Resumo:
Introdução: As comunidades tradicionais são grupos de indivíduos socialmente organizados que partilham comportamentos econômicos, socioambientais e culturais comuns. Entre elas, destacam-se as comunidades indígenas no Brasil, que vêm sofrendo o impacto da urbanização, do crescimento de doenças crônicas e epidemias e do aumento da insegurança alimentar.
Relato de experiência: Este estudo teve como objetivo descrever as experiências da equipe de saúde, quanto ao uso de uma ferramenta de gestão de dados na assistência, em uma comunidade indígena no Nordeste brasileiro. Trata-se de um relato de experiência do uso de uma ferramenta digital nas ações assistenciais em uma comunidade tradicional. A equipe de saúde foi dividida em dois grupos: agentes comunitários de saúde e estudantes de Medicina.
Discussão: A descrição das experiências e a análise das narrativas resultaram na identificação de 258 citações, que foram classificadas em 12 categorias, relacionadas ao objeto de estudo. Dentre estas, as questões ligadas aos benefícios da ferramenta foram as mais mencionadas (43,41%), em que os subgrupos abordaram diferentes reflexões. A segunda categoria mais citada se referia às limitações da ferramenta (15,11%), sendo a necessidade do sinal de internet o ponto crítico. Ou seja, esta pesquisa mostra vantagens da ferramenta na atenção à saúde, mas também explicita fragilidades inerentes ao seu uso, de modo a trazer questões importantes dessa vivência e estimular práticas semelhantes.
Conclusão: Esse relato de experiência, como método científico, traz importantes questões vivenciadas, relacionadas à aplicabilidade prática de uma ferramenta digital em uma comunidade indígena. Apesar de ser inegável que há pontos de fragilidade evidentes, eles não comprometeram o resultado afirmativo da vivência, melhorando a assistência.
Palavras-chave: Comunidades Indígenas; Tecnologia Digital; Saúde Indígena
Abstract:
Introduction: Traditional communities are groups of socially organized individuals with common economic, socio-environmental, and cultural behaviors. Brazil’s indigenous communities are a prime example of these groups, suffering the impact of urbanization, the growth of chronic diseases, epidemics, and increased food insecurity.
Experience report: To describe the health team’s experiences in the use of a data management tool for care in an indigenous community in northeastern Brazil.
Methodology: This is an experience report on the use of a digital tool to assist actions in a traditional community. The health team was divided into community health agents and medical students.
Discussion: The description of the experiences and analysis of the narratives resulted in identifying 258 citations, classified into 12 categories related to the study scope. Of these, issues related to benefits of the tool were the most commonly mentioned (43.41%), where the subgroups addressed different reflections. The second most cited category referred to the tool’s limitations (15.11%), with the need for an internet connection being the critical point. This research, therefore, shows the tool’s advantages in health care but also explains weaknesses inherent to its use, raising important issues of this experience and stimulating similar practices.
Conclusion: This experience report, as a scientific method, addresses essential experienced issues related to the practical applicability of a digital tool in an indigenous community. Although it is undeniable that there are obvious points of weakness, these did not compromise the positive result of the experience, and care was improved.
Keywords: Indigenous Communities; Digital Technology; Indigenous Health
INTRODUÇÃO
As comunidades tradicionais são grupos de indivíduos socialmente organizados que partilham comportamentos econômicos, socioambientais e culturais comuns. Esses indivíduos são distintos da sociedade urbanizada, como é o caso, das comunidades indígenas1. No Brasil, a partir da década de 1990, os indígenas passaram a ser incluídos no censo demográfico nacional, e desde então houve um aumento médio anual de 10,8% até o início dos anos 20002. Em 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) registraram a presença de 311 povos, distribuídos em 6.238 aldeias, totalizando uma população de 896.617 indígenas autodeclarados. Dentre eles, 57,7% viviam em áreas rurais oficialmente reconhecidas, enquanto apenas 36,2% residiam em áreas urbanas2),(3.
A saúde dos povos indígenas no Brasil tem enfrentado transformações e desafios nas últimas décadas, com aumento de doenças crônicas, aculturação, opressão social e urbanização, que foram agravadas pela emergência da pandemia de Covid-194)-(6. Segundo o Comitê Nacional pela Vida e Memória dos Povos Indígenas da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), até julho de 2022, havia a estimativa de que pelo menos 72 mil indígenas de 162 etnias tinham sido infectados, resultando em 1.315 óbitos7. Além disso, a crise sanitária global tem acarretado declínio nos meios de subsistência, representando uma séria ameaça à segurança alimentar dessas comunidades8.
Ademais, as deficiências e limitações dos cursos médicos têm agravado esse cenário, uma vez que eles não capacitam o profissional no atendimento a essas populações e desconsideram suas características históricas e socioculturais8)-(12. Essa problemática fragiliza a assistência, tensiona a rede de atendimento e evidencia a inoperância das políticas públicas, o que torna essas populações ainda mais vulneráveis e agrava as desigualdades sociais13.
Nesse contexto, a tecnologia digital desempenha um papel fundamental como ferramenta para intervenções em saúde na contemporaneidade, trazendo consigo implicações multifacetadas, como o armazenamento de dados de saúde por meio de sistemas digitais, além das inovações tecnológicas nas áreas de inteligência artificial, nanotecnologia e genômica14),(15. Esses avanços têm potencial para impactar positivamente a assistência, proporcionando abordagens inovadoras na área da saúde15.
