ou de intervenção) e de docente (isto é, abrangendo as diversas facetas da profissão e do trabalho escolar e pedagógico). Estamos perante comunidades de aprendizagem que são, ao mesmo tempo, comunidades de sentido e de identidade. Estas comunidades podem juntar profissionais de distintas origens e organizações, tendo um carácter provisório ou permanente. A sua riqueza reside, por um lado, no enriquecimento das práticas e da profissão, nomeadamente através do envolvimento em processos de inovação pedagógica ou de pesquisa, e, por outro lado, na integração e na participação na formação dos professores mais jovens ( BRANDENBURG et al., 2016 ; COCHRAN-SMITH et al., 2008 ; LOUGHRAN; HAMILTON, 2016 ).
Neste sentido, a formação deve permitir a cada um construir a sua posição como profissional, aprender a sentir como professor.
Por isso, é tão importante construir um ambiente formativo com a presença da universidade, das escolas e dos professores, criando vínculos e cruzamentos sem os quais ninguém se tornará professor. Na Faculdade de Medicina de Harvard, já anteriormente referida, há um gesto simbólico que diz muito sobre a filosofia e a organização do curso médico. Nos primeiros dias de aulas, quando chegam à universidade, os jovens estudantes de medicina são convidados a participar numa sessão durante a qual os médicos do hospital, a maioria também professores da Faculdade de Medicina, lhes vestem um jaleco. Os estudantes passam a vestir a pele da profissão, ao mesmo tempo que os seus futuros colegas lhes dizem: “a vossa formação também é da nossa responsabilidade”.
É esta co-responsabilidade que permite construir uma verdadeira formação profissional. Para que ela tenha lugar, é necessário atribuir aos professores da educação básica um papel de formadores, a par com os professores universitários, e não transformar as escolas num mero “campo de aplicação”. A construção de uma parceria exige uma compreensão clara das distintas funções, mas sempre com igual dignidade entre todos e uma capacidade real de participação, isto é, de decisão.
É neste entrelaçamento que reside o segredo da formação inicial dos professores, bem como da construção de processos de indução profissional (residência docente) que assegurem a transição entre a formação e a profissão e, mais tarde, de modelos adequados de formação continuada.
A indução profissional é um tempo decisivo para os professores. A investigação sobre os ciclos de vida profissional já o demonstrou, abundantemente (HUBERMAN, 1989; NÓVOA, 1992a, 1992b, 1992c). Mas então por que razão este período é tão descurado? Julgo que é possível avançar duas explicações. Por um lado, as escolas não têm as condições necessárias para residências docentes e processos adequados de integração na profissão. Por outro lado, continuamos a ter muita dificuldade em diferenciar os professores, reconhecendo o papel que os professores mais capazes podem e devem assumir junto dos jovens professores.
Escólio quinto - O conceito de indução, pela sua própria raiz etimológica, implica a ideia de “introduzir” ou “levar a outro lugar”. Assim, toda e qualquer acção de formação pode ser considerada de “indução profissional”. Mas, na literatura especializada, o conceito tem sido utilizado, sobretudo, para caracterizar a fase inicial de trabalho docente, como professores principiantes ou iniciantes. As tradições dos países são muito distintas: residências docentes, estágios probatórios, períodos de supervisão, etc. (ver CLANDININ; HUSU, 2017 ; EUROPEAN COMMISSION, 2010 ; INGERSOLL; STRONG, 2011 ; KESSELS, 2010 ). Mas, seja qual for o contexto, há o reconhecimento unânime da importância deste período para a vida profissional docente. As políticas públicas têm encarado a transição entre a formação e a profissão como a fase decisiva do desenvolvimento profissional docente. Infelizmente, em muitos países, ainda continuam a lançar-se os jovens professores para as escolas, e para as piores escolas e situações, sem um mínimo de apoio ou de enquadramento. É inaceitável. Tanto as instituições universitárias como os responsáveis políticos têm de conceder uma atenção redobrada à indução profissional. O que me interessa, aqui, é sublinhar a necessidade de criar boas condições nas escolas e um compromisso dos professores mais prestigiados com a integração dos mais jovens. É esta a chave para a mudança da formação de professores.
