Open-access Vivenciando a Rede: Caminhos para a Formação do Médico no Contexto do SUS

Experiencing the Network: Paths for Medical Training in the Context of the SUS

RESUMO

Os cursos de educação médica têm implementado disciplinas e módulos que aproximem os discentes da realidade da saúde nacional, a fim de se adequarem às crescentes necessidades de reorganização da formação médica. O presente artigo relata uma experiência de acadêmicos de Medicina da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) com as atividades e ações incluídas no módulo de Gestão e Rede de Atenção à Saúde, parte da Prática de Integração Ensino-Serviço-Comunidade (PIESC), como proposta de reorientação do currículo na aquisição de habilidades de liderança e gerenciamento de recursos físicos e humanos em saúde. A proposta foi inserir os discentes em diferentes níveis de complexidade tecnológica do SUS a fim de contextualizar o estudo da Rede de Atenção à Saúde (RAS) por meio de vivências e pesquisa-ação em serviços de saúde situados nos diferentes níveis de atenção. Para isso, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com profissionais e usuários em cada ambiente visitado. Tais vivências ampliaram a visão dos acadêmicos sobre os serviços de saúde, possibilitando um melhor entendimento da estruturação da RAS, bem como um dimensionamento dos entraves encontrados nos diferentes cenários e proporcionando uma experiência in loco das críticas e dificuldades apresentadas e vividas por usuários e profissionais. Percebeu-se que não há resolutividade dos problemas de saúde dos usuários nos serviços, bem como existe uma falta de entendimento destes acerca de seus direitos e da continuidade da atenção à saúde nos diferentes níveis de atenção. Explicitou-se que as instâncias primárias de atenção não funcionam como porta de entrada adequada, o que culmina com a desestruturação da RAS observada. A experiência relatada neste artigo demonstrou um modo dinâmico de abordar a temática da Gestão e Rede de Atenção à Saúde, além de contribuir para a formação do estudante de Medicina, já que possibilitou um melhor entendimento da rede quanto às práticas em saúde e às dimensões do processo saúde-doença implicados na gestão do SUS.

PALAVRAS-CHAVE Administração de Serviços de Saúde; Atenção Primária à Saúde; Educação Médica; Sistema Único de Saúde

ABSTRACT

Medical courses in Brazil have implemented subjects and modules that aim to bring students closer to actual national health concerns, as one way of adapting to the growing needs for medical training reorganization. Thus, this article reports on the experience of medical students at the Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) [State University of Santa Cruz] with activities and actions included in the Health Care Network and Management module, part of the Teaching-Service-Community Intergration Practice (PIESC), as a proposal for the reorientation of the curriculum and acquisition of leadership skills and management of physical and human resources in health. The proposal was to insert the students at different levels of technological complexity of the Unified Health System (SUS) in order to contextualize the study of the Health Care Network (RAS) through experiences and action research in health services located at different care levels. Semi-structured interviews with professionals and users were therefore performed in each visited environment. These experiences served to broaden the students’ vision of health care networks, enabling a better understanding of how the services are structured, as well as of the magnitude of the obstacles found in different scenarios, providing an in loco experience of the criticisms and difficulties faced by users and professionals. It was noticed that user health problems are often not resolved within the health care services, and the users lack understanding of their health rights. A lack of continuity of the health care was also observed through the various health care levels. Thus, it is concluded that the instances of primary care fail to offer adequate gateway services, culminating in the breakdown of the observed network. The experiment reported in this article demonstrated a dynamic way to approach the issue of Health Care Network Management, contributing to medical student training, as it enabled a better understanding of the network in terms of the health practices and the dimensions of the health-disease process involved in the management of the SUS.

KEYWORDS Health Service Administration; Primary Health Care; Medical Education

INTRODUÇÃO

Em 1988, com a promulgação da nova Constituição Federal, a saúde tornou-se um direito de cidadania, dando origem ao processo de criação de um sistema público, universal e descentralizado. Desde então, diversas mudanças foram realizadas no modo de organização dos serviços de saúde1. No projeto atual de atenção à saúde brasileira, a pirâmide representa o modelo tecno-assistencial do Sistema Único de Saúde (SUS). Na sua base, localizam-se as unidades de saúde, responsáveis pela atenção primária. Na parte intermediária, estariam os serviços de atenção secundária e, no topo da pirâmide, os serviços hospitalares de maior complexidade2. Neste sentido, as Redes de Atenção à Saúde (RAS) são arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas que, integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado3. Porém, na prática, é bastante difícil visualizar esse modelo de organização com fluxos adequados entre os diferentes níveis de atenção para que assim se faça presente a integralidade proposta pelas RAS2.