Portanto, as ferramentas digitais têm alcançado um importante papel como aliadas nas estratégias assistenciais nas comunidades tradicionais. Assim, diante dos atuais desafios, diversas iniciativas nacionais e internacionais surgiram para explorar o uso dessas tecnologias na promoção da saúde e na prevenção de doenças15)-(17. A Iniciativa Global sobre Tecnologias de Saúde da Organização Mundial da Saúde visa beneficiar especialmente as comunidades vulneráveis18. No entanto, por causa da escassez de experiências, com pouca aplicação em saúde pública, é importante aprofundar a compreensão sobre a utilização efetiva dessa tecnologias e a adaptação delas às necessidades e realidades das comunidades indígenas16),(17.
Considerando os desafios associados às intervenções em saúde em comunidades indígenas, este estudo apresenta uma abordagem inovadora, ao explorar, de forma original, experiências do uso de ferramentas tecnológicas digitais na comunidade indígena Truká, em Pernambuco, sob a perspectiva de profissionais de saúde e estudantes, visando inspirar políticas de saúde e estimular práticas semelhantes em outras comunidades tradicionais.
MÉTODO
Desenho do estudo e equipe assistencial
Trata-se de relato de experiência crítico-reflexivo sobre aspectos práticos vivenciados por profissionais de saúde e estudantes de Medicina no uso da tecnologia digital para coleta, armazenamento e compartilhamento de dados. Esses dados estão relacionados a ações de assistência à saúde da população indígena Truká, a fim de identificar o papel dessa ferramenta no registro e na transmissão das informações clínico-epidemiológicas, bem como descrever o impacto na assistência à comunidade, a partir de relatos experienciados, e fazer uma análise teórico-interpretativa.
Elaborou-se este relato com base nas atividades desenvolvidas pelo Projeto de Aterosclerose em Indígenas (PAI), que atua na assistência e pesquisa voltadas às populações indígenas do Nordeste brasileiro, no período compreendido entre outubro 2021 e fevereiro 2022. Este trabalho vinculou-se à atuação em campo de uma equipe transdisciplinar, com abordagem assistencial e de pesquisa, composta por técnicos em enfermagem, enfermeiro, fisioterapeutas, biólogos, médicos de diferentes especialidades (cardiologista, radiologista, nefrologista, hematologista, cirurgião vascular, clínico geral), estudantes de Medicina, Biologia e Farmácia, que realizavam incursões repetidas à comunidade para proporcionar atendimentos e gerar experiências com a população local. A equipe de pesquisa, devidamente treinada, contou com a participação interinstitucional de pesquisadores do Instituto Gonçalo Moniz (IGM) - centro de pesquisa e ensino da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) situado em Salvador - que forneceram apoio logístico para o armazenamento e processamento das amostras biológicas19.
O PAI foi aprovado por comitês institucionais de ética locais e nacionais com os pareceres nºs 1.488.268 e 5.384.313 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Recebeu ainda aprovação da agência brasileira que regulamenta os assuntos indígenas (Fundação Nacional dos Povos Índígenas - Funai: Processo nº 08620.028965/2015-66), além de ter o consentimento dos chefes das comunidades locais. Dessa forma, procedimentos adotados obedeceram aos Critérios de Ética em Pesquisa com Seres Humanos de acordo com a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.
Grupamento indígena Truká
A comunidade indígena Truká compreende uma população de 2.891 pessoas até 2014, em uma área de seis mil metros quadrados, no munícipio de Cabrobó (no Médio São Francisco), na chamada Ilha de Assunção ou Ilha Grande que faz parte do arquipélago de Assunção. Trata-se de uma área de clima semiárido, que tem como bioma a caatinga. Sua origem data de 1722 após a Missão Assunção, na Ilha de Assunção, sendo a história desse povo marcada por intensas lutas com posseiros não indígenas pelas terras2),(19 (Figura 1).
A evolução do uso das plataformas digitais no PAI
O PAI requeria o uso de ferramentas de gestão dos dados coletados em áreas indígenas do território nacional. Quando do início do PAI, ainda em 2016, a disponibilidade de sistemas com acesso à internet nas localidades indígenas era precária. Naquele momento, com o suporte do IGM/Fiocruz, o Rega Institute for Medical Research de Leuven, na Bélgica, adaptou e disponibilizou um software livre: RegaDB. Esse software foi adaptado para uso específico nessas comunidades tradicionais, utilizando a arquitetura cliente/servidor20) por meio de uma rede local e itinerante (Rega-PAI).
O Rega-PAI possibilitou que a arquitetura cliente/servidor fosse utilizada por meio de uma rede local que era construída temporariamente a cada visita. Em cada estação de atendimento, era disponibilizado um outro computador cliente conectado à rede local para que os dados pudessem ser diretamente inseridos no sistema e armazenados no servidor intermediário. Ao fim de cada dia, o computador utilizado como servidor era levado para cidade e conectado à internet a fim de realizar o upload dos dados coletados ao servidor central, localizados no IGM/Fiocruz, onde eram definitivamente armazenados sob sistemas com proteção digital aos dados e duplo backup (Figura 2).
A partir de 2020, passou a se discutir o uso de uma plataforma que pudesse substituir o Rega-PAI, diante do crescimento do projeto e da magnitude e complexidade dos dados. Em 2021, a coleta de informações clínicas e laboratoriais passaram a ser armazenadas pelo Research Eletronic Data Capture (REDCap), plataforma web desenvolvida pela Vanderbilt University dos Estados Unidos21)-(23. Trata-se de um software de acesso aberto, de uso amigável, que pode ser acