Resumo:
Introdução: O caminhar das escolas médicas em direção à transformação do modelo formativo tradicional em uma perspectiva inovadora e avançada de formação, inclusive no âmbito da saúde mental, vem sendo observado desde a implantação da Estratégia Saúde da Família (ESF).
Objetivo: O presente estudo buscou compreender a formação médica inicial em saúde mental, sob a perspectiva do médico atuante na atenção primária à saúde (APS).
Método: Para tanto, adotou-se uma abordagem qualitativa, de caráter exploratório, descritivo, na qual, por meio de entrevistas com médicos atuantes na APS de um município do Nordeste do Brasil, produziram-se dados, cujo corpus foi tratado com base na aplicação da análise temática de conteúdo. A coleta de dados do estudo ocorreu entre junho de 2020 e junho de 2021, quando os profissionais médicos atuantes na ESF municipal foram convidados a participar. Trata-se, portanto, de uma amostra intencional, não probabilística. Dos sete médicos atuantes na rede municipal de saúde em nível da ESF, cinco foram incluídos no estudo.
Resultado: Os resultados do estudo apontam a formação médica em saúde mental ainda vinculada a uma visão biomédica, em que se valoriza o cenário hospitalar como espaço de práticas e se subutiliza a APS no desenvolvimento de competências e habilidades profissionais, produzindo lacunas que afetam a atuação médica no contexto do cuidado de saúde mental na APS. Os relatos evidenciam, ainda, deficiências na formação relacionadas à valorização de questões pertinentes à medicalização e à dificuldade em conceder autonomia no cuidado em saúde mental.
Conclusão: A formação médica em saúde mental deve aproximar-se da realidade de atuação do médico generalista, a fim de prepará-lo para as demandas que enfrentará em seu cotidiano na APS.
Palavras-chave: Saúde mental; Atenção primária; Formação médica
Abstract:
Introduction: The trajectory of medical schools towards the transformation of the traditional training model to an innovative and advanced perspective of training, including in the field of mental health, has been observed since the implementation of the Family Health Strategy.
Objective: The present study sought to understand the initial medical training in mental health, from the perspective of the physician working in Primary Health Care (PHC).
Method: For this purpose, a qualitative, exploratory, descriptive approach was adopted, in which data were obtained through interviews with physicians working in the PHC of a municipality in the Northeast of Brazil, whose corpus was treated based on the application of the thematic content analysis. Data collection for the study took place between June 2020 and June 2021, when medical professionals working in the municipal Family Health Strategy (FHS) were invited to participate. It is, therefore, an intentional, non-probabilistic sample. Of the seven physicians working in the municipal health network at the FHS level, five were included in the study.
Results: The study results indicate that medical training in mental health is still related to a biomedical vision, in which the hospital scenario is valued as a space for practices and PHC is underutilized in the development of professional skills and abilities, producing gaps that affect performance in the context of mental health care in PHC. The speeches also show deficiencies in the training related to the appreciation of issues related to medicalization and the difficulty in granting autonomy in mental health care.
Conclusion: Medical training in mental health should approach the reality of the general practitioner’s work, in order to prepare them for the demands they will face in their daily routine in PHC.
Keywords: Mental health; Primary attention; Medical training
INTRODUÇÃO
No contexto de atuação dos sistemas de saúde, as questões relacionadas aos recursos humanos sempre implicaram preocupações, tendo em vista que a reorientação dos modelos de saúde requer mudanças e evoluções no processo de trabalho e formação profissional1.
Nessa perspectiva, a formação médica é apresentada como um fator contributivo para a qualidade da saúde, sendo um aspecto de atenção constante de instituições como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), instituições de ensino superior (IES), entre outras2.
Historicamente, no Brasil, a formação médica foi norteada pela influência norte-americana, por meio do modelo flexneriano de educação, caracterizado pela valorização do ambiente hospitalar, cuja rigidez metodológica contribui para a produção de um conhecimento fragmentado e descontextualizado da realidade de atuação profissional3.
Nesse modelo de formação médica, o ensino é tecnicista, preocupado com procedimentos e ferramentas de auxílio diagnóstico e terapêutico, de modo a valorizar a especialização médica4.
