Open-access DESACORDO GENUÍNO NO CONCEITO DE JUSTIÇA: UM DEBATE ENTRE KELSEN E DWORKIN

GENUINE DISAGREEMENT IN THE CONCEPT OF JUSTICE: A DEBATE BETWEEN KELSEN AND DWORKIN

RESUMO

O objetivo geral deste artigo é fazer ver que as bases de pensamento filosófico e político do positivismo e do pós-positivismo, embora distintas, possuem semelhanças significativas. Identificaremos tais semelhanças a partir da revisão bibliográfica de duas obras importantes para este debate: Reine Rechtslehre, de Hans Kelsen, e Justice for Hedgehogs, de Ronald Dworkin. A partir da clarificação das semelhanças teóricas, nosso objetivo específico se subdividirá em estabelecer quais são os acordos e desacordos genuínos dessas duas correntes de pensamento em relação ao conceito de justiça que, por via de consequência, nos permitem afirmar como verdadeira a hipótese de que juízos valorativos são sempre morais, e há um valor objetivo moral que os determina, condiciona e justifica. Disso resultará a noção de que a divergência entre o positivismo kelseniano e o pós-positivismo dworkiniano se assenta na metafísica e é, de fato, um desacordo genuíno.

Palavras-chave: Kelsen; Dworkin; Justiça; Desacordo genuíno; Positivismo lógico

ABSTRACT

This paper aims to show that positivism and post-positivism’s philosophical and political bases, although distinct, have significant similarities. We’ll identify such similarities from the bibliographic review of two important works for this debate: “Pure Theory of Law” by Hans Kelsen and “Justice for Hedgehogs” by Ronald Dworkin. From the clarification of theoretical similarities of these two pieces our specific objective will be subdivided into establish the genuine agreements and disagreements of these two currents of thought in relation to the concept of justice. That allows to affirm as true the hypothesis that judgmental values are always moral, and that there is an objective moral value that determines, conditions, and justifies them. This will result in the notion that the divergence between Kelsenian positivism and Dworkinian post-positivism is based on metaphysics and is, in fact, a genuine disagreement.

Keywords: Kelsen; Dworkin; Justice; Genuine disagreement; Logical positivism

1. Introdução

Em Justice for Hedgehogs, Ronald Dworkin pretende fazer um acerto de contas com os seus críticos, adotando como ponto de partida a distinção realizada por Isaiah Berlin em relação às duas correntes de pensamento humano existentes (filosófico, artístico, jurídico etc.), classificando os positivistas como ‘raposas’ (ramo onde estaria inserido também Aristóteles) e os pós-positivistas como ‘ouriços’ (ramo onde estaria inserido Platão). Em segundo plano, Dworkin partirá da releitura de vários conceitos estabelecidos por notorias vulpes, tais como David Hume, Emmanuel Kant e o próprio Aristóteles, a fim de defender sua teoria sobre a unidade do valor e objetividade da moral a partir de uma base de pensamento que ele reputa ser típico das raposas.

O presente artigo tem por objetivo geral, desse modo, fazer ver que as bases de pensamento filosófico e político que determinaram o modelo jurídico contemporâneo, muito embora distintas, possuem semelhanças importantes que as aproximam em entendimento uníssono.

A partir do estabelecimento das distinções irreconciliáveis, que chamaremos de diferença, nosso objetivo específico se voltará a analisar o tipo de desacordo existente de fato entre Hans Kelsen e Ronald Dworkin, respectivamente em Reine Rechtslehre e Justice for Hedgehogs.

Nesse aspecto, nosso objetivo específico se subdividirá em estabelecer (1) quais são os desacordos genuínos dessas duas correntes de pensamento – positivistas e pós-positivistas – e, por consectário lógico oposto, (2) quais são os nossos acordos sobre a teoria jurídica que nos permitem afirmar como verdadeira a hipótese de que juízos valorativos são sempre morais, e há um valor objetivo moral que os determina, condiciona e justifica.

Disso resultará a noção de que a divergência entre o positivismo kelseniano e o pós-positivismo dworkiniano se assenta na metafísica e é, de fato, um desacordo genuíno.

2. Sprache: linguagem e língua utilizada por Dworkin

Grande parte do trabalho empreendido por Dworkin em Justice for Hedgehogs explora os pontos de semelhança que existem entre os mais diversos conceitos utilizados pelo Direito (remetendo-nos à Filosofia moral), a fim de pontuar que a mínima existência de desacordos genuínos entre tais conceitos não é suficiente para afastar a incidência da tese da unidade do valor moral objetivo.

Inspirado na ideia de ‘caixa de ferramentas’e nos conceitos de ‘semelhança de família’ e de ‘jogos de linguagem’, desenhados por Ludwig Wittgenstein (1999, §66, §67 e §69), Dworkin estabelecerá o conjunto principiológico que é comum às mais diversas teorias sobre a justiça e o Direito e, a fim de integrar conceitualmente sua teoria, de modo a reforçá-la de maneira articulada, Dworkin (2011, pp. 74, 140-141 e 179) sugerindo, inclusive, uma leitura própria da Lei de Hume.

Esse fato nos remete à doutrina dos universais de Aristóteles (2012, pp. 181-182), que apresenta na linguagem humana dois tipos importantes de designações: os nomes próprios e os adjetivos. É designado por um nome próprio aquilo que possui caráter substancial, ao passo que aquilo que atribui significado para um adjetivo possuirá caráter universal. A substância é o ‘esse algo’, o ‘isso’, e o universal será a classificação do ‘isso’ como ‘de tal qualidade’1.

Outro componente importante da descrição da doutrina universal aristotélica (2012, p. 187, e 2016, pp. 92-93) é a noção de essência2 que, segundo Bertrand Russell (2015, pp. 212-213), paradoxalmente, se reflete em uma noção semiplatônica de espírito (alma) e que consiste no todo das propriedades as quais tornam o ‘é, que possui características para além do individual, já que classificam do ponto de vista coletivo espécies distintas de ‘é’.

O princípio Hume se manifesta a partir do aforismo descritivo “não é possível extrair um dever ser de um é” e se relaciona – ainda que lateralmente com as metafísicas platônica e aristotélica, na medida em que lida com a noção da dicotomia mundo do ser e mundo do dever ser, e as bases empírico-analíticas que permitiram a utilização da experiência como razão de justificação para o estabelecimento do dever ser, respectivamente (Hume, 2004, pp. 53-56). Essa regra geral do positivismo é incorporada pelo positivismo jurídico, resultando naquilo que mais tarde seria descrito pelos pós-positivistas como sendo a falácia jusnaturalista3 e na separação do Direito da Moral (Putnam, 2008, pp. 28-29).4

Do modo como concebido por Dworkin, contudo, o princípio Hume estabelece que nossas impressões e ideias fazem parte de um todo articulado pelo pensamento humano e esse todo independe do tipo de percepção, já que conserva sua vivacidade descritiva a partir do acesso às nossas memórias e imaginação. Esses dois campos do pensamento, por sua vez, se encontram interligados indissociavelmente por uma rede de crenças que sustenta e ao mesmo tempo basila nossos juízos valorativos sobre as coisas (em sentido amplo, como queriam os escolásticos). Concebido desse modo, todo o pensamento humano é embalado por juízos morais e não há como escapar disso, pois a nossa forma de pensar somente faz sentido se assim for. A distinção entre Direito e Moral, vista desse modo, cai por terra, tal como a dicotomia fato-valor, que Dworkin concebe como uma espécie de ceticismo do erro.

O erro desse tipo de ceticismo seria não apenas o seu fundamento imediato, ilustrado pela negação de uma objetividade de juízos morais (que é em si mesma um juízo moral e, portanto, possui caráter positivo), mas também o fato de que não seria possível a admissão de um juízo moral neutro, já que este teria caráter fundamentalmente negativo. Para ilustrar essa questão, Dworkin (2011, pp. 106-107 e 455) cita o dilema do posicionamento da pessoa ‘D’ em relação à legalidade e a possibilidade ou não do aborto,5 e flexiona a linguagem de maneira a estabelecer que a incerteza pode ser um elemento do posicionamento, mas a indeterminação não, sob pena de perder-se em si mesma, no exercício de justificação de uma tomada de decisão.

Desse modo, Dworkin desconstrói o conteúdo essencial daquilo que ele denomina como teoria do erro moral e expõe o problema do relativismo moral sustentado por um equívoco da metaética em relação à leitura proposta para Hume (epistemologia geral). A partir disso, ele conclui que a metaética sustentada pelo erro culmina na negação da própria ética enquanto teoria moral, a partir de um juízo pretensamente neutro que não representa um juízo moral do objeto, mas sobre o objeto. Por essa razão, ele propõe o abandono do ceticismo externo do erro, ilustrado na dicotomia do fato-valor (Dworkin, 2011, pp. 42-73 e 74-93). A despeito de Dworkin resgatar alguns elementos ligados à nossa emoção – e como isso é ou não articulado com o nosso juízo –, não há espaço na justificativa da tomada de decisão para motivos psicologistas.

Valendo-se da teoria holística da interpretação para demonstrar sua hipótese, Dworkin compreende que, em maior ou menor grau, a atividade de interpretação recorrerá sempre a um conjunto subjetivo de valores e pressupostos da condição de verdade dos enunciados existentes em um raciocínio (Dworkin, 2011, pp. 140-175 e 176-210). Ele não chega a dizer, todavia, que esse conjunto subjetivo de valores e pressupostos é caracterizado por algum grau de arbitrariedade, além de eventualmente contar com condicionantes.6; nesse ponto, a questão passa a ser: em que medida estaríamos dispostos a acolher a intromissão de elementos tipicamente psicológicos na determinação do significado das coisas (ainda que chamemos isso de ‘subjetividade do sujeito’)?

Como nossa exposição depende do que é definido por Dworkin como prolegômeno de sua teoria, assumiremos como verdade que para o entendimento humano basta que estejamos falando uma mesma linguagem. Isso não quer dizer, contudo, que não tenhamos desafios no curso de nossa atividade interpretiva.7 Ao apresentar a problemática da interpretação dos conceitos (ou do ‘dado’), utiliza como exemplo a questão da plasticidade e apresenta o conceito de ‘livro’ para ilustrar que o significado que atribuímos para determinada ‘coisa’ é o uso que fazemos dela. Essa questão nos leva a pensar de que maneira Dworkin (2011, pp. 176-178 e 185-190) considera que dados a priori serão levados em consideração pelo mundo jurídico quando da elaboração dos seus próprios conceitos, já que em termos de estruturação do raciocínio lógico partimos de premissas básicas pré-estabelecidas de modo, não raras vezes, arbitrário.

A teoria geral da interpretação, cujo objetivo é assegurar a validade de determinado conceito jurídico a partir do valor que lhe é atribuído pelo coletivo de conceitos que sustentam o sistema democrático integral e participativo, se sujeita às convenções que estão preestabelecidas por esse mesmo sistema, daí por que objetivo. Dworkin busca demonstrar que o sistema conceitual jurídico proposto parte de premissas as quais se baseiam em convenções que estão preestabelecidas pelo convívio social e, embora admitamos que o contrário possa acontecer (em ideal), esse exercício acontece diante de uma realidade já posta.

Devemos refletir, então, se defender uma ‘teoria geral’baseada na atribuição de valor, a partir de uma reestruturação de nossas próprias convenções, é ou não suficiente para quebrar essa realidade, pois em última medida a atribuição de um valor moral será predeterminada por dados arbitrários. A verdade obtida pela valoração, portanto, guardará em si mesma a arbitrariedade dos conceitos preestabelecidos e integrados de maneira interpretiva, pois tais conceitos não estão dados fisicamente na natureza, fazem parte da construção humana e guardam em si mesmos um background que não está necessariamente posto pela tradição positiva.

