RESUMO
A partir das reflexões mais recentes de Rancière, realizadas, sobretudo entre os anos 2017 e 2020, o artigo sistematiza os principais eixos da construção de seu método, que consiste em articular singularidades heterogêneas em cenas originadas na confluência de sua escrita com o aparecer dissensual de sujeitos políticos. Argumentamos que Rancière elabora, através de uma escrita anti-hierárquica, um trabalho de perturbação da “máquina explicativa” (2016, p. 68) que sustenta discursos especializados e suas diferentes traduções em linguagens que insistem em manter uma ordem que controla quem pode aparecer sobre a cena, atualizando as separações entre espacialidades, temporalidades e corporeidades. Sua escrita e seu gesto metodológico podem auxiliar a compreender como a pesquisa baseada na montagem de cenas polêmicas assume o risco de produzir topografias igualitárias nas quais a palavra do pesquisador desliza entre as palavras de vários sujeitos, de vários textos e de várias experiências.
Palavras-chave: Jacques Rancière; Cena; Escrita; Aparecimento; Método
ABSTRACT
Based on Rancière’s most recent reflections, carried out mainly between 2017 and 2020, the article systematizes the main axes of the construction of his method, which consists of articulating heterogeneous singularities in scenes originated in the confluence of his writing with the dissenting appearance of political subjects. We argue that Rancière elaborates, through anti-hierarchical writing, a work of disturbing the “explanatory machine” (2016, p.68) that sustains specialized speeches and their different translations into languages that insist on maintaining an order that controls who can appear on the scene, updating the separations between spatialities, temporalities and corporeality. His writing and his methodological gesture can help understand how research based on the montage of controversial scenes takes the risk of producing egalitarian topographies in which the researcher’s words slide between the words of various subjects, of various texts and of various experiences.
Keywords: Jacques Rancière; Scene; Writing; Appearance; Method
Introdução
A importância da noção de cena no pensamento de Jacques Rancière tem sido explorada por vários de seus comentadores (Ruby, 2009; Hussak, 2011; Deranty & Ross, 2012; Panagia, 2018; Voigt, 2019; Quintana, 2019; Calderón, 2020) como operador fundamental de seu método da igualdade e, sobretudo, como espaço de construção processual e intersubjetiva de processos emancipatórios. A cena surge como resultado do entrelaçamento de espacialidades, temporalidades, corporeidades e vulnerabilidades que, na singularidade de suas interfaces situadas, podem proporcionar a alteração de modos naturalizados e hierárquicos de legibilidade e inteligibilidade. O trabalho da cena e o rearranjo constante de seus elementos modificam as formas do aparecer dos corpos e os reposicionam no espaço, no tempo e na política.
Essa característica da cena como operação de desmontagem de legibilidades hegemônicas e hierárquicas reforça o fato de que ela não só faz funcionar o método da igualdade, como explicitado por Voigt (2019), como também configura, em si, um método de reorganização do sensível. Assim, acreditamos ser relevante explorar alguns aspectos do “método da cena”, enquanto “pequena máquina de interrupção da explicação usual de explicação da ordenação do mundo” (Rancière, 2018b, p. 35). Nosso intuito é desdobrar alguns aspectos, a partir das reflexões mais recentes de Rancière – sobretudo entre os anos 2017 e 2020 – de seu argumento segundo o qual a cena permite interromper o fluxo explicativo que interfere em nossa apreensão dos sujeitos e seus modos de aparecer e figurar no mundo. Rancière afirma que o que interessa a ele é justamente o gesto de reorganizar, redefinir e alterar “a topografia do perceptível, do pensável e do possível” (2020, p. 830). A cena assume, assim, a forma de um processo de racionalidade sensível, produzindo um modo de apresentação de diferentes objetos, situações e acontecimentos no qual eles se tornam inteligíveis desviando-se de consensos já estabelecidos.
É na cena que as tensões entre polícia e política se efetuam. É importante dizer que, segundo Rancière (2016), a polícia não é nem um instrumento repressivo nem a ideia de controle da vida individual ou coletiva. Ela configura um tipo de comunidade saturada, na qual os espaços, tempos e atividades estão totalmente preenchidos, as identidades estão assinaladas e não há como haver excessos. A polícia diz respeito à “configuração de uma comunidade política como um corpo coletivo com suas funções e espaços alocados de acordo com competências específicas atribuídas a grupos e indivíduos” (Rancière, 2011, p. 3).
Já a política, por seu turno, em vez de ser o exercício do poder ou a luta pelo poder, é a configuração de “um campo de encontro – e de confusão – entre o processo político e o processo policial” (Rancière, 2011, p. 5). E esse tensionamento sempre se manifesta sob a forma da transformação de ordens policiais, mas não de sua destruição ou esfacelamento. Além disso, a política não é definida por momentos excepcionais e rápidos de aparição. “Há uma dinâmica histórica da política: uma história de acontecimentos que quebram o curso normal do tempo, uma história de eventos, inscrições e formas de subjetivação, de promessas, memórias, repetições, antecipações e anacronismos” (2011, p. 5). A política fratura esse rígido controle da ausência de “vazios” ou suplementos por meio da invenção de temas, sujeitos e nomes que ultrapassam qualquer identidade social imposta (Rancière, 2003). Assim, quando o limite que separa aqueles a quem são atribuídas disposições e possibilidades de integrar a vida coletiva é questionado, a política passa a operar mediante a constituição de uma cena. Nessa cena, um dano1 (a desigual distribuição de posições, de palavras e de ocupações) será encenado e tratado, sem ser totalmente resolvido, por aqueles que não eram contados no processo de distribuição de partes da sociedade. Convém ressaltar que nem todo dano é político, pois formas de protesto antidemocráticas contra grupos oprimidos, manifestações guiadas pelo fanatismo religioso e pela intolerância, demandas afinadas com a afirmação de características identitárias, por exemplo, não surgem a partir de alianças delineadas durante a composição da cena, mas reforçam posições já predefinidas.2
A política não pode ser pensada fora de sua relação com uma distribuição policial específica daquilo que pode ser dito, pensado, visto ou sentido. Rancière (2003) não argumenta contra a ordem policial (que não é uma ordem da dominação geral) nem afirma que a função da política é dissolver essa ordem. O que ele busca evidenciar são os efeitos de um processo de atualização que a intervenção dissensual da política pode fazer dentro de situações particulares de desigualdade. A política opõe-se à polícia, mas está sempre em relação com ela (Rancière, 2003). Não há lugar fora da polícia, mas há “modos conflitantes de fazer coisas com os lugares que esses modos alocam: reordenando-os, reformando-os ou desdobrando-os” (2011, p. 6). É importante lembrar que o conflito situado entre política e uma dada ordem policial não abarca todo o campo das relações humanas: ele mostra duas formas de simbolização do comum. Uma dessas formas é o dissenso, ou seja, a produção de um excesso, de uma conta mal contada com relação à contagem ordenada e consensual dos corpos e das significações (consenso). Essa conta mal feita aparece a partir do momento em que sujeitos antes desconsiderados atribuem a si mesmos um nome e aparecem diante dos demais como integrantes da comunidade, “reconfigurando o que era tido como dado nas situações cotidianas, modificando os nomes que lhes eram atribuídos” (Rancière, 2009b, p. 563).
Uma das dimensões do trabalho da cena é que ela pode mostrar acontecimentos, imagens, objetos, textos, vestígios sendo tensionados e aproximados não para produzir explicações causais e lógicas, mas para elaborar combinações inusitadas, que possam alterar padrões de julgamento e valorização, expondo a divisão e as desigualdades que fraturam o comum. O trabalho da produção de inteligibilidade aos acontecimentos e experiências dá-se a partir da construção de outra paisagem de aparecimento, pois a cena “faz aparecer o que não aparecia, ou faz aparecer de forma diferente o que já aparecia sob certo regime de visibilidade e inteligibilidade” (Rancière, 2018c, p. 14).
Uma forma de racionalidade sustenta a elaboração de uma cena, atuando via uma associação singular e inaudita entre acontecimentos de maior abrangência e microacontecimentos sensíveis capazes de redirecionar o olhar, o pensamento e as relações entre ambos (Voigt, 2019). Segundo Rancière (2018a, p. 25), é central que a cena seja produzida a partir desse gesto de montagem entre diferentes elementos e que essa montagem evidencie “o hiato entre duas mise en scènes sensíveis e diferentes (uma policial e outra política), para mostrar a presença de sujeitos coletivos, plurais e antagônicos quanto ao sentido dessa presença”.
Muito embora Rancière deixe claro que a cena não está vinculada literalmente à cena teatral, ele indica que ambas podem tematizar a relação assimétrica entre a instituição material do teatro e a questão do espaço no qual o povo pode se manifestar, estar presente. Segundo ele, o teatro é o lugar, material e simbólico, no qual os papéis e as identidades se misturam e a fabulação permite uma redisposição das temporalidades e das capacidades. Ao comentar acerca de movimentos grevistas na França, Rancière afirma que uma insurgência proletária pode ser aproximada de uma cena teatral não por meio de um traço espetacular, mas porque os levantes e o teatro suspendem a ordem policial que define, para cada um, um lugar e uma identidade. A cena, como espaço de jogo da ficção teatral, articula o que é oferecido aos espectadores e o que os espectadores fazem com essa oferta, redefinindo os intervalos entre espaços, tempos, palavras e movimentos dos corpos; entre gestos percebidos e ensinamentos aprendidos.
A relação entre o levante dos operários e o teatro não tem relação com o espetáculo, mas sim com a partilha dos tempos e dos espaços. O fato é que esses homens não teriam o que fazer a essa hora do dia nesse lugar. Platão afirmou de maneira veemente: o lugar deles é o atelier, onde o trabalho não espera. [...] A ordem republicana deseja que cada um esteja no lugar ao qual seu trabalho o obriga e ao qual suas capacidades confirmam o destino (Rancière, 2016, p. 67).
Levantes e cenas teatrais são fonte de polêmica. A utilização do termo “polêmico” para caracterizar o processo de instauração de uma cena é feita no sentido de expressar o tensionamento produzido quando a partilha consensual do sensível é desafiada. “Polêmico não quer necessariamente dizer militante, mas sim marcar o polemos, o caráter litigioso de certas partilhas dadas como evidentes” (Rancière, 2009b, p. 573). Uma polêmica perturba e desloca a ordem social vigente e as identidades sociais impostas. Ao falar sobre o modo como aqueles que são excluídos da política se organizam para serem considerados, Rancière afirma que eles
[...] têm que construir uma cena polêmica para que os barulhos que saem de suas bocas possam contar como proferimentos argumentativos. Essa situação extrema nos lembra o que constitui a base da ação política: certos sujeitos que não contam criam uma cena polêmica comum onde colocam em discussão o status objetivo do que é dado e impõem um exame e discussão dessas coisas que não eram visíveis ou consideradas anteriormente (2000, p. 125).