Diante da atual situação do sistema de saúde do País, e tomando-se como base o fato de a Constituição Federal de 1988 já indicar que o SUS deveria cumprir o papel de direcionar o processo de formação profissional na área de saúde4, surgem as mudanças nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina, com a formação do graduando baseada em três áreas principais: Atenção à saúde; Gestão em saúde; e Educação em saúde. Nesse contexto das RAS, destaca-se a gestão em saúde, que visa à formação do médico capaz de compreender os princípios, diretrizes e políticas do sistema de saúde, além de participar de ações de gerenciamento e administração para promover o bem-estar da comunidade. Esse pilar compreende a gestão do cuidado e o exercício da liderança no trabalho em equipe, bem como ações de participação social5.

Como uma das formas de se adequar às crescentes necessidades de reorientação da formação médica, os cursos de educação médica têm implementado disciplinas e módulos que aproximem os discentes dessa realidade. Dessa forma, surge a Prática de Integração Ensino-Serviço-Comunidade (PIESC), disciplina de caráter multiprofissional e comunitário, desenvolvida nas quatro séries iniciais do curso de Medicina e cujo principal objetivo é aproximar os acadêmicos da realidade do SUS, da comunidade e dos profissionais de saúde atuantes nos Programas de Saúde da Família (PSF) desde o princípio da graduação6,7. A disciplina PIESC torna-se, então, uma experiência enriquecedora por possibilitar a formação de um espaço de construção contínua do conhecimento por meio de vivências, discussões e teorizações para o desenvolvimento de aptidões e competências, além de despertar para o engajamento na luta pela transformação da realidade da saúde pública brasileira6.

O presente artigo relata a experiência de acadêmicos de Medicina que participaram das ações e atividades indicadas pelo módulo de Gestão e Rede de Atenção à Saúde, parte da PIESC, como proposta de reorientação curricular no desenvolvimento de habilidades de liderança e gerenciamento de recursos físicos e humanos em Saúde.

MÉTODOS

Este artigo constitui um relato de experiência desenvolvida durante as atividades curriculares previstas para a disciplina Práticas de Integração Ensino-Serviço-Comunidade III (PIESC III), que integra a grade curricular do curso de Medicina da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Esta disciplina anual apresenta quatro momentos distintos e complementares ao longo do ano, sendo um deles destinado às atividades do módulo em Gestão e Rede de Atenção.

O referido módulo transcorreu entre os dias 4 de março e 6 de maio de 2015, com a proposta de inserir dez discentes em diferentes níveis de complexidade tecnológica do SUS a fim de contextualizar o estudo da RAS - organização, relações e repercussões - via vivências e pesquisa-ação em pontos de atenção à saúde situados em diferentes níveis de atenção representados aqui por uma Unidade de Saúde da Família (USF), uma policlínica, um hospital e a Vigilância Epidemiológica, todos inseridos na realidade de Ilhéus, Bahia.

Sob supervisão do professor/tutor, os discentes foram agrupados em dois trios e um quarteto, que se revezaram em incursões diagnósticas e de assimilação da dinâmica singular de cada ponto de atenção à saúde, no intuito de facilitar a movimentação por entre cada equipamento de saúde, permitindo que cada aluno tenha uma visão mais íntima dos ambientes e dos atores sociais que os povoam.

Em cada espaço visitado, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, e adaptadas a cada realidade em particular, com profissionais, gestores e usuários do serviço de saúde, além de observação-participante. Para avaliar os dados, utilizou-se a Análise Temática, que permitiu delimitar as convergências e divergências no que concerne às respostas à entrevista semiestruturada. Dessa forma, por meio da triangulação de métodos, combinaram-se diferentes métodos e fontes de dados de modo a compreender melhor os diferentes aspectos dos cenários especificados. Por meio da entrevista, pôde-se, por exemplo, contextualizar comportamentos humanos e qualificar dados obtidos, permitindo aprofundar os mais diversos aspectos da vida social em complementação à apreensão da realidade feita singularmente por cada pesquisador.

UNIDADE DE SAÚDE DA FAMÍLIA

A atenção básica caracteriza-se por um conjunto de ações voltadas ao cuidado individual e coletivo, que visam à promoção e proteção à saúde, prevenção de agravos, reabilitação, além do controle social, buscando a consolidação dos princípios de integralidade, universalidade e equidade, dispostos na lei orgânica do SUS. Para o bom funcionamento da atenção básica, foi criada a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), que estabelece princípios e diretrizes que garantem a efetividade das práticas em saúde por meio do exercício de práticas de cuidado e gestão em saúde, organizadas em uma rede. Além disso, prevê a participação democrática da população por meio de instrumentos sociais hierárquicos8.

