Open-access IMPLICAÇÕES DA ABSORÇÃO DE MODERNAS TECNOLOGIAS DE SAÚDE EM PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO

As más condições de saúde que caracterizam a maioria dos países em desenvolvimento são o resultado, não só das condições sócio-econômicas deficientes de uma grande parte da população2),(5 mas, também, de deficiências nos serviços de saúde e saneamento pelos limitados recursos destinados à saúde e, principalmente, pela distribuição inadequada dos gastos na área.6

A incorporação de tecnologias modernas pode ter efeitos positivos, ou negativos, sobre a saúde nos países em desenvolvimento. Poderiam ser positivos se as tecnologias adotadas fossem adequadas aos problemas de saúde próprios desses países, como é o caso das vacinas, da hidratação oral, de técnicas de Papanicolaou para detecção de câncer uterino etc.9

Os efeitos são negativos, entretanto, quando as tecnologias são inadequadas. Esses efeitos negativos podem ser provocados através de dois mecanismos: seja por efeito direto, como no caso dos leites artificiais para lactentes substituindo o leite materno, ou por efeitos indiretos, resultantes do desvio dos recursos para tecnologias de alto custo cujos exemplos existem com fartura no terceiro mundo.1

De fato, o grande efeito negativo da incorporação de tecnologias modernas é o de ser um dos maiores responsáveis pela distorção na distribuição dos gastos em saúde, através da aquisição não planejada de tecnologias avançadas, de altíssimo custo inicial e de manutenção ainda mais cara.

Esquece-se freqüentemente de que os problemas de saúde têm um claro paralelismo com o nível de desenvolvimento e, como tal, são muito diferentes nos países menos desenvolvidos, se comparados com os mais desenvolvidos.4),(6

Nesses últimos, as prioridades de saúde vêem­se condicionadas por variáveis próprias desse mesmo desenvolvimento: alta proporção de pessoas idosas, excessos alimentares, baixa fecundidade, boas condições de saneamento básico, problemas de contaminação industrial. Conseqüentemente, os principais problemas de saúde derivam de transtornos metabólicos, obesidade, doenças cardiovasculares, doenças degenerativas.

Nos países menos desenvolvidos, pelo contrário, as prioridades de saúde são a conseqüência de insuficiências na produção e distribuição de alimentos, alta proporção de menores de 15 anos, alta fecundidade, más condições de saneamento e falta de cobertura de imunizações contra doenças preveníveis, ou de detecção precoce para as doenças controláveis. Assim, os principais problemas de saúde resultam da desnutrição, do baixo peso ao nascer, de doenças infecciosas e endêmicas, de neoplasia cuja incidência e mortalidade já diminuíram consideravelmente nos países desenvolvidos.

As doenças infecciosas eram responsáveis por 1.2 a 1.4% do total das mortes no Canadá e nos Estados Unidos, em 1960; nesse mesmo ano, causavam 13% das mortes no México, 19% na Nicarágua e 29 na Guatemala.6 Da mesma forma, existem 250 milhões de pessoas infectadas com esquistossoma, todas elas nos países menos desenvolvidos para dar só um exemplo de parasitoses endêmicas.11

A mortalidade infantil, que flutua entre 8 e 15 por 1000 nascidos vivos nos países mais desenvolvidos, é 10 vezes superior em muitos países em vias de desenvolvimento. Isto significa, evidentemente, que as causas de morte, e os métodos para combatê-las, são também muito diferentes em países com distintos níveis de desenvolvimento.

Na Costa do Marfim, em 1973, 31% das mortes de crianças de 1 a 4 anos eram devidas ao sarampo, 29% à desnutrição e anemia, e 14% a diarréias, doenças que praticamente não matam criança alguma em países mais desenvolvidos.1

É natural que os países desenvolvidos colo­ quem os seus recursos científicos e financeiros no desenvolvimento de tecnologias que solucionem os problemas de saúde de sua população, que, por sua vez, não têm aplicação às prioridades de massa em países menos desenvolvidos.