No entanto, uma tendência de questionamento a esse processo formativo se ergueu, orientada por termos discutidos mundialmente, como: o conceito ampliado de saúde proposto pela OMS; a defesa da atenção primária à saúde (APS) e do acesso igualitário à saúde de todos os cidadãos, proposto pela Conferência de Alma-Ata; e os conceitos da Carta de Ottawa, que trazia uma crítica a esse modelo biomédico, com a valorização da perspectiva da qualidade de vida no âmbito da saúde3.
No Brasil, a Reforma Sanitária e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) reafirmaram as limitações da formação tradicional, apontando a necessidade do desenvolvimento de um modelo formativo que se adequasse às demandas do sistema de saúde e valorizasse as dimensões técnicas do trabalho, sem negligenciar as dimensões políticas, sociais e éticas, numa perspectiva de formação generalista, humanista e crítico-reflexiva5.
Nos anos 2000, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de graduação em Medicina, ao corroborarem a tendência mundial de formação médica, propuseram uma formação humanista, com a ampliação do contato do estudante, ainda nos anos iniciais, com rede de atenção à saúde, de modo a destacar a comunidade e a centralidade do ensino na APS, e direcionar a formação para a aquisição de competências condizentes com os princípios e as necessidades de consolidação do SUS6.
Assim, observa-se um caminhar das escolas médicas em direção à transformação do modelo formativo tradicional em uma perspectiva inovadora e avançada de formação, como visto no estudo de Lampert et al.7, em que as escolas médicas avaliadas evidenciam a busca pela implementação de mudanças a fim de se adequarem às DCN; mais da metade se enquadrou na tipologia de avançada ou inovadora no tocante às transformações almejadas.
Na saúde mental, as tendências também caminham no sentido da busca por transformações. A Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) e a implementação da Estratégia Saúde da Família (ESF) trouxeram contribuições para a reformulação da assistência à saúde, estimulando o cuidado de base comunitária, em detrimento do modelo tradicional, medicalizador e hospitalocêntrico8.
Mais recentemente, surgiram na literatura estudos sobre a formação em saúde mental na graduação. Por exemplo, Morcerf et al.9, em estudo referente à percepção de estudantes de Medicina sobre o contato e a abordagem de pacientes com transtornos mentais e sobre o ensino da saúde mental, destacaram o sentimento de medo dos discentes em relação ao primeiro contato com um paciente em sofrimento mental, em especial aqueles do início do curso. Para os autores, é necessária a ampliação do contato do estudante de Medicina com a saúde mental, visando a um maior preparo do futuro médico para atender um portador de transtorno mental. Em outro estudo com estudantes universitários, foi observada uma dificuldade de eles distinguirem qual é o papel do psicólogo e do psiquiatra, além de a psiquiatria ter sido definida como uma carreira de baixa popularidade em razão de estigmas associados e do ambiente de trabalho do psiquiatra, considerado estressante e com forte carga emocional10. Para outros autores11)-(14, é extremamente necessário que o treinamento prático de enfrentamento em cenários variados de saúde mental, incluindo práticas integrativas, seja incorporado nos currículos médicos para a redução do estigma sobre o transtorno mental.
Por fim, Cavalcanti et al.15 contribuem para o debate ao afirmarem que um caminho de transformação do cuidado em saúde mental consiste em desenvolver práticas de formação médica na APS, sob a perspectiva de uma formação que se aproxima de princípios como a resolutividade e a integralidade, de modo a ampliar a atuação médica para além da psiquiatria tradicional.
Diante disso, o presente estudo buscou registrar a percepção dos médicos atuantes na APS sobre o seu processo de formação médica em saúde mental.
MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, com enfoque exploratório, dada a necessidade de compreender o fenômeno que se constrói na vivência dos sujeitos e em suas subjetividades, sendo parte do trabalho de conclusão de curso do Mestrado Profissional em Saúde da Família em rede PROFSAUDE da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Alagoas.
Aspectos dos Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (Coreq)16 foram utilizados para orientar o processo de produção e a análise dos dados, bem como a elaboração do relatório de pesquisa.
Coleta dos dados
A coleta de dados do estudo ocorreu entre junho de 2020 e junho de 2021, em um município do estado de Alagoas, no Brasil. Os convidados para participar da pesquisa foram todos os profissionais médicos atuantes na ESF de um município do Nordeste do Brasil.