Diante disso, cria-se o PSF com o objetivo de ampliar a atenção à população e estabelecer um novo modelo de cuidado, voltado à atenção primária da saúde, concretizando esse novo modelo de atenção, que funciona como a porta de entrada para o sistema local de saúde, integrando-se aos demais níveis de atenção por meio do modelo de referência e contrar-referência9.

A partir da implantação da PNAB, houve uma reorganização do PSF, que passou a compor a Estratégia de Saúde da Família (ESF), funcionando por meio de uma equipe multiprofissional, responsável por consolidar os princípios da universalidade, equidade e integralidade. A equipe mínima deve ser formada por um médico, um enfermeiro, um técnico de enfermagem e agentes comunitários de saúde, que atuam sobre uma população adstrita9,10.

Durante a vivência na atenção primária, realizou-se entrevista com os profissionais de saúde da USF. Em relação à infraestrutura, os profissionais concordaram com o fato de esta não estar adequada ao funcionamento do serviço, com relatos de falta de espaço físico e de recursos humanos, como profissionais de serviços gerais e recepção. Como motivos mais frequentes para a busca de atendimento pela população, os profissionais destacaram doenças crônicas e saúde da criança. A equipe mostrou-se consciente da importância de que todos os profissionais da unidade conheçam e entendam os princípios e diretrizes do SUS, ressaltando a educação em saúde como principal difusor de conhecimento no SUS. Em relação à sobrecarga do sistema de saúde, principalmente no nível hospitalar, referiram que é causada pela influência de uma atenção básica desestruturada, com insuficiência de profissionais, desrespeito à carga horária preconizada de trabalho e ausência de medidas eficientes de acolhimento. Nesse aspecto, acreditam que, para reverter esse quadro, é necessário capacitar os profissionais, conscientizar os usuários e cumprir os princípios e diretrizes estabelecidos pelo SUS.

Quando questionados acerca do fluxo dos usuários na RAS, os profissionais afirmaram que os mecanismos de referência e contrarreferência não ocorrem efetivamente. Apesar disso, há relatos da realização da referência dos usuários diante de situações clínicas de maior complexidade, encaminhando casos a serviços de atenção especializada, como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), policlínicas e avaliação cirúrgica. No que concerne à notificação de doenças à Vigilância Epidemiológica, os profissionais referiram realizá-la sempre que necessário, com relatórios de notificação encaminhados semanalmente à Vigilância Epidemiológica. Houve discordância na equipe quanto à realização de atividades preconizadas para a atenção básica, uma vez que a enfermeira e alguns ACS referiram a realização de todas elas, indo de encontro ao relato da técnica de enfermagem e de outros ACS.

Na entrevista com os usuários da atenção básica, percebeu-se que a maioria procura o serviço em busca de consultas médicas. Quanto ao serviço oferecido, os usuários destacaram falta de estrutura, desorganização no agendamento de consultas, dificuldade de atendimento da demanda espontânea e ausência até mesmo de orientação acerca da dinâmica da USF e dos outros serviços ofertados na rede do município. Em relação ao fluxo na RAS, notaram-se entraves no acesso a especialistas, com demora no agendamento de consultas referenciadas, além do uso corriqueiro de serviços de maior complexidade sem encaminhamento para sanar necessidades não atendidas na USF. Para os usuários ouvidos, entre os quesitos que devem ser melhorados na USF estão agendamento, acolhimento, estrutura física e recursos materiais e humanos. No entanto, apesar dos pontos negativos relatados, a maioria dos usuários elegeu a USF como o serviço de saúde mais importante do SUS.

Nos relatos das entrevistas e observações realizadas acerca da dinâmica de funcionamento da USF, percebe-se a precariedade das ações de acolhimento, a deficiência da integralidade da atenção e a valorização das estratégias de educação em saúde. O acolhimento, dentro do sistema de saúde, é uma ferramenta que garante acesso integral do usuário ao sistema de saúde. É por meio dele que se dá o processo de organização do PSF, uma vez que os vínculos de responsabilização são fortalecidos. No contexto da USF visitada, percebeu-se que os motivos da procura do usuário pelo serviço de saúde são de baixa complexidade, podendo ser contemplados na própria atenção básica. Entretanto, a efetividade é claramente prejudicada pela ausência de estratégias concretas de acolhimento, corroborando Cecílio2, que afirma que a ineficiência do acolhimento é propiciada principalmente pela desorganização dos fluxos ascendentes e descendentes dos usuários na RAS e pela falta de capacitação profissional.

