Resumo
O artigo analisa a formação profissional da enfermagem pós-1930 como parte de um processo histórico que redimensionou a profissão e sua profissionalização no Brasil. Por intermédio de documentos que remetem à experiência das primeiras alunas da Escola de Enfermagem de São Paulo, considera-se que o movimento evoca uma ruptura em relação tanto às origens quanto à manutenção das representações estabelecidas. Derivadas da instalação de um novo modelo de ensino oriundo dos Estados Unidos, mudanças processadas transferem para São Paulo o núcleo intelectual da enfermagem no Brasil, que passa a ser o centro irradiador da profissionalidade preconizada e como parte de acordos bilaterais realizados durante o Estado Novo.
INTERDISCIPLINARIDADE; FORMAÇÃO PROFISSIONAL; ENFERMAGEM; MODELO EDUCACIONAL
Resumen
El artículo analiza la formación profesional de los cursos de enfermería posteriores a 1930 como parte de un proceso histórico que redimensionó la profesión y su profesionalización en Brasil. Por intermedio de documentos que remiten a la experiencia de las primeras alumnas de la Escola de Enfermagem de São Paulo, se considera que el movimiento evoca una ruptura tanto en lo que se refiere a los orígenes como al mantenimiento de las representaciones establecidas. Derivados de la instalación de un nuevo modelo de enseñanza proveniente de Estados Unidos, los cambios efectuados trasladan a São Paulo el núcleo intelectual de la enfermería en Brasil, pasando a ser esta ciudad el centro irradiador de la profesionalidad preconizada y parte de acuerdos bilaterales realizados durante el Estado Novo.
INTERDISCIPLINARIDAD; FORMACIÓN PROFESSIONAL; ENFERMERÍA; MODELO EDUCACIONAL
Résumé
L’article analyse la formation professionnelle en infirmerie après 1930 comme partie integrante d’un processus historique qui a redimensionné la profession et sa professionnalisation au Brésil. Par moyen des documents qui renvoyent à l’expérience des premières élèves de l’Escola de Enfermagem de São Paulo, on considère que le mouvement évoque une rupture par rapport aussi bien aux origines qu’à la maintenance des réprésentations établies. Dérivés de l’installation d’un nouveau modèle d’enseignement des États-Unis, les changements effectués déplacent à São Paulo le noyau intellectuel de l’infirmerie au Brésil, qui devient le centre de rayonnement du professionnalisme préconisé et fait partie des accords bilatéraux réalisés pendant l’Estado Novo.
INTERDISCIPLINARITÉ; FORMATION PROFESSIONNELLE; INFIRMERIE; MODÈLE ÉDUCATIF
Abstract
This paper analyzes the professional formation of nursing in Brazil after the 1930s as part of a historical process that evaluates the professions and the professionalization in the country. Through several documents on the experience of the first female students at the Escola de Enfermagem de São Paulo, the movement is thought to underscore a rupture regarding the origins and the maintenance of representations established for nurses in Brazil. Changes were transposed from the new nursing model in the United States and applied in São Paulo as the nursing’s intellectual nucleus, center of professionalism as part of joint ventures undertaken during the Brazilian Estado Novo.
INTERDISCIPLINARY; PROFESSIONAL EDUCATION; NURSING; EDUCATIONAL MODELS
Durante o Estado Novo (1937-1945), processos históricos permitem situar a enfermagem como campo potencialmente estratégico para o governo de Getúlio Vargas (1930-1945) e evocam alterações significativas no imaginário cristalizado sobre formação e identidade profissional que redimensionam práticas e representações da enfermagem no Brasil pós-1930. Processadas pela nova composição política brasileira, as mudanças reconfiguram tanto a imagem social do enfermeiro quanto a história da enfermagem, ambas alinhadas aos discursos produzidos no bojo da Reforma Sanitária de 1922. Como resultado, verdades rigidamente estabelecidas foram desconstruídas, alterando formação, instituições e contingentes profissionais a partir de um novo modelo educacional-profissional.
Pesquisas revelam uma crescente produção acadêmica da história da enfermagem escrita por enfermeiros (HALLAN, 2000; BORSAY, 2009). Mapeamentos apontam avanços significativos em análises que recuperam perspectivas históricas da enfermagem pouco tratadas no Brasil (FERREIRA; BROTTO, 2018; FERREIRA; SALLES, 2019), quase sempre em relação à formação e à identidade profissional, como evidenciam Maria Itayra Padilha et al. (2013). Mesmo que prevaleça o ideário fundado na historia magistra vitae, não raro, a Fundação Rockefeller destaca-se no processo de promoção e patrocínio do desenvolvimento da enfermagem brasileira, cujo potencial investigativo derivado do material documental existente impõe capital importância.
No caso da enfermagem brasileira pós-1930, construções discursivas e imaginários derivados do antigo padrão não mais interessavam politicamente. A perspectiva analítica parte da constatação de que, nas origens da profissionalização do cuidar/cuidado no Brasil, a “mística da enfermagem” impedia o ingresso de mulheres negras e homens em espaços oficiais de formação profissional, isto é, escolas autorizadas por um padrão educacional que anunciava a profissão como apropriada para mulheres brancas, solteiras e filhas das classes médias urbanas (BARREIRA, 1997; FERREIRA; SALLES, 2019), inclusive, em escolas não laicas, mantidas por ordens religiosas, cuja formação moral não reconhecia a preparação intelectual, além de também frequentadas por filhas das elites (FERREIRA; BROTTO, 2018), ou seja, diametralmente oposto ao que propunha Vargas. Mesmo considerando a influência da Igreja Católica nas políticas educacionais e na profissionalização feminina, era preciso mudar, modernizar, qualificar e, ao mesmo tempo, inserir mais pessoas comuns no mundo do trabalho em uma conjuntura favorável, de estado de guerra, de política de boa vizinhança entre Brasil e Estados Unidos.
Nesse sentido, o presente artigo objetiva interpretar testemunhos preservados nos arquivos do Centro Histórico-Cultural da Enfermagem Ibero-Americana (CHCEIA-EEUSP), que documentam a composição da primeira turma de enfermeiras da Escola de Enfermagem do Centro Médico da Faculdade de Medicina de São Paulo, as diplomadas de 1946, em específico, Fichas de Admissão.1 O propósito não está somente em identificar quem eram as primeiras alunas, quais eram suas origens e por que optaram pela profissão, mas também observá-las como parte do Programa Enfermagem, que redirecionou profissão, profissionalismo e profissionalidade brasileira com a fundação da Escola de Enfermagem de São Paulo, resultado direto do Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), órgão criado em 1942 por meio de um acordo entre os governos brasileiro e estadunidense, financiado pelo Instituto de Assuntos Inter-Americanos (IAIA) da Fundação Rockefeller e instalado no âmbito do Ministério da Saúde e Educação (MSE).
A Escola de Enfermagem de São Paulo emerge do Programa Enfermagem e transfere a excelência intelectual e profissional para a cidade, bem como o movimento associativo mais antigo da enfermagem brasileira, atualmente com o nome de Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn). São Paulo representava modernidade, superioridade regional, intelectual, dizia-se formada por uma “raça de gigantes” (WEINSTEIN, 2006), vale dizer, o american way of life legitima transferências, rompimentos e propaga a enfermagem para todo o Brasil. Para tanto, era preciso organizar um novo quadro intelectual pautado em nova orientação profissional, como proposto no Curriculum Guide.
Nesse ponto, o artigo evoca a memória das diplomadas de 1946, mulheres selecionadas para formar contingentes de todo o Brasil, orientadas por um grupo de intelectuais destacados para reformular o antigo padrão de formação profissional. Alunas da primeira turma ampliaram o quadro docente da Escola, atuaram na formação de bolsistas Sesp inscritos a partir da segunda turma, os quais, por sua vez, disseminaram a enfermagem em âmbito nacional, instruíram quadros profissionalizantes auxiliares para o desenvolvimento de ações de cuidar/cuidado, imperiosas às políticas públicas de saúde emergentes da nova ordem política e social brasileira, ou seja, de interesse político. O modelo educacional-profissional Sesp altera significativamente a formação e identidade profissional da enfermagem brasileira, bem como fortalece a imagem de Getúlio Vargas como estadista.
