Resumo:
Em 1978, os docentes da Faculdade de Medicina de Botucatu expressaram, em questionário, as habilidades indispensáveis à formação do médico geral. As respostas do bloco clínico e cirúrgico foram classificadas em habilidades cognitivas, psicomotoras, afetivas e de senso crítico. Num total de 335 itens (não repetidos), 61% relacionavam-se à área cognitiva, 31,6% à psicomotora, 4,2% à efetiva e 3,2% a de senso crítico. No bloco clínico, as habilidades cognitivas foram mencionadas quase seis vezes mais que as psicomotoras. Quanto às respostas de internos e residentes a 40 itens relativos a habilidades adquiridas ao final da graduação, verificou-se maior porcentual médio de SIM para capacitação cognitiva do que para psicomotora, com porcentual médio de afirmativas pouco maior para os residentes. A aquisição de habilidades cognitivas importantes, como diagnóstico e tratamento do choque, de distúrbios funcionais de origem psíquica e de transtornos menstruais foi poucas vezes mencionada. Habilidades técnicas, como realizar pequenas cirurgias, punção torácica, manobras de reanimação, imobilização de membros fraturados, exame ginecológico, tiveram pequena porcentagem de respostas afirmativas. Comparando-se respostas de internos e residentes, quanto ao desempenho psicomotor indispensável, segundo os docentes, conclui-se que o treinamento prático não assegurou a capacitação necessária à formação do médico geral. São discutidas hipóteses explicativas para o descompasso no treinamento nessas duas áreas.
Summary:
In this study efforts have been made to determine the most important competencies required from the student to become a general practitioner at the end of the undergraduate course. Each of the teachers from the clinical and surgical area pointed out five competencies considered most important, resulting in 335. These competencies were classified in four categories: cognitive (61%); psychomotor (3,16%); affective (4,2%) and critical sense (3,2%).
At the same time, students and residents of the medical school answered a 40 itens questionnaire about abilities acquired at the end of the undergraduate course. The findings indicated that residents and senior students have achieved more competencies in the cognitive domain (65%) than in psychomotor domain (58%), this percentage being slightly higher among the residents. Important cognitive abilities, such as diagnosis and treatment of shock, psychofunctional disturbances and menstrual alterations, were seldomly mentioned. Psychomotor skills, such as being able to perform small operations, thoracic drainage, resuscitation, imobilization of broken limbs, gynecologic examination, scored a small percentage of positive answers.
There was a discrepancy between the ideal psychomotor performance expected by the teachers from the students and residents with their actual skills, as revealed by themselves.
Some hypothesis are raised to explain the failure for such unsatisfactory practical training, regarding a medical course for graduating general practitioners.
Introdução
Como decorrência do modelo de assistência que vem privilegiando a medicina curativa, especializada e privatizada, as escolas médicas têm preparado, de preferência, profissionais para esse tipo de mercado-de-trabalho. Dadas as propostas mais recentes para reformulação do sistema de saúde (extensão de cobertura de serviços básicos), passou-se a preconizar a formação do médico geral. Por este motivo e em vista da necessidade de avaliar o ensino médico ministrado pela Faculdade de Medicina de Botucatu, com a finalidade de redefinir objetivos e propor reformas curriculares, a Câmara de Graduação, em 1978, realizou o diagnóstico da situação de ensino.1
Nessa ocasião, os questionários preenchidos pelos docentes do curso de aplicação apresentavam, ao término, um anexo fundamental, em que se solicitava a especificação de 5 itens relacionados ao programa de cada disciplina, correspondentes às habilidades indispensáveis para que o aluno, ao fim do 6o ano, pudesse exercer atividades do médico geral.
A classificação e a análise das respostas ensejaram a idéia de sua comparação com as respostas obtidas de questionários preenchidos pelos internos e residentes, no que se refere à capacitação relativa a 40 itens.
A análise global desse conjunto, acredita-se, poderá complementar o diagnóstico já realizado e fornecer subsídios para a reformulação e aprimoramento do Curso de Medicina, ou, pelo menos, para corrigir suas distorções.