A integralidade, princípio que garante ao usuário uma assistência para além da prática curativa, que contempla o indivíduo em todos os níveis de atenção, carrega consigo a responsabilização da USF como elo primário entre o usuário e o sistema de saúde, ou seja, porta de entrada para os outros níveis de atenção. Na experiência relatada, percebeu-se que o fluxo de referência e contrarreferência não acontece de maneira ordenada, gerando uma ausência de racionalização do atendimento à saúde e uma sobrecarga dos níveis de maior complexidade de atenção, o que torna a assistência ineficiente.

A educação em saúde é uma importante vertente da prevenção e promoção de saúde, porém ainda existem entraves para sua concretização. Foi possível constatar que os usuários, embora reconheçam a importância da atenção básica no sistema de saúde, não demonstram em atitudes aquilo que relatam, já que referem procurar frequentemente níveis de maior complexidade devido a problemas de saúde de menor complexidade. Nesse contexto, ressalta-se a importância de a educação em saúde estar inserida continuamente no cotidiano do profissional da saúde, pois ele não é apenas um propagador de conhecimentos, mas aquele que busca integrar e desenvolver uma consciência crítica por meio da troca de saberes entre profissionais, equipe e pacientes.

A experiência foi de grande importância na formação médica dos acadêmicos porque se pôde refletir acerca da dinâmica de funcionamento da USF e sua inserção como porta de entrada da RAS, bem como acerca de suas dificuldades estruturais e conceituais, principalmente dos conflitos entre o SUS atual e o SUS ideal. Destaca-se o papel enriquecedor dessa experiência, já que muitos médicos vivenciam, na prática, a atenção básica pelo menos alguma vez na vida, e os diversos olhares e reflexões possibilitados por esta prática chamam a atenção para sua importância e para a necessidade de ser conduzida de forma humana e responsável.

POLICLÍNICA

De maneira geral, as policlínicas são unidades de referência de atenção secundária à saúde da RAS. Nessas unidades, equipes multiprofissionais realizam consultas, atendimentos especializados, procedimentos e exames. O cenário da policlínica é constituído por uma gama de profissionais de diversas áreas e especialidades, entre elas enfermeiros e médicos, que realizam cuidados de saúde em meio ambulatorial, abrangendo atendimento de pequenas cirurgias e urgências. Todavia, não disponibilizam serviços de média e grande complexidade, além de prestação de cuidados pré- e pós-operativos ou cuidados intensivos11.

A visita à policlínica foi realizada com o intuito de observar o perfil dos usuários e profissionais, a prática da referência e contrarreferência, e como esse serviço, inserido na RAS, abarca o fluxo dos pacientes entre os diferentes níveis.

O artifício de integração das redes de saúde é o sistema de referência e contrarreferência, engenho que permite ordenar o usuário dentro da RAS. Ele é essencial para racionalizar recursos, garantir a integralidade da atenção e a continuidade do cuidado11. Esse sistema é importante fator na estruturação do SUS, pois está atrelado aos princípios de acessibilidade, universalidade e integralidade da assistência12.

Como estes princípios ainda caminham para a sua consolidação, o sistema de referência e contrarreferência apresenta diversas lacunas. Segundo Dias13, os profissionais que trabalham nos distintos níveis de complexidade possuem carências quanto à comunicação, o que limita esse fluxo de usuários. Dessa forma, há prejuízos na longitudinalidade da assistência, beneficiando o atendimento por demanda espontânea, que, como estabelecido na Lei nº 8.080/90, não supre as necessidades da população.

Diante disso, um dos pontos abordados no encontro com os usuários da policlínica foi o modo de acesso ao serviço. Observou-se que muitos usavam este serviço como porta de entrada e não eram advindos de outro nível de atenção, seja a atenção básica, seja o nível terciário.

Questionou-se sobre a qualidade do serviço prestado, e, embora o tempo de espera para o atendimento fosse referido como prolongado, os problemas de saúde foram considerados resolvidos pelo serviço, havendo facilidade para a marcação de consultas e retornos. Os usuários também apontaram a necessidade de aumentar a equipe médica e a possibilidade de marcação de consultas online, o que facilitaria o fluxo na rede.