Depois da fase de indução profissional segue-se uma fase de estabilidade na profissão que deve ser marcada por um esforço de permanente actualização. É legítimo que haja programas de formação continuada que se destinam a suprir deficiências da formação inicial ou a promover especializações ou pós-graduações em diversas áreas. Mas a formação continuada desenvolve-se no espaço da profissão, resultando de uma reflexão partilhada entre os professores, com o obcjetivo de compreender e melhorar o trabalho docente.
COMPOSIÇÃO PEDAGÓGICA. COMO APRENDER A AGIR COMO PROFESSOR?
Não há dois professores iguais. Cada um tem de encontrar a sua maneira própria de ser professor, a sua composição pedagógica. Esse processo faz-se com os outros e valoriza o conhecimento profissional docente, a que alguns chamam tacto pedagógico ou acção sensata ou outros nomes.
Este é o ponto decisivo da minha reflexão: qual é e a quem pertence o conhecimento relevante e pertinente para formar um professor? Na verdade, se não reconhecermos a existência e a importância deste “terceiro conhecimento”, a formação de professores acaba por se fechar numa dicotomia redutora entre o conhecimento das disciplinas e o conhecimento pedagógico.
Sobre o conhecimento das disciplinas é importante assinalar dois pontos para bem compreender a sua função numa formação profissional. Por um lado, um professor precisa ter um conhecimento mais orgânico, historicizado, contextualizado e compreensivo da disciplina que vai ensinar do que o especialista dessa mesma disciplina. Não se trata, pois, de formar um matemático que, depois, se formará como professor. Trata-se, isso sim, de formar um professor que, para ser capaz de ensinar Matemática, precisa de um conhecimento profundo da matéria, mas um conhecimento diferente daquele que necessita um especialista. Por outro lado, a formação de professores não pode deixar de acompanhar a evolução da ciência e das suas modalidades de convergência. Em tempos do digital, a visão enciclopédica das disciplinas vem sendo naturalmente substituída por formas mais exigentes e problematizadoras de aquisição do conhecimento.
Quanto ao conhecimento pedagógico, é certo que ele ocupa um papel importante na formação, mas não se confunde com o conhecimento profissional docente. Simplificadamente, é constituído por três grupos de disciplinas: i) as de raiz psicológica, sobre o conhecimento das crianças e dos jovens, a cognição e as aprendizagens; ii) as relacionadas com os contextos sociais, a história e as políticas educativas; iii) as metodologias e as didácticas. Um quarto grupo, mais recente, agrega as disciplinas de pesquisa ou de reflexão sobre a produção de conhecimento.
O que me interessa é o “terceiro género de conhecimento”, pois, na sua ausência, é impossível assegurar a trilogia necessária à formação de um professor. Tentemos a sua definição por três aproximações distintas.
A primeira é inspirada pelos trabalhos de Spinoza e o seu esforço para definir o “terceiro género de conhecimento”. Obviamente que não era sua intenção pensar um determinado campo profissional, o que torna arriscada esta apropriação. Permito-me fazê-la a partir da reinterpretação feita por Gilles Deleuze (1980-1981) no seu curso sobre Spinoza na Universidade de Paris VIII-Vincennes.
Escólio sexto - Recorro à transcrição das aulas de Deleuze (1980- 1981 ), uma vez que contém uma série de interessantes ilustrações pedagógicas. Segundo Deleuze, para Spinoza, o primeiro género é o conhecimento dos efeitos de encontros ou dos efeitos de acções e interacções das partes extrínsecas umas sobre as outras. O segundo género é o conhecimento das relações que o compõem e das relações que compõem as outras coisas. Já não são os efeitos dos encontros entre partes, mas o conhecimento das relações. O terceiro género de conhecimento ou o conhecimento intuitivo vai além das relações, da sua composição ou decomposição. É o conhecimento das essências. Vai mais longe do que as relações, pois atinge a essência que se expressa nas relações, a essência da qual dependem as relações. Consagra uma potência do agir. Deleuze evita exemplificar o seu raciocínio com a geometria ou a matemática, como é habitual nos estudos spinozistas. Recorre a uma actividade bem mais simples: nadar. Lanço-me à agua, sinto os efeitos do mar, as vagas batem contra o meu corpo ou levam-me na corrente. Recebo apenas os efeitos das partes extrínsecas. É o primeiro género de conhecimento. Agora, já sei nadar, o que não quer dizer que tenha um conhecimento científico das vagas. Mas tenho uma compreensão exacta do ritmo, do que fazer, das relações que compõem as vagas e a relação do meu corpo com elas. A arte da composição das relações é o segundo género de conhecimento. Finalmente, sou capaz de compreender a essência do que é nadar e das relações que compõem esta realidade. É o terceiro género de conhecimento. Deleuze prossegue, afirmando que os géneros de conhecimento são mais do que apenas géneros de conhecimento. São modos de existência. São maneiras de viver.