3. Sobre nosso acordo

O positivismo jurídico e o pós-positivismo cuidam, respectivamente, de analisar os mais diversos problemas advindos do mundo jurídico, sejam eles teóricos e afetos a uma dogmatização normativa – como queria Kelsen –, sejam eles teóricos e práticos, ou ainda, contingentes à prática da moral política representada pelo Direito, como demonstra Dworkin.

Nesses dois modos de concepção do sistema jurídico, há uma aparente convergência relativa aos seus respectivos objetivos teóricos, já que caminham para um local de ‘segurança’, que se reflete na tentativa de objetivação do próprio sistema (por meio da interpretação vinculada da norma) e da valoração (por meio da interpretação moral objetiva). Sendo assim, o ponto a ser explorado neste tópico diz respeito à investigação de como podem (ou se podem) esses dois modelos serem tidos como inconciliáveis, distintos e representativos de um desacordo genuíno por parte de seus idealizadores, aqui representados por Kelsen e Dworkin.

De pronto, faz-se necessário o resgate da noção de norma – no sentido kelseniano – que é expressa por um dever ser constituído por um dado imediato e imperativo da consciência humana e, em razão disso, não analisável e de impossível problematização (Kelsen, 1960, pp. 56-57). A norma jurídica, por seu turno, será o sentido objetivo atribuído a um ato de vontade. Essa atribuição de sentido e significação, Kelsen (1960, pp. 47-50 e 57-58) dirá que é realizada subjetivamente, a despeito de ser limitada de maneira objetiva.

Para ilustrar, ele cita o exemplo da interpretação que fazemos do ato de um aperto de mão: se, de longe, observamos dois homens apertando suas mãos e interpretamos esse ato do ponto de vista físico, analisamos diferentes corpos musculares e tecidos se movendo em uma mesma direção convergente para um ponto específico de toque entre eles. Contudo, se interpretamos esse ato do ponto de vista interno, atribuindo um sentido moral, ele pode ser visto como uma simples saudação, assim como um sinal de desrespeito e grosseria, se imaginarmos, p. ex., que um dos homens que estamos observando é mulçumano e o outro não.8

Com esse exemplo, Kelsen (1960, p. 50) dirá que o sentido objetivo de um ato de vontade dependerá sempre da existência de uma outra norma que sirva como padrão de interpretação para o sujeito, e assim também sucederá com a interpretação da norma que funcionará como um esquema sistêmico de interpretação jurídica. Esse esquema, contudo, será objetivamente condicionado por uma série de atos de validação que inflexionam todo o sistema de legalidade normativa, criado a partir de um procedimento de feitura e aprovação em coparticipação democrática previamente estabelecida, de modo a respeitar, reforçar e, ao mesmo tempo, refletir o sentido atribuído a uma norma hipotética fundamental (Kelsen, 1960, pp. 359-360).9

Para demonstrar o seu ponto de reflexão, Kelsen dirá que a norma juridical apesar de ser subjetivamente interpretada – constitui-se em um enunciado do mundo exterior, por meio dos fatos sociais que são observáveis e que determinam o nosso modelo de interpretação enquanto dado secundário10; ou seja, pelo modo como raciocinamos a fim de extrair o conteúdo de um enunciado normativo, podemos dizer que esse mesmo conteúdo pode ser objetivado. Desse modo, a norma jurídica se subordinaria ao sistema de validação normativa pré-estabelecido que, por sua vez, é constituído, a partir da ideia da norma hipotética fundamental.

Parece existir em Kelsen, assim, uma certa adesão à ideia de que é possível pensar – ou imaginar – determinado enunciado em bases estritamente utópicas. Quanto a isto, vale ressaltar que estamos falando de uma utopia que se pretende realizável.11

Esse é o ponto de maior crítica da teoria kelseniana e que segundo alguns – especialmente a partir do materialismo realista – consiste em seu calcanhar de Achilles. Não concordamos com essa crítica.12 Sem dúvida, a ideia da norma jurídica hipotética fundamental é um dos componentes mais sofisticados da Teoria Pura do Direito, mas isso não quer dizer que Kelsen pretendera excluir completamente do mundo jurídico questões ligadas à subjetividade humana, como muitas vezes lhe atribuem seus críticos. Kelsen não nega a participação desse componente na formulação científica humana (nem mesmo nas ciências – naturais, ele dirá); a questão, para ele, é tão somente estabelecer que esse componente subjetivo não pode ser determinante para o estudo da ciência jurídica (que deve ter em si mesma o seu objeto). Ou seja, o que Kelsen quer combater é o uso de matérias subjacentes ao Direito como base de estudo objetivo da ciência jurídica.13

Parece equivocado compreender a pureza kelseniana apenas como uma utopia que pretende isolar a ciência jurídica das demais ciências sociais e humanas, sem, contudo, levar em consideração que o próprio Kelsen admite que há um grau de subjetividade no nosso modo de significar objetivamente o nosso mundo exterior, onde o Direito se localiza fisicamente. Podemos dizer, desse modo, que ele parece admitir que existe algo de natural em nosso processo de ordenação, sistematização e organização social, que é intrínseco ao nosso modo de vida. Esse natural, em termos lógico-jurídicos, somente pode estar justificado a partir de um regresso às nossas experiências anteriores que conferem validação ao significado que atribuímos aos nossos atos (jurídicos).14 O ponto não é a existência ou não disso, mas sim o seu uso e o limite aceitável em termos científicos e racionais para feitura da ciência jurídica.

É curioso que René Descartes (2016, p. 14) tenha passado por situação semelhante. Em suas Meditações Metafísicas, afirma que o fato de ter em si uma ideia que ele considera perfeita não torna essa ideia perfeita, tampouco a existência (ou materialização) dessa ideia no mundo exterior tem-se por real. Isso quer dizer que algumas ideias – a despeito de guardarem dentro de si quaisquer elementos atinentes à realidade onde se encontram inseridas, seja no âmbito social, como é o caso do Direito, seja no âmbito da comprovação de uma hipótese científica no campo das ciências naturais – do ponto de vista da Filosofia, não deve contas à realidade, e pode muito bem existir apenas como ideal, quando muito, de utopia realizável. É nesse lugar se encontra inserida a norma jurídica hipotética fundamental de Kelsen (1960, p. 431 e pp. 451-454), enquanto conteúdo objetivo de um ato de pensamento.