Ao se analisar o conceito de saúde na concepção dos usuários e identificar a lógica assistencialista para eles mais relevante, percebeu-se que a maioria destaca o hospital como o serviço de maior importância dentro da RAS, considerando-o como o serviço de maior resolutividade, já que alcançam mais facilmente a realização de exames e procedimentos. Uma pequena parcela considerou a policlínica como o serviço de maior relevância. Nota-se que os usuários associam a importância do serviço ao seu grau de resolução, ou seja, desejam apenas ter suas queixas ouvidas e atendidas, independentemente dos demais fatores que influenciam a saúde, como a continuidade da atenção, a promoção de saúde e a prevenção de agravos. Este fato reflete o modelo biomédico ainda enraizado na noção de saúde da comunidade.

Dessa maneira, nota-se que o acolhimento, em todos os níveis de atenção, está relacionado à resolutividade do serviço e à sua responsabilização, o que implica orientar o usuário, quando necessário, com relação aos outros serviços de saúde. Quando há prejuízos no acolhimento, há repercussões negativas nos processos de humanização dos serviços e no vínculo entre a equipe de saúde e o usuário, aproximando-se ainda mais da já anacrônica dimensão biomédica do processo saúde-doença-cuidado14.

Em relação à atenção básica, grande parte dos usuários relatou falta de infraestrutura da USF do território em que reside, ausência de profissional médico e superlotação, resultando em atendimentos pouco resolutivos, descontinuados e sem vínculo entre equipe e comunidade. Dessa forma, relatou-se o costume de procurar outros serviços de saúde, de diferentes níveis de atenção, para tentar sanar os problemas. Além disso, os usuários desconhecem a importância da atenção básica e dos serviços que ela oferta. Diante disso, percebe-se a necessidade de fortalecer a comunidade por meio de atividades educativas que reforcem os direitos e deveres dos usuários do SUS, para que estes possam usufruir dos serviços e participar mais ativamente do planejamento dos serviços em benefício da saúde por meio do controle social, ferramenta importante, que reflete a expressão da democracia e da cidadania, a fim de imiscuir-se nas políticas públicas em busca da resolução dos problemas e deficiências sociais.

Ainda analisando a visita realizada, destaca-se o subfinanciamento do SUS, que, associado à insipiência dos processos de gestão, compromete a qualidade do atendimento dos serviços de saúde, uma vez que o inadequado funcionamento de algumas unidades da atenção básica, seja por falta de insumos ou de profissionais, sobrecarrega outros serviços nos demais níveis de atenção à saúde15.

A entrevista dos profissionais de saúde na policlínica de Ilhéus permitiu conhecer melhor o perfil dos usuários que costumam ser atendidos pelo serviço. A maioria compreende indivíduos de baixo nível socioeconômico, com pouco acesso à informação e que se dirige ao serviço procurando resolução de problemas de saúde de baixo nível de complexidade, facilmente sanados na atenção básica de saúde. Os profissionais relatam realizar constantemente a contrarreferência dos pacientes para que possam ser acompanhados no nível primário de atenção após atendimento adequado no serviço, demonstrando conhecer o fluxo adequado da RAS.

Em suma, percebe-se que ainda existem muitos entraves no entendimento da hierarquização do serviço e das atribuições de cada nível de atenção, o que resulta em superlotação desnecessária dos serviços de maior complexidade.

Para os discentes, a visita técnica e a possibilidade de realizar entrevistas com funcionários e usuários do nível secundário de atenção do modelo assistencial do SUS foram de grande valia para a observação prática e posterior análise crítica do funcionamento em rede do sistema de saúde. Esta visão é fundamental para a construção de um perfil médico atento e sensível às necessidades e dificuldades enfrentadas pelos usuários diante do fluxo do SUS.

HOSPITAL

Os hospitais são instituições complexas, com densidade tecnológica específica, multiprofissional e interdisciplinar, responsáveis pela assistência aos usuários com condições agudas ou crônicas, que apresentem potencial de instabilidade e de complicações de seu estado de saúde, exigindo-se assistência em regime de internação e ações que abrangem a promoção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento e a reabilitação16.

Diante disso, e por fazer parte da RAS, o hospital tem o dever de se articular com os outros níveis de atenção, principalmente com a atenção básica, por meio de um sistema de referência e contrarreferência que permita ao usuário transitar ao longo da rede a fim de promover o cuidado integral e continuado do usuário16. Entretanto, durante entrevistas realizadas em um hospital do município de Ilhéus, observou-se que o fluxo hospital - atenção básica ainda é fraco e necessita de ajustes, tanto por parte dos gestores e funcionários, quanto por parte dos usuários. Estes, muitas vezes, por não conseguirem resolver seus problemas de saúde no nível primário de atenção, buscam o serviço terciário como porta de entrada mais rápida. Esse fato leva a prejuízos de cobertura, acessibilidade, acolhimento e resolutividade no cuidado prestado, corroborando o que foi descrito por Cecílio2.

O serviço hospitalar analisado mostra-se sobrecarregado devido à falta de resolutividade na atenção primária. A população necessitada de atendimento se depara com “portas de entrada do sistema” defeituosas e emperradas, o que a motiva a buscar alternativas para suprir suas necessidades médicas, almejando o serviço hospitalar como melhor opção, independentemente da complexidade do problema de saúde.

Durante a entrevista, vários pacientes relataram buscar o serviço por sintomas simples, facilmente resolvidos na USF, demonstrando desconhecer os serviços prestados na atenção básica, sendo que, em alguns casos, referiram ausência de PSF em funcionamento no seu bairro. Isto suscita a reflexão acerca do quão importante é a educação em saúde, mediante a partilha de conhecimentos sobre a importância da estrutura do sistema de saúde em seus diferentes níveis de complexidade, fortalecendo a população para que esta se julgue capaz de lutar por seus direitos no que concerne à saúde.

Quanto ao serviço prestado no hospital, muitos pacientes mostravam-se insatisfeitos, com destaque para baixa resolutividade, precária humanização, pouca privacidade, falta de orientação sobre autocuidado e baixa disponibilidade de medicamentos, bem como a demora no atendimento. Entretanto, sempre que necessário, retornam ao serviço para resolver suas mazelas, contrapondo-se às próprias reclamações, demonstrando que apenas o fato de serem atendidos por um profissional de saúde já é uma grande conquista numa rede ineficiente. Isto reforça a necessidade de fortalecimento da comunidade para que conheça seus direitos e não se contente com um serviço de saúde que não oferece condições mínimas de atendimento.

Além de buscar entender o ponto de vista dos usuários, foi importante ouvir a coordenadora de enfermagem do referido hospital, que mostrou conhecer o funcionamento de uma RAS por meio do fluxo de usuários, além de reconhecer que há muito a fazer para melhorar o atendimento nessa Rede. Ela destacou outros fatores que interferem negativamente no sistema de saúde: falta de compromisso dos profissionais, falta de participação ativa dos usuários e entraves políticos frequentemente enfrentados. Corroborando isso, Thiede e McIntyre17 destacam a importância da interação entre usuários e profissionais para um melhor acesso aos serviços. A educação deve ser foco de políticas públicas para concretizar a acessibilidade, pois a informação e o empoderamento são pré-requisitos para a conquista do adequado acesso à saúde17,18. A coordenadora ressaltou medidas que poderiam tornar o serviço mais eficiente, como contratação de profissionais capacitados, infraestrutura adequada, planejamento de ações e construção de metas e estratégias para a organização do serviço.

Muitos profissionais de saúde atuantes no hospital reforçaram que os serviços de urgência e emergência têm atuado como principal porta de entrada do sistema e destacam esse fator como a principal causa da sobrecarga no serviço hospitalar, o que concorda com Cecílio2, que demonstra que o número de atendimentos hospitalares é muito maior que o da atenção primária. Além disso, apontou-se que muitas das queixas de saúde atendidas no hospital são de baixa complexidade, destacando-se que, embora seja resolutivo para o paciente, esse atendimento aumenta a sobrecarga do serviço. Quanto ao fluxo de referência e contrarreferência, ressaltou-se de forma unânime a existência de uma desestruturação severa da RAS, de modo que a atenção à saúde realizada dessa maneira não alcança o objetivo de ser integral e longitudinal.

Dessa forma, percebe-se que os profissionais e gestores do nível terciário de atenção têm consciência da desorganização da RAS e da sobrecarga desse serviço. Em contrapartida, o usuário mostra-se perdido na rede, buscando resolver seus problemas de saúde em serviços de acesso mais fácil. Assim, é importante refletir, como futuros profissionais de saúde, sobre o quão necessária e urgente é a organização do fluxo de pacientes no sistema, visto que somente assim será possível fornecer uma atenção mais integral e resolutiva.

VIGILÂNCIA EPIDEMIOLÓGICA

O Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SNVE) diz respeito à articulação de informações e esforços inerentes às instituições públicas e privadas inseridas no contexto do SUS com o objetivo de traçar o perfil epidemiológico, em particular das doenças de notificação compulsória, monitorar sua disseminação nas populações expostas ao risco e fornecer dados aos responsáveis pela decisão e execução de ações de controle e prevenção de doenças e agravos, além de avaliar a repercussão dessas ações19,20.