ESTADO NOVO E ENFERMAGEM: A PROFISSIONALIZAÇÃO COMO “BRAÇO FORTE”
A enfermagem brasileira pós-1930 resulta de uma profunda reformulação promovida pelo Programa Enfermagem do Sesp. No contexto histórico analisado, a ampliação dos serviços de saúde pública é um dos principais acontecimentos na história da saúde, resultado de acordos entre Brasil e Estados Unidos (EUA). O enfrentamento da questão implicava redimensionar o exercício profissional da enfermagem, então limitado aos grandes centros urbanos, organizado a partir de um contingente reduzido, elitizado e ilustrado pela narrativa construída em torno do espaço formador por excelência da enfermagem brasileira desde a década de 1920 (BARREIRA, 1997).
Diametralmente oposto à emergência populista e intervencionista de Getúlio Vargas, o antigo modelo não favorecia as novas diretrizes de promoção de políticas públicas voltadas para a inclusão de grupos diferenciados no mundo do trabalho urbano. Tal prerrogativa encontra ressonância com as possibilidades da formação educacional em enfermagem, que beneficiaria o governo em dupla função, isto é, empregar o brasileiro comum, que emerge das “classes subalternas”, e promover serviços públicos de atenção à saúde das populações em todo o território nacional (WEFFORT, 1978; SILVA, 1991; GOMES, 1998). Para tanto, era preciso romper com o padrão educacional-profissional vigente.
A especial atenção para os trabalhadores da saúde se impunha pela alta capacidade de inserção de contingentes na esfera do trabalho, bem como da parcela feminina atraída pela formação, questão de peso no que se refere à instauração de novo padrão de relacionamento político entre elites dominantes e “subalternos”, historicamente pautado na opressão e no descaso, bem como instrumento necessário ao estado de guerra, isto é, como organização do front interno diante da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Interessava à política de Getúlio Vargas ocupar a mão de obra feminina, negra, masculina e pobre, inserindo-a no mundo do trabalho, para atuar em serviços auxiliares exigidos maciçamente no campo da saúde.
As ocupações e vagas criadas a partir da fundação e ampliação de instituições públicas - como hospitais, postos de saúde, atendimento domiciliar e programas de saúde - exigiam formação em grande quantidade de trabalhadores preparados tanto para um ataque bélico quanto para a atuação na rede pública de assistência médico-hospitalar, ou como docentes em cursos auxiliares, campo propício e capaz de responder às demandas da sociedade pós-1930, sobretudo de mulheres recentemente conduzidas à categoria de eleitoras.
Assim, ao perigo da doença se impõe a “domesticação dos trabalhadores” (SILVA, 1991). Tais questões permeavam favoravelmente discursos que caracterizavam Getúlio Vargas como “pai dos pobres”, na medida em que, por intermédio da enfermagem, contingentes significativos de homens e mulheres ingressariam no mundo do trabalho, do serviço público, algo que comprovaria o discurso promovido e chancelaria interesses americanos, pois “A Doença não Conhece Fronteiras”, como anunciava o slogan do Boletim do Sesp (LEVINE, 2001; SOUZA CAMPOS; OGUISSO, 2013), nem mesmo entre classes sociais.
A inclusão de mulheres no trabalho urbano favorecia potencialmente os propósitos encetados por Getúlio Vargas. Abrir possibilidades para mulheres em um campo profissional considerado socialmente adequado ao gênero tornou-se uma das prioridades. As frentes abertas referendavam o discurso da positividade do trabalho/trabalhador, cujas ações incidiriam poderosamente na saúde das populações e as projetariam socialmente como propunha o sufrágio universal reconhecido em 1932, ao proporcionar novas expectativas em relação ao público eleitor renovado. Os resultados não somente produziam visibilidade ao estadista, mas também legitimavam a proposta de governo voltada para as massas e fortaleciam o ideal nacionalista de desenvolvimento e proteção social em uma conjuntura sintomaticamente marcada pela guerra. Não por acaso, a política de massas e o estilo de governo de Getúlio Vargas reverberaram nas ações de Darcy Vargas, que inaugurou o primeiro-damismo no Brasil ao fundar a Legião Brasileira de Assistência (LBA). Como assinala Ivana Simili (2008, p. 135), “Formar um front interno composto por mulheres dispostas a trabalhar pela vitória do país foi um dos eixos da mobilização desencadeada por Vargas”.
A enfermagem marcou posição de destaque no conjunto das mudanças processadas na medida em que o progresso requerido incluía bem-estar social do povo brasileiro, além de frentes de trabalho. O estatuto assumido pela enfermagem redirecionou serviços realizados por visitadoras e educadoras sanitárias e ampliou o campo da atuação profissional no serviço público, especialmente em instituições criadas e mantidas pelo governo. As novas perspectivas no âmbito da clínica médica, da administração pública ou de programas governamentais redimensionavam representações, práticas e apropriações da enfermagem em relação tanto à visibilidade social quanto à necessidade de trabalhadores na área.
Fortalecida pela possibilidade de inserção de um número significativo de mulheres nas ocupações criadas pelo serviço público, a reconfiguração da enfermagem brasileira transforma o discurso político em prática. A ampliação de hospitais e redes assistenciais de saúde mantidos pelo governo resultou em aumento potencial de número de leitos e vagas de trabalho em consonância com mudanças tecnológicas e renovação de infraestrutura médico-hospitalar, consolidada com a importação de aparelhos, instrumentos, medicamentos e outros produtos da indústria americana, o que ampliava os interesses da política de boa vizinhança ao fazer do Brasil consumidor da tecnologia hospitalar americana (MOTA; MARINHO, 2011).
Noções de higiene e saúde foram alinhadas ao discurso patriótico e nacionalista propício ao momento histórico. A saúde deveria alterar comportamentos e práticas cotidianas em associação direta com noções de ordem e progresso, valores que levariam o país ao civilismo e à modernidade reverberada. Getúlio Vargas se beneficiava dos acordos estabelecidos para promover ajustes políticos e militares durante o Estado Novo, pois o imaginário da guerra representava a enfermagem como ação patriótica, nacionalista, benfazeja, similar ao reverberado pelo americanismo no qual a modernidade requerida se espelhava. O fortalecimento de uma rede médico-assistencial para o caso de invasão ou conflito beligerante impunha manutenção de um exército de trabalhadores preparados para a atuação no front interno, reitera Ronei Cytrynowicz (2002).
Desse modo, é possível considerar que o american way of life rompeu, no caso brasileiro, o antigo padrão de referência social (TOTA, 2000). O controle sobre as “classes subalternas” via legislação trabalhista e estrutura sindical, atrelado ao Estado autoritário, redimensionou o serviço público e criou novos cargos e ocupações, os quais foram assumidos por uma elite tecnoburocrática cooptada pelo inchamento do aparato administrativo (PESAVENTO, 1994). Considerando os baixos índices de alfabetização no Brasil durante as primeiras décadas do século XX, as prerrogativas em torno da enfermagem geravam condições singulares para o sucesso do Estado Novo.
O programa varguista implicava amparar os pobres, inseri-los na vida social a partir da inclusão nas frentes de trabalho criadas pelo Estado, sem descartar os efeitos de um ataque noticiado cotidianamente pela imprensa escrita, na qual imagens de enfermeiras eram constantes. Ao criar frentes de trabalho, o governo controlava populações inteiras e respondia às demandas sociais, pois pessoas seriam identificadas, medidas e avaliadas, inclusive pela Antropologia, área do conhecimento apoiada pela Fundação Rockefeller (FIGUEIREDO, 2014). Para Francisco Weffort (1978), a política brasileira do período é produto de um longo processo de transformação social, instaurado a partir da chamada Revolução de 1930 e manifestado de dupla forma, vale dizer, como estilo de governo e política de massas, posicionamento reiterado por Ângela de Castro Gomes (1998).