A entrada de um professor impreparado na sala de aula coloca-o perante uma série de relações externas, marcadas pelo comportamento dos seus alunos e por reacções involuntárias. É o primeiro género de conhecimento. Ao dominar o ritmo da sala de aula, as relações que a compõem, o professor acede ao segundo género de conhecimento. A capacidade de compreender a “essência” do ensino, e sobre ela falar, representa o terceiro género de conhecimento. Este último género é, também, uma maneira de viver profissional e, por isso, constitui-se no interior de uma dada comunidade docente.
A segunda aproximação vem de um conceito antigo, tacto pedagógico, utilizado por J.-F. Herbart há dois séculos e várias vezes reelaborado ao longo da história da educação (HERBART, 2007). Trata-se de compreender o senso, a inteligência ou a compostura pedagógica que definem os professores que, mais naturalmente, exercem a sua acção. A palavra “naturalmente” é perigosa, pois não se trata nem de algo inato ou espontâneo, nem mesmo de talento, mas antes de um trabalho sistemático de compreensão das relações e de “aprender a nadar” na sala de aula. Num texto notável, Daniel Hameline (1992, p. 46) refere-se a este entre-lugar como a acção sensata: “É inegável que o percurso da acção sensata passa pela promoção do actor a conhecedor da sua acção. O educador que não é capaz de dizer o que faz só o pode fazer mal”. O autor recorre a Paul Ricoeur para explicar que “a acção sensata é a que um agente pode contar, de tal maneira que o que recebe esta descrição a aceite como inteligível” (HAMELINE, 1992, p. 55).
A última aproximação refere-se à ideia de discernimento, isto é, à capacidade de julgar e de decidir no dia a dia profissional. Ser professor não é apenas lidar com o conhecimento, é lidar com o conhecimento em situações de relação humana. Repita-se uma afirmação óbvia, mas nem sempre bem compreendida: a missão de um professor de Matemática não é apenas ensinar Matemática, é formar um aluno através da Matemática. Um professor actua sempre num quadro de incerteza, de imprevisibilidade. Muitas vezes não sabemos tudo, não possuímos todos os dados, mas, ainda assim, temos de decidir e agir. Esta “arte de fazer”, para citar Michel De Certeau (1990), é central para a profissionalidade docente, mas não se trata de um saber-fazer. É a capacidade de integrar uma experiência reflectida, que não pertence apenas ao indivíduo, mas ao colectivo profissional, e dar-lhe um sentido pedagógico.
Estas três aproximações - a partir de Spinoza, do tacto pedagógico e do discernimento - permitem-nos situar a complexidade de um “terceiro género de conhecimento”, que não se esgota num pensamento binário, dicotómico. Aprender a agir como professor é compreender a importância deste conhecimento terceiro, deste conhecimento profissional docente, que faz parte do património da profissão e que necessita ser alçado ao lugar que merece na formação dos professores.
RECOMPOSIÇÃO INVESTIGATIVA COMO APRENDER A CONHECER COMO PROFESSOR?
A formação de professores deve criar as condições para uma renovação, recomposição, do trabalho pedagógico, nos planos individual e colectivo. Para isso, é necessário que os professores realizem estudos de análise das realidades escolares e do trabalho docente. O que me interessa não são os estudos feitos “fora” da profissão, mas a maneira como a própria profissão incorpora, na sua rotina, uma dinâmica de pesquisa. O que me interessa é o sentido de uma reflexão profissional própria, feita da análise sistemática do trabalho, realizada em colaboração com os colegas da escola. Este ponto é central para a formação de professores, mas também para construir uma capacidade de renovação, de recomposição das práticas pedagógicas. A evolução dos professores depende deste esforço de pesquisa, que deve ser o centro organizador da formação continuada.