Isto posto, devemos compreender como isso poderia representar um acordo entre a linguagem kelseniana e dworkiniana. Para Dworkin, o sistema jurídico pode e deve ser categorizado, em razão de uma exigência lógica relacionada à aplicação das normas jurídicas. Ele acredita que os enunciados normativos possuem um caráter de generalidade e são subdivididos entre regras e princípios, que se articulam no sistema de uma maneira integrada e que se reforçam mutuamente.

A sua principal crítica ao positivismo – especialmente o de Herbert Hart (2009, pp. 239-240) – diz respeito ao fato de que a doutrina se baseia na existência de enunciados normativos prescritivos e na pressuposição de um enunciado normativo fundamental, e isso em um choque de realidade não seria satisfatório para elucidar de que maneira um juiz deverá decidir quando os enunciados prescritivos (regras) não dispuserem de uma resposta para o caso concreto.

Para responder esse problema, Dworkin afirma que o juiz deverá recorrer à substância da norma, ou seja, àquilo que a fundamenta como princípio, o valor moral que se quer proteger em última análise. Esse juízo, contudo, não pode ser feito de modo apartado ou purista em relação à própria moral do conjunto normativo como um todo, mas deve atender de modo interpretivo aos valores envolvidos no caso concreto, e que são prescritos pelos princípios gerais do Direito. Essa substância do valor moral envolvido, para ele, terá caráter objetivo.

Na lógica dworkiniana, princípios e regras não possuem a mesma natureza, também por isso não possuem o mesmo peso. Princípios estariam acima das regras, que possuem caráter de enunciados prescritivos, e são aplicáveis a casos concretos; na ausência de uma regra aplicável ao caso, o juízo a ser desenvolvido na tomada de decisão deverá apelar para os princípios que dizem respeito ao fato jurídico em análise. Quando isso ocorrer, estaremos diante de um caso difícil e a decisão tomada para esse tipo de caso deverá considerar de maneira pormenorizada todas as variantes existentes na composição do raciocínio jurídico empreendido; e mesmo que um princípio se sobreponha a outro, isso não quer dizer que em outro caso similar este mesmo princípio deverá se sobrepor aos demais de maneira automatizada. A tomada de decisão deverá ser sempre all things considered caso a caso.15

O positivismo jurídico, conforme proposto por Hans Kelsen, nasce como uma tentativa de contenção dos poderes estatais em seu exercício político, realizado por meio da interpretação do Direito, a partir de uma jurisprudência exercida naquele tempo – segundo ele próprio – apartada da prudência, valendo-se de toda sorte de justificativas externas ao Direito, em prol de um suposto atendimento aos anseios da sociedade.16 O pós-positivismo dworkiniano se apresenta também, em boa medida, como um contraponto teórico ao escrutínio judicial (Dworkin, 2011, pp. 431-435).

Ambos, autores e suas respectivas teorias, em última análise, estavam preocupados com a limitação objetiva e objetivamente sistematizada que poderíamos estabelecer na comunidade jurídica e que pudesse nos encaminhar para uma realidade jurídica mais comprometida com a realização dos valores metajurídicos da nossa sociedade.

Sendo assim, se partimos do pressuposto de que nossas ideias, ainda que estejam inseridas em um contexto especial de pensamento, fazem parte de um determinado arcabouço utópico que se pretende ver realizado, e se acreditamos que enunciados normativos de caráter geral prescrevem condutas e ao mesmo tempo determinam nosso comportamento interpretivo, recorrendo holisticamente a enunciados normativos mais abstratos e mais especiais (Dworkin, 2011, pp. 140-175 e 176-210) – porque ligados à defesa dos valores sociais fundamentais – então estamos a falar de uma mesma coisa.

Recorrer aos princípios basilares de uma sociedade é recorrer às normas fundamentais que são irradiadas pela norma hipotética fundamental kelseniana e podemos estressar as duas doutrinas em seus limites de argumentação e, ao fim, o que restará é o apelo ao sistema normativo-moral invisível aos olhos, porém bastante conhecido pela moral objetiva.

Se isso for verdade, então estamos diante de um acordo entre nossos interlocutores (Kelsen e Dworkin). O ponto de distinção entre eles, fundamentalmente, é de que maneira essa base moral objetiva se sustentará no plano do invisível e até que ponto ela poderá ser determinante para o nosso modo de interpretação. Daí porque nosso desacordo genuíno está, em verdade, no campo da metafísica.

4. Sobre nosso desacordo

A teoria pura do Direito parte da ideia kantiana de sistema lógico-transcendental, descrito anteriormente no tópico 3, quando falamos sobre o modo de interpretação da norma hipotético-fundamental. Ao contrário de

Dworkin, Kelsen (1960, pp. 359-360)não admite a ideia de que a pressuposição lógica-transcendental normativa guarde em si mesma qualquer traço de arbitrariedade: a Constituição se opera como o vetor e ao mesmo tempo limite de interpretação subjetiva do ato jurídico posto no mundo físico, atribuindo-lhe seu sentido objetivo.

Contudo, Kelsen (1960, pp. 597-602) reputa ser impossível que uma norma inferior (irradiada a partir da norma superior) seja tão bem descrita gramaticalmente ao ponto de encerrar em seus próprios termos todas as hipóteses de interpretação possíveis. As normas possuiriam uma certa margem de enquadramento que será preenchida pelo juízo interpretativo na tomada de decisão.17 Kelsen (1960, p. 599) esclarece que essa indeterminação na descrição do ato jurídico pode ser intencional, não intencional ou simplesmente relativa ao próprio modo como descrevemos o ato normativo.