A conjuntura política vivida no Estado Novo estreitava interesses comuns e unia formação profissional e modelo americano de vida. A inserção das massas no mundo do trabalho, por intermédio da enfermagem, cumpria a dupla função e referendava a política de boa vizinhança. Valores americanos de saúde e trabalho seriam disseminados em território nacional por meio de programas governamentais, intercâmbio de pessoas e entrada massiva de produtos farmacêuticos e médico-hospitalares importados. A enfermagem muda radicalmente o lugar social que ocupava e como “enfermeira-chefe” assume poder de decisão em políticas governamentais, inclusive de compra de produtos hospitalares importados dos Estados Unidos.
Um dos aspectos cruciais à ancoragem da enfermagem no discurso político era a recriação das representações existentes, isto é, desconstrução do capital simbólico forjado na década de 1920 para a profissão e sua principal personagem - a enfermeira -, fortemente arraigado no imaginário social, que a significava como heroína, abnegada ou freira sem hábito. A desmontagem do antigo padrão encontrou respaldo no Programa Enfermagem da Fundação Rockefeller, instituição que também apoiou a legendária “Missão Parsons”2 durante a primeira reconfiguração do ensino de enfermagem no Brasil no bojo da Reforma Sanitária de 1922 (SANTOS; BARREIRA, 2002). Como destacado, o Programa Enfermagem transfere para São Paulo o núcleo irradiador da formação educacional-profissional e a Escola de Enfermagem anexa à Faculdade de Medicina de São Paulo reconduz processos educacionais da enfermagem no Brasil, cujo lastro permanece solidamente instaurado.
Por envolver número significativo de pessoas no campo profissional, os investimentos permitiram mobilidade entre “populares”, expressão usada para caracterizar homens e mulheres pobres, negros, “mulatos”, pardos e “miscigenados” que compunham as “classes subalternas”. Comuns, tipologias de distinções e modos de exclusão/inclusão considerados próprios das representações de raça/cor no Brasil foram observados por Oracy Nogueira (1998), que os trata como marca e origem nas relações sociais entre brancos e negros no Brasil, critério de qualificação e desqualificação do outro. Ainda que o propósito original da enfermagem pós-1930 não fosse a questão racial, as novas dimensões permitiam, por intermédio da formação em enfermagem, a ascensão social das “classes subalternas” oriundas da escravidão, desprovidas e vulnerabilizadas. Não por acaso, o modelo Sesp reinsere homens e mulheres negras na profissão e atinge todo o Brasil.
PROGRAMA ENFERMAGEM DO SESP: A DESMONTAGEM DO ANTIGO PADRÃO DE ENSINO
Os acordos bilaterais entre Brasil e EUA firmados durante o Estado Novo incluíam melhorias nos serviços de saúde. Programas de saneamento e assistência exigiam, ao mesmo tempo, formação de um contingente profissional capacitado para gerenciar problemas existentes na assistência direta e na administração dos serviços de saúde, como coletas, exames, formação profissional e auxiliar hospitalar em todo o território nacional. Em tempo de guerra, a esse contingente se somavam samaritanas, socorristas, enfermeiros de guerra, padioleiros e removedores de feridos em campos de batalha formados em cursos rápidos filiados à Cruz Vermelha. A demanda gerada pela ampliação da assistência médica tornava factível a inclusão de um número significativo de homens e mulheres das classes pobres no mundo do trabalho urbano, possibilidade que favorecia a manutenção política e o fortalecimento da imagem de liderança de Vargas entre as massas (LEVINE, 2001).
Durante a Era Vargas ocorreu pela primeira vez na história do Brasil a implementação de uma abrangente política de direitos trabalhistas no âmbito da saúde tratada com prioridade. A ampliação dos serviços de saúde pública respondia às demandas das classes populares brasileiras e fortalecia a imagem de Getúlio Vargas em todo o território nacional. Para tanto, em parceria com a Fundação Rockfeller, no auge da política de boa vizinhança, o governo implementou o Programa Enfermagem com o objetivo de redimensionar o exercício profissional, em relação tanto à formação educacional quanto às atuações de enfermeiros, vale dizer, imprimir nova concepção e atributos à profissão, bem como redefinir o status profissional (CAMPOS, 2006).
O Programa Enfermagem pautava-se no “efeito demonstração” (CASTRO SANTOS; FARIA, 2010), vale dizer, replicação do modelo de formação e assistência em saúde a partir de um núcleo irradiador, cujos alcances atingiriam diferentes regiões do país e fortaleceriam o processo de reconstrução das políticas públicas de saúde proporcionadas pela aliança Brasil-EUA. Entretanto, para que o Programa Enfermagem atingisse os objetivos esperados, era necessário formar profissionais oriundos dos vários estados brasileiros conhecedores das dificuldades sociais enfrentadas pelas populações de seus locais de origem, capazes de disseminar novas técnicas apreendidas na formação renovada para que, desse modo, administrassem programas assistenciais em conformidade com as realidades locais e não mais fundados em critérios excludentes anteriormente estabelecidos, considerados politicamente ultrapassados e restritivos. Naquele momento, a enfermagem avançava para internacionalização, estudo da clínica, administração e pesquisa científica.
A elitização da enfermagem nacional proposta na década de 1920 como reinvenção de tradições nativas era contrária ao modelo preconizado pelo Sesp e se opunha à política desenvolvimentista de Getúlio Vargas, que encontra na enfermagem campo de ação e interesse político. Reinserção de mulheres negras e desmistificação de homens na profissão alteram o status profissional e permitem ao ofício atingir todo o território nacional mais rapidamente. O modelo profissional anterior encontrava-se diametralmente oposto à política nacionalista implementada pelo Estado Novo.
As poucas profissionais existentes eram rapidamente absorvidas por hospitais de grandes centros urbanos ou escolas de formação profissional - como professoras, consultoras, orientadoras em cursos de curta duração que proliferavam no período em decorrência da Segunda Guerra Mundial -, sem considerar as recusas movidas por interesses pessoais, que as impediam de realizar grandes deslocamentos ou atuar no interior do Brasil. Ou seja, a realidade social vivida pós-1930 se coaduna com os objetivos da formação de um novo corpo de trabalhadores da saúde na política varguista ao considerar a sociedade “uma coleção de grupos diferenciados e organizados hierarquicamente segundo o papel produtivo ou econômico que desempenhavam” (LEVINE, 2001, p. 51).
Ao redimensionar a realidade sociossanitária em diferentes regiões do Brasil, com especial atenção às regiões Norte e Nordeste, o Programa Enfermagem possibilitou a criação de frentes de atuação no mundo do trabalho, no caso, potencialmente na esfera do serviço público, com significativa participação feminina. Imprimir caráter de urgência à qualificação de trabalhadores da saúde permitiu que postos de trabalho fossem abertos nos diversos estados, o que conferia visibilidade social ao estadista. As leis sociais de amparo e assistência, que reordenaram a vida pública durante o Estado Novo, respondiam às demandas expressas nas reivindicações de organizações políticas, sindicalistas e mutualistas, elevando sobremaneira os ideais populistas de Getúlio Vargas (LEVINE, 2001). A enfermagem protagonizava a política pública de saúde encetada no Estado Novo e as mulheres souberam tirar proveito, em especial as mulheres negras (SOUZA CAMPOS; OGUISSO, 2013).
Estabelecido para ser uma agência temporária de guerra, o Sesp existiu durante 48 anos e teve como prioridade a atenção à saúde pública, com destaque para formação e qualificação profissional de médicos, engenheiros sanitaristas, agrônomos e enfermeiros. Políticas públicas de saúde foram empreendidas junto às populações do interior do Brasil, com o objetivo precípuo de combater endemias no chamado sertão brasileiro e construir redes de unidades sanitárias e outros equipamentos de assistência médica em regiões distantes dos grandes centros urbanos, não por acaso, em espaços sociais nos quais norte-americanos mantinham bases aéreas, como o estado da Bahia e a região do Amazonas. Para tanto, acordos previam a criação de escolas de enfermagem, hospitais e centros de saúde, auxílio financeiro às escolas existentes, fomento a programas, políticas públicas e estudos de pós-graduação no Brasil, nos EUA e no Canadá, bem como aprendizado da língua inglesa e manutenção de consultoras da Fundação Rockefeller nos principais núcleos de formação profissional existentes no Brasil.