Assim, “a política tem essa estrutura dialógica e polêmica na qual o nós institui uma cena polêmica que redistribui as contas e as pessoas” (Rancière, 2009b, p. 609), por meio de uma reconfiguração do sensível que redistribui as capacidades enunciativas.
Samuel Chambers (2013) também utiliza o termo “cenas polêmicas” para caracterizar dois tipos de espaços políticos na obra de Rancière: o primeiro seria aquele no qual se dá “a emergência da contradição entre a lógica da polícia e a lógica da política” (2013, p. 118). Nesse espaço, “aqueles que não contam” sabem que “não há possibilidade de reparação do dano, mas há um lugar-comum polêmico para o tratamento do dano e para a demonstração da igualdade” (Rancière, 2004, p. 121). Tal “lugar-comum polêmico” é a cena, que pode também se manifestar na escrita e no método que a conduz. Assim, o segundo tipo de espaço apontado por Chambers é o texto: nele “as cenas polêmicas são elas mesmas constituídas e trazidas à tona em um nível diferente: no nível do discurso, do excesso3 de palavras” (2013, p. 118). A cena polêmica, assim como a cena dramatúrgica possibilitam “dilatar os momentos singulares em uma temporalidade não hierárquica, impregnando-os da beleza e da potência de acontecimentos sensíveis, permitindo a coexistência de singularidades” (Rancière, 2020, p. 840). Uma cena pode ser polêmica e dissensual, mas, segundo Rancière, essa não pode ser uma característica generalizável a todas as cenas, sobressaindo-se aquelas nas quais a polícia é fraturada por dentro, o que permite uma reordenação das coordenadas da experiência.
O que há são simplesmente cenas de dissenso, que podem surgir em qualquer lugar, em qualquer momento. Dissenso é uma organização do sensível na qual não há realidade escondida sob as aparências, nem sistema único de apresentação e interpretação do dado impondo a todos a sua evidência. É que qualquer situação é passível de ser fendida por dentro, reconfigurada sob um outro regime de percepção e significado. Reconfigurar a paisagem do perceptível e do pensável é modificar o território do possível e a distribuição das capacidades e incapacidades. O dissenso põe em jogo, ao mesmo tempo, a evidência do que é percebido, pensável e factível e a partilha daqueles que são capazes de perceber, pensar e modificar as coordenadas do mundo comum. É nisso que consiste um processo de subjetivação política: na ação de capacidades não contadas que vão fender a unidade do dado e a evidência do visível para desenhar uma nova topografia do possível. A inteligência coletiva da emancipação não é a compreensão de um processo global de subjugação. É a coletivização das capacidades investidas nessas cenas de dissenso. Ela é a implementação da capacidade de qualquer pessoa, da qualidade dos homens sem qualidade (Rancière, 2012, pp. 48-49).
Polícia e política operam juntas, em articulação e tensionamento: ambas distribuem o sensível diferentemente, construindo topografias e mapas a partir da ação dos sujeitos. A subjetivação política é esse processo de redisposição, que combina desidentificações, dramatização argumentativa e construção de novas identificações. A emancipação aconteceria no desdobramento do trabalho da política, que é contingente, mas nunca pontual ou isento de historicidade e produção de saberes partilháveis. Assim, subjetivação e emancipação são parte de um amplo processo poético de elaboração de conhecimentos a serem apropriados e reapropriados em diferentes situações e contextos, por diferentes sujeitos e grupos que anseiam por transformações. Esse trabalho que traz juntas a subjetivação e a emancipação alimenta a democracia, uma vez que ela não é um processo evolutivo, mas um trabalho de articulação e apropriação, que faz passar as palavras que circulam em um discurso para se encontrarem com palavras de outros registros. Os saberes derivados desses empréstimos alteram as experiências dos sujeitos, fragilizam as fronteiras que definem territórios fixos, competências impostas, limitações de acesso ao sonho.
É sob esse aspecto que a cena possui uma topografia singular: ela permite redesenhar posições e temporalidades que localizam os corpos em mapas nos quais podem coexistir e se articular outramente. Falar de mapas e topografias que compõem o “espaço” da democracia, para Rancière, não é uma mera metáfora. “A instituição da democracia significa a invenção de uma nova topografia, a criação de um espaço feito de espaços desconectados contra o espaço aristocrático que conecta o privilégio material dos donos de terras com o poder simbólico da tradição” (2011, p. 6). Essa desconexão entre os espaços produz intervalos nos quais ocorre o tensionamento entre polícia e política. Assim, para Rancière (2011, p. 6), a questão do espaço deve ser pensada em termos de distribuição: “distribuição de lugares, limites, do que está dentro ou fora, do que é central ou periférico, visível ou invisível”. Sob esse aspecto, as dimensões espaciais da política são assim definidas por ele:
Há deslocamentos que modificam o mapa do que é pensável, do que é nomeável e perceptível, e, portanto, do que é possível. Se avanços são alcançados, eles devem ser pensados em termos de cobertura de topografias e não em termos de aplicação de um saber. A política se define como certo mapa do que é dado à inteligência de todos, dos problemas comuns; certo mapa da distribuição de competências e das incompetências com relação a esses problemas. O que tento fazer no domínio do pensamento é contribuir para a possibilidade de outros mapas do que é pensável, perceptível e, em consequência, passível de ser feito4. (2009b, p. 577)
A topografia da democracia e da cena não se relaciona ao gesto cartográfico, tomado no sentido deleuziano, nem ao gesto de “criar um mapa, no sentido de desenhar os contornos de um território e suas divisões, mas sim de criar um modelo de distribuição e coexistência contra os modelos de exclusão presentes em certa visão do tempo” (Rancière, 2016, p. 148). Tempo e espaço se articulam para evidenciar que há sempre várias temporalidades justapostas que interferem na criação de uma “topografia do perceptível, do pensável e do possível, redispondo temporalidades e partilhas que vão definir as formas de experiência possíveis” (Rancière, 2020, p. 829).
Assim, a topografia está relacionada à própria definição do conceito de partilha do sensível, ou seja, “a forma por meio da qual as formas abstratas e arbitrárias de simbolização da hierarquia são concretizadas como percepções dadas, nas quais a destinação social é antecipada pela evidência de um universo perceptivo, um modo de ser, dizer e ver” (Rancière, 2011, p. 7). A partilha do sensível pode ser descrita como o jogo de relações entre o visível, o dizível, o pensável e o factível no seio do qual operam os olhares, onde as coisas são nomeadas, os discursos produzidos, as ações empreendidas. Na perspectiva consensual, as formas de partilha do sensível são como um conjunto de “dados, mais ou menos aceito, mais ou menos consciente, que forma e limita as capacidades de perceber e pensar” (2011, p. 11). Mas esse mesmo conjunto define uma pluralidade de diferentes articulações entre seus elementos, uma multiplicidade de possibilidades que se combinam de diferentes maneiras. Por isso, a perspectiva dissensual define como essas articulações são constantemente modificadas (por indivíduos, coletividades, acontecimentos) que rompem a lógica temporal ordinária, desdobram outras formas de experiência possíveis, outras formas possíveis de dar sentido a essas experiências.
É sob esse aspecto que a partilha do sensível é feita a partir de um certo enquadramento do tempo e do espaço. Ao mencionar como operários devem supostamente permanecer em espaços definidos, utilizando o tempo do trabalho para produzir e o tempo da noite para dormir, Rancière (1988) mostra como a ordem policial divide o sensível a partir da ausência de tempos e espaços intervalares, excessivos e suplementares. Quando espaços e tempos são reenquadrados pela partilha dissensual do sensível5, relações inéditas são estabelecidas entre significações e corpos, entre os corpos e seus modos de identificação, lugares e destinações. A partilha dissensual do sensível “desfaz as fronteiras que definem os territórios e as competências” (2009b, p. 576), ela altera o “entre”, o intervalo “entre identidades e os papéis que elas podem desempenhar, entre os lugares que lhes são destinados e aqueles que elas ocupam de maneira transgressiva” (Rancière, 2009b, p. 315). O intervalo verbal e espacial onde opera essa partilha é um “tecido lacunar” (2009b, p. 319), uma topografia intervalar de um jogo que modifica as posições e coordenadas onde aparecem os corpos, as relações entre os corpos e as estimativas de suas capacidades, as palavras e as imagens: “esse jogo desfiaz uma ordem dada de relações entre o visível e as significações a ele relacionadas e constitui outras tramas sensíveis que podem contribuir para a ação de sujeitos políticos” (2009b, p. 515) que se desdobra e aparece na cena.
Dois aspectos do processo de montagem da cena em Rancière sempre me chamaram particularmente a atenção: o trabalho da escritura da cena e a aparição de sujeitos políticos que constroem a cena ao mesmo tempo que se constituem como tais. É a escritura de Rancière que, por meio da coexistência e justaposição de vozes, enunciados, documentos, textos e imagens, desierarquiza a ordem causal na qual os acontecimentos tradicionalmente se sobrepõem. Interessa-me também o modo como, nesse processo, a cena trabalhada na escrita (e as imagens também aqui são consideradas) pode produzir outra forma de aparição dos sujeitos políticos que elaboram a si mesmos enquanto, ao mesmo tempo, criam a cena por meio da tematização de um dano.
Em entrevista a Javier Bassas (2019c), Rancière salienta que a escrita é parte de seu processo de pesquisa: ele vai em busca de um modo de escritura que mantenha viva e pulsante a capacidade que a operação de desierarquização posta em prática na cena possa alterar as coordenadas e a textura da experiência. Ele afirma que seus textos não foram feitos para ser “entendidos”, mas são um convite para acompanharmos os movimentos de articulação e montagem que colocam vários materiais em relação, sem hierarquizá-los (imagens, poemas, discursos filosóficos, cartas, quadros, narrativas literárias, etc.):
Em meus textos não há nada para “entender”. A única coisa que demandam é nos deslocarmos com eles. Procedo por deslocamentos que tentam operar novas relações entre sentido e sentido (sic). É uma nova paisagem do sensível e do pensável. O problema não é fazer com que o destinatário “entenda”, no sentido de apropriar-se do sentido que está por trás das palavras, o sentido daquilo que quero dizer. A questão não é o que tal texto quer dizer, mas o que esse texto diz ao leitor ou à leitora. A questão é fazer com que o destinatário possa se inscrever nessa paisagem, o que não significa que ela ou ele entendam o sentido de todas as palavras ou o que está na cabeça do pensador. (Rancière, 2019c, p. 37)
Os deslocamentos provocados pela escrita da cena não conduzem ao que o texto quer dizer, mas permitem que o leitor possa localizar-se e mover-se em uma nova paisagem do visível, do sensível do pensável. Nesse sentido, a escritura de Rancière coloca o leitor em movimento, estimula-o a fazer algo com o texto, a traçar seus caminhos: ela tenta manter viva na linguagem aquilo que afetou o autor, faz reviver a situação de um encontro, de um achado, sem descortinar o mistério e o enigma trazido por uma alteridade.