Adotou-se a amostra intencional não probabilística. Segundo Gil17, esse tipo de critério de amostragem não considera como fundamentação a linguagem matemática ou estatística; ao contrário disso, depende unicamente de critérios subjetivos, estabelecidos pelo pesquisador.
Entre os critérios de elegibilidade para participar da pesquisa, o participante deveria ser médico em atividade na ESF e realizar atendimentos a pacientes em sofrimento mental. Dos sete médicos atuantes na rede municipal de saúde em nível da ESF, cinco, de maneira voluntária e consentida, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e foram incluídos no estudo. Excluíram-se do estudo dois profissionais médicos, um por ter se recusado (cuja razão foi explicada pela falta de tempo e sobrecarga de trabalho) a participar, e a outra por ser a pesquisadora principal do estudo.
Participaram do estudo cinco médicos, sendo quatro do gênero masculino e um do feminino, com idade entre 27 e 72 anos, com tempo de graduação de três meses a 44 anos. Apenas um participante estudou em uma instituição privada, e o restante, em instituição pública; um só dos participantes tinha especialização em Saúde da Família; o tempo em que atuavam na APS variou de um mês a 20 anos.
Foi utilizado como instrumento para a coleta de dados um roteiro de entrevista semiestruturado elaborado pelos pesquisadores. O instrumento possui duas partes: a primeira trata de aspectos sociodemográficos dos participantes (gênero, idade, graduação, pós-graduação, local e tempo de formação, tempo de atuação na APS e em saúde mental); e a segunda parte é responsável por reunir as questões abertas direcionadas aos objetivos do estudo, no total de oito perguntas disparadoras. Revisou-se esse roteiro de entrevista, e sua sensibilidade foi conferida mediante um pré-teste aplicado a dois médicos atuantes em ESF, mas não integrantes da amostra da pesquisa. Seguiram-se os padrões definidos de aplicação, de modo a permitir a averiguação da necessidade de modificações de sua estrutura.
Para a realização das entrevistas, foram observadas e respeitadas as características de carga horária de trabalho dos profissionais médicos, tanto na ESF como em outros vínculos. Verificaram-se algumas dificuldades, que ao final foram mitigadas. Além disso, a situação da pandemia de Covid-19 exigiu que adaptações fossem realizadas para a coleta de dados, tanto que quatro entrevistas foram realizadas de forma presencial e uma por meio virtual (por meio da plataforma Google Meet, que é um serviço de comunicação por vídeo desenvolvido pelo Google).
Todas as entrevistas foram realizadas pela autora principal do estudo, que na época do estudo atuava como médica. Os outros dois pesquisadores foram responsáveis por orientar a autora principal na pesquisa e atuavam como professores/pesquisadores de uma universidade pública do Brasil.
Os participantes foram contatados, individualmente, por meio de telefone, endereço eletrônico e/ou aplicativo WhatsApp. Essas informações foram obtidas mediante a Secretaria Municipal de Saúde do município investigado. Não havia conflito de interesse entre os pesquisadores do estudo e os participantes que pudesse por qualquer razão interferir na condução da pesquisa.
As entrevistas foram agendadas conforme a disponibilidade dos participantes e ocorreram individualmente em salas de atendimento médico, que eram locais arejados e iluminados. Convém ainda destacar que a entrevista se deu longe da presença de terceiros, a fim de evitar possíveis constrangimentos e/ou vieses de pesquisa. As entrevistas tiveram duração de 25 a 40 minutos; gravou-se o conteúdo por meio de equipamento eletrônico específico, e a transcrição foi feita na íntegra pela própria pesquisadora. As transcrições não foram devolvidas aos participantes para comentários e/ou correção.
Análise dos dados
A análise foi orientada pelos dados, caracterizando uma abordagem indutiva, cujos temas identificados se desvencilham de uma literatura anterior. Para isso, utilizou-se a análise temática de Braun et al.18 que é um dos procedimentos clássicos para analisar material de origem textual. Esse tipo de análise tende a valorizar o material a ser tratado, permitindo, sobretudo, fazer a contextualização com os fatos sociais e históricos nos quais foram produzidos. Por sua liberdade teórica, a análise temática se apresenta como uma ferramenta flexível, capaz de fornecer um amplo e complexo conjunto de dados18.
Após o término das entrevistas, procedeu-se às fases da análise temática (Quadro 1). A codificação dos temas foi realizada de forma manual, mediante leitura flutuante dos dados.