Além de implantar sistemas de água e esgoto, o Sesp estabeleceu convênios com estados e municípios para construir, normatizar e expandir benefícios da saúde pública, conferindo ao movimento pioneirismo nas políticas públicas do Brasil republicano; não obstante, como sugerido, abriu frentes de trabalho na administração pública a profissionais da saúde, exemplarmente os enfermeiros, bem como a uma plêiade de auxiliares. Como parte de suas atividades, normatizou procedimentos, contratou e expandiu uma burocracia importante para a organização dos serviços de saúde, com formação de mão de obra qualificada em educação sanitária como previsto na agenda pan-americana de saúde (CAMPOS, 2006; TOTA, 2000).
O Programa Enfermagem contemplava pretendentes à carreira de enfermagem com bolsas de estudo, cujo termo de outorga conferia auxílios necessários para formação profissional, manutenção pessoal e acadêmica durante os anos letivos, passagens de ida e volta aos que não residissem nas localidades das escolas apoiadas pelo Sesp, entre outros benefícios, como os exigidos durante deslocamentos de bolsistas provenientes das diversas regiões do Brasil. Em contrapartida, exigia-se prestação de serviços por dois anos nos locais de origem de cada bolsista. Desse modo, seriam formadas equipes organizadas para serviços de saúde, monitoramento de programas governamentais e administração de clínicas, hospitais, centros de saúde urbanos e rurais e escolas, o que permitia replicar conhecimentos adquiridos em espaços formadores apoiados pelo Sesp, estratégia do princípio administrativo do ensino e da assistência de enfermagem americana ou “efeito demonstração” (CASTRO SANTOS; FARIA, 2010).
A manutenção de bolsas Sesp legitimava investimentos no campo ao inserir um novo contingente no mercado de trabalho e reconfigurar serviços de assistência à saúde, destacadamente entre populações que viviam em regiões do interior do Brasil. As bolsas permitiram que homens e mulheres - majoritariamente mulheres - das diversas regiões do país tivessem formação profissional em grandes centros urbanos, prioritariamente São Paulo, desde que retornassem a seus locais de origem e replicassem o conhecimento adquirido no sentido de ampliar a mão de obra auxiliar. O efeito demonstração orientava a nova formação profissional, cujos incentivos fundavam e mantinham espaços educacionais voltados para a finalidade de profissionalizar o cuidado e inserir as massas no mundo do trabalho. A Escola de Enfermagem de São Paulo tornou-se o núcleo irradiador da enfermagem para o Brasil (CARVALHO, 1980).
Como proposto, a reconfiguração da enfermagem se coaduna com a política do Estado Novo. A Carta Constitucional de 1937, que conferiu ao presidente da República poderes para nomear interventores nos estados e governar por meio de decretos-lei, centralizava decisões e execuções dos mais diferentes interesses político-governamentais nas mãos do presidente. Assumida como ordens de Estado, a reforma administrativa instituiu, sob direção do MSE, o Departamento Nacional de Saúde (DNS) e outros órgãos executivos de ação direta em substituição ao antigo Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), criado por Carlos Chagas na década de 1920 (OGUISSO; SCHMIDT, 2017). Como resultado, a nova enfermagem rompe definitivamente com o antigo modelo de formação e orientação profissional, centrado no espaço hospitalar e no estudo sistemático de doenças, cujas enfermeiras seriam coadjuvantes da prática médica hospitalar que privilegiava uma ação curativa e não voltada ao saneamento público (RIZZOTTO, 1999).
ESCOLA DE SÃO PAULO: A FUNDAÇÃO DO MODELO EDUCACIONAL-PROFISSIONAL SESP
O núcleo da enfermagem pós-1930 balizou o processo de reconfiguração profissional e funcionou anexo à Faculdade de Medicina de São Paulo entre 1942 e 1963, ano em que Maria Rosa Sousa Pinheiro, apoiada por Glete de Alcântara, mobilizou recursos para sua desanexação, configurando a Escola de Enfermagem como unidade autônoma da Universidade de São Paulo (USP) (SANTIAGO, 2011). Sua história remonta à participação efetiva do Sesp que intermediou interesses do Instituto de Assuntos Interamericanos (IAIA) da Fundação Rockefeller, que financiou a saúde pública no mundo ibero-americano (SILES GONZÁLEZ et al., 2011).
Um dos atributos conferidos ao Sesp implicava manutenção de escolas existentes e financiamentos para construção de novos espaços destinados à atividade de formação profissional. A Escola de Enfermagem de São Paulo assumiu preponderância e alterou decisivamente a enfermagem brasileira, pois a falta de profissionais e os apegos emblemáticos que ritualizavam a enfermagem nas décadas anteriores marcavam ideologicamente a profissão. Entretanto, exigia-se a formação a priori de um corpo docente renovado, isto é, não preso ao antigo padrão de formação e orientação profissional, mas voltado à nova atuação da enfermagem como ação política e social, além de científica.
A projeção da Escola de Enfermagem remonta a uma longa trajetória e evoca acordos para a construção da Faculdade de Medicina de São Paulo, intermediada pela Fundação Rockefeller (CARVALHO, 1980; MARINHO, 2001). Sua efetivação ocorreu com o envio de uma comitiva, em 1940, com participação da enfermeira Mary Elisabeth Tenant, que definiu os critérios com Adhemar Pereira de Barros, governador do Estado de São Paulo, na famosa “reunião de Campos do Jordão”. Os esforços empreendidos levaram à indicação da primeira enfermeira brasileira a diplomar-se nos EUA, Edith de Magalhães Fraenkel, para realizar visitas técnicas em escolas congêneres naquele país e no Canadá. Isso fez parte da estratégia de organização da Escola de Enfermagem de São Paulo, que iniciou suas atividades em 1942 anexa à Faculdade de Medicina de São Paulo, e com o Hospital das Clínicas para o campo prático e estágios, como propunha o Curriculum Guide.
Apesar da existência de outros espaços formadores da enfermagem, a Escola de Enfermagem conferiu novo padrão à formação profissional. Sua fundação recobre a transição do modelo oficial de formação da enfermagem moderna legalmente determinada pelo Decreto n. 20.109, de 1931, que atribuía à Escola de Enfermagem Anna Nery, derivada da Escola de Enfermeiras do DNSP, o padrão a ser replicado por escolas de enfermagem existentes. O novo modelo de ensino e formação profissional desarticulou o sectarismo religioso, racial e sexual que simbolicamente presidiu a formação preexistente, inclusive como estratégia política, de composição de novas lideranças, homens e mulheres, pretos ou brancos, os quais disseminariam as bases renovadas da enfermagem em todo o território nacional; ainda que o discurso oficial conclamasse mulheres. Talvez esse aspecto possa ser pensado como aporte feminista na construção de espaços de solidariedade na medida em que Edith Fraenkel conhecia pessoalmente Bertha Lutz3 e viveu nos EUA em contextos singulares da luta das mulheres em conflitos raciais, sociais e acadêmicos.
A fundação da Escola de Enfermagem de São Paulo, contudo, não desprezou o modelo americano de ensino que historicamente presidiu a formação profissional. Desde o início, o novo espaço esteve vinculado a uma instituição hospitalar (Hospital das Clínicas) e de ensino superior (Faculdade de Medicina). Com formação voltada para a clínica médica e administração de serviços de enfermagem, a Escola se organizava a partir de um currículo estruturado por disciplinas anteriormente desconsideradas, por exemplo, as voltadas para a saúde mental. As atividades práticas que compreendiam a estrutura curricular mínima do curso contemplavam, para além do estudo da enfermagem psiquiátrica, o estudo da clínica, das doenças tropicais e de saúde coletiva urbana e rural como parte das atividades de ensino, pesquisa e extensão do novo centro irradiador da enfermagem brasileira pós-1930 (SOUZA CAMPOS; OGUISSO, 2013).
O espaço dedicado à clínica era bem demarcado na formação oferecida pela Escola, no que concerne tanto aos recursos didáticos quanto aos conteúdos das disciplinas. As aulas, sobretudo as específicas, eram ministradas por professores da Faculdade de Medicina e os estágios eram realizados em hospitais de ponta como o Hospital das Clínicas e a Santa Casa de Misericórdia das cidades de Santos e São Paulo, além do Hospital do Juquery, realidade que promovia o conhecimento prático do que havia de mais tecnológico e moderno no período. As atividades práticas e os fundamentos teóricos que embasavam o ensino oferecido pela Escola de Enfermagem traduziam o padrão de ensino norte-americano, porém em novas dimensões.
A noção de moderno reverberava o investimento em tecnologia hospitalar que estruturava o complexo formado pela Faculdade de Medicina, Hospital das Clínicas e Instituto de Higiene de São Paulo, assim como as novíssimas técnicas, materiais e recursos didáticos trazidos dos EUA por Edith de Magalhães Fraenkel, eleita para organizar e dirigir a Escola de Enfermagem de São Paulo com a consultoria de Ella Hansenjaeger. No conjunto, tais fatores ampliavam possibilidades de acesso aos mais modernos padrões de assistência, ensino, pesquisa e extensão no campo do cuidar/cuidado, cujo alcance projetou a Escola no mundo latino-americano, como noticiado no jornal A Gazeta, na manhã de 17 de julho de 1943: “Em São Paulo a maior Escola de Enfermagem da América do Sul”.
CURRICULUM GUIDE: O ENSINO RENOVADO DA ENFERMAGEM BRASILEIRA
O planejamento inicial do currículo da Escola de Enfermagem de São Paulo foi estruturado de acordo com o manual intitulado Fundamentos de uma Boa Escola de Enfermagem, publicado originalmente em 1936 pela Liga Nacional do Ensino de Enfermagem, em Nova York, com sua segunda edição traduzida e publicada no Brasil, em 1951, pelo Sesp. A segunda edição do manual, revisada pela comissão especial presidida por Stella Goostray, foi publicada nos EUA em 1942, que somente em 1951 recebeu tradução para o português - concebida por Haydée Guanais Dourado, ex-diretora da Escola de Enfermagem da Universidade da Bahia, em parceria com Celina Viegas, ex-diretora da Escola de Enfermagem Hermantina Beraldo, de Juíz de Fora, Minas Gerais.
O documento apresenta-se organizado em capítulos e a referência modelar adotada para o manual baseou-se no Guia Curricular para Escolas de Enfermagem, originalmente publicado sob a denominação A Curriculum Guide for Schools of Nursing, editado em 1917, revisado e publicado em 1927, com a terceira e última revisão publicada em 1937, cujo texto final foi preparado pela Comissão de Currículo da Liga Nacional de Educação em Enfermagem, que publicou a obra. O mesmo referencial foi utilizado na regulamentação do ensino de enfermagem no Brasil por intermédio da Lei n. 775 de 1949, que dispunha sobre o currículo dos cursos e estipulava a duração de 36 meses, com exigência de conclusão do curso colegial (atual ensino médio), bem como reconhecia a categoria de auxiliar de enfermagem, estipulando 18 meses como período de formação.
A Liga concebia a escola de enfermagem “como uma instituição social funcionando para a promoção dos interesses de suas alunas e derivando seus objetivos das necessidades da sociedade a que serve” (FUNDAMENTOS, 1951, p. 2). Para essa comissão, o currículo “deveria incluir todas as experiências de aprendizagem necessárias à formação de enfermeiras profissionais competentes - tanto atividades práticas em clínicas e ambulatórios, quanto trabalho em sala de aula e biblioteca” (FUNDAMENTOS, 1951, p. 42). Mesmo que evidenciasse o aspecto biomédico atrelado ao saber-fazer em enfermagem, a preocupação com uma formação voltada para a investigação científica, para o aprendizado intelectual e reflexivo caracteriza a Escola de Enfermagem de São Paulo em toda sua trajetória histórica, inclusive na atualidade.
Os pressupostos que norteavam o currículo de uma boa escola de enfermagem pautavam-se especialmente em seu planejamento, respeitando nove componentes: padrões; nível do ensino; conteúdo; organização; plano de distribuição do tempo; organização do programa; método de ensino; avaliação do aproveitamento da aluna; e recursos didáticos. Esse planejamento ficava a cargo da congregação da escola, cabendo a esse conselho o desenvolvimento e a administração do currículo e a confecção dos planos de ensino clínico nos diversos serviços, algo que historicamente permanece correspondente e cujas atas não foram ainda historica ou profundamente analisadas.
A orientação curricular pontuava que, em relação aos padrões, o currículo deveria ser flexível e ajustar-se às mudanças ocorridas na sociedade, porém deveriam satisfazer certos requisitos predeterminados e modelos de prática comuns para todas, ou seja, determinar um padrão de enfermeira. Nota-se que o termo “enfermeira” é adotado ao longo das diretrizes do Curriculum Guide como tradição feminina mantida pelo modelo nightingaleano, por selecionar somente moças, cuja cristalização permeia as representações sociais da enfermagem como função apropriada para mulheres, mesmo que homens também a exercessem.
Tais aspectos revelam os embates na reconfiguração da identidade profissional na medida em que ritos, emblemas e tradições encontravam-se arraigados no imaginário social e se chocavam com a redefinição da enfermagem e suas especificidades locais. Ao mesmo tempo, permitem considerar o movimento das mulheres na vida pública, na imposição de limites aos espaços por elas ocupados. A definição do termo enfermeira diplomada, adotado pelo Internacional Council of Nurses (ICN), em 1935, citado no manual, é assim apresentado nas palavras de Isabel Stewart um ano antes, em 1934:
Enfermeira diplomada é uma pessoa de boa instrução geral e base cultural que completou satisfatoriamente um curso profissional sistemático, de duração de três anos aproximadamente, como aluna de tempo integral em escola de enfermagem reconhecida, que satisfez os requisitos exigidos para registro do diploma no país e no Estado onde a escola está localizada, fazendo jus ao direito de ser membro da associação de enfermeiras diplomadas do seu país. (FUNDAMENTOS, 1951, p. 43)
Quanto ao nível do ensino, o currículo de uma boa escola de enfermagem deveria ser liberal, flexível e não se limitar somente ao ensino técnico. O documento menciona que a estudante de enfermagem de ensino superior necessitaria de uma base de cultura geral adquirida anteriormente, o que permitiria maior maturidade e fundamento vasto e seguro para o preparo profissional. O currículo liberal, que se distingue do técnico, daria maior importância à reflexão, à compreensão, às atitudes sociais e ao desenvolvimento integral da estudante como pessoa humana. Muito embora o conteúdo técnico seja essencial, fazia-se necessário mais equilíbrio entre a formação técnica e a científica, cultural e social “da enfermeira”, algo que ainda permanece na atualidade.
O conteúdo curricular preconizado no manual recomendava que a formação em enfermagem deveria “levar a estudante a fazer face aos problemas daqueles que terá que servir no futuro, e a ajustar-se às demandas, em contínua mudança, da prática profissional” (FUNDAMENTOS, 1951, p. 45). Para tanto, eram essenciais à enfermagem e às profissões correlatas a abordagem e o desenvolvimento de princípios e fatos, técnicas especializadas e destrezas, atitudes sociais e morais, bem como ideais que governam os padrões de comportamento pessoal e profissional. Para um currículo satisfatório, teoria e prática deveriam estar intimamente relacionadas, desde o princípio. O manual aponta que a organização das disciplinas do currículo deveria ocorrer de tal modo que a integração e a aprendizagem fossem efetivas do ponto de vista funcional, e não estritamente lógico, e apresenta os principais grupos de disciplinas:
Grupo 1 - Ciências biológicas e físicas: anatomia, fisiologia, microbiologia e química; Grupo 2 - Ciências sociais: sociologia, psicologia, história da enfermagem, ajustamentos profissionais e sociais; Grupo 3 - Ciências médicas: introdução à ciência médica incluindo patologia, farmacologia, princípios da medicina, cirurgia, pediatria, obstetrícia e psiquiatria; Grupo 4 - Enfermagem e disciplinas afins: princípios e prática da enfermagem, higiene, saneamento, economia doméstica, nutrição, dietoterapia, enfermagem médica e cirúrgica, enfermagem obstétrica, enfermagem pediátrica, puericultura, enfermagem psiquiátrica, enfermagem de saúde pública, enfermagem adiantada e especialidades facultativas. (FUNDAMENTOS, 1951, p. 46)
A estudante cursava quatro períodos: pré-clínico (seis meses), júnior (seis meses), intermediário (um ano) e sênior (um ano). Nos períodos eram distribuídas as disciplinas previstas no Decreto--Lei estadual n. 13.140/42, totalizando 36 meses de curso. A carga horária não diferia daquela preconizada pela Escola Padrão, apenas sua distribuição ao longo do curso, mas havia um programa teórico e outro prático, oferecidos concomitantemente.