Infelizmente, nos países em desenvolvimento, sem considerar os fatos acima descritos, privilegia-se a aquisição de tecnologias as mais sofistica­ das, com o conceito errado de que a saúde vai melhorar imitando os modelos de assistência dos países ricos.10

Essa aquisição de tecnologias inadequadas cria grandes distorções nos gastos em saúde por vários mecanismos diretos ou indiretos. O mais evidente é o alto custo de manutenção de tais equipamentos, com a agravante de criar situações de dependência total de empresas multinacionais para peças de reposição e, na maior parte dos casos, para os reparos mais simples.

Entre os efeitos negativos indiretos, destaca-se o fato de que, nas próprias Escolas de Medicina, o atrativo das tecnologias mais sofisticadas faz esquecer e desconsiderar as tecnologias mais simples e adequadas à realidade dos problemas de saúde do País, distorcendo o currículo de graduação e a formação do médico.

Como geralmente a aquisição dessas tecnologias modernas não fica limitada aos Centros Universitários mais avançados, dentro dos países menos desenvolvidos, é freqüente que a falta de experiência na interpretação dos resultados leve a um aumento marcante das cirurgias desnecessárias. Alguns exemplos são: exereses desnecessárias de cistos funcionais de ovário detectados por ultra-som, cesáreas realizadas por falsos sofrimentos fetais por má interpretação da monitorização eletrônica.

Finalmente, é evidente que a empresa médica, o hospital e o indivíduo que comprou o equipamento vêem-se na necessidade de pagar o seu custo e o valor da sua manutenção. Só se pode pagar utilizando esse equipamento e cobrando pelo seu uso. Para tal, é preciso estender as indicações de utilização desse equipamento muito além das necessidades reais, encarecendo desnecessariamente os gastos em saúde, não para enriquecer médicos e instituições locais, mas para financiar a indústria médica multinacional.

O resultado final é um aumento artificial e exagerado nos serviços de saúde, os quais oneram de tal forma as instituições fornecedoras de serviços que impedem a inversão de recursos no aumento de cobertura com ações básicas, simples e de baixo custo, que realmente atendem às prioridades da população.

Só como exemplo, no novo Hospital de Clínicas da UNICAMP, foi feita uma inversão de 27 milhões de marcos alemães (valor FOB) em equipamentos médicos. Estima-se que o valor anual dos contratos de manutenção equivale a 10% do valor FOB, ou seja, 2.7 milhões de marcos, ou 850 milhões de cruzeiros ao câmbio do início de novembro de 1983. Os recursos totais do Hospital de Clínicas da UNICAMP, neste mesmo ano, não ultrapassaram 1.700 milhões, sendo que os gastos de pessoal (excluindo-se os professores) não chegam a 750 milhões. Em outras palavras, só os contratos de manutenção de equipamentos, sem contar o custo adicional de peças de reposição, seria igual à metade do orçamento total, e representa um custo superior ao pagamento do pessoal, excluídos os professores.

Se estes gastos já são difíceis de se justificar num hospital universitário, muito menos pode-se entender os mesmos em serviços assistenciais, como os financiados pelo Seguro Social.

Estes tipos de distorções explicam, por exemplo, que o Seguro Social do México tenha gasto, em 1978, US$ 225 por pessoa atendida, enquanto que o Ministério da Saúde do mesmo país deu cobertura a uma população muito maior com um gasto de apenas US$ 15 por pessoa. No Brasil, as proporções não devem ser muito diferentes.

Uma outra forma de tecnologia em saúde é constituída pelos medicamentos. A indústria dos medicamentos é uma das que mais crescem, especialmente no Brasil, chegando a representar uma parcela importante do gasto familiar, particularmente nas camadas de menor renda (5.7 em São Paulo, em 1977).7

Não cabe questionar a contribuição dos medicamentos e da indústria farmacêutica na solução de graves problemas de saúde. O problema é, como no caso dos equipamentos, o da adequação da utilização dos medicamentos aos problemas reais de saúde.