A escritura de Rancière possui uma dimensão performativa no sentido de que ela coloca em relação uma série de materiais discursivos (documentos, cartas, poemas, textos literários, notícias de jornal, livros filosóficos, imagens, filmes, etc.) de modo a construir uma justaposição que tente preservar as lacunas presentes tanto nos próprios materiais por ele coletados, quanto entre eles, sobretudo quando são utilizados para a montagem das cenas:
Sempre tentei trabalhar demolindo a hierarquia causal para trazer um mundo sensível que é instável: de um lado, por exemplo, considerei os textos dos operários como iguais a outros textos, para estudá-los em sua textura e performance, e não como expressões de outra coisa. Era um discurso lacunar que tinha que ser mantido dessa forma para expressar o modo de vida que as palavras trabalhavam e construíam, não apenas expressavam (Rancière, 2016, p. 29).
Ao responder a alguns de seus críticos acerca do uso dos termos “performances textuais” (Rancière, 2016, p. 30) e “performatividade”, Rancière afirma que quando fala acerca da dimensão performativa dos textos dos operários (encontrados nos arquivos da Biblioteca Nacional de Paris) ele não a relaciona com nenhuma teoria linguística:
Eu não conhecia nada sobre performatividade e coisas ligadas a esse conceito. E quando eu falo sobre isso agora não é em relação a nenhuma teoria linguística. Uso o termo para marcar o modo através do qual as palavras dos operários constituem uma cena. Nos anos 1970, não li nenhum trabalho sobre linguística, estava completamente imerso no material encontrado. [...] Naquela época, o único método que eu tinha consistia em olhar o material e ver o que havia encontrado de interessante como uma descoberta e como um tipo de conexão entre minhas descobertas. (Rancière, 2016, pp. 33-34)
As palavras dos operários constituem uma cena a partir de um trabalho intenso de Rancière para elaborar uma escritura igualitária, que permite articular um “espaço de jogo”6 entre palavras e discursos de modo a “construir certa homogeneidade entre sequências, de modo que ela produza uma mudança no pensamento e não simplesmente uma transição de um léxico para outro ou de um tipo de preocupação para outra” (Rancière, 2016, p. 81). A conexão entre os materiais discursivos trabalhados por Rancière não explicita a passagem de uma “voz” a “outra”, pois todas deslizam umas sobre as outras, incluindo a sua própria voz. Esse tipo de justaposição permite tornar uma experiência inteligível e, ao mesmo tempo, criar nela uma ruptura. “Isso significa construir certo modo de pensamento, de escrita, nos quais as transformações no pensamento são sempre transformações no pensável. De certo modo, o que acontece no nível das experiências que eu descrevo é também o que acontece no nível de minha escrita” (Rancière, 2016, p. 111). A performatividade da escrita é sublinhada por Rancière quando ele afirma que ela é um “operador de diferença”, permitindo “operações teóricas que vão reenquadrar a configuração de um problema” (2011, p. 2).
Também nesse exercício de justaposição feito por Rancière é possível perceber como a escrita produz uma comunicação na qual a linguagem da emancipação “se forma com palavras da língua do outro, palavras emprestadas que são retorcidas e perdem seu sentido normal, legítimo” (Rancière, 2019c, p. 79). Essa é uma linguagem que nos confronta a outros dizeres e rostos, que nos força a pensar e que configura a cena para tornar visível a invisibilidade das desigualdades, para oferecer imagens excessivas de hierarquias que se recusam a emprestar suas palavras àqueles que não deveriam aparecer, que não deveriam ter tempo para criar, nem espaços outros para transitar.
A língua da singularidade igualitária é uma língua idiomática que retoma as palavras, que modifica seu uso, que mistura os gêneros e varia as relações entre o próprio e o figurado. Assim, podemos dizer que, fundamentalmente, o idioma igualitário é como uma linguagem emprestada (Rancière, 2019c, p. 79).
Se a escritura possui uma função emancipatória na composição da cena, assim também ocorre com a inscrição dos corpos no processo de instauração da cena enquanto espaço de aparecimento daqueles que não são considerados como interlocutores. Assim, o segundo aspecto da montagem da cena que nos parece importante abordar de modo mais detalhado é a aparição do sujeito político. De acordo com Rancière (1985, 2004), o processo de emancipação busca configurar e recriar uma cena polêmica sensível na qual são elaboradas novas maneiras de ser, de ver e de dizer, promovendo outras oportunidades de subjetividades e formas de enunciação coletiva (Calderón, 2020). A aparição do sujeito político não se restringe apenas à sua visibilidade e à possibilidade de sua apreensão. Uma aparição marca uma partilha do sensível que se faz a partir da emergência de sujeitos de enunciação, da elaboração e apropriação de enunciados, dos enfrentamentos que se desdobram a partir da tematização de uma suposta igualdade e de um suposto comum que conferiria paridade aos agentes em disputa. “Poderíamos dizer que o conceito de partilha do sensível é uma noção performativa, uma vez que ela nos permite analisar o que torna uma situação ou uma ação política” (Rancière, 2016, p. 84).
O aparecer é, de maneira geral, uma experiência de ruptura com uma ordem prefigurada que programa nossa percepção e nossa razão para responder de maneira consensual aos apelos do rosto do outro. O aparecer é igualmente uma operação, uma prática (um dispositivo, talvez, no sentido dos arranjos elaborados, segundo Foucault, para responder a uma urgência?7) que reconfigura a visibilidade e a inteligibilidade que medeiam nossas interações (Rancière, 2018c). Esse gesto é insurgente e igualitário, pois desafia a hierarquia que conecta o olhar e a escuta aos dispositivos de controle e de previsibilidade. O exercício que produz uma aparição contradiz a cadeia das causas e efeitos que é responsável por tornar visíveis e legíveis os acontecimentos e as narrativas que articulam a experiência e as identidades dos sujeitos.
A aparição é, antes de tudo, uma ruptura com a previsibilidade, a relação entre o que estava previsto e o que acontece realmente, criando uma narrativa experimental e dissidente (Rancière, 2018b; 2019a). É na exploração desse processo que temos a oportunidade de distinguir as lacunas e os intervalos que permitem as reconfigurações e os deslocamentos necessários ao olhar e à interpretação. O aparecer envolve outra maneira de pensar e realizar uma distribuição e organização dos corpos e das capacidades, modificando um campo de experiência e construindo um mundo alternativo em relação àquele no qual as posições, expectativas e temporalidades já estavam assinaladas e distribuídas.
No processo de aparecimento, a cena configurada pelo sujeito em ação não se confunde com a espetacularização que acontece na cena de teatro: não se trata tampouco de marcar uma oposição entre o que acontece no palco e o que se desdobra nos bastidores, em uma tensão que polariza o visível e o invisível. Quando Rancière comenta acerca do aparecer dos povos insurgentes, ele mostra duas coisas: primeiro que esse aparecimento não é da ordem do espetáculo, do divertimento. E, segundo, que o aparecer pode lançar mão da linguagem dramatúrgica para construir outro modo de tornar visíveis, audíveis e inteligíveis as demandas desses povos.
Penso que a questão da cena é também ligada muito fortemente à questão da aparência, ao fato de que a aparência não é o contrário da realidade, mas a cena da manifestação. A teatralidade é a construção de um outro universo de aparências: o fato de fazer aparecer o que não aparecia, ou de fazer aparecer de forma diferente o que aparecia sob um certo modo de visibilidade e inteligibilidade. A teatralidade está fortemente ligada a isso, saber que tudo se joga na apresentação daquilo que aparece (teatralidade própria da insurreição) (Rancière, 2018b, p. 17).
A noção de cena, como discutiremos, aproxima-se de uma pequena máquina anti-hierárquica que indica aquilo que pode interromper uma forma de perpetuar determinada lógica de inteligibilidade e de relação entre vários elementos singulares e heterogêneos, produzindo descontinuidades e outras formas de aparição dos corpos, das demandas, das existências. Rancière frequentemente aproxima o aparecer dos povos insurgentes da cena teatral destacando não a dimensão espetacular da mise en scène, mas a capacidade que ambos possuem de alterar a forma de distribuição das temporalidades, espacialidades, corporeidades e vulnerabilidades.
Assim, este artigo busca explorar, de modo mais aprofundado, a maneira como Rancière entrelaça uma escritura anti-hierárquica à aparição de uma singularidade sobre uma cena, de modo a construir um método de trabalho que estabelece uma borda entre o “tudo” (a norma, a verdade legitimada, o consenso) e o “quase nada” (o devir minoritário da política e dos dissensos). O investimento no método da cena permite a Rancière (2020) criar seus textos como montagens que efetuam uma desorganização das significações, uma indecidibilidade na forma de apreciação do mundo e dos outros, e um olhar contemplativo e sensível. De acordo com ele, a cena é primeiramente a ação de uma forma de racionalidade não hierárquica, de uma racionalidade fundada no devaneio, na rêverie8. Interessa-nos explorar essa associação entre a emancipação e a emergência de um momento qualquer (um momento crítico, mas, ao mesmo tempo, simples, rotineiro), em que o sujeito se coloca sobre a borda existente entre a continuidade e a mudança, configurando outras oportunidades de aparecer, de ser visto e considerado como interlocutor político.