A conformação desse enquadramento, para Kelsen (1960, p. 600), pode ser feita de muitas maneiras distintas. Daí porque ele afirma que o ato jurídico que efetiva ou executa a norma pode ser conformado de maneira a corresponder a uma ou outra significação verbal; e se compreendemos por interpretação a fixação por via cognoscível do sentido do objeto de nossa interpretação, o resultado desse exercício será a moldura do entorno dessa interpretação e, por via de consequência, o conhecimento das várias possibilidades que existem dentro dessa moldura. Ou seja, haverá não só uma resposta correta, mas várias respostas possíveis em significado jurídico.

Kelsen (1960, pp. 602-603), então, apresenta um argumento interessante ao rejeitar a tese da única resposta correta (à qual Dworkin subscreve). Para ele, os teóricos do Direito que advogam nesse sentido se esquecem de que o processo decisório não é apenas um ato intelectual de clarificação e correspondência, mas também um ato de vontade do Estado.

Saber qual é a resposta correta a ser aplicada em um caso concreto não é, assim, um problema da teoria do Direito, porque a dimensão da decisão que se comporta como um ato de vontade não está abarcada exclusivamente pelo Direito positivo, já que a livre apreciação recorre às outras normas que estão para além dele: normas da moral, normas de justiça, juízos de valores sociais (tradicionalmente são descritos como ‘interesse do Estado’ ou ‘bem comum’ e.g.). Ou seja, para Kelsen (1960, pp. 604-605), reconhecer a justeza de uma decisão a partir de sua caracterização como única resposta correta é um problema de política do Direito e está em equivalência no Direito positivo como seu problema fundamental: a justeza das leis a partir de uma irradiação constitucional.

Para fazer valer uma interpretação objetivamente delimitada em relação à parcela de discricionariedade que um juízo de ato de vontade contém, seria necessário que o Direito positivo delegasse seu caráter autoritativo às normas metajurídicas já citadas. A consequência disso é que tais normas metajurídicas se tornariam Direito positivo (Kelsen, 1960, p. 605) e esvaziariam a questão primordial relativa à interpretação normativa que é realizada no âmbito da decisão: a autenticidade. É do fato de a norma proferida a partir de uma decisão ser autêntica, que podemos dizer que uma decisão cria o Direito, não só pela norma individualmente situada por uma sentença ordinária, mas, principalmente, por uma norma advinda da jurisprudência dos tribunais (Kelsen, 1960, p. 607).

É nesse aspecto que é necessário distinguir os dois tipos de interpretação que Kelsen (1960, pp. 607-609) propõe em sua teoria. Tudo o que foi dito até aqui se refere à interpretação do Direito. Contudo, há um outro modelo de interpretação, que é o da interpretação da ciência jurídica, a qual, aliás, é o campo onde o Direito positivo estará situado em sua criação teórica. No âmbito da ciência jurídica – do fazer, desfazer, modificar –, poderíamos admitir em tese que normas metajurídicas, dentre elas, a moral, p. ex., fossem remodeladas em seu conteúdo interpretativo, de modo a modificar a teoria sobre determinado ato de Direito positivo. Ao fazer isso, todavia, essa norma metajurídica adquire o status de Direito positivo e passa a integrar o sistema positivo na dimensão da interpretação do Direito.

A existência, influência e determinação do sistema jurídico positivo a partir da articulação de normas metajurídicas é, assim, um pressuposto desse sistema. O ponto de tensão, para Kelsen, na dicotomia Direito-Moral, que deve determinar a sua ‘cisão’, é o fato de que a moral está acima da linguagem ordinária do Direito. É a linguagem que o determina, não tem como fazer parte dele de maneira incidental porque é geradora e ao mesmo tempo transformadora da linguagem jurídica ordinária. Esse fenômeno, contudo, é cultural, regionalizado e não pode atender aos anseios do universalismo porque se apresenta de maneira distinta em cada tipo de sociedade e delimita conceitos lógico-jurídicos – localizados acima dos conceitos jurídico-positivos – conforme os valores morais socialmente relevantes e que se encontram ali inseridos.

Em vias conclusivas de Justice for Hedgehogs, Dworkin (2011, pp. 439-444) estabelece que o Direito é um departamento da moral política, feito por seres humanos e contingente a uma série de práticas que não necessariamente estão inseridas no seu campo. Para ilustrar, Dworkin propõe que enxerguemos o sistema da moralidade como uma grande árvore, com seu largo tronco e diversos braços, galhos e apêndices, cada um deles interligado pelo outro. É dessa maneira que devemos enxergar o sistema moral como um todo, ao passo que o Direito seria um desses muitos galhos, interligado aos outros dessa mesma árvore (Ética, Política, Filosofia etc.). Dworkin (2011, p. 441) critica as soluções que são propostas pelo positivismo para o problema da moral dentro do Direito, estabelece que o teste de pedigree18 não satisfaz o controle rigoroso que devemos ter com a legalidade das regras constituídas a partir do exercício legislativo, apresenta a questão da concepção do conceito doutrinário de Direito como criterial e a circularidade argumentativa dos dois sistemas (moral recorrendo à moral e o Direito recorrendo ao Direito), e propõe que tratemos o conceito doutrinário de Direito como interpretivo (integrado aos outros valores do sistema moral político: igualdade, liberdade e democracia).

Essa compreensão interpretiva – ao modo dworkiniano, ou seja, integrada – não poderá ser realizada sem que haja, naturalmente, um recurso mental a juízos morais subjetivos por parte do intérprete do sistema, que se articulam enquanto estrutura secundária desse mesmo sistema institucionalmente delimitado pela moral objetiva.

Em definitivo, o desacordo genuíno entre Kelsen e Dworkin consiste no fato de que: (1) a metafísica da moral poderá ser invocada em nosso exercício de pensamento interpretativo, quando essa interpretação for jurídica (e não científica) do Direito; (2) de modo que recorrer à metafísica da moral para justificar nossos juízos valorativos sobre o Direito será inevitável e é inerente ao nosso modo de vida, assim como ao próprio sistema da moral, onde o Direito se encontra inserido enquanto departamento.