As evidências de distorções graves são múltiplas. Numa pesquisa de KARNIOL, professor do Departamento de Psiquiatria da UNICAMP, verificou-se que, numa série de hospitais psiquiátricos estudados, quase 2/3 dos pacientes (65.5%) recebiam 3 a 6 drogas diferentes todos os dias. O que é pior, na maioria dos casos, essas drogas tinham efeitos opostos e não existia justificativa farmacológica nenhuma para o uso de tais combinações. Assim mesmo, já em 1971, mais de 20% do total dos remédios vendidos no Brasil correspondiam a drogas que atuam no sistema nervoso central, e quase 9% a vitaminas, o que não guarda nenhuma relação com as patologias mais prevalentes, nem com as necessidades reais de medicamentos.3

É sabido que o Brasil é o país onde a indústria farmacêutica obtém seus mais altos níveis de vendas. Isto se deve ao fato de que, no Brasi1 como em outros países menos desenvolvidos, a indústria não utiliza somente meios éticos de informação sobre os seus produtos. Utiliza também os meios de comunicação de massa para induzir a acreditar em efeitos inexistentes de certas drogas, o que leva ao consumo popular das mesmas, por compra direta da farmácia, sem intermediar o sistema formal de saúde. Assim, o povo chega a acreditar em que é melhor investir na compra da vitamina X do que na aquisição de alimentos.

Uma evidência dessa situação foi mostrada por GIOVANNI, em 1980: a metade da população de São Paulo de menor renda, em 1977, ou se automedicava, ou consultava a farmácia quando se achava doente.7

Mas, a indústria também consegue exagerar a prescrição por médicos como demonstrado no estudo de KARNIOL.8 Para isso, utiliza a informação incompleta acerca dos inconvenientes e contra-indicações, e exagera sobre seus efeitos positivos.

Esta afirmativa, que pode parecer atrevida e difícil de se substanciar, fica pelo contrário facilmente em evidência em se comparando, para o mesmo medicamento do mesmo fabricante, a bula utilizada no Brasil com aquela usada no país de origem do medicamento.

Entre os principais fatores que permitem que estas graves distorções na distribuição dos recursos para a saúde continuem existindo, podemos identificar os seguintes: 1) persistência do conceito de que a saúde nos países menos desenvolvidos vai melhorar pela imitação dos modelos de assistência médica dos países mais desenvolvidos; 2) pressões da indústria internacional de produtos médicos que precisa vender equipamentos, drogas, leites industrializados etc.; 3) prestígio político e status ligado ao uso de tecnologias avançadas; 4) serviços médicos orientados pelo lucro em sociedades em que os serviços de saúde são mais um produto no mercado; 5) incapacidade dos indivíduos mais esclarecidos, nos aspectos de saúde pública, de influir em níveis decisórios, tanto nacionais, como internacionais.

Seria injusto, porém, não colocar aqui os recentes esforços do nível governamental para reorientar as inversões de recursos no setor da saúde. Destacam-se os esforços e sucessos recentes do Ministério da Saúde, ao privilegiar programas de imunização contra doenças transmissíveis, como a paralisia infantil e sarampo; os programas cada vez mais bem sucedidos para recuperar o aleitamento materno em lugar dos leites industrializados; a prioridade ao atendimento da mulher e da criança ao nível básico de atendimento ambulatorial (parece aqui que a limitação é a falta do recursos e de força política).

Na área da assistência médica do Ministério da Previdência e Assistência Social, destacam-se as recentes iniciaticas de racionalizar o sistema de atendimento, privilegiando o atendimento ambulatorial sobre o atendimento hospitalar de alto custo, que estimula a utilização de tecnologias, a maioria das vezes desnecessárias (parece aqui que a limitação é a manutenção do sistema anterior concomitante com todos seus inconvenientes talvez pela falta de coragem política em desfazer de uma vez as distorções existentes).