Material e métodos
Entre 115 docentes (81,5% do total) que responderam ao questionário em 1978, 105 (91,3%) preencheram o anexo fundamental.
As respostas sobre os 5 itens indispensáveis, de cada disciplina, foram agrupadas em dois blocos: 1) departamentos clínicos, Anatomia Patológica e Medicina Preventiva, Legal e do Trabalho; 2) departamentos cirúrgicos. Classificaram-se as respostas, de cada bloco, em quatro grupos de habilidades: a) na área cognitiva; b) na área psicomotora; c) na área afetiva; d) na de senso crítico.
Em 1980, a Câmara de Graduação solicitou, aos departamentos, opinião dos mesmos a respeito das respostas individuais já reunidas, com o que houve modificações e, sobretudo, acréscimo de itens.
O questionário dos internos foi preenchido, em 1978, por 72 deles (84,7%) e dos residentes por 66 (66,0%). A questão no 20: - “ao concluir o Curso de Graduação, você se considera (ou considerava) capacitado a”, apresentava 40 itens, com alternativas sim e não.
Resultados e discussão
Anexo fundamental
Excluídas as respostas iguais obtidas de docentes e departamentos diferentes, obteve-se um total de 335 itens relativos a habilidades consideradas indispensáveis para a formação do médico geral, após 6 anos de Curso de Graduação (dos quais 2 são básicos e 4 de aplicação).
Na Tabela 1, verifica-se que, no total, um número maior de itens foi apontado pelos departamentos cirúrgicos (incluídos os Departamentos de Cirurgia, Ginecologia e Obstetrícia, Anestesiologia, Urologia, Otorrinolaringologia e Oftalmologia), numa porcentagem de 54,02% contra 45,97% para os departamentos clínicos (incluídos os Departamentos de Pediatria, Medicina Preventiva, Legal e do Trabalho, Anatomia Patológica, Neuro-Psiquiatria, além do Departamento de Clínica Médica).
Observa-se, também, que houve quase o dobro do porcentual de itens para a área cognitiva, em relação à área psicomotora, no total.
A diferença entre essas duas áreas de habilidades foi muito mais acentuada para os departamentos clínicos (quase 6 vezes maior a taxa de habilidades cognitivas). Os docentes da área cirúrgica, como era de se esperar, propuseram em quase igual proporção as habilidades cognitivas e psicomotoras.
A análise das respostas sobre os itens mostrou, em primeiro lugar, um número total elevado (335), uma vez que a maioria dos docentes e departamentos não se limitou a 5 itens por disciplina. Na época, havia cerca de 60 disciplinas envolvidas no curso de aplicação, que, na base de 5 itens para cada, forneceriam apenas 300 respostas não repetidas. O número total de respostas foi muito superior a 335; com a exclusão de freqüentes repetições, como por exemplo, diagnosticar e tratar infecções urinárias; diagnosticar e tratar infecções pulmonares agudas e crônicas; interpretar ECG; manter adequado relacionamento médico/paciente/família etc, chegou-se a 335. Não tendo parâmetros para comparação, na literatura médica, não é possível se fazer um julgamento definitivo sobre a magnitude desse número, que, à primeira vista, é excessivo. Por isso, parece mais oportuno apreciar a qualidade dessas respostas.
Em relação ao grau de precisão e especificidade, verifica-se que muitas respostas foram explicitadas de forma vaga e/ou abrangente, principalmente na área cognitiva.
Como exemplos, houve as seguintes: orientar adequadamente neoplasias; conhecer aplicação terapêutica dos radio-isótopos (fígado, pulmão, rins, vias biliares e urinárias e tireóide); conhecer a patologia dos aparelhos e sistemas; saber prevenir as moléstias vasculares e tratar os casos que não forem encaminhados ao especialista; saber diagnosticar e tratar as doenças oculares mais comuns; saber medicar basicamente afecções otorrinolaringológicas e conhecer as contra-indicações; saber orientar as afecções ginecológicas mais comuns e conhecer sua fisiopatologia. Na área cognitiva, os verbos conhecer, reconhecer e saber foram os mais freqüentemente usados na definição do objetivo dos itens, enquanto na área psicomotora os verbos mais utilizados foram colher, prestar, executar e principalmente, realizar.
A respeito do emprego de verbos na formulação de objetivos operacionais, MAGER1 insiste na necessidade de se utilizar os mais precisos, uma vez que há verbos que admitem múltiplas interpretações. E o caso dos verbos: conhecer, compreender, entender, saber, adquirir, perceber, entre outros. Em contraposição, esse autor exemplifica os seguintes verbos com poucas interpretações: identificar, resolver, criticar, diagnosticar, relacionar, calcular, construir etc. O despreparo pedagógico da imensa maioria de médicos-professores faz com que, na prática, a expressão seja: saber diagnosticar, saber tratar etc.
Na verdade, os objetivos (denominados de itens por sua melhor aceitação pelo corpo docente) deveriam descrever a ação (comportamento observável) que o aluno deverá apresentar, indicando também em que condições se vai dar o desempenho e qual o padrão de eficiência aceitável.1
Criou-se uma área que não consta na taxonomia pedagógica, a qual se denominou de senso crítico, para incluir mais atitudes e manifestações de opinião do que propriamente habilidades, visando a estimular o processo formativo do aluno. Alguns exemplos dos itens assim respondidos foram: a) “fazer análise crítica fundamentada do sistema de saúde e da organização da assistência médica”; b) “reconhecer na teoria e colocar-se em prática as diferenças na prestação de assistência à saúde entre o hospital-escola e os serviços de primeira linha”.
No conjunto das 335 respostas, 16 foram consideradas questionáveis quanto à exigência de seu cumprimento para a formação do médico geral (10 na área cognitiva do bloco clínico, 1 na área psicomotora do bloco clínico, 2 na área cognitiva do bloco cirúrgico, e 3 na área psicomotora do bloco cirúrgico). Assim, “conhecer os fundamentos pré e pós-operatórios em cirurgia cardíaca”; “realizar punção vesical suprapúbica para drenagem vesical”, e “realizar tratamento cirúrgico de fratura exposta”, são alguns exemplos.
Em cinco oportunidades, julgou-se que o item mencionado não se aplicava à formação do médico geral, como nos seguintes exemplos: realizar biópsia hepática percutânea; realizar arteriografia; realizar laparotomia.
Capacitação de internos e residentes
Os 40 itens dos questionários de internos e residentes foram reunidos em 3 grupos: A) relacionado com diagnóstico e terapêutica (20 itens); B) relacionado com interpretação de exames subsidiários (7 itens) e C) relacionado com habilidades técnicas (13 itens). Os residentes tiveram porcentuais médios de sim um pouco mais elevados do que os dos internos. Os maiores porcentuais médios foram observados para os itens referentes à capacitação em diagnóstico e terapêutica (68%). As taxas inferiores foram registradas para as habilidades técnicas (58%) (Tabelas 2 e 3).
Para efeito de comparação dessas respostas com os itens registrados pelos docentes no anexo fundamental, foram somados os 2 primeiros grupos - diagnóstico e terapêutica (20 itens) e interpretação de exames (7 itens) num único grupo - o de habilidades cognitivas (27 itens).
No Quadro I estão contidas as respostas dos internos e residentes.
Na Tabela 2, estão as porcentagens médias de respostas sim, de acordo com o grupo ou área de habilidades, notando-se que a taxa de respostas afirmativas para as psicomotoras foi inferior. Somente em um caso (um residente) houve uma resposta em branco.
Discriminando as habilidades na área cognitiva, conforme Tabela 3, verifica-se que as respostas afirmativas para interpretação de exames subsidiários apresentaram menores porcentuais, principalmente para os internos. Esta observação ganha maior significado na medida em que, em seu treinamento prático, os alunos são constantemente reforçados para solicitação de “baterias” de exames complementares, às vezes em detrimento mesmo de procedimentos semiológicos correntes.