Ao fim, o desacordo genuíno entre esses autores parece apresentar-se quanto à forma, já que Kelsen justifica sua hipótese a partir de uma noção metafísica de norma fundamental – que de tão perfeita em teoria não seria possível de tomar corpo no mundo físico – e Dworkin, por sua vez, apelará para a noção de que todo ato decisório humano contém uma dose, conhecida ou não, de juízo moral, isto é, de valoração a partir da moralidade objetiva (socialmente estabelecida).

5. Considerações finais

O positivismo kelseniano e o pós-positivismo dworkiniano partem do pressuposto de que é necessário romper com o acordo categórico com o ser. Segundo a premissa comum aos dois movimentos teórico-jurídicos ora debatidos, juízos jurídicos precisam ser objetivos, pois o contrário representa delegar à subjetividade de uma única figura (do juiz), o exercício de interpretação. Temos, portanto, um acordo sobre a objetividade ser necessária para a interpretação do sistema jurídico como um todo.

Não podemos dizer, por mais tentador que isto seja, que as duas visões são absolutamente compatíveis entre si, sem correr o risco de sermos considerados arquimedianos.19 Contudo, considerando que nosso desacordo genuíno é ínfimo, conforme acima demonstrado, podemos dizer que as visões kelsenianas e dworkinianas são menos distintas do que imaginam os comentadores do positivismo e do pós-positivismo, de sorte que nos resta compreender em que medida elas não são, em si mesmas, visões que reforçam as articulações do nossa rede de crenças no sentido de que o debate jurídico (teórico e prático) não pode ficar à mercê da subjetividade interpretativa, mas que deve ser sistematizado e ordenado objetivamente pela política e pelo exercício da política nas mãos do Direito.

Ao responder as objeções céticas à sua teoria, Dworkin (2011, p. 53) demonstra como as afirmações negativas a respeito da moral são, per si, juízos positivos, já que reivindicam a condição de verdade para si ao desconstruir o raciocínio argumentativo em contrário. Poderíamos acrescentar a isso o argumento de que juízos morais se subordinam às regras de justificação interna advindas da lógica; sendo assim, só podem ser refutados por outros juízos morais que requisitem para si a condição de verdade, mas que se refiram aos mesmos valores e jogos de linguagem.

Se as coisas se passam desse modo, recorrer à metafísica da moral, assim como recorrer à norma hipotético-fundamental seria um exercício de interpretação que apela para os interstícios do pensamento humano, que não necessariamente estão positivados, a despeito de estarem sempre normatizados, a partir da objetividade da moral. Se assim for, ambos têm razão.

A confluência do Direito e da moral, da qual fala Dworkin, dependerá de uma sociedade que possua algo minimamente parecido com aquilo que Montesquieu descrevera como estrutura de Estado (Dworkin, 2011, p. 441), e que delegue a esse ente a responsabilidade de tratar aqueles que estão sob o seu domínio com preocupação e respeito iguais em prol da promoção da dignidade em sua dupla dimensão (Dworkin, 2011, pp. 383-396). Esta proposição, aliás, é o que exprime o significado de justiça (Dworkin, 2011, p. 459) em uma sociedade pautada pela democracia enquanto sistema de governo concebido em prol da primazia da igualdade política (Dworkin, 2011, pp. 379-381 e 426).

Visto dessa forma, o critério de validade da norma jurídica se torna um critério que não é meramente formal,20 de maneira que a relação entre moral e Direito passa a ser meramente histórica e contingencial. Do modo como a teoria da justiça é compreendida por Dworkin, a relação entre a moral e o Direito é umbilical e indissociável, ao passo que a interpretação do sistema jurídico deve atender ao critério de justiça previamente fixado por nosso modo de vida humano.

A diferença e desacordo genuíno de Kelsen (1960, pp. 127-128) em relação à proposta dworkiniana é que esta pressupõe que tais normas sociais contenham um traço comum em todos os sistemas morais, enquanto sistemas de justiça.21 Disso decorreria, segundo Kelsen, uma exigência de um dado a priori para a interpretação do sentido da norma, isto é, um valor absoluto do que é moralmente justo, o que, no seu sentir, é impossível e, ao mesmo tempo, dispensável.

Kelsen (1960, p. 129) propõe que pensemos no conceito de paz, como exigência comum a todos os sistemas morais, fazendo ver que não há consenso em relação ao significado de tal conceito enquanto valor absoluto da ordem moral. Cita o modo como Heráclito e Jesus trataram da descrição da guerra e da paz, respectivamente, para concluir que não é possível determinar se este é um valor moral absoluto ou não.

Disso decorre o problema de se enxergar o a priori (bom, justo) como dado em um determinado sistema moral, se não podemos chegar a um consenso moral (genérico) em relação à justeza de uma determinada norma, então também não poderemos chegar ao consenso de injustiça dessa mesma norma, caso não exista um dado a priori. Ou seja, conceber o Direito como parte indissociável da moral genérica e estipular que o seu valor jurídico seja extraído a partir de sua valoração moral significa delegar o critério de justeza da norma ao a priori. Se esse a priori não existisse – porque não há consenso –, não pudesse ser identificado ou contivesse um significado contraditório em relação ao sistema, nosso valor jurídico ficaria comprometido (Kelsen, 1960, pp. 128-131).

O que é comum a todos os sistemas morais, Kelsen diz, é o seu dever ser – ou seja, a sua forma de coerção moral, o caráter da norma – e não o seu conteúdo (o é). Em cada sistema moral particular, será considerado moralmente bom o que é conforme o ser ao dever ser (à norma) e será moralmente mau àquilo que contrariar esse esquema da moralidade normativa. Para Kelsen (1960, p. 131), norma e valor são conceitos correlatos, mas que não se confundem; na medida em que afirmar que o Direito é em sua essência uma parte da moral, enquanto coerção social, não significa dizer, entretanto, que ele deve ter um determinado conteúdo, mas sim que ele possui uma determinada acepção normativa que determina como as coisas devem ser.