O encontro com o inesperado e a “ausência” de método
Em entrevista concedida a Laurent Jeanpierre e Dork Zabunyan, Rancière (2016) oferece-nos uma detalhada descrição da forma como trabalha, como escreve seus textos e reúne os resultados de suas buscas diárias pelo encontro com algo que ele ainda não havia visto, lido ou contemplado. Essa descrição, da qual transcrevo um pequeno trecho a seguir, apresenta-nos uma dimensão afetiva do encontro com vestígios e pistas, uma vez que Rancière se mantém aberto ao modo como suas experiências e seu contato constante com filmes, obras de arte, arquivos, brochuras, enfim, com singularidades heterogêneas, o deixam sempre no limiar de um possível risco de ser deslocado e, assim, ficar desamparado diante de alteridades enigmáticas:
É importante conceder a mim mesmo a possibilidade de descobrir algo novo a cada dia, a ideia de que o pensamento significa coisas ditas e escritas, que estão aí, que nunca estão na sua cabeça, mas sempre em trânsito na página, à espera de serem transportadas para outro lugar, expressas de forma diferente. [...] A maneira como trabalho não é através do gesto de recolher dados que depois processo, mas tento atingir um determinado nível de intensidade. Algo salta para fora, como diria Deleuze, “forçando você a pensar”. Você sempre tem que ter algum tipo de material inusitado, que não estava esperando. Há um dinamismo no pensamento se você constantemente se permite ser surpreendido pelo material, por um choque provocativo que vem de outro lugar. Sempre trabalhei em uma relação complicada entre, por um lado, esse processo diário de me colocar em risco diante de uma possível surpresa e, por outro, demandas que me são feitas repentinamente e que vêm de outro lugar. (Rancière, 2016, p. 36)
Rancière (2016) confirma a importância de dois movimentos de criação em seu trabalho: a abertura ao inesperado e a necessidade de, de alguma maneira, construir uma trama, uma rede de relações entre as materialidades com as quais tem contato. “Trata-se de constituir, com as coisas que aparentemente pertencem a registros diferentes, os vínculos de um mundo comum que está sempre no limiar da desaparição” (Rancière, 2020, p. 838). Para a elaboração dessa rede (que dará origem ao que ele nomeia como cena), ele aponta a centralidade que as palavras e a escrita possuem em seu trabalho, apesar de negar que siga um método, no sentido rigoroso do termo, para construir uma cena. “Para mim, o único método que vale a pena é ver se as palavras de repente têm peso ou ressonância em relação a outras palavras, se estabelecem uma teia em relação a outra teia e constituem uma cena” (Rancière, 2016, p. 33).
Ao mesmo tempo, Rancière deixa explícito que seu pensamento produz certa mise en scène no campo da escritura quando se trata de conectar vários elementos, de maneira não hierárquica, em uma trama, uma tessitura que é resultado de múltiplas conexões e relações que ele realiza entre suas descobertas:
Acho que meu método sempre combinou uma leitura imanente, aquela que busca o tipo de relação entre os diferentes significados que conferem a textura de um texto, com uma leitura das conexões não planejadas que tenta capturar o alcance do texto fazendo um texto ressoar dentro de outro, fora de qualquer dúvida sobre se alguém leu ou não o que outra pessoa escreveu (Rancière, 2016, p. 34).
É a partir dessas conexões não planejadas que surge a cena. Da descoberta de algo novo, das leituras e do encontro com materialidades que poderão ser articuladas de maneira única, surpreendente, sem ter como objetivo o atendimento de expectativas já traçadas. Uma cena emerge quando expectativas não são atendidas, quando se altera o funcionamento da máquina explicativa e pode-se, então, alterar “a topografia do perceptível, do pensável e do possível, redispondo temporalidades e partilhas que vão definir as formas de experiência possíveis” (Rancière, 2020, pp. 829 e 830). A cena é também uma máquina de interferir nas inteligibilidades, ela é “a construção de outro universo de aparências: faz aparecer o que não aparecia, ou faz aparecer de forma diferente o que já aparecia sob certo regime de visibilidade e inteligibilidade” (Rancière, 2018c, p. 14). A cena seria, para Rancière, “a construção de uma racionalidade exemplar e o teatro seria como o lugar de um desenvolvimento, um desdobramento” (ibidem, p. 16).
A associação entre acontecimentos de maior abrangência e microacontecimentos sensíveis pode transformar o olhar e o modo como inteligibilidades são produzidas a partir de julgamentos e valores centrados no trabalho, por exemplo. Segundo Rancière (2018a, p. 25), é central que a cena seja produzida a partir desse gesto de montagem entre diferentes elementos e que essa montagem evidencie “o hiato entre duas mises en scène sensíveis e diferentes, para mostrar a presença de sujeitos coletivos, plurais e antagônicos quanto ao sentido dessa presença”.
A presença de corpos e enunciações antagônicas sobre a cena é algo vital para Rancière, pois revela “a cena enquanto conjunção, enquanto a operação de colocar juntos os corpos, olhares, palavras, gestos e significações” (2018a, p. 29). Assim, é importante que a cena também seja um “espaço” no qual o aparecer seja associado a uma tomada de palavra, a uma construção de uma realidade a partir da sedimentação dos elementos que permitem a criação de outro imaginário possível, afastado das hierarquias classificatórias.
É sob esse aspecto que conferimos ênfase ao modo como Rancière define a aparição como um trabalho de desidentificação e de emancipação que redefine as coordenadas espaço-temporais responsáveis por localizar os corpos e por permitir a transformação de suas condições de experiência e de reconhecimento. Segundo Andrea Soto Calderón (2020) e Laura Quintana (2019), o trabalho do aparecer produz alterações na postura, na forma de mobilidade e de gestualidade dos corpos. Essas mudanças não são triviais nem de pouca relevância: no processo de aparição, os sujeitos podem, ainda que por um momento, conciliar o fato de que são corpos observados (e muitas vezes vigiados) com o fato de poderem observar os próprios movimentos descolandose das identidades e scripts impostos. Como menciona Rancière, trata-se menos de evidenciar o “devir-sujeito” dos indivíduos e mais de experimentar a configuração de um mundo comum que requer que as corporeidades sejam redefinidas e desconectadas de suas funcionalidades.
[Aparecer é] a forma como os sujeitos políticos se constituem em descompasso com relação às identidades por meio de atos que alteram a distribuição de cargos e, consequentemente, a configuração de um mundo comum. Mas não me preocupei com o devir-sujeito dos indivíduos. O que me interessou foi a maneira como os indivíduos trabalham para reconstruir o universo sensível ou o tipo de mundo comum em que se encontram. (Rancière, 2020, p. 834)
A emancipação associada à aparição corporificada do sujeito sobre a cena (que é, ao mesmo tempo, o resultado dessa aparição) é uma articulação entre a capacidade que um sujeito qualquer possui de alterar sua aparência, suas condições de aparecimento e também o dispositivo que controla quais corpos e quais aparências são dignas de serem consideradas como legítimas em detrimento das aparências percebidas como abjetas e desprezíveis. “Nesse sentido, o corpo, enquanto arranjo de posições, afetos, imagens e formas de percepção, pode produzir outras imagens e formas de percepção através de fraturas sutis e de mudanças de posição em sua configuração afetiva e experiencial” (Quintana, 2019, p. 218).
Rancière (2009b) explica que o aparecer permite ao sujeito a redisposição da percepção de seu mundo, de seu corpo, de suas linguagens, produzindo experiências sensíveis e dissensuais ligadas a modos de interpretação excessivos e que conferem outra inteligibilidade à sua presença no mundo. Ao mesmo tempo, há sempre “corpos que não obedecem às formas estabelecidas de ser contado e considerado como certo tipo de corpo, contribuindo para a desidentificação e para a coexistência de formas de vida excessivas” (Quintana, 2019, p. 221).
Assim, “a emancipação não implica uma transformação em termos de conhecimento, mas em termos de posição dos corpos” (Rancière, 2009b, p. 575). A dimensão estética da emancipação considera a aparência não pela diferença entre o que é considerado belo ou feio, mas como “um modo de inscrição em um universo sensível [...] o fato de ser dotado de certo corpo, definido por capacidades e incapacidades, e pelo pertencimento a certo universo perceptivo” (Rancière, 2009b, p. 575). Sob esse aspecto, uma das principais dimensões da emancipação é definida por Rancière como uma ruptura com a corporeidade que afirma a correspondência e a adequação “entre certo tipo de ocupação e certo tipo equipamento intelectual e sensorial” (2009b, p. 575).
A aparência do corpo, no sentido da apresentação de sua materialidade sensível, é uma das dimensões do processo de reconfiguração do campo da percepção de um indivíduo. A outra dimensão é o aparecer, ou a aparição, que, como mencionamos, relaciona-se “aos deslocamentos que modificam o mapa do que é pensável, nomeável e perceptível, alterando assim a topografia do que é possível” (Rancière, 2009b, p. 576). O trabalho desenvolvido no processo de aparição permite intervenções nas formas de apreensão e legibilidade dos corpos, o que interfere nas condições oferecidas a esses corpos para serem reconhecidos ou não como dignos de consideração e de participação em um mundo comum. A potência da articulação entre a aparência (também modelável pelas técnicas de si delineadas no pensamento foucaultiano) e o aparecer está ligada à possibilidade que essas operações sobre o visível e o pensável têm de deslocar e até mesmo de retirar os corpos dos lugares (concretos e simbólicos) que lhes foram destinados e de transformar as redes materiais, discursivas e intersubjetivas que os sustentam e amparam, modificando suas vulnerabilidades e também a maneira como definem suas necessidades.
Esse trabalho que aproxima e tensiona a aparência e o aparecer possibilita ao corpo outras oportunidades de experimentar seus limites e potencialidades, distanciando-se de uma designação hierárquica e desidentificando-se de nomes que lhe foram impostos. De acordo com Rancière (2019a), os deslocamentos, os rearranjos e as redisposições podem configurar outro imaginário político para acolher a presença de formas de vida dissidentes. Ao mencionar os filmes realizados pelo cineasta português Pedro Costa, por exemplo, Rancière (2019a, 2022) ressalta como as imagens de migrantes cabo-verdianos podem ser entendidas menos como representações e mais como figurações capazes de mudar os lugares e a forma de reconhecimento da dignidade dos migrantes9. Na figuração, o sujeito tem que escapar à nossa tentativa incessante de tudo categorizar, avaliar, julgar e submeter ao já familiar: ele deve permanecer estranho, infamiliar e, por isso mesmo, inquietante. Além disso, a figuração relaciona-se ao modo como sujeitos podem participar de um “comum” que surge no conflito e no intervalo entre modos diferentes de definir quem pode aparecer, falar e ser escutado, e quem não pode.