Comparando-se a relação de itens do anexo fundamental com a relação anterior, verifica-se que os três seguintes itens desta não foram formulados pelos docentes: interpretar exames sorológicos; realizar e interpretar toque retal; orientar a alimentação no 1o ano de vida. Realizar pequenas cirurgias foi particularizada em diversos itens, no anexo (drenagens, suturas, exereses de lesões cutâneas etc), não sendo redigida na forma acima.
Cumpre discutir a questão do menor número de respostas Sim aos itens de capacitação técnica adquirida, tendo em vista que os departamentos cirúrgicos propuseram itens técnicos em número quase igual ao dos itens cognitivos, conforme mostra a Tabela 1.
Chama a atenção a baixa posição que tiveram os seguintes itens de habilidades técnicas: realizar pequenas cirurgias; realizar punção de tórax; realizar manobras de reanimação; passar sonda endotraqueal; imobilizar membros fraturados; realizar e interpretar exame ginecológico.
Estes fatos poderiam ser explicados, no caso dos internos, pelo não cumprimento de certos estágios por ocasião da pesquisa (por exemplo: Pronto-Socorro de Traumatologia e de pequenas cirurgias, ambulatório de Ginecologia etc.). Quando se analisam porém, os mesmos itens, para os resistentes que já haviam cumprido todos os estágios, verifica-se que a positividade das respostas elevou-se bem pouco. Uma explicação mais realista consiste em que a execução de manobras técnicas e atos médicos tem sido postergada para a fase de Residência Médica. É comum a competição entre internos e residentes na ocasião de executar pequenas cirurgias, ou mesmo dissecar veias. E é freqüente ouvir-se de professores aos internos: “vocês aprenderão a fazer isto, quando forem residentes”, muito embora tais habilidades façam parte de objetivos da graduação.
De outra parte, o nível de especialização a que se chegou (60 disciplinas, do 5º ao 6o ano) tem levado à fragmentação não apenas do ensino, como das ações médicas. O interno acompanha o “caso”, mas é o residente de cada uma das especialidades que se relaciona ao “caso”, que executa determinados exames, manobras, ou operações e assume responsabilidade.
Nó anexo fundamental, constou como habilidade psicomotora, por informação do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia, “realizar operação cesariana”. Na elaboração do questionário dos internos e residentes, entretanto, essa habilidade nem foi cogitada. Se constasse, obteria certamente baixo, ou nulo, porcentual de respostas afirmativas.
Por outro lado, o atendimento ambulatorial geral é ainda limitado; não há volume de emergências no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu que possa absorver os internos e residentes em mais práticas, e não há cirurgia ambulatorial. O número de leitos hospitalares, por sua vez, cresceu apenas 20% em 9 anos (1973 a 1982), chegando a 242.
Ainda na relação anterior, ficam salientadas outras deficiências, mesmo na área cognitiva, como por exemplo: interpretação do ECG; diagnóstico e tratamento do choque; diagnóstico e tratamento dos transtornos funcionais de origem psíquica; alterações do ciclo menstrual. Causou espécie, também, a baixa freqüência com que internos e residentes se consideravam capazes de interpretar exames sorológicos e radiografias simples. Tanto para internos, quanto para residentes, em 40 itens, houve 20 (50%) com freqüência de respostas sim acima de 70%. Com 90% ou mais de respostas afirmativas houve 6 itens apenas para os internos e 8 para os residentes. Os itens que obtiveram maiores percentuais de respostas afirmativas foram praticamente os mesmos, nos 2 grupos.
Conclui-se que o treinamento prático, à época, não foi satisfatório para permitir a capacitação psicomotora necessária à formação do médico geral, a despeito dos numerosos itens referi dos pelos docentes como indispensáveis nessa área.
Referências bibliográficas
- 1 MAGER, R. Objetivos gerais e específicos In: VILARINHO, L. R. G. Didática: temas selecionados. Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos, 1970. cap. 1.
- 2 MONTELLI, A. C. et alii. Diagnóstico da situação e perspectivas do ensino na Faculdade de Medicina de Botucatu, UNESP, 1978. R. bras. Educ. Méd, 4 (3): 53-62, 1980.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Jul 2021 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 1985