O processo de trabalho da Vigilância Epidemiológica inclui coleta, processamento, análise e interpretação de dados obtidos de diferentes setores da saúde, sob os mais diversos aspectos. Sob a ótica da descentralização e integralidade das ações de reorganização do sistema de saúde, o conhecimento dos sistemas municipais de Vigilância Epidemiológica fornece ferramentas estatísticas que permitem aos gestores e profissionais de saúde planejar e executar ações adequadas às realidades locais. Logo, a vigilância sanitária é fundamental na rede de atenção em saúde por permitir a racionalização e estruturação da própria rede20.

Nesse sentido, a vigilância deve interagir com os demais serviços de saúde de forma a fornecer orientação técnica permanente e informações atualizadas sobre doenças e fatores que a condicionam. Assim, os profissionais de saúde podem planejar ações de controle e prevenção dessas doenças ou agravos21. Enquanto no nível municipal fomenta a autonomia dos gestores para enfocar problemas de saúde próprios de suas populações, nos níveis estadual e federal o planejamento, organização e operacionalização dos serviços de saúde se voltam para emergências que requerem avaliação complexa e abrangente, com participação de especialistas e centros de referência19.

No intuito de conhecer, trilhar e observar criticamente os caminhos da rede de atenção do município, realizou-se visita à Vigilância Epidemiológica de Ilhéus, e neste ambiente foi esclarecido e exemplificado o seu funcionamento e como ela se integra com os demais setores de atenção à saúde. Observou-se que há grande dificuldade de integração com a atenção básica, uma das principais fontes de alimentação de dados da vigilância e um dos locais principais de direcionamento de suas ações.

Nessa dificuldade de interação e integração, a população acaba desassistida e perde a oportunidade de ter ações de saúde direcionadas para a realidade municipal e, até mesmo, para a realidade de comunidades dentro do município. Além da comunidade, os profissionais de saúde da atenção básica também deixam de ter um direcionamento para suas práticas. Segundo Campos4, a equipe local de saúde é responsável pelos aspectos envolvidos na saúde da comunidade adscrita, tendo como obrigação identificar problemas e eleger prioridades para suas ações de saúde.

De acordo com Rouquayrol e Almeida Filho21, a principal forma de coleta de dados para a vigilância se dá por meio da notificação, que compreende “a comunicação da ocorrência de determinada doença ou agravo à saúde feita à autoridade sanitária por profissionais de saúde ou qualquer cidadão, para fins de adoção de medidas de intervenção pertinentes”. Um ponto ressaltado e discutido durante a visita foi a dificuldade dos profissionais de saúde em realizar as notificações dos agravos. Dessa forma, entende-se que o profissional da atenção básica, assim como o de outros níveis de atenção, faz parte e deve estar envolvido na operacionalização da vigilância à saúde na coleta de dados, atividade destacada pelos profissionais da vigilância como uma competência da vigilância dificultada pela falta de adesão dos profissionais, especialmente os da atenção básica, em realizar as notificações compulsórias, pois “acham que não é seu papel”.

Outro ponto destacado foi a dificuldade de integração da vigilância com os demais níveis de atenção, pois a precariedade da assistência, realidade de muitos municípios brasileiros, repercute negativamente em todos os setores do setor saúde. A baixa cobertura da atenção primária prejudica a obtenção de dados e análise dos indicadores de saúde por diversos fatores, como a grande demanda de usuários em detrimento da reduzida oferta de profissionais, a falta de estrutura e integração entre os diferentes níveis de atenção e a falta de um modelo de gestão que abarque e procure solucionar esses entraves da assistência à saúde. O sistema terciário é superlotado, pois o PSF é descaracterizado, e há dificuldades em realizar a referência e contrarreferência dos pacientes, o que prejudica o tratamento de doenças crônicas e favorece sua descontinuidade.

Relatou-se, ainda, a dificuldade de parceria e interação entre atenção básica e Vigilância Epidemiológica, com destaque para dificuldades relacionais entre os gestores desses dois ambientes, o que compromete a relação e a comunicação entre essas instituições. Este fato contraria a Política Nacional de Humanização (PNH), que busca qualificar o SUS por meio do comprometimento de gestores, profissionais e usuários do sistema. Além disso, a PNH propõe que a gestão e a atenção à saúde sejam compartilhadas a fim de aumentar os espaços de conversa e compartilhamento de informações, onde as diferenças apareçam para que sejam pactuadas e dissolvidas em favor do bem maior da comunidade22.