Assim, todo o sistema jurídico possui caráter moral e se constitui sob um valor moral – que é relativo, já que não conseguiríamos concordar sequer se a paz é um valor absoluto da justiça, Kelsen (1960, p. 131) diz –, e não faz sentido exigir que o Direito deva ser moral. O Direito pressupõe a existência de um sistema moral positivo que o determina, ele atua como o dever ser da coerção moral do Estado e, portanto, per si, corresponde à moral vigente.

Exigir que o Direito, para ser Direito, deva atender ao critério de justeza de uma moral absoluta ou universal em relação ao que é ‘bom’, significa, por essa perspectiva, presumir que poderá existir um Direito ‘mau’ ligado à antítese da moral universalmente boa. Acontece que se há uma subversão da moral social de determinada sociedade e, por conseguinte, da moral positiva vigente, isto somente poderá ser dimensionado diante de uma perspectiva histórica e contingencial remissiva. A moral ‘boa’ de hoje pode ter sido a moral ‘má’ de ontem e vice-versa.

Isso não faz sentido para Kelsen (1960, pp. 132-134) porque quando a teoria do Direito se propõe a distinguir Direito e moral, assim como Direito e justiça, o que ela pretende, na verdade, é preservar a possibilidade de que a justeza de uma determinada conformação sobre o Direito ser subordinada a um sistema moral específico, dentre os muitos sistemas morais existentes. Disso decorre que, vista de outro ângulo – ou seja, de um sistema moral distinto do qual se encontra inserida – a norma jurídica inicialmente justa poderá ser considerada injusta. Amplia-se, assim, a possibilidade de conformação da norma ao critério de justiça, demonstrando-se que apenas a moral relativa pode realizar aquilo que se pretende da moral: fornecer uma medida ou um padrão absoluto para a valoração de uma ordem positiva.

Convém lembrar, contudo, que Kelsen (1960, pp. 137-138) diferencia dois tipos de interpretação do Direito e que, quando fala de maneira bastante crítica e incisiva em relação à defesa de uma moral relativa e da separação entre o Direito e a moral, está tratando da ciência jurídica. Ele antecipa para o leitor que, do ponto de vista político, a leitura do Direito a partir da conformação moral pode ser bastante proveitosa; a questão é que essa leitura não pode ser transplantada para o âmbito da ciência jurídica na conformação normativa do Direito positivo. Dworkin, de seu lado, acredita que não devemos excluir a política de nossa atividade interpretativa do Direito, seja em que âmbito for, pois ela desempenha um papel importante de determinação dos valores metajurídicos que estão no jogo de linguagem do Direito.

Lidos dessa maneira, Kelsen e Dworkin concordam a respeito do que deve ser feito em relação à interpretação jurídica dos tribunais – ao menos – mas discordam do alcance que as justificativas metafísicas podem ter e, especialmente, de qual fonte poderão partir.

Parece-nos ingênuo ser possível delegar à moral o lugar de mera condição sine qua non pressuposta da norma, já que não é possível excluir da tomada de decisão humana os interstícios do pensamento, compostos por razões racionais e emocionais remissivas à moral objetiva, não necessariamente positivada. Todavia, nos parece igualmente precipitado afirmar categoricamente que esse recurso à moral objetiva será sempre universal, desde que pressupostas as condições de repetição de sentido.

Se assim o for, Kelsen tem razão quando diz que não é possível recorrer à moral objetiva não positivada como justificativa para a atribuição de valor jurídico (condição de verdade) para a norma positiva. Haveria, nesse caso, uma quebra de argumentação no próprio silogismo lógico-jurídico que propusesse isso, e, talvez, o próprio Dworkin reconhecesse esse problema: pois não estaríamos a falar de uma mesma coisa. De outro lado, a análise da linguagem a partir da lógica também os ensina que, em ciências humanas, nem tudo pode ser objetivado, a despeito de ser possível inferir da interpretação o caráter objetivo de uma justificativa.

Sendo assim, Kelsen e Dworkin possuem razão em seus respectivos modos de concepção metafísica de justificação do Direito; seja um pela defesa de uma ciência jurídica pura em ideal, seja o segundo pela defesa de uma interpretação jurídica substancial que se pretende realizada. Esse nos parece um desacordo genuíno para o qual a resposta certa pode ser “depende”.