No primeiro período, denominado pré-clínico, eram ministradas matérias básicas no âmbito das ciências biológicas, como anatomia, fisiologia, bioquímica e microbiologia, mas avançavam no ensino de psicologia educacional, sociologia e aspectos sociais da enfermagem. Nessa fase inicial, o curso era praticamente teórico, apenas com estágio prático experimental. Ao ingressarem no segundo período, intermediário, as alunas aprendiam enfermagem em matérias como clínica médica, clínica cirúrgica, nutrição e farmacologia, e os estágios curriculares nas clínicas médica e cirúrgica do Hospital das Clínicas eram feitos nessa fase.
O período intermediário abrangia as aulas e estágios especializados, por exemplo, em “dermatologia, obstetrícia, neurologia, dietoterapia, ortopedia”, entre outras. Já o período sênior implicava a prática da enfermagem em pediatria, higiene e saúde pública, bem como psiquiatria, com estágios no Hospital de Juquery (CARVALHO, 1980). Cabe destacar a existência da disciplina História da Enfermagem no primeiro período do curso, cuja caracterização foi assim identificada nos registros históricos consultados:
Estudo do desenvolvimento do ideal humanitário desde seus primórdios até os tempos modernos, especialmente em sua relação com a enfermagem. É êste um curso cheio de inspiração, compilado de modo a dar à estudante a compreensão da enfermagem como um movimento social, estimulando o seu interesse pela continuação e desenvolvimento e estudo desta matéria. (ESCOLA DE ENFERMAGEM, 194-, p. 3)
A história da enfermagem como conteúdo curricular não só buscava desenvolver o ideal humanitário, mas também sugeria a compreensão da enfermagem como prática social, ainda que de modo linear e progressivo. Contudo, mediante a organização das disciplinas, passava-se ao plano de distribuição do tempo e recomendava-se que o currículo destinasse sua carga horária para aulas práticas e teóricas, além de descanso e recreação da estudante, preocupando-se, dessa forma, com a saúde mental da aluna no que se refere ao desenvolvimento pessoal e profissional. Uma vez planejada a carga horária destinada às aulas teóricas e práticas, além do tempo de estudo, a “Organização do Programa” expressava porcentagens aproximadas ao ensino das grandes áreas como ciências biológicas e físicas (20%), ciências sociais (15%), ciências médicas (25%), enfermagem e disciplinas afins (40%), as quais norteavam a formação profissional, que se diferenciou de outras escolas existentes no período. Ainda que os perfis socioculturais das mulheres que ingressassem em escolas de enfermagem no Brasil fossem os mesmos, o modelo de ensino proposto, o padrão de recrutamento com inclusão de mulheres negras e homens, bem como o distanciamento da formação moral e religiosa, eram distintivos das mudanças propostas como fundadas em bases científicas.
A metodologia de ensino descrita nos itens método de ensino, avaliação do aproveitamento da aluna e recursos didáticos sugere que esses deveriam ser ajustados aos objetivos e conteúdo de cada curso, de acordo com a finalidade e os princípios do currículo como um todo, estimulando a imaginação da aluna, despertando seu interesse e formando costumes úteis como o hábito do estudo independente. As ferramentas de ensino variavam de acordo com as finalidades da disciplina, podendo ser utilizados demonstrações e métodos em laboratório para o ensino das ciências e para a arte de enfermagem, estudos de casos e ensinos clínicos, complementando preleções quando relacionadas às disciplinas clínicas; discussão em grupo, conferência individual, simpósio e seminário, estes indicados para o estudo das ciências sociais, vale dizer, disciplinas extremamente modernas para o período, cuja pertinência no âmbito da formação e produção do conhecimento em enfermagem conferia liderança à instituição no Brasil pós-1930.
As orientações sobre a avaliação pretendiam empregar meios que evidenciassem, da forma mais segura possível, o progresso e o aproveitamento da aluna. Para tanto, professores precisariam constantemente medir e verificar, com o fim de avaliar, os métodos e os hábitos das alunas, além da capacidade de aplicar os princípios aprendidos e fazer generalizações e as atitudes que desenvolveram diante das situações de enfermagem. Os métodos de avaliação incluíam provas escritas, práticas e orais, estudos de caso, fichas de observação do trabalho da aluna preenchidas pelas supervisoras, escalas de avaliação, listas de técnicas, de relação de casos, conferências individuais e entrevistas, propostas do mesmo modo inovadoras, que permitiam a construção de uma consciência voltada para a administração dos serviços de enfermagem.
Os recursos didáticos deveriam incluir materiais, equipamentos, livros e recursos de outras bibliotecas, bem como facilidades clínicas necessárias ao ensino efetivo e que ficassem à disposição de alunos e professores. O melhor currículo não se tornaria exequível na ausência de recursos de ensino adequados, livros e revistas de referência, grande quantidade de pacientes para observação e tratamento e organização bem feita de todos esses recursos do ponto de vista educacional. De acordo com o Manual, uma equipe bem preparada para dirigir programas e ministrar o ensino e a supervisão também era condição para uma boa escola de enfermagem, aspecto cujo lastro legitima a Escola de Enfermagem como centro de excelência no ensino, pesquisa e extensão no mundo ibero-americano, bem como consubstancia os objetivos do Programa Enfermagem.
Como o Curriculum Guide passou por três edições, em 1917, 1927 e a última publicada em 1937, acredita-se que foi mediante tais diretrizes que a Escola de Enfermagem de São Paulo organizou sua estrutura curricular fundada no decreto de criação que assegurava sua autonomia dentro da jurisdição da Faculdade, regulamentava o curso superior com três anos de duração e cursos de pós-graduação, estabelecia o elenco de disciplinas e sua seriação, bem como a obrigatoriedade dos estágios no Hospital das Clínicas e no distrito sanitário do Instituto de Higiene, como publicado por Ernesto de Souza Campos, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, recém- -instaurada (SANTIAGO, 2011).
Para a admissão ao curso, os requisitos mínimos consistiam em apresentar comprovação por diploma de Escola Normal, escola equiparada ou, ainda, certificado de conclusão do curso ginasial, além de idade entre 18 e 35 anos e atestado de idoneidade moral. As candidatas (todas mulheres a princípio) deveriam passar por um exame de saúde, ser solteiras, viúvas ou separadas com comprovação. Desse processo, muitas escolas de enfermagem foram criadas no Brasil, como propunha o Programa Enfermagem, que deu origem à Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. A história política brasileira, ao se beneficiar da formação profissional, acabou provocando a mudança de um modelo centrado na herança gloriosa de uma história fabricada em tradicionalismos arcaicos, atrelados ao modelo francês, religioso, que não mais respondiam aos progressos materiais e sociais exigidos pelos brasileiros. De modo deliberado ou não, a enfermagem pós-1930 favoreceu o Estado Novo ao incluir homens e mulheres no mundo do trabalho urbano em um contexto de redefinição da própria sociedade brasileira.
No tocante ao processo ensino-aprendizagem, é possível considerar que o ensino dos conteúdos históricos na formação profissional atual, ao encontrar-se à margem do processo formativo, não contribui para desmistificar conceitos preexistentes que representam a enfermagem como profissão desprestigiada em sua origem histórica ou subordinada à medicina.
PRIMEIRAS ALUNAS DA ESCOLA DE ENFERMAGEM: AS DIPLOMADAS DE 1946
A trajetória institucional das dezesseis alunas concluintes da primeira turma, as diplomadas de 1946, evidencia uma formação acadêmica pautada no ensino, pesquisa e extensão propostos no Curriculum Guide. Dos registros históricos preservados, as fichas de admissão caracterizam as principais fontes da análise e indicam que homens não figuraram nas duas primeiras turmas da Escola, ainda que fossem aceitos. Do mesmo modo, o ensino da enfermagem deveria preparar a “verdadeira enfermagem profissional” a partir de uma formação pautada em conhecimentos técnicos e aprendizado fundado em bases científicas, aplicáveis aos diferentes grupos sociais, ministrados por pesquisadoras do campo da “arte e ciência do cuidado”, como gravado no brasão da Escola.
As primeiras alunas graduadas foram Amália Correa de Carvalho, Clélia Mainardi, Carmen Alves de Seixas, Dinah Alves Coelho, Elizabeth Barcellos, Eulina Bastos, Filomena Chiariello, Maria Conceição Leite Aranha, Maria José de Almeida Leite, Maria Salomé Coura, Maria Silvana Teixeira, Marilia de Dirceu da Cunha, Nahyda de Almeida Velloso, Ophélia Ribeiro, Zaira Bittencourt e Zuleika Mendonça Kannebley, que ingressaram com outras 22 alunas não concluintes. Os motivos das desistências envolviam a mudança brusca de ambiente social, a disciplina rígida, que exigia “morar no hospital”, assim como o exercício profissional ininterrupto com enfrentamento de realidades nem sempre fáceis de assimilar.
Durante os anos da formação profissional, alunas provenientes de outras cidades e estados moravam no Hospital das Clínicas ou em casa alugada nas imediações, com exceção das que mantinham residência ou familiares na cidade de São Paulo. Em 1947, com a entrega das instalações, as alunas passaram a morar na própria Escola. As escolas de enfermagem funcionavam como internato, no caso, com quarto individual devidamente mobiliado com cama, armário, escrivaninha, cadeira e um pequeno lavatório para a higiene pessoal e sacada. Os banheiros com chuveiros e sanitários existiam nos três andares do prédio, 11ª construção modernista da cidade de São Paulo (MOTT; SANGLARD, 2011).
As primeiras dezesseis diplomadas provinham de famílias abastadas da capital e do interior do Estado de São Paulo, eram professoras primárias e normalistas que ingressaram no curso de enfermagem por intermédio da disposição da Secretaria de Estado da Educação e Saúde Pública nos termos do artigo n. 41, do Decreto-Lei n. 12.273, de 28 de outubro de 1941, que as dispensavam, sem prejuízo do vencimento e das demais vantagens do cargo que exerciam, para a nova formação profissional. O intuito era selecionar um quadro profissional de excelência do qual emergiria o corpo docente da própria Escola. Na totalidade, elas eram comissionadas pela Secretaria de Estado dos Negócios da Educação, ou seja, buscava-se um grupo iniciado no exercício da docência, moças preparadas para enfrentar a dinâmica imposta pelo magistério em nível superior e distantes do antigo padrão. A exigência preconizada de antemão ecoava dispositivos legais vigentes, o que requereria, não muito depois, grau mínimo de formação para o ingresso em curso superior de enfermagem, vale dizer, a Lei n. 775, de 1949. Se balizarmos os padrões de recrutamento do Programa Enfermagem com os estudos históricos da enfermagem, é possível considerar que características socioculturais das enfermeiras diplomadas pelas escolas brasileiras entre as décadas de 1920 e 1960, grosso modo, não divergiam (FERREIRA; BROTTO, 2018). O que muda é a formação profissional, o lugar ocupado pela enfermagem no âmbito das instituições universitárias e de saúde.
Os imperativos da seleção caracterizavam o rigor pretendido e a formação oferecida. A Escola deveria constituir as bases científicas da nova enfermagem nacional profissional e intelectual, capacitadora da atuação docente-administrativa em escolas e serviços hospitalares em todo o Brasil. No que concerne às origens socioculturais das primeiras diplomadas, os registros permitem identificar que provinham de famílias de uma pequena burguesia urbana, em sua maioria, que mantinha seus negócios e ofícios no interior do Estado de São Paulo, vale dizer, moças não distanciadas do universo intelectual caracterizado pelo modelo Sesp. O grau de instrução formal e a inserção social em seus locais de origem as tornavam membros de uma pequena elite, isto é, filhas de médicos, advogados, professores, farmacêuticos, funcionários públicos, fazendeiros e proprietários de lojas comerciais, filhas e netas de imigrantes que, assim, traduziam o ideal preconizado para a moderna enfermeira, qual seja, sólida formação educacional, domínio de língua estrangeira e estreito contato com a literatura universal.
As idades oscilavam entre 22 e 32 anos, com maioria acentuada de moças maiores de 25 anos. Além de normalistas, duas diplomadas da primeira turma, Dinah Alves Coelho e Maria Conceição Leite Aranha, eram educadoras sanitárias formadas pela Faculdade de Higiene de São Paulo. A forma de ingresso na Escola e os motivos que as levaram a escolher a profissão são reveladores do perfil cosmopolita das pioneiras. Os registros analisados apontam para um alto poder de decisão, como permite observar o testemunho deixado por Maria Salomé Coura ao ser questionada sobre a escolha da profissão em que responde:
a) Mudar do ambiente do interior para o da capital; b) Aperfeiçoar cada vez mais o nível cultural; c) Possibilidade de se colocar mais tarde num emprego melhor remunerado; d) Desejo da família de se reunir aos poucos num centro maior; e) Talvez até vocação pela carreira de enfermeira, influenciada pelo meio médico em que sempre viveu a declarante. (FICHA DE ADMISSÃO, 1942)
O registro deixado por Ophélia Ribeiro reforça a interpretação de que se tratava de mulheres iniciadas no universo do trabalho e das profissões. Interrogada sobre os motivos que teriam levado sua escolha pela enfermagem, a candidata responde: “Tendo dois irmãos, estudantes de medicina, quero dedicar-me à enfermagem para poder auxiliá-los”, algo também evidente no registro de Zaira Bittencourt, que indica: “Por achar uma carreira nobre e por gostar de adquirir novos conhecimentos sempre que se apresenta uma oportunidade” (FICHA DE ADMISSÃO, 1942). Mesmo que o perfil das concluintes estabeleça uma elitização no que se refere ao capital cultural, esse é um dado que se altera na segunda turma, na qual ingressam os bolsistas Sesp (SOUZA CAMPOS; OGUISSO, 2013).
A noção de oportunidade perpassa a maioria dos registros consultados. A frequência do silogismo permite avaliar interfaces entre enfermagem e projeção da mulher na sociedade do trabalho. Ainda que latentes, as primeiras alunas raramente evocavam conteúdos próprios da caridade e abnegação como valores propulsores à escolha da profissão, ao contrário, intencionavam ascensão social, posicionamento profissional, ampliação de conhecimentos e especialização profissional, reconhecimento da posição da mulher brasileira no mundo do trabalho urbano. Amália Correa de Carvalho, exemplar nesse sentido, afirma que escolheu a profissão movida pelo “desejo de ter uma vida útil mais tarde” e conclui a resposta ao indicar “interesse pelo estudo” (FICHA DE ADMISSÃO, 1942).
Contextualizados, os registros evidenciam o posicionamento do gênero feminino perante as novas demandas da vida moderna. Zuleika Kannebley, do mesmo modo, afirmou em sua ficha de admissão que concorria a uma das vagas oferecidas pela Escola por “vontade de dedicar-me a mais algum estudo” (FICHA DE ADMISSÃO, 1942) e Eulina Bastos, objetivamente, assim caracteriza a escolha da profissão: “vocação” (FICHA DE ADMISSÃO, 1942). Tais registros deslindam mulheres atentas às possibilidades que a profissão oferecia. Eleitoras, profissionais, as mulheres se distanciam dos desígnios secularmente impostos pela dominação do masculino como matrimônio e maternidade e desejam uma vida útil, que espelhe a emancipação e os valores imperativos do novo modelo proposto para a enfermagem, para o Brasil.
Fato marcante no processo de formação da primeira turma da Escola remonta à concessão de bolsas de estudo às diplomadas de 1946. Oito das dezesseis alunas foram contempladas com financiamentos para aperfeiçoamento profissional no exterior para estágios pós-graduados em instituições dos EUA e Canadá, como as universidades de Boston, Minnesota, Toronto e Colúmbia, concedidos por organismos ligados à Fundação Rockefeller e à Fundação Kellogg. As diplomadas que estudaram no exterior foram: Dinah Alves Coelho, em 1947; Amália Corrêa de Carvalho, Maria José de Almeida Leite e Ophélia Ribeiro, em 1948; Nahyda de Almeida Velloso, Zuleika Mendonça Kannebley, Elizabeth Barcelos, Eulina Bastos e Zaira Bittencourt, em 1949. Cabe ressaltar que as bolsistas imediatamente após a conclusão do curso foram contratadas pela Escola como docentes.
Amália Corrêa de Carvalho, uma das mais brilhantes alunas, concluiu o Curso de Bacharel em Educação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de Boston. Dinah Alves Coelho especializou-se em enfermagem neurológica no Hospital for Nervous and Mental Diseases, da Philadelphia. Maria José de Almeida Leite e Nahyda de Almeida Velloso especializaram-se em enfermagem pediátrica, ao passo que Ophélia Ribeiro especializou-se em enfermagem ortopédica e Zuleika Kannebley em enfermagem cirúrgica na Escola de Enfermagem da Universidade de Boston. Das diplomadas que realizaram Mestrado nos EUA, destacam-se: Elizabeth Barcellos, pós-graduada em enfermagem psiquiátrica; Eulina Bastos, mestre em enfermagem em centro cirúrgico; e Zaira Bittencourt, em enfermagem médica, todas obtiveram seus títulos na Escola de Enfermagem da Universidade de Pittsburgh.
A presença da consultora americana Ella Hansenjaeger durante o período de consolidação da nova Escola favoreceu significativamente à reconfiguração da formação profissional brasileira. Pesquisadora, autora de livros, docente e consultora da Fundação Rockefeller, miss Ella, como era chamada, não só agregava valor ao ensino oferecido pela Escola como apoiava decisões de Edith de Magalhães Fraenkel, não sem longas discussões e reuniões de colegiado. Como representante da Fundação Rockefeller no Programa Enfermagem do Sesp, sua presença fortalecia a mudança paradigmática da formação profissional, como apontam os estudos sobre o tema:
Ella Hasenjaeger, consultora do IAIA/Sesp junto à Escola de Enfermagem da USP, era da opinião que o sucesso de uma escola de enfermagem deveria ser atribuído não só à habilidade de sua diretora, mas que também era necessário que esta reunisse ao seu redor um corpo eficiente de colaboradoras, que eram as enfermeiras-chefes. As enfermeiras-chefes deveriam ocupar uma posição estratégica no ambiente hospitalar, já que estas constituíam a base da pirâmide administrativa, executiva e educacional do serviço de enfermagem. A enfermeira-chefe deveria ter um preparo especial, com ensino adequado e grande experiência no ambiente hospitalar; possuir qualidades morais e intelectuais que a possibilitasse lidar com seres humanos com compreensão e tato e também deveria ter o “dom da direção”, a fim de guiar eficientemente seus auxiliares e ministrar ensinamentos, mantendo vivo o interesse pelas questões sociais. (FRANÇA; BARREIRA, 2004, p. 509)
As alunas da turma de 1946 foram as primeiras enfermeiras-chefes formadas pelo novo modelo de ensino e pesquisa em enfermagem no Brasil. A Escola constituía o núcleo grosso do Programa Enfermagem e foi organizada para essa finalidade, ainda que outras escolas de enfermagem recebessem consultoras ou investimentos do IAIA/Sesp. Miss Ella, a mais importante consultora no Brasil, impulsionou a formação pretendida com o apoio de Maria Rosa Sousa Pinheiro, Glete de Alcântara, Clarisse Ferrarine, Ruth Borges Teixeira e Edith de Magalhães Fraenkel, professoras da Escola de Enfermagem de São Paulo, sendo as duas últimas egressas do antigo padrão. As inovações reúnem em São Paulo um grupo de intelectuais considerado reconfigurador da formação em enfermagem no Brasil pós-1930, mais tarde adensado, entre outras, por Anayde Corrêa de Carvalho e Wanda Horta.
A visibilidade assumida reverberava o grau de instrução projetado pela Escola, assim como o interesse pela disseminação das novas perspectivas de formação profissional entre as demais escolas de enfermagem do país. A Escola de São Paulo, por sua característica, criou o Sistema de Filiação, que consistia na recepção de alunas oriundas de outras escolas para cursarem disciplinas como alunas especiais. Entre as novidades, estava a oferta da disciplina de enfermagem psiquiátrica com estágio no Hospital Juquery, domínio da loucura em São Paulo. O Sistema de Filiação, outro indício histórico e social da mudança na profissionalização, recebeu alunos de escolas de estados como Bahia, Rio de Janeiro, Goiás, Minas Gerais e países como Uruguai e Paraguai, como Maria Ivete Ribeiro de Oliveira, ícone da enfermagem brasileira (SANTOS et al., 2012).
Ao realizar a releitura e reflexão da formação profissional, preza-se que o antigo padrão de ensino proposto para a enfermagem impedia os esforços da mudança política vivida no Brasil pós-1930. Como prática político-pedagógica, tal perspectiva favorece a manutenção de uma narrativa linear que distancia a capacidade de criticidade ao propagar mitos, forjar práticas e representações fixas, pois historicamente importa analisar as dinâmicas processadas no tempo. No caso das mulheres citadas, experiências iniciais e suas trajetórias ampliam a interpretação histórica da enfermagem e recriam o passado, assim, possibilitam novas incursões sobre a história da enfermagem, das memórias, trajetórias e biografias de enfermeiros anônimos que consolidaram o Programa Enfermagem e o modelo Sesp. Assim, a análise do perfil de 22 alunas permite remontar as bases de um processo histórico que impacta significativamente na mudança do padrão de recrutamento, que não somente favoreceu o ingresso de mulheres pobres e negras na enfermagem brasileira, mas também possibilitou atuações significativas (SOUZA CAMPOS; CARRIJO, 2019).
A Escola de Enfermagem de São Paulo, parte essencial do Programa Enfermagem, redimensionou a formação educacional-profissional da arte e ciência do cuidar/cuidado no Estado Novo. Alunas da primeira turma protagonizaram a política pública implementada pelo governo de Getúlio Vargas que permitiu, entre outros aspectos, reconfigurar o imaginário social da profissão a partir de uma política que atingiu todas as regiões do país e expandiu a assistência de enfermagem para todas as regiões do Brasil.
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1
Fundado em 1992 no cinquentenário da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, o CHCEIA tem em seu acervo mobiliário hospitalar, vestuário e uma vasta massa documental. É catalogado como museu público em: http://museus.cultura.gov.br/espaco/7820/.
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2
Trata-se da delegação encaminhada pela Fundação Rockefeller para a organização da Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), Rio de Janeiro, cujo protagonismo é atribuído a Ethel Parsons e o modelo de ensino historicamente reconhecido como enfermagem padrão.
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3
Bertha Lutz (1894-1976), líder feminista e bióloga, filha da enfermeira inglesa Amy Fowler e do cientista Adolfo Lutz, viveu na Europa onde teve contato com os movimentos feministas inglês e francês. De volta ao Brasil fundou a Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF) em 1922. Foi deputada federal (SOIHET, 2006).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
30 Nov 2020 -
Data do Fascículo
Oct-Dec 2020
Histórico
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Recebido
21 Fev 2020 -
Aceito
30 Jul 2020