Estabelecidos os procedimentos citados anteriormente, de análise temática, emergiram cinco temas, sendo discutida neste artigo, o tema “A interação entre a atuação médica em saúde mental na atenção primária e a formação”, com duas subcategorias: espaços de formação acadêmica e contribuição da formação acadêmica.
Aspectos éticos
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade federal de Alagoas sob o Parecer (CAAE) nº 331046720.5.0000.5013. Visando garantir o anonimato dos participantes, a eles foram atribuídos nomes fictícios.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
No desenvolvimento do estudo, os médicos atuantes na APS que participaram da pesquisa foram indagados sobre o seu processo de formação acadêmica (espaços de formação e contribuição da formação), especialmente no âmbito da saúde mental.
Espaços de formação
Os espaços formativos foram apresentados como um componente do processo de formação profissional, sendo o local onde se desenham a proposta educacional e a perspectiva de atuação, conforme os excertos a seguir:
Na universidade, a gente tinha cadeira dentro da faculdade, cadeira de saúde mental, algumas aulas práticas nas clínicas de Maceió, Ulisses Pernambucana, hospital psiquiátrico. Tinha cadeira de psiquiatria na universidade (José).
A minha experiência quando me formei era assim, de pronto-socorro. Passei três anos no pronto-socorro, experiência de estágio no Ulisses Pernambucana. Mas não era uma coisa assim que eu amasse fazer... Mais voltado ao hospital (Francisco).
Os espaços de aprendizagem foram considerados um ponto crucial no processo educacional. Nessa perspectiva, Machado et al.19 destacaram os cenários de práticas como locais de experiências únicas, onde o aluno pode desenvolver vivências que não podem ser reproduzidas apenas no contexto da sala de aula.
Os excertos supracitados ainda apontam para a predominância do hospital psiquiátrico como espaço de formação e contato dos médicos, na qualidade de estudantes, com a saúde mental. Cabe salientar que tais excertos são relatos de profissionais formados há cerca de 40 anos, representando, dessa maneira, um período de uma medicina flexneriana, cuja proposta de educação médica se pautava por uma visão reducionista, na qual se valorizava o atendimento hospitalocêntrico, condicionando o aluno a uma visão restrita do paciente, direcionada a aspectos anatomoclínicos2.
Nesse período, ainda não se reconhecia a existência do SUS, e o campo da saúde mental apresentava de forma embrionária os conceitos da RPB, que no futuro seriam o alicerce para a Política Nacional de Saúde Mental e para a construção da Rede de Atenção Psicossocial (Raps).
Todavia, os relatos de profissionais médicos mais jovens, formados nos últimos cinco anos, num contexto de formação diferente do anterior, também enfatizam o hospital psiquiátrico como o principal espaço formativo, embora outros pontos de atenção da Raps, como o Centro de Atenção Psicossocial (Caps), seja apresentado como alternativa de experiências de aprendizagem, conforme se constata nos relatos a seguir:
Na minha faculdade, a gente tinha na graduação ambulatório de psiquiatria; o internato também a gente teve dois meses de psiquiatria e Caps. A gente atuava nos Caps. Como lá não tinha acesso ao Portugal Ramalho [hospital psiquiátrico], o campo da gente era só esse mesmo (Maria).
Durante as aulas de psiquiatria, saúde mental, no Hospital Portugal Ramalho, houve sim muitas experiências com pacientes (João).
Na disciplina propriamente dita da graduação, do currículo formal, a gente só contemplou o ambiente do Portugal Ramalho, né? Que é o hospital de referência, e lá a gente passou por alguns campos, o Pisam que é o ambulatório, a urgência e as enfermarias. Mas assim... É... Foram contempladas aulas teóricas, que tiveram deficiência ao meu olhar. Foram muito restritas ao que o professor queria passar... A abordagem medicamentosa, a terapia de um modo geral “deixou a desejar” (Pedro).
Nessa perspectiva, surge o questionamento:
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Ainda estamos vivenciando a formação em saúde mental de décadas atrás?
A formação médica brasileira, nos últimos 20 anos, tem passado por reformulações. O advento da criação do SUS e o descompasso entre a conformação da atuação médica vigente e as demandas em saúde da população culminaram em transformações curriculares20.