  • 1
    Ele exemplifica isso com a análise da palavra ser em Aristóteles,2012, pp. 181-182.
  • 2
    A esse respeito, podemos acrescentar a observação de que Aristóteles parece trabalhar com a hipótese de que fazemos associações arbitrárias de palavras para extrair o sentido da fórmula de uma coisa particular; sendo que se tratando da essência da coisa, esse exercício não é necessário. Não precisamos recorrer a combinações primárias, a fim de extrair o sentido essencial da coisa; ele é dado de maneira primordial. Aristóteles exemplifica isso com a análise da palavra médico, que exige do leitor a combinação arbitrária do sentido de corpo, função e instrumento, ou seja, é uma extração de sentido qualificado (que recorre a noções primárias). A essência, conforme demonstra, se manifesta pela dispensa dessa qualificação e denota o uno. A questão do uno (em sentido essencial) importa para a análise das proposições singulares.
  • 3
    Segundo Hume, não é possível extrair um juízo de valor a respeito de uma ‘coisa’ a partir de um juízo de fato. As relações de ideia dizem respeito, assim, a uma proposição que pode ser descoberta por uma simples operação do pensamento (aritmética, geométrica etc.). Com as questões de fato não funciona assim, já que estas parecem se fundar em relações de causa e efeito, pautadas não só na razão, mas também na experiência, para que suas proposições possam ser classificadas como verdadeiras.
  • 4
    Hilary Putnam, ao comentar sobre o colapso da dicotomia fato-valor, explica que a Lei de Hume foi apresentada pelo próprio como ponto conclusivo do seu Tratado da natureza humana: em suas investigações sobre a moralidade, teria sido evidenciado um padrão de repetição em todos os sistemas de moralidade, raciocinando a partir de um modo comum, passando de um “é ou não é” para um “deve ou não deve” (proposição: Deus é nosso criador, devemos obedecer a ele). Nenhuma explicação, contudo, foi dada por Hume a respeito desse funcionamento geral do nosso modo de raciocinar sobre a moralidade e a Lei de Hume foi incorporada por muitos como uma lei da epistemologia geral ao longo de mais de dois séculos de tradição filosófica.
  • 5
    O aborto, assim como a pena de morte, a performance e o tipo de vida vivido são temas de extrema importância para Dworkin, pois denotam que a vida possui valor substancial (em si mesma). Disso decorre que atos ligados à vida humana somente podem ser valorados em uma epistemologia que seja integrada aos conceitos morais e princípios que norteiam o nosso bem viver. A legalidade ou não, portanto, de tais atos somente pode ser articulada em torno daquilo que ele descreve como valor adverbial da vida.
  • 6
    Em razão disso, Quine diz que “em psicologia podemos ser ou não ser behavioristas, mas em linguística não temos escolha”. Em: Quine, 1990, p. 38.
  • 7
    Especificamente quanto ao uso da palavra ‘interpretiva’ ao invés de ‘interpretativa’, consignamos que optamos por manter a linguagem dworkiniana para nos referir à atividade de interpretação condicionada aos conceitos gerais que é defendida por Dworkin em Justice for Hedgehogs.
  • 8
    O exemplo dado por Hans Kelsen fala apenas da cortesia da saudação. Optamos por inserir um componente a mais no argumento por ele esboçado a fim de estressar um pouco mais a sua justificativa em prol do reconhecimento de um pluralismo que modifica a atribuição de sentido que conferimos para determinados atos, a fim de antecipar essa questão (pluralismo cultural) e demonstrar como – o raciocínio kelseniano – se sustenta nesse ponto.
  • 9
    Nesse sentido, remetemos para a descrição da natureza da norma hipotética fundamental que Kelsen faz como pressuposição lógico-transcendental referida a uma Constituição determinada pelos costumes e o estatuto, eficaz em termos globais, em relação a si mesma e à ordem social coercitiva por ela criada (sistemicamente). A norma fundamental não é produto de uma concepção de sentido arbitrária e livre, mas sim determinada pela articulação das normas inferiores que foram por ela criadas e que, em conjunto, a sustentam.
  • 10
    P. ex.: temos como dado primordial D01 o aperto de mão entre dois homens, o que é socialmente considerado apropriado – dado secundário D02 – ou inapropriado a depender do contexto cultural considerado – dado secundário D03.
  • 11
    Nesse sentido, ver mais em: Colonnelli, 2017.
  • 12
    O próprio Kelsen respondeu essa questão no prefácio da segunda edição de Reine Rechtslehre, que, para uma melhor elucidação do debate, compreendemos que deve ser lido em conjunto com os tópicos 01 (Die „Reinheit”), 02 (Der Akt und seine rechtliche Bedeutung) e 03 (Der subjektive und der objektive Sinn des Aktes; seine Selbstdeutung) do primeiro capítulo ‘Recht und Natur’ deste livro.
  • 13
    Nesse sentido, é esclarecedora a leitura do prefácio à primeira edição de Reine Rechtslehre (pp. 3-8) em: Kelsen, 1934.
  • 14
    Tal qual como havia imaginado David Hume em relação às proposições morais.
  • 15
    Uma das críticas que Dworkin faz ao positivismo é justamente com relação à margem de manobra que a teoria positivista dá para os juízes no momento de interpretação. Assim como o fato de que o positivismo ignora aquilo que ele descreve como fenomenologia da decisão (ilustrada pelo fato de que não raras vezes juízes concordam a respeito da lei que deve ser aplicada ao caso, mas discordam fundamentalmente do modo como ela deve ser interpretada). A fenomenologia da decisão expõe um outro problema do mundo jurídico, que é o fato de que discordamos do que constitui a razão de ser de uma determinada lei (grounds of law). A respeito disso na obra dworkiniana, remetemos para Império do Direito. A respeito do debate travado por Dworkin e por Hart em relação, especificamente, ao modo de interpretação judicial, remetemos para: Dahas e Oliveira, 2019, pp. 25-44.
  • 16
    É bom rememorar que “Teoria Pura do Direito” foi escrito e publicado durante a Segunda Guerra Mundial.
  • 17
    Kelsen propõe a metáfora com o quadro. Temos a tela principal, onde está inserida a obra, temos a moldura e há um espaço entre a tela e a moldura, onde devemos inserir o enquadramento (se estivéssemos falando de arte, realmente, imaginemos que esse espaço poderia ser preenchido por um paspatur). É nesse espaço entre a obra e a moldura em que reside a via de manobra interpretativa do Direito.
  • 18
    Especificamente quanto a este conceito, remetemos o leitor para o Modelo de Regras I, apresentado por Dworkin em Taking Rights Seriously. Trata-se de uma resposta do pós-positivista ao modelo conceitual de Direito e legalidade estrita proposto por Herbert Hart.
  • 19
    Tal como definido por Dworkin: uma corrente de pensamento que se concentra em um ponto arquimediano, isto é, que não se desloca nem para um lado (moral e Direito separados, p. ex.) e nem para o outro (moral e Direito como interligados). É a doutrina dos pretensamente neutros.
  • 20
    Se emanado do órgão estatal competente, por meio do procedimento previamente previsto, compatível em seu conteúdo com as normas jurídicas superiores válidas.
  • 21
    Isto é, atendem a um tal conteúdo moral ligado à sua justeza para serem consideradas como Direito.

Referências

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  • WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas Trad. Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultura. 1999

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Jan 2023
  • Aceito
    04 Jan 2024
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