Seria impróprio terminar esta análise sucinta das implicações da incorporação de modernas tecnologias nos países em desenvolvimento sem fazer algumas propostas concretas, ao menos para o Brasil, com possível aplicação a outros países em condições semelhantes.

1. Para o problema que já existe:

  1. Multiplicidade de equipamentos caros já instalados:

  2. regulamentar o seu uso através de Comissão que determine em que circunstâncias ele tem valor e deve ser permitido;

  3. situar as tecnologias ao nível de complexidade a que pertencem, e ordenar o fluxo dos pacientes a partir de uma porta de entrada no nível primário, evitando a abordagem direta do nível terciário e da tecnologia complexa (isto significa também estimular a regionalização do sistema de saúde);

  4. desenvolver a capacidade nacional para a manutenção preventiva e corretiva dos equipamentos já existentes;

  5. criar os mecanismos para a importação direta de peças de reposição (e quando possível para a fabricação nacional) para os equipamentos já existentes no País.

  6. Excesso de medicamentos e insuficiente controle de más condições, contra-indicações e toxicidade:

  7. melhor utilização e revisão das listas de medicamentos básicos;

  8. obrigatoriedade da existência de medicamentos genéricos com adequado controle de qualidade;

  9. revisão dos remédios com combinação de drogas que não tenham justificação farmacológica, para sustar a autorização de venda desses produtos;

  10. controle de propaganda de medicamentos, proibindo afirmativas sem base científica, seja nas informações, seja nos meios de comunicação de massa;

  11. obrigatoriedade de utilização de bula no mínimo igual à utilizada no país de origem de cada produto farmacêutico.

2. Para prevenir problemas

  1. Impedir qualquer importação nova de tecnologias pelo menos até que exista um sistema de saúde organizado que, conhecendo seus objetivos, possa filtrar adequadamente suas necessidades e aproveitar o bom lado da crise.

Referências bibliográficas

  • 1 BANTA, D. H. & THACHER, S. B. Costs and benefits of eletronic fetal monitoring: a review of the literature NCHSR research report series. DHEW Publ. (PHS), (79): 3245, 1979.
  • 2 BEHM, H. & PRIMATE, D. A. Mortalidad en los primeros años de vida en América Latina. Notas de Población, 23, 1978.
  • 3 CORDEIRO, H. A. Estado e indústria farmacêutica: as estratégias de medicalização. In: GUIMARÃES, R. org. Saúde e medicina no Brasil: contribuição para um debate. 4. ed. Rio de Janeiro, Graal, 1984. p. 259-93.
  • 4 DITTEN, A. Cahiers de Cires: 69-104, 22 set. 1979.
  • 5 FAÚNDES, A.; HARDY, E. & HENRIQUE, G. Escolaridad y conduta reproductiva. Cuad. Med. Soc, 12 (4): 18, 1971.
  • 6 GENTILE DE MELO, C. Saúde e assistência médica no Brasil São Paulo, CEBES/HUCITEC, 1977. 273p. (Coleção saúde em debate).
  • 7 GIOVANNI, G. A questão dos remédios no Brasil: produção e consumo. São Paulo, Polis, 1980. 148p. (Coleção sociologia e saúde).
  • 8 KARNIOL, I. G. Visão crítica do uso de psicofármacos no nosso meio. J. bras. Psiq, 30 (5): 381-5, 1981.
  • 9 PINOTTI, J. A. & BORGES, S. R. Seguimento efetivo dos casos detectados de carcinoma do colo uterino. Bol. Of. Sanit. Panam, 82 (3): 223-36, 1977.
  • 10 PINOTTI, J. A. & FAÚNDES, A. Obstetric and gyneacological care for third world women. Int. J. Gynaecol. Obstet, (21): 361-9, 1983.
  • 11 WALSH, J. A. & WARREN, S. Selective primary health care: an interim strategy for disease control in developing countries. Soc. Sci. Med, (14C): 145-63, 1980.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 1985
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