É assim que aprendemos a conhecer como professores.
Seria fácil carrear vários autores e propostas neste sentido, mas talvez o melhor seja ir às origens e chamar a atenção para duas dimensões da célebre conferência de John Dewey, de 1929, sobre as fontes de uma ciência da educação.
A primeira diz respeito à colaboração dos professores nos trabalhos de pesquisa. John Dewey (1929, p. 46) assinala a diferença entre os pesquisadores universitários e os professores da educação básica e alerta: “Assume-se, muitas vezes, se não em palavras, pelo menos em actos, que os professores não possuem a formação que lhes permita dar uma cooperação inteligente à pesquisa. Esta objecção é fatal para a possibilidade de um conhecimento científico em educação e Dewey critica, com ironia, o poder que os universitários gostam de exercer sobre os professores: “A vontade humana de ser uma autoridade e de controlar as actividades dos outros não desaparece quando alguém se torna cientista” (DEWEY, 1929, p. 47).
A segunda refere-se à própria lógica profissional docente que, na sua opinião, deve integrar diariamente o trabalho de reflexão e pesquisa:
As fontes da ciência educacional são partes do conhecimento que entram no coração, na cabeça e nas mãos dos educadores e que, ao entrarem, tornam a função educacional mais esclarecida, mais humana, mais genuinamente educacional do que era antes. ( DEWEY, 1929 , p. 76)
Como toda a pesquisa, também esta pesquisa deve traduzir-se em escrita, com os professores a assumirem a autoria dos trabalhos publicados. Uma profissão precisa registar o seu património, o seu arquivo de casos, as suas reflexões, pois só assim poderá ir acumulando conhecimento e renovando as práticas. É uma questão decisiva que deve estar presente desde o início da formação de professores. Uma profissão que não se escreve também não se inscreve, nem se afirma publicamente.
EXPOSIÇÃO PÚBLICA. COMO APRENDER A INTERVIR COMO PROFESSOR?
Vivemos tempos de grande incerteza e de profunda mudança na educação. Os sinais do futuro estão claros e só não vê quem não quer ver. A escola, tal como se organizou desde meados do século XIX, tem os dias contados. Por todo o lado, surgem iniciativas e experiências que abrem novas possibilidades educativas. Uma das tendências mais fortes é a abertura da escola ao espaço público da educação. A configuração deste espaço implica uma participação mais ampla da sociedade nas questões educativas (famílias, associações, movimentos sociais, eleitos locais, etc.).
A escola pública tem sido um lugar importante para a construção da democracia. Nas próximas décadas, sua história vai passar pela capacidade de reconstruir laços e vínculos com a sociedade que foram perdidos quando a escola se fechou dentro dela e imaginou que podia ser melhor do que a sociedade. A difusão do digital vai facilitar mudanças dentro das escolas, mas também a existência de tempos e a mobilização de dinâmicas sociais fora dos muros da escola. A fronteira entre escola e sociedade vai diluir-se e terá de ser substituída por um trabalho conjunto, comum, no espaço público da educação (NÓVOA, 2013).
Numa conferência notável, e premonitória, proferida em 1982, Maxine Greene afirmou que não conseguia imaginar nenhum propósito coerente para a educação se alguma coisa comum não emergisse num espaço público: “a única maneira de aprender a viver e de ensinar as nossas crianças a aprenderem a viver é escolher um mundo comum, durável e precioso” (GREENE, 1982, p. 9). E, reflectindo sobre a “sociedade do espectáculo”, a autora explicou que este mundo é de inscrições e não apenas de observações: “formar uma geração de espectadores não é educá-los” (GREENE, 1982, p. 5).