Esse exemplo nos indica que figurações dissensuais elaboradas no fazer cinematográfico das imagens podem promover transformações minoritárias e cotidianas na experiência a partir da construção de outra paisagem para o aparecimento dos corpos, de seus gestos e de suas palavras. A composição dessa cena e a forma de aparição que ela permite alteram a partilha policial10 do sensível e revelam a imbricação entre estética e política nos processos de emancipação. O intervalo aberto pela imagem e na imagem, quando essas imagens não se reduzem à representação que devolve os indivíduos figurados às identidades sociais que lhes foram impostas, permite aos corpos a redescoberta de seus próprios movimentos, de suas histórias, seus gestos e suas mobilidades únicas entre espaços sociais, políticos e institucionais. As transformações materiais e qualitativas que reconfiguram o aparecer dos corpos podem também alterar sua aparência em uma cena polêmica, assim como a mudança de sua aparência pode modificar as coordenadas de seu aparecer.
Segundo Rancière (2020), a montagem da cena envolve o trabalho de articulação dos elementos disponíveis à ação sem aderir a um julgamento precipitado, permitindo que o intervalo entre os elementos que compõem a cena possa agir sobre sua organização, indagando sobre os sujeitos que ali estão expostos, elencando mais detalhes antes de “classificar” seu conteúdo e rotular seu enunciado. A redefinição das bordas entre identificação e desidentificação é uma das dimensões da política dissensual que se desenha na produção da cena: ela impulsiona práticas de resistência concebidas pelos sujeitos nas montagens que realizam para elaborar novas formas de visibilidade e de legibilidade para suas formas de vida. Assim, “a política pode acontecer no espaço da polícia, reescrevendo, torcendo as palavras e reencenando questões sociais e problemas de injustiça” (Rancière, 2004, p. 86).
Ao comentar sobre como a escritura cinematográfica pode emancipar o olhar, Rancière (2012, p. 96) ressalta como as imagens pertencem a “um dispositivo de visibilidade que regula o estatuto dos corpos representados e o tipo de atenção que eles merecem”. A aparência e o aparecer do corpo mostram, segundo Rancière, a importância de percebermos a regulação do processo de reconhecimento atribuído aos sujeitos, uma vez que ser contado como parte de uma comunidade depende justamente de como os corpos aparecem diante de nós e de que tipo de consideração ou desconsideração recebem como resposta. Podemos dizer que sua abordagem da aparência como produtora de intervalos e de disjunções entre o que é visto e percebido privilegia um olhar que seja desviado do consenso e que possa dialetizar o visível, ou seja, tornar legível a dialética de uma repressão, de uma vida que foi desumanizada e encarcerada no silêncio.
Rancière (2018b; 2019a) afirma que a montagem da cena de uma aparição é um trabalho de elaboração de outras maneiras de fabricar e de fabular as disposições dos corpos. A cena possui uma racionalidade que deriva da partilha dissensual do sensível, da colocação dos interlocutores em uma situação de desigualdade, fazendo com que esse espaço comum apareça por meio de “uma forma específica de experiência na qual algumas coisas aparecem como objetos políticos, algumas questões como questões políticas ou argumentações e alguns agentes como sujeitos políticos” (Rancière, 2011, p. 4). Mas ela também possui uma outra racionalidade, derivada do trabalho de narração, de remontagem feito por aquele que conecta diferentes registros, materialidades e singularidades. Pode ser um poeta, um artista, um filósofo, um pesquisador, um operário: quem escreve e descreve a cena produz um novo regime de visibilidade e legibilidade. Arquiteta, a partir da linguagem, constelações únicas que aproximam e tensionam singularidades diversas.
Construo uma cena como uma pequena máquina na qual o máximo de significados pode ser condensado em torno da questão central, que é a questão da distribuição do mundo sensível. A partir dessa base, prossigo para a construção da cena. Eu a entendo como cena em função de sua capacidade de desafiar todos os conceitos ou discursos, todas as ficções que tratam das mesmas questões, a saber, qual relação existe entre o fato de ter ou não tempo, e o fato de ser capaz de pensar ou de não ser capaz de pensar. (Rancière, 2016, p. 68)
Rancière (2018c) afirma que o grão que origina a cena é uma singularidade, um evento especial que pode nos levar a perceber conexões antes não imaginadas com outras singularidades que, em si mesmas, contêm um valor específico e que não devem ser aproximadas segundo a lógica de uma explicação causal e linear, que coloca tudo em seu “devido” lugar: pessoas, modos de percepção, formas de vida e de pensamento.
Aqui o papel do sujeito que constitui a cena é essencial: seja ele um pesquisador, um filósofo, um professor, um operário, etc. Evitar uma escrita que produza uma máquina explicativa do real é o gesto político adotado por Rancière, uma vez que é “essa rede de explicações que vem reforçar a ordem do mundo, duplicando-o a partir de sua racionalidade” (2020, p. 829). Para produzir uma escrita anti-hierárquica, capaz de elaborar e montar a cena, o pesquisador, aquele que junta os traços que configuram as redes de singularidades que definem uma cena, precisa adotar uma postura ética. Uma cena é fruto de um trabalho de tomada de posição daquele que a monta e de sua habilidade em produzir uma linguagem capaz de afirmar outra relação com o espaço e com o tempo. No livro O método da igualdade (2016), Rancière comenta que seu método de trabalho envolve aproximar diferentes materialidades e produzir um encontro, colocando para funcionar um sistema de relações, um choque entre vários registros de discurso:
Existe esse núcleo ou realidade central em um encontro, que eu então reconstruo à minha maneira, e é bem diferente de uma alegoria. Em uma alegoria, existe uma ideia e sua ilustração. Em uma cena, o pensamento e a imagem não podem ser distinguidos. Se você pensar na escrita de O mestre ignorante, com sua mistura sistemática de vozes, o que contribui para a força do ensaio, para mim, é precisamente que é quase impossível separar a história do comentário, separar o que é apresentado ali como a história de algo real da minha reflexão sobre essa realidade ou de uma ficção que eu poderia muito bem ter inventado por completo. O que constitui a cena, para mim, é esse entrelaçamento dos diferentes níveis de significação e essa transversalidade que corre entre os diferentes níveis do discurso (Rancière, 2016, p. 69).
É interessante notar como se produz esse encontro de vozes na escritura de Rancière, pois não se trata se uma mera sobreposição de ideias, enunciados e imagens. Ele afirma que a articulação entre as vozes não pode ser feita através de transições declaradas, evidentes, mas sim por meio de um deslizamento de uma voz sobre a outra, entrelaçando a posição do narrador aos discursos de outras pessoas, permitindo que coexistam e se justaponham:
Para mim, esse sempre foi o problema de não declarar transições, de não dizer “até agora estive contando algo e agora vou explicar o significado do que contei”, ou “estávamos no âmbito do exemplo empírico e agora vamos refletir sobre o que esse exemplo empírico nos oferece”, ou “temos usado palavras comuns do dia a dia e agora estamos passando ao registro das palavras filosóficas” (Rancière, 2016, p. 80).
O trabalho da escritura é produzir um intervalo, um “entre” nos quais vozes e sequências de falas são articuladas sem que se produza um salto de uma palavra a outra, um salto que solicite uma transição aberta, de um tipo de léxico ou sintaxe a outra. Na escrita, Rancière afirma confrontar várias posições estabelecidas e, ao mesmo tempo, construir cenas de palavra: cenas nas quais diferentes registros, falas, demandas, gritos, imagens, corpos, temporalidades não deveriam, a princípio, ser reunidos e articulados sem qualquer hierarquia.
De fato, a cena é composta de vários materiais: partindo de um acontecimento, situação ou ação concreta, o pesquisador cria uma forma de escrita capaz de expressar seu pensamento, uma vez que transformar o modo como as coisas e as experiências são apresentadas na escrita significa interferir em como elas são vistas e pensadas. É como se a escritura produzisse não só pontes entre diferentes discursos e falas, mas também certo tipo de mapa: não para evidenciar fronteiras e territórios, mas para realizar outras partilhas e coexistências que se revelam contrárias a formas de exclusão, de despolitização e de redução de múltiplas temporalidades, espacialidades, corporeidades e interseccionalidades a um só jeito de modelar e tornar legível a topografia das experiências. Além disso, a escritura em Rancière se aproxima de um trabalho igualitário11, no sentido de que ela não é uma ferramenta para explicar as coisas ou transmitir pensamentos, mas para deslocar horizontalmente as posições e tempos normais que definem quem pode e quem não pode pensar.
A cena e a escritura
Como vimos anteriormente, Rancière preocupa-se em oferecer ao leitor textos que podem ser lidos como cena, distanciando sua escrita da elaboração de explicações ou de justificativas para certos acontecimentos. Poderíamos dizer que sua escrita produz performances que movimentam a cena e, por sua vez, as ações que aí se desenvolvem permitem que o leitor experimente outras sensibilidades e universos de sentido, outras maneiras de dispor temporalidades e espacialidades. Assim procedendo, aquele que monta a cena nos leva a considerar o hiato e as tensões entre o mundo sensível que nos apresenta e nossa forma habitual de pensar e julgar. A reflexão a ser feita opera suas transformações a partir desse intervalo, reconfigurando, questionando e fabricando outras formas de perceber, considerar e reconhecer.
O que busco é produzir um modo de compreensão que esteja livre de qualquer ideia de superioridade estabelecida, uma maneira de compartilhar e não de dominar. [...] Para mim, a escritura é um processo de investigação, uma maneira não de aproximar o leitor de meu pensamento, mas de aproximar meu pensamento ao que devemos pensar acerca de outra distribuição dos corpos e das capacidades (Rancière, 2019c, pp. 124-125).
A escritura pode reconfigurar a “distribuição dos corpos e das capacidades” na medida em que promove uma experimentação sensível baseada na definição de cenas nas quais os corpos são direcionados para explorar outras linguagens e formas de percepção e reflexão. Segundo Quintana (2019), o corpo é percebido por Rancière como um arranjo heterogêneo de gestos, rotinas, afetos, formas de racionalidade, espacializações experimentadas em seus movimentos, modos de percepção, ritmos que podem ser redispostos em disjunções que possibilitam outros arranjos. As operações enunciativas da escrita, das imagens, da dança, enfim, da partilha estética do sensível podem não apenas reenquadrar a configuração do espaço-tempo de inscrição de um corpo, mas também uma inovação em sua linguagem de forma a ampliar as condições de reconhecimento de suas capacidades e das conexões que elas podem promover.
Em entrevista concedida a Javier Bassas, Rancière (2019c) comenta que o papel da escrita na montagem da cena na qual os corpos reconfiguram seu aparecimento consiste em aproximar blocos de linguagem e blocos de pensamento, não para produzir explicações, mas sim tensionamentos e choques, engendrando uma busca que produz sentidos deslocando posições naturalizadas.