A DCN de 2001 e em especial a de 2014 trouxeram uma proposta de inovação para a formação médica, porquanto apoiam a ampliação dos espaços formativos por meio da inserção do aluno nos serviços de saúde, ainda nas primeiras séries e ao longo de todo o curso21.
A ampliação dos espaços de aprendizagem, incluindo novos cenários de prática no contexto da reformulação da educação médica, possibilita uma formação curricular humanística, sob a exegese da integralidade22.
Uma formação médica pautada pela aproximação do estudante com a rotina dos serviços de saúde e com o cotidiano dos usuários tende a proporcionar uma formação mais sólida, viabilizando o fortalecimento de vínculos19.
No campo da saúde mental, Touso et al.14 afirmam ser necessário incluir o aluno nos cenários de assistência desde seus primeiros passos na academia, a fim de desenvolver a perspectiva do cuidado/assistência integral, estimulado pelo contato precoce com a pessoa em sofrimento mental.
No entanto, os relatos demonstram que a ampliação dos espaços formativos, no âmbito da saúde mental, ainda é um processo limitado, mesmo para aqueles profissionais de formação médica mais recente, sob a perspectiva e o alcance das DCN, persistindo a centralidade do hospital e o restrito uso de outros serviços de cuidado, na intenção de diversificar os espaços formativos.
A presente pesquisa corrobora os achados de Chehuen Neto et al.22, em que a percepção dos estudantes de Medicina e dos médicos participantes do estudo apontou um envolvimento apenas pontual com a APS, o que para os autores constitui evidência de que a reforma curricular ainda não alcançou plenamente o seu lugar, permanecendo em algumas escolas a valorização do espaço hospitalar como campo formativo.
Para Cardoso et al.23, a manutenção da centralidade no hospital contribui para a inadequação do perfil médico formado, de modo a prejudicar a aquisição de competências e a formação da identidade profissional, e favorecer distorções do cuidado em saúde e a manutenção de relações de poder entre médico e usuário.
No estudo de Stella et al.24 com escolas médicas, observou-se que nenhuma instituição se colocou no modelo tradicional, dispondo apenas do hospital como espaço formativo. Em torno de 25% das escolas avaliadas enquadraram-se como inovadoras, ou seja, um curso estruturado no ambiente hospitalar, mas com alguma interação com a APS no internato. Nesse cenário, a dificuldade de articulação com os serviços municipais é apontada como fator limitante. As demais escolas, em torno de 75%, dispõem de um currículo avançado, em que se propõe e se reconhece a importância da diversificação dos cenários formativos, estabelecendo parcerias com os municípios.
Em seu estudo, os autores supracitados ainda destacam que a utilização de outros cenários tem sido restrita a algumas disciplinas como a Saúde Coletiva e a Medicina Preventiva, e acrescentam que existem descompassos entre a intencionalidade de inovação curricular das escolas médicas e a realidade vivenciada e evidenciada, uma vez que, embora tenham a classificação como inovadora ou avançada, utilizando metodologias ativas de ensino, mantêm ações sem integração entre teoria e prática ao longo do processo de ensino-aprendizagem.
Quanto à perspectiva da APS como espaço formativo em saúde mental, destaca-se que apenas um participante entre todos, em especial entre aqueles formados nos últimos cinco anos, refere a APS como campo de práticas e cuidado em saúde mental, mesmo que de maneira eventual e não direcionada, conforme o relato a seguir:
[...] na atenção primária, acabava que como a gente teve a medicina na família em comunidade [disciplina curricular], vez ou outra a gente atendia pacientes psiquiátricos, mas, assim, não focado para isso, não teve nada especial focado para isso. Mas desde o segundo período até o final da minha formação, a gente passou por muitos estágios na atenção básica (Maria).
A APS é reconhecidamente apontada como o principal cenário de formação profissional no campo da saúde e de cuidado em saúde mental, dada a sua capacidade de promover o acesso e a resolutividade do cuidado para grande parte dos transtornos mentais24.
No entanto, os relatos dos participantes apresentam a APS em papel secundário quando o assunto é a formação em saúde mental, desconsiderando as possibilidades que esse nível de atenção pode propor. Nessa perspectiva, não se leva em conta o fato de que muitos dos egressos das academias médicas terão suas primeiras experiências profissionais no âmbito da APS, na ESF25.