Em relação às condições de trabalho, usuários e discentes perceberam um ambiente com estrutura precária, insalubre e sem condições ergonômicas de trabalho, com muita papelada sobre as mesas e poucos profissionais para a demanda do município, que inclusive consta de muitos distritos e zona rural distantes do centro urbano. Foi relatada também a precarização de instrumentos importantes para a condução do trabalho na vigilância que gera dificuldades diversas, como a possibilidade de visitas, coleta e envio de amostras para exames complementares e, até mesmo, falta de computadores instalados com o Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan). Essas dificuldades observadas são citadas no Guia de Vigilância Epidemiológica como obstáculos ao desenvolvimento das atividades do SNVE no âmbito municipal, como insuficiência de recursos humanos, resistências institucionais ao processo de descentralização e limitações dos recursos disponíveis para o setor saúde19.

Como reflexão e contribuição para a nossa formação como futuros médicos, profissionais que atuarão em diferentes níveis de atenção à saúde, a partir dessa prática e visita, percebe-se como a falta de uma atenção básica estruturada sobrecarrega outros setores, mascara indicadores de saúde e prejudica os serviços de saúde prestados ao cidadão planejados com base na análise das informações processadas pelos Sistemas de Informação em Saúde. Nota-se como a ausência ou descaso na notificação por parte dos profissionais de saúde, especialmente os da atenção básica, comprova a falta de uma rede de atenção integrada entre os diferentes níveis de complexidade com a Vigilância Epidemiológica. Esse fato traz consequências negativas, como subnotificações, informações insuficientes sobre doenças em determinadas regiões e ausência de medidas de intervenção para controle e prevenção dos agravos e doenças.

Além do que foi vivido, refletido e discutido durante as visitas, esta experiência contribuiu para a observação do quão difícil, árduo e ainda distante é o caminho entre o preconizado e o realizado nos diferentes níveis de atenção à saúde, assim como na Vigilância Epidemiológica. Dessa forma, enquanto futuros profissionais de saúde que irão atuar nos diversos setores da atenção, os acadêmicos poderão agir sempre segundo as normas preconizadas pelo SUS.

CONCLUSÃO

As visitas aos diferentes níveis de atenção da RAS evidenciaram um sistema de saúde desestruturado, em que os níveis secundário e terciário constituem a principal porta de entrada dos usuários, tornando-se, dessa forma, sobrecarregados. Além disso, demonstraram que os mecanismos de referência e contrarreferência não ocorrem de maneira ordenada, apesar de terem sua importância reconhecida por profissionais e gestores. No que concerne à notificação de agravos à Vigilância Epidemiológica, pôde-se perceber a grande deficiência de tais registros principalmente por parte das USF, o que prejudica a construção de políticas públicas que enfoquem promoção de saúde e prevenção de doenças.

A vivência dos alunos no bloco de Gestão e Rede de Atenção à Saúde, integrante da PIESC, ampliou a visão dos estudantes no que se refere às RAS, de maneira a entenderem melhor tanto a estruturação da rede, quanto a organização dos diferentes níveis de atenção. A inserção do discente no serviço por meio de uma experiência prática e sistematizada mostra o caráter inovador da proposta e possibilita um dimensionamento mais realista dos entraves encontrados durante a vivência no serviço, extrapolando o mero contato com a literatura acerca da temática. Outros aspectos a considerar são a aproximação com o público, a análise do ambiente e a interpretação da dinâmica de pessoas. Por meio das entrevistas realizadas, os discentes puderam avaliar in loco as críticas e dificuldades no funcionamento da rede e compará-las com a visão do usuário e do profissional de saúde.

Além disso, a experiência relatada também possibilitou aos acadêmicos a construção de uma visão crítica voltada para a realização de mudanças, desviando-os, dessa forma, das tão propagadas práticas viciosas no que concerne aos serviços de saúde.

A experiência relatada demonstra um modo dinâmico de abordar a temática da Gestão e Rede de Atenção à Saúde, conteúdo essencial na formação médica. Nele, associa-se teoria e prática por meio da visão de diferentes atores sociais que interagem no fluxo em que se organiza a rede. Tal abordagem se mostrou muito propícia ao aprendizado dos discentes envolvidos, que a consideraram uma vivência ímpar em suas graduações, já que a maioria dos profissionais só se depara com ela no mercado de trabalho.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2017
  • Aceito
    16 Nov 2017
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