Escrevo, pois, situando-me no seio de um universo de linguagem existente, seja um texto filosófico, uma carta de um operário a outro, um romance, a descrição de uma obra de arte, em suma, todo pensamento que se apresenta sob a forma de bloco de linguagem, que pertence a um âmbito particular. Tento introduzir-me nesses blocos com o objetivo de deslocá-los para definir um plano em que possam se comunicar, um plano em que haja um objeto de pensamento comum que existe e que se expressa em uma linguagem comum. Trata-se de construir uma espécie de história comum a partir desses blocos de linguagem heterogêneos, de deslocamentos que culminam na constituição de um plano de igualdade (Rancière, 2019c, p. 30).
Quando Rancière revela seu modo discursivo de articular a escrita, ele enfatiza que a desmontagem das operações verticalizantes da lógica explicativa requer do pesquisador a habilidade de fabricar “operações de reformulação, de reordenação de frases, de condensação, comparação, deslocamentos que entrelacem diferentes textos na constituição de um objeto” (2019c, p. 31). O efeito desse gesto de escritura é a produção de cenas que reagem umas com as outras e umas sobre as outras.
Construir uma cena a partir de elementos singulares não quer dizer apenas colocá-los juntos, mas escolher a racionalidade que irá produzir inteligibilidade a partir dos fragmentos. Rancière opta não pela ordem representativa, mas pela ordem igualitária. O trabalho da cena é permitir deslocamentos capazes de produzir novas relações entre o sensível e o legível, novas paisagens e caminhos inesperados de entendimento e de imaginação.
Para mim fundamentalmente uma cena não está jamais isolada. Um acontecimento pontual não é ainda uma cena: é meu trabalho transformar em cena este ou aquele acontecimento. A cena existe através da mise en scène discursiva e sensível que construo entre palavras de comentadores e acontecimentos sensíveis que eles se aplicam a captar. A cena não é jamais simplesmente um acontecimento empírico que eu me ponho a contar e analisar. A cada vez, há um conjunto de fios que são ligados, ressonâncias e harmônicos que a constituem. Eu constituo a cena tendo em mente a referência possível a outras cenas. (Rancière, 2018b, p. 121)
Transformar um dado acontecimento singular em uma cena requer, portanto, essa busca por uma escritura liminar e não explicativa (que aproxime diferenças sem suturá-las, abrindo outros espaços e outros tempos na narrativa) e também um investimento na identificação e entrelaçamento de redes de relação entre eventos, nas quais o “aparecer” é o motor ético, estético e político de transformação. Cena e acontecimento são noções interligadas, mas a função da cena é reordenar e redispor os elementos que compõem um dado acontecimento, sempre em relação a outros:
O acontecimento não é um dado. O que faz o acontecimento é a cena. Claro que há um fato, as pessoas. Há alguém que faz uma conferência, mas o texto final publicado não tem a ver com o texto inicial. O que eu conto não é em nada parecido com o que se passou no dia da conferência. O acontecimento é algo que é construído na relação entre duas formas de modelagem do acontecimento: aquela dos acontecimentos sensíveis e aquela das palavras que lhe conferem um espaço de manifestação (Rancière, 2018a, p. 123).
Rancière argumenta que a cena é uma operação vital para a implementação do método da igualdade. Segundo ele, a montagem da cena só é possível quando estabelecemos relações de igualdade entre textos que possuem origens distintas e que, a princípio, seria improvável que se aproximassem. A construção de um mosaico de textos singulares permite “construir pontes entre palavras que parecem pertencer a registros totalmente diferentes, a mundos e tempos absolutamente heterogêneos” (Rancière, 2019c, p. 27).
A aproximação conflitiva de diferentes tipos de textos ou enunciações pode revelar como uma dada palavra é percebida como um pensamento ou ponto de vista articulado e recebido como válido, enquanto outros dizeres podem ser vistos apenas como tematização de sofrimentos quando, na verdade, também revelam pensamentos e epistemes que não devem ser explicadas pela palavra institucional ou acadêmica.
A cena é uma entidade teórica que pertence ao método da igualdade, porque ela destrói, ao mesmo tempo, as hierarquias entre os diferentes níveis de realidade e discursos; e os métodos usuais que julgam se um fenômeno é ou não importante. (Rancière, 2018a, p. 123)
Quando Rancière narra o modo como monta uma cena, ele destaca que indica os aspectos e singularidades acerca dos quais o encontro com um conjunto de materiais o fez pensar. O que ele oferece ao interlocutor/leitor/espectador é sua visão (daí a importância de, na pesquisa afetiva, assumir a posição reflexiva da primeira pessoa e mapear, o tempo todo, as hesitações e dilemas do percurso), parcial, tentativa, incompleta, mas é o seu olhar acerca de um dado acontecimento em relação a outros. Ao fazer isso, não se pode assumir uma postura prescritiva, explicativa, como se estivesse querendo impor algo. Trata-se de oferecer uma proposição de sentido a ser discutida, reconfigurada, revista, como uma constelação movente. “A questão é saber se o leitor aceitará mover-se com o texto, fazer algo com ele, inscrever-se nessa paisagem de pensamento anônimo e traçar aí seus próprios caminhos” (Rancière, 2019b, p. 38).
Rancière também afirma que a cena não é uma ficção que se opõe a uma verdade ou que se contrapõe a um bastidor: ela é uma possibilidade de construir legibilidade acerca da experiência e dos quadros de sentido que direcionam nossa apreensão e entendimento do mundo. A ficção alimenta uma racionalidade sensível capaz de nos aproximar do que seria uma dada realidade.
O que me interessa não é o fora de cena como a verdade da cena, mas a cena enquanto conjunção, enquanto o fato de colocar juntos os corpos, gestos, olhares, palavras e significações. É a cena como tal que me interessa, enquanto ela é como a disposição visual de um modo de racionalidade que não deve ser explicado por um fora de cena. A cena de Althusser é sempre dividida entre aparência e realidade, enquanto a minha cena é uma cena de construção de uma realidade. O que torna uma cena possível não é o bastidor, o que está escondido, mas essa sedimentação que é preciso evidenciar, mas não sob a forma de um pano de fundo descortinado. E não é também o maquinário, a inteligibilidade que está do lado da constituição dos elementos que fazem parte da cena. Tento pensá-la dessa forma, e não em relação a um fora de cena que seria a razão da cena. (Rancière, 2018b, p. 29)
O método da igualdade produz cenas a partir da criação de uma escrita que aproxime blocos de linguagem e blocos de pensamento que se tensionam, porque alguns blocos são colocados do lado de uma racionalidade conceitual que supostamente deveria explicar aqueles blocos de linguagem que condensam a materialidade a ser explicada. O processo igualitário que faz funcionar a cena não tem como objetivo eliminar a separação entre singularidades distintas, mas justamente tematizar, por meio da escritura autoral, a topografia que dá origem a essa borda.
Não me coloquei na margem, mas no centro, esse centro que é também uma borda: no qual se decide quem está dentro e quem está fora. Tentei marcar os pontos nos quais se operam os gestos decisivos de partilha que vão definir as formas da experiência possível, no sentido daquilo que cada um de nós pode perceber, dizer e pensar acerca daquilo que vivencia (Rancière, 2020, p. 830).
Como destaca Rancière, “a escritura não é um instrumento que serve para transmitir pensamento ou suturar as diferenças entre blocos de linguagem que pertencem a esferas diferentes. Ela é um trabalho de busca que produz pensamento” (2019c, p. 29). E esse pensamento produzido pela cena desloca as posições tidas como “normais”, que definem operações verticais e explicativas. A cena é uma “máquina igualitária” que aproxima e tensiona momentos e materialidades não sob a forma de um fio contínuo, mas por meio de “outras cenas que agem umas sobre as outras” (2019c, p. 33).
A cena produtora de dissenso seria uma borda: ela se localiza sobre a linha de partilha entre o institucional e o experiencial para subverter essa divisão. É uma borda na qual uma singularidade menor, mas que pode valer muito quando se trata de alterar um campo de legibilidade que define as formas de valorizar ou desvalorizar a agência e o aparecer político dos sujeitos.
A cena é a borda entre um nada e alguma coisa que vale como se fosse tudo. A noite dos proletários já era uma obra feita de cenas: um olhar através da janela, um encontro marcado entre duas pessoas, a narrativa de um domingo no campo, que oferecem testemunho, ao mesmo tempo, da realidade material de uma separação das formas da experiência e do esforço para transgredi-la, para entrar em outro mundo, reconfigurando um universo sensível. A cena é o operador que permite compreender um mundo a partir do conflito sobre essa borda que separa o que está dentro e o que está fora, o que “existe” do que “não existe”, o que produz sentido, daquilo que não faz sentido algum. (Rancière, 2020, p. 840)
Na citação acima, a cena é originada por meio de momentos ínfimos do cotidiano, nos quais os corpos alteram seus ritmos, deslocam-se de maneira a se desviar de rotas, experimentam outro mundo sensível e produzem intervalos de tempo não capturáveis pela trama da narrativa consensual. Esses momentos quaisquer conseguem não só reconfigurar a estrutura do roteiro de ações, mas também conferir dignidade a todos que compõem essas cenas. É pela via do momento qualquer que o “qualquer um” passa a ser figurado (e não apenas representado), passa a aparecer e ser visto e escutado como antes não poderia ter sido. É pelo momento qualquer que ocorre a “a entrada dos indivíduos quaisquer no tempo vazio que se dilata em um mundo de sensações e paixões desconhecidas” (Rancière, 2017, p. 151). Na cena, não só os tempos coexistem de maneira desierarquizada, mas também os sujeitos e suas formas de vida. É muito importante ressaltar que o corpo que aparece na cena se desvincula de uma dimensão produtiva: o corpo reencontra gestos, movimentos, temporalidades lentas, rarefeitas, fabuladoras. Olhares, braços, mãos, passos, rostos não se encontram agrupados, formando um corpo apto ao trabalho e adaptado à temporalidade acelerada e maximizante da produção. O corpo é “desconjuntado” e suas partes devaneiam, flanam, experimentam outras temporalidades, espacialidades, sensibilidades e partilhas. Assim, o momento qualquer permite a formação de
[...] um tecido temporal cujos ritmos não são mais definidos por objetivos projetados, ações que buscam a conquistá-los e obstáculos que retardam; mas por corpos que se deslocam ao ritmo das horas, mãos que apagam o embaçamento dos vidros para olhar a chuva que cai, cabeças que se apoiam, braços que caem, rostos desconhecidos ou conhecidos que aparecem atrás das janelas, passos sonoros ou furtivos, um ar de música que passa, minutos que deslizam uns sobre os outros e se fundem em uma emoção sem nome (Rancière, 2017, p. 151).