Para Costa et al.20, a inserção dos alunos no cenário da APS, ao longo de sua graduação, coloca-os em contato com o modelo de reorganização da saúde no país, permitindo o desenvolvimento de aspectos como relação médico-paciente, capacidade de comunicação diagnóstica e abordagens terapêuticas em consonância com variantes sociais, regionais, econômicas e culturais.
Valendo-se da experiência de um internato de saúde mental integrado à medicina de família e comunidade (MFC), Cavalcanti et al.15 defendem, em seu estudo, a APS como o melhor cenário para treinar futuros médicos generalistas em saúde mental, dada a possibilidade para se dirimir o hiato terapêutico existente nesse campo da saúde, formando profissionais aptos ao cuidado numa perspectiva biopsicossocial e valorizando as potencialidades da APS nesse cuidado. Os autores apontam, ainda, os cenários da APS, Caps, Núcleos de Saúde da Família (Nasf) e Consultórios na Rua (CR) como cenários prioritários para a formação médica no âmbito da saúde mental, tendo em vista que o que se pretende é uma formação, para além da perspectiva da psiquiatria, com o reconhecimento dos transtornos mentais, ampliando a percepção para o sofrimento humano desvencilhado da necessidade de um diagnóstico.
Contribuição da formação
Quanto às contribuições da formação acadêmica na atuação médica em saúde mental na APS, os participantes são categóricos em apresentar conotações predominantemente negativas, pois reconhecem lacunas formativas que afetam os seus desempenhos na perspectiva da atuação em saúde mental na APS, conforme os excertos a seguir:
A formação da faculdade na psiquiatria é muito insuficiente, não dá o suporte adequado que a gente precisa (José).
Não, ela não me preparou para isso. Hoje eu vejo a saúde mental muito baseada em medicamento, quando na verdade medicamentos seriam só uma ajuda... A gente estuda muito medicamentos, como eles vão aliviar aqueles sintomas, e esquece a parte psicossocial, que para mim hoje é a mais importante (João).
Olha, eu acho que não, sinceramente, porque, muito embora a gente passe por alguns estágios que contemplem a saúde mental, para mim a autonomia de ser médico assim que a gente se forma já é muito difícil você conquistar essa autonomia de tomar decisões, tomar condutas e tudo. Na saúde mental, eu acho que é mais ainda, porque você tem que ser um auxílio médico, científico e um auxílio emocional também para o paciente. Muitas vezes não estamos prontos, principalmente emocionalmente... (Maria).
Eu acho que falta muito na nossa formação na parte de emergência psiquiátrica, porque a gente acaba recebendo os pacientes e tratando cientificamente, tecnicamente, mas emocionalmente a gente não tem base para lidar com algumas situações (Maria).
Foi muito deficiente, como eu disse. A cadeira em si. Os estágios no internato. Acredito que a gente não tem uma postura ativa diante da saúde mental, né? Estou falando no sentido da minha universidade, do que eu vivenciei. E como a gente se depara com a realidade da assistência como profissional, acredito que não fiquei totalmente preparado. Muito fragilizado mesmo, muito ansioso, muito preocupado com essa abordagem (Pedro).
[...] é muito da especialização. Acho que é resquício do modelo biomédico hegemônico, que estimula que a gente trabalhe focado naquela atuação de especialista. Acredito que o que a gente vivenciou, principalmente na minha graduação médica, foi voltado exclusivamente para uma atuação de especialidade, e não no sentido ampliado, generalista, que pode contribuir significativamente com a atenção básica e a saúde pública. Mas, assim, não tivemos uma formação generalista, não. Era mais direcionada para a especialidade (Pedro).
Os relatos supracitados apontam para as deficiências da formação no campo da saúde mental relacionada à valorização de questões pertinentes ao “uso do medicamento” e à dificuldade em conceder autonomia no cuidado em saúde mental, por meio do aprendizado de competências afetivas (emocionais e psicológicas) e que implicam a atuação do profissional na APS.
Corroborando esses relatos, Campos et al.26 asseveram que as dificuldades inerentes à prática do cuidado em saúde mental na APS advêm da manutenção do modelo biomédico medicalizante, associada a uma formação fragilizada, dirigida pela fragmentação do cuidado em especialidades, com reduzidas práticas territoriais e comunitárias.