Maxine Greene refere-se a Hannah Arendt (1958) para sublinhar que a liberdade funda-se numa acção que busca o interesse comum, a criação de uma realidade partilhada. O espaço comum é um espaço de expressão das diferenças e, acrescento eu, um espaço de deliberação conjunta. Nas línguas românicas, a expressão comunidade traduz, essencialmente, uma ideia de grupo com uma identidade própria. Basta ver os sinónimos consagrados pelo dicionário: povo, município, população, colectividade, agrupamento, grupo, conjunto, agremiação, congregação, confraria, irmandade, etc. Em língua inglesa, para além deste sentido, há um outro mais importante: aquilo que fazemos em comum, independentemente das nossas identidades ou pertenças.
É esta última definição que permite compreender a importância de um espaço público de discussão, de colaboração e de decisão, num tempo em que as sociedades vão adquirindo uma cada vez maior consciência das suas responsabilidades educativas. A profissão docente não acaba dentro do espaço profissional, continua pelo espaço público, pela vida social, pela construção do comum.
Ser professor é conquistar uma posição no seio da profissão, mas é também tomar posição, publicamente, sobre os grandes temas educativos e participar na construção das políticas públicas. É aprender a intervir como professor. Obviamente, também aqui se exige uma preparação, uma consciência crítica, que tem de ser trabalhada desde a formação inicial. É o que sugerem Kenneth Zeichner e colegas, em artigo recente, quando afirmam que “nem as escolas, nem as universidades, só por si, podem formar os professores, e mesmo em conjunto, as escolas e as universidades não serão capazes de formar bem os professores sem se relacionarem com o saber que existe nas comunidades que a escola tem de servir” (ZEICHNER; PAYNE; BRAYKO, 2015, p. 132).
CODA
O campo da formação de professores necessita de mudanças profundas. Neste texto, defendi a necessidade de pensar a formação de professores como uma formação profissional universitária. A partir do conceito de posição, argumentei que era necessário desenvolver uma disposição pessoal, uma interposição profissional, uma composição pedagógica, uma recomposição investigativa e uma exposição pública.
Não se trata de propor um novo modelo, mas sim de chamar a atenção para cinco dimensões que têm sido descuradas na formação de professores. Em tudo, procurei relacionar as dimensões pessoais com a vida profissional e a vida profissional com a acção pública. A minha intenção, a minha própria tomada de posição, está bem vincada no título que escolhi: Firmar a posição como professor, afirmar a profissão docente.
Não podemos firmar a nossa posição se, ao mesmo tempo, não afirmamos a profissão. Ao dizê-lo, quero marcar a dimensão colectiva do professorado e trabalhar no sentido de compreender que há um conhecimento e uma responsabilidade que não se esgotam num entendimento individualizado do trabalho docente. É esta dimensão colectiva, de construção interna, mas também de projecção externa, que quis apresentar ao longo da minha reflexão.
Muitas vezes, fala-se da formação de professores como uma espécie de resposta ou de “salvação” para todos os problemas educativos. Quando se adopta esta linha de raciocínio, facilmente se cai numa visão dos professores como “super-homens” ou “super-mulheres”, capazes de tudo resolver. Daqui à sua responsabilização ou culpabilização vai um pequeno passo. Nunca me verão seguir por este caminho.
A formação é fundamental para construir a profissionalidade docente, e não só para preparar os professores do ponto de vista técnico, científico ou pedagógico. Com esta reflexão, fecho um ciclo, que iniciei no período 1987-1992, sempre marcado pelo reforço mútuo entre a formação e a profissão. Não pode haver boa formação de professores se a profissão estiver fragilizada, enfraquecida. Mas também não pode haver uma profissão forte se a formação de professores for desvalorizada e reduzida apenas ao domínio das disciplinas a ensinar ou das técnicas pedagógicas. A formação de professores depende da profissão docente. E vice-versa.
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A escrita é, para mim, um acto de partilha. Não saberia escrever sem a colaboração de colegas, das universidades e das escolas, que me ajudam com as suas ideias e reflexões. Quero agradecer a leitura de versões preliminares deste texto que foi feita por Giseli Barreto da Cruz (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Lúcia Amante (Universidade Aberta, Portugal) e Pâmela Vieira (rede municipal de Novo Hamburgo).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2017
Histórico
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Recebido
26 Jul 2017 -
Aceito
21 Ago 2017