É importante destacar que a noção de momento qualquer tem origem em uma expressão que Erich Auerbach utilizou, em seu livro Mimesis, para caracterizar a ficção de Virginia Woolf, indicando “o momento que não constrói e nem destrói mais nada, que não se estende em direção a um fim, mas se dilata ao infinito, incluindo virtualmente outros tempos e lugares” (Rancière, 2017, p. 131). Sob esse aspecto, a maneira como os fragmentos de tempo se entrelaçam é desmedida e inclusiva: eles não só coexistem, mas também se expandem como ondas que reverberam sem jamais destruírem umas às outras.
A suspensão da ordem corriqueira do tempo, da maneira habitual de ocupar um espaço, da forma de identificar-se como indivíduo e de inscreverse nas relações questiona os esquemas temporais planificadores e expande o tempo presente de modo a fazer caber nele os possíveis ainda não registrados pela ordem controladora. “O momento qualquer, na verdade, não é qualquer. Claro que ele pode se produzir a qualquer instante, para toda circunstância insignificante. Mas ele é também um momento sempre decisivo, o momento de sacudida que se conserva entre o nada e o tudo” (Rancière, 2017, p. 155). A oscilação que se produz em momentos prosaicos e insignificantes pode permitir o aparecimento do qualquer um na cena polêmica, pode alterar legibilidades, visibilidades e produzir desidentificações emancipadoras. Acreditamos que a reflexão que Rancière faz acerca da performatividade das imagens pode nos auxiliar a compreender como se produzem passagens e deslocamentos entre o que é considerado legível e visível e o que é considerado opaco e ininteligível; entre o que alcança e cumpre expectativas e o que perfura o continuum com o inesperado.
Uma escritura performativa das imagens
Ao afirmar que a cena é “a disposição visual de um modo de racionalidade” (2018a, p. 29), Rancière propõe um modo de compreensão das imagens que escapa ao regime representativo e se aproxima de uma operação que vai regular a maneira como percebemos, apreendemos e validamos as formas de vida, os corpos e as enunciações. A imagem é inserida em uma rede de elementos que configuram a cena e, justamente por isso, ajuda a expor e explorar as diferentes formas a partir das quais uma mesma coisa pode se tornar legível para nós:
Uma imagem nunca está sozinha. Pertence a um dispositivo de visibilidade que regula o estatuto dos corpos representados e o tipo de atenção que merecem. A questão é saber o tipo de atenção que este ou aquele dispositivo provoca e convoca (Rancière, 2012, p. 96).
Ao procurar outros modos de produzir imagens para além do regime representativo, Rancière não defende que a representação deva ser evitada, pois esta continua sendo uma modalidade da qual as imagens se servem para criar mundos (Calderón, 2020). Em O Espectador Emancipado, Rancière (2012, p. 67) reconhece que as imagens da arte operam a partir de outro regime, produzindo “intervalos que interrompem o fluxo consensual de legibilidade”, criando um reagenciamento das imagens circulantes, fazendo aparecer um poder disruptivo de comunidade, uma capacidade de agregar nomes e personagens que multipliquem a realidade. Assim, essa operação intervalar12 das imagens cria formas de “aparências” que desafiam o modo hierárquico de apresentação da realidade, deslocando o olhar, rearranjando a legibilidade do enunciado das imagens. É importante destacar que a tensão entre imagens representativas e imagens estéticas não é uma relação polarizada, em que uma deve “eliminar” a outra. Não se trata de eliminar a representação como operação de trabalho que dá forma ao visível, mas de produzir e manter uma distância da compreensão dos acontecimentos como matéria inerte, à espera de algo externo que os organize.
O que interessa a ele é capturar o instante de oscilação em que uma imagem pode, de um lado, evidenciar a relação entre causas e efeitos e, de outro, evidenciar e articular modos dissidentes de imaginar um acontecimento: por exemplo, o tremor que atravessa o olhar de alguém que, no limiar de uma janela ou de uma porta, sonha em habitar outro tempo e espaço.
O trabalho realizado pelas imagens seria o resultado, segundo a abordagem de Jacques Rancière (2019a), do entrelaçamento entre dois conceitos e suas potências reflexivas: o intervalo aberto pelo “desmedido momento” (Rancière, 2017, p. 173) e a fabulação advinda da rêverie e da ficção.13 O intervalo e a fabulação compõem uma operação de deslocamento e interrupção da maneira por meio da qual o regime representativo reafirma hierarquias e desigualdades nas modalidades do “aparecer” dos sujeitos e de suas formas de vida. Uma imagem produz intervalos quando oferece “uma dimensão de fuga, uma verticalidade em relação ao desdobramento linear de uma narrativa, criando oportunidade de aproximações de temporalidades múltiplas” (Rancière, 2019a, p. 69).
O exercício de fabulação contraria o encadeamento de causas e efeitos, a previsibilidade, a relação entre o que estaria previsto e o que de fato acontece, criando uma narrativa experimental e dissensual desdobrada pela cena polêmica e seus arranjos temporais desestabilizantes (Rancière, 2018c, 2019a). Assim, imagens podem fazer aparecer o imprevisto, aquilo que antes não era notado, percebido, sentido: elas produzem e são produzidas por operações que desorganizam e redispõem o que está dado, trazendo outras possibilidades de aparecer, ou seja, outras maneiras de tornar legíveis e inteligíveis tempos, espaços, objetos, corpos e experiências. Imagens podem, enfim, dar origem a cenas singulares e, atuando como “aparelhos” ou “máquinas” capazes de desmontar a razão explicativa que perdura no regime representativo, abrindo intervalos que permitem desvios, devaneios, desmesuras.
A reflexão de Jacques Rancière (2012, 2019a) sobre as imagens aposta em uma conceituação que enfatiza o modo como imagens “trabalham” no sentido de produzir arranjos e intervalos que redispõem corpos, objetos, situações e acontecimentos, de modo a desestabilizar as redes conceituais que conferem legibilidade e inteligibilidade àquilo que vemos. De acordo com Calderón (2020), o trabalho das imagens tem como objetivo recompor e redefinir as paisagens e experiências que definem, rearticulam o visível, as ações e as formas como as coisas e os seres aparecem, ou seja, tornam-se passíveis de consideração.
Imagens não estão prontas, mas encontram-se “em trabalho”, testando modos de desencaixes às formas enunciativas dominantes e às representações redutoras. São intervalares no sentido de que elas transitam entre nomes, entre outras imagens e entre nós mesmos: não nos posicionamos diante delas, à espera de seus efeitos, mas estamos entre elas (Rancière, 2012). A circulação das imagens e a maneira como as fazemos circular produzem constelações, definem montagens que nem sempre seguem uma ordem narrativa linear causal: a potência política das imagens reside nas relações inesperadas e não previstas que elas podem engendrar. Sob a perspectiva de Rancière (2012, 2013a, 2019a), as imagens são operações que dispõem as coisas de uma dada maneira para que outras realidades possam ser imaginadas. Como ressalta Calderón, elas são “pequenas máquinas que funcionam a partir da diferença, do dinamismo conflitivo, sem se reduzirem ao visível, para criar e abrir brechas ao que nunca foi visto” (2020, p. 35).
O trabalho da imagem é abrir planos de conexões e desconexões, aproximações e distinções, fratura e recomposições que não realizam expectativas de legibilidade, trazendo ao olhar do espectador uma indecidibilidade que o torna sensível a aspectos que antes não seriam objeto de contemplação ou consideração. “Fazer imagens” (faire images) que se distanciem da representação implica interferir na trama temporal que a insere em uma cena. Assim, Rancière argumenta que a imagem produz “um tipo de operação que vai alterar a distribuição do visível e do pensável” (2019a, p. 50), pois, a potência política está tanto nas imagens (materialidade sígnica) quanto nas relações e operações que as definem.
Considerações finais
O intuito da sistematização aqui realizada consistiu em evidenciar como Jacques Rancière explica, sobretudo em seus livros e entrevistas mais recentes, a maneira como elabora, por meio de uma escrita anti-hierárquica, um trabalho de perturbação da “máquina explicativa” que sustenta hierarquias entre espacialidades, temporalidades, corporeidades e capacidades. Sua escrita não o define como filósofo que explica e comenta acontecimentos, mas como montador de cenas que assume o risco de produzir topografias igualitárias nas quais sua palavra desliza entre as palavras de vários sujeitos, de vários textos e de várias experiências.
Tornam-se evidentes duas mises en scène intimamente conectadas em seu método: aquela da partilha do sensível consensual e outra que nos torna sensíveis aos regimes policiais de aparição e de ausência de suplemento. Esta, montada por sujeitos e/ou coletivos que antes não eram vistos ou escutados, promove pausas, suspenções e interrupções nas temporalidades dominantes, possibilitando outro tipo de economia afetiva e política da existência. Essas duas cenas, colocadas uma ao lado da outra, tornam presentes outros modos de tensionamento e coexistências contrárias às formas de exclusão, de despolitização e de redução da heterogeneidade de corpos, espaços, vulnerabilidades e capacidades.
Rancière altera a topographie des expériences tornando evidentes os intervalos, perturbando hierarquias através de sua escritura. Ele acentua o “entre”, o limiar que aproxima e distancia polícia e política, criando um estilo de reflexão que não nos apresenta um corpo bem articulado de elementos no qual cada um estaria inserido em seu devido lugar, de acordo com uma ordem inquestionável. Ao contrário, sua escrita nos apresenta cenas variadas, compostas por diferentes registros, demandas, vozes, imagens, corpos, arquiteturas, temporalidades que coexistem sem suturas ou um metaordenamento. Não existe um fio que conecta as cenas, mas sim uma sucessão de cenas em que uma ajuda a perceber a outra, uma age sobre a outra em reciprocidade conflitiva. Assim, Rancière aposta em uma escritura liminar e não explicativa, que aproxima as diferenças sem suturá-las, abrindo espaços outros (por vezes mesmo heterotópicos) e tempos outros, outras sensibilidades e agenciamentos.