De maneira semelhante, o estudo de Pereira et al.8, realizado com médicos da APS da cidade de Sobral, no Ceará, identificou o sentimento de despreparo desses profissionais no atendimento às demandas de saúde mental e enfatizou falhas inerentes à formação acadêmica, conforme destacam os autores:
[...] os temas de saúde mental foram insuficientes, de cunho eminentemente hospitalar, curativo e fora do contexto da atenção comunitária. Em alguns casos, a formação ocorreu de maneira bastante negativa, reforçando preconceitos e tabus em relação ao atendimento psiquiátrico, criando barreiras que dificultaram o interesse e a disponibilidade desses médicos para o atendimento de pacientes portadores de transtornos mentais (p. 8) 8 .
Pereira et al.8) mencionam as lacunas de formação relacionadas ao despreparo dos médicos quanto ao desenvolvimento e à utilização de recursos não farmacológicos, como a escuta e a construção de planos terapêuticos, encarados como limitantes à atuação profissional, o que revela a necessidade de mudança no paradigma assistencial em razão das demandas emocionais dos pacientes.
Transformar essa perspectiva é um desafio, tendo em vista a marginalização e o isolamento concedido à temática de saúde mental no contexto das escolas médicas27.
Embora autores como Cardoso et al.23 destaquem a escassez de estudos brasileiros, nos últimos anos, direcionados ao aprendizado de competências culturais com enfoque no sofrimento psicossocial no período da graduação, especialmente no contexto do internato, outros estudos como o de Touso et al.14 apresentam a possibilidade de transformação do cuidado, ao proporem a ampliação dos cenários de formação no contexto da saúde mental, incentivando o contato dos estudantes, ainda em anos iniciais, com a atenção psicossocial e proporcionando a discussão de competências voltadas a uma atuação humanista e à assistência integral do ser humano.
Dessa forma, ressaltam-se a necessidade de se atentar para a formação médica no âmbito da saúde mental e a maneira como esse processo é conduzido, uma vez que, de acordo com a DNC de 2014, a saúde mental é uma área obrigatória a ser incluída no desenvolvimento da graduação em Medicina. Nessa perspectiva, a formação precisa resultar em médicos generalistas efetivos em sua abordagem ao paciente, qualquer que seja o nível de atenção, especialmente na APS e na urgência/emergência. Devem ser profissionais não apenas dotados de habilidades gerais, mas também capazes de promover uma atuação humanística pautada pela integralidade21.
CONCLUSÃO
O presente estudo buscou entender o processo de formação médica em saúde mental. Constatou-se que a formação ainda valoriza o cenário hospitalar e as intervenções de caráter biomédico, subutilizando os espaços da APS no treinamento de jovens médicos em formação.
Destaca-se, também, que o cenário formativo em saúde mental, que se desenha por meio dos relatos dos participantes, denota uma formação parcialmente incompatível com as reais necessidades e demandas de atuação desses profissionais na APS, pois, à medida que lhes ensina a reconhecer os transtornos mentais e realizar intervenções medicamentosas, negligencia outras possibilidades de atuação e o desenvolvimento de competências culturais e emocionais necessárias ao cuidado do sofrimento.
Evidencia-se, portanto, um descompasso entre as propostas de formação das DCN e a realidade vivenciada pelos profissionais durante a graduação, por causa da restrição dos espaços formativos e da valorização da especialidade, em detrimento da atuação generalista.
Desse modo, pode-se afirmar que a formação médica em saúde mental precisa aproximar-se da realidade de atuação do médico generalista, a fim de prepará-lo para as demandas que enfrentará em seu cotidiano na APS.
Salienta-se, ainda, que este estudo não preenche todas as lacunas necessárias ao entendimento da temática proposta, sendo suas limitações dadas pela não avaliação dos projetos pedagógicos curriculares das universidades de origem dos participantes, bem como pela limitação do procedimento de coleta de dados, mas tão somente por meio de entrevistas. Sugere-se, assim, a ampliação da discussão mediante outros métodos de coleta, como grupos focais, englobando a participação de outras categorias - como docentes e acadêmicos de Medicina -, de forma a compreender a formação médica sob outras perspectivas.
Quanto à interpretação dos resultados, ressalta-se a necessidade de cautela, a fim de evitar generalizações, tendo em vista as limitações da amostra e o contexto local onde o estudo foi desenvolvido.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
03 Abr 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
27 Out 2021 -
Aceito
21 Nov 2022