O que ele afirma almejar é posicionar-se na borda da cena: não tanto para representar os oprimidos e suas vulnerabilidades, mas para mostrar como eles redispõem seus corpos e suas formas de vida, de modo a alterar um campo de experiência mediante transgressões, resistências, irrupções e levantes. Ele evidencia que esse processo emancipatório não é pontual ou efêmero, mas um trabalho ininterrupto de subjetivação que envolve movimentos de desidentificação no qual sujeitos políticos se constituem a partir de intervalos abertos entre identidades impostas e identificações que alteram a posição de seus corpos e de suas existências, fabulando um mundo comum articulado pela coexistência e pela pluralidade.
Através desse mundo comum, que contradiz a lógica do tempo dominante e instaura outro senso partilhado de coexistência e igualdade, aparecer não equivale a ser visível, mas é o processo que se inicia no “momento qualquer” em que o “qualquer um” expõe as disparidades, assimetrias e litígios entre diferentes ordens do sensível, bricolando intervalos que permitem uma “relação modificável entre as partes, assim como a própria modificação do terreno sobre o qual o jogo se estabelece” (Rancière, 2004, p. 64). Assim, nem os sujeitos políticos nem a cena na qual aparecem são vistos como já dados, mas ganham corpo com a explicitação das fronteiras, das bordas e contingências que definem quem faz parte de um comum e quem dele está alijado.
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Este trabalho contou com o apoio do CNPq e da FAPEMIG.
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Segundo Rancière (2004), o dano não é uma injúria pontual causada a um indivíduo ou grupo, deixando- os a espera de uma compensação. Ele pertence à estrutura original de toda política e se expressa como o modo de subjetivação no qual a verificação da igualdade associa a política a uma tensão polêmica entre a manifestação de sujeitos políticos contra a ordem policial.
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“Está claro que, em meu ponto de vista, um dano é político quando ele desempenha a base da ação política, que é a mera contingência da igualdade, não sendo o caso de movimentos ditos populares, mas que se baseiam na pureza do sangue, no poder da religião ou em especificidades identitárias” (Rancière, 2011, p. 4). A “contingência” da política significa, assim, que sua existência dispensa todas as formas de necessidade e legitimação com base em uma predisposição para o exercício do poder e uma distribuição preliminar de posições baseadas em tal predisposição. Da mesma forma, significa que não há necessidade de existir algo como uma ordem política prévia. A contingência política marca a indiferença em relação a um conjunto de determinações que expressam uma distribuição hierárquica de posições. Ela se associa também à arbitrariedade do relacionamento que articula juntos nomes e corpos, o excesso de nomes que os torna disponíveis para aqueles que estão destinados a dar nomes e a falar sobre o comum.
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3
Esse excesso de palavras, ao qual chamo de literaridade, interrompe a relação entre uma ordem do discurso e sua função social. Ou seja, a literalidade refere-se, ao mesmo tempo, a um excesso de palavras disponíveis em relação à coisa nomeada; ao excesso relacionado aos requerimentos para a produção da vida; e, finalmente, ao excesso de palavras diante dos modos de comunicação que funcionam para legitimar a própria ordem considerada adequada (Rancière, 2000, p. 115).
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4
O próprio gesto filosófico de seu método de trabalho é muitas vezes definido por Rancière em termos espaciais: “tento redesenhar o mapa do pensável a fim de retirar as impossibilidades e as proibições que se abrigam frequentemente no coração dos pensamentos que almejam ser subversivos” (2009b, p. 604).
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5
Rancière afirma que existem “duas formas de disputa sobre a partilha do sensível” (2010, p. 37), “duas formas de contar as partes de uma comunidade” (2010, p. 36): “a primeira conta apenas partes reais – grupos existentes definidos por diferenças de nascimento e por funções, espaços e interesses diferentes que fazem o corpo social excluir qualquer suplemento. A segunda conta uma parte dos que não têm parte. Chamo a primeira de polícia e a segunda de política” (Rancière, 2010, p. 36). A diferenciação entre duas formas de partilha do sensível é feita por Rancière de maneira a tornar mais evidente o modo como a polícia e a política recortam diferentemente o tempo, o espaço, o visível e o invisível, criando enquadramentos consensuais ou dissensuais para orientar nossa experiência no mundo. Assim, “na partilha política do perceptível” (2011, p. 8), a política acontece no espaço da polícia, fraturando-o por dentro, criando dobras, excessos, reconfigurando e reencenando questões e problemas sociais. “Tentei opor política e polis como duas partilhas do sensível, uma partilha do sensível onde não há conta extra, onde há apenas os grupos, identidades, lugares, funções etc., e onde o que deve ser visto está supostamente visível. Coloco a política como essa partilha do perceptível, onde há esse debate sobre o que é dado, o que é visível, o que é perceptível, audível, etc. – essa maneira de colocar dois mundos em um só mundo” (2003, p. 6, grifos meus).
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6
Esse é um conceito que Walter Benjamin (1987) utiliza para nomear um espaço político, de resistência e invenção, de transformação. O espaço de jogo (Spielraum) é um espaço de vida, lugar de resistência política inventiva: é também um espaço vazio, uma abertura na rotina das ocupações cotidianas que traz movimento, o intervalo que sacode a vida, porque jogar é experimentar, transformar. A noção de Spielraum remete em Benjamin ao relaxamento, ao intervalo, à flexibilidade, à criação de táticas que agem sobre as estratégias de controle: “um espaço para jogar, experimentar, transformar. Uma estética da experimentação, portanto, em vez de uma lógica do espetáculo” (Gagnebin, 2020, p. 71).
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Na entrevista que Foucault concedeu à Revista Ornicar, em 1977, ele esclarece alguns pontos sobre o conceito de dispositivo, deixando mais claro que o dispositivo tem uma função estratégica para o enfrentamento de uma urgência. Os elementos do dispositivo seriam um conjunto heterogêneo de proposições (discursos, instituições, leis, decisões, enunciados etc.), incluindo tanto o que é dito quanto o que é não dito. A maneira como ele opera irá depender de como serão feitas as articulações entre esses elementos. “O dispositivo é, propriamente, o sistema de relações que se pode estabelecer entre esses elementos” (Foucault, [1977] 1994, p. 299).
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8
O “tempo suspenso do devaneio” (le temps suspendu de la rêverie) (Rancière, 2017, p. 33) é caracterizado por Rancière quando comenta acerca da maneira como os personagens de narrativas ficcionais são transportados para um limiar, uma borda, mantendo-os “na beira do oceano onde todo sentido se abisma no movimento imóvel e sempre recomeçado das ondas” (2017, p. 35). A felicidade do devaneio, segundo Rancière, “é uma nova forma de saber, um saber que não aponta nenhuma causa e não promete nenhum efeito” (2017, p. 35). A rêverie interrompe a peripécia que faz os personagens passarem de uma ação à outra e os lança ao limiar de uma temporalidade suspensa; ela permite uma abertura ao “momento qualquer”, “que não se estende ou se encaminha para nenhum fim, mas se dilata ao infinito, incluindo virtualmente todo tempo e espaço outro” (2017, p. 131). Assim, a rêverie é uma forma de caracterizar as temporalidades da cena como diferentes daquelas que habitualmente organizam narrativas explicativas, causais e estabilizadoras de hierarquias. Segundo Ross (2019, p.89), Rancière caracteriza o devaneio como um tipo de experiência, que não se relaciona com a ausência de ação, mas evidencia uma agência com capaz de ser compartilhada. O devaneio não implica um desengajamento, mas o exercício da vontade individual que, em meio às forças sociais e institucionais, encontra um caminho para expressar um desejo e para comunicar a experiência do sonhador. A existência do devaneio é comunicada pelos trabalhadores na descrição do prazer desse estado nos arquivos e na literatura.
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“O que sempre me fascinou nos filmes de Pedro Costa é a maneira através da qual ele segue os percursos dos migrantes e cria outro tipo de ficção na qual corpos reais tentam dizer a verdade acerca do que vivem e não mais se reduzem à expressão da pobreza, de seus infortúnios e sentimentos. A maneira como ele elabora os filmes faz eco com os temas que elaborei no ‘método da igualdade’ e na ‘viagem ao país do povo’. Há um tipo de ‘visita ao povo’, na qual a viagem de Pedro Costa não tem fim, no sentido de que ele sempre reinventa a modalidade desse encontro com as pessoas, com suas palavras e conversações” (Rancière, 2022, p. 202).
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10
No artigo “Ten thesis on politics” (2003), Rancière afirma, na tese de n. 7 (p. 36), que “a política se opõe especificamente à polícia. A polícia é uma partilha do sensível cujo princípio é a ausência do vazio e do suplemento”.
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É possível dizer que a escrita de Rancière (2016, 2019c) questiona uma ordem consensual que condiciona o modo de olhar para acontecimentos e pessoas, propondo outra organização do sensível e outra maneira de pensar as experiências que se distancia das hierarquias. O deslocamento feito por Rancière em sua escrita é horizontal, pois ele articula sua palavra a outras palavras distanciando-se da lógica vertical e explicativa, que privilegia o discurso legitimado sobre aquele visto como minoritário.
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12
“Uma imagem é sempre um intervalo e uma expansão, é sempre uma operação que põe em relação o visível com todas as significações possíveis que lhe podem ser atribuídas. [...] A imagem escapa à especificidade visual para induzir um regime de metamorfose que é um meio de desestabilização das formas fixas” (Rancière, 2009b, p. 234).
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13
É importante mencionar aqui que Rancière faz uma distinção entre o “momento qualquer” e o “desmedido momento”. Além de essas noções intitularem capítulos separados do livro Les bords de la fiction, elas parecem se relacionar a duas ações distintas que permitem a ruptura entre “o que existe” (o que é dado a ver através de um regime policial) e “o que acontece” (o que pode ser reconfigurado pelos sujeitos em suas agências e aparições políticas) (2017, p. 175). Assim, o momento qualquer parece caracterizar a interrupção do modo dominante que orienta o processo de produção de sentido, abrindo espaço para o surgimento de um sentido comum que conecta sujeitos, elementos e enunciados sem subordiná-los ou destruí-los. O momento qualquer abre a borda, o limiar de passagem entre o tudo e o nada, a ausência de vazios e o excesso, o consenso e o dissenso. Por sua vez, o desmedido momento é o vetor de produção da fabulação que conduz essa passagem. Ele é um gesto, um acontecimento que “se expande sem fim no interstício do momento qualquer” (Rancière, 2017, p. 185). O desmedido momento torna possível a fabulação como a capacidade de ultrapassar a borda para entrar nos espaços onde todo um sentido de real se perde junto com as identidades impostas e suas pretensas ausências de devir.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Maio 2023 -
Data do Fascículo
Abr 2023
Histórico
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Recebido
20 Jul 2021 -
Aceito
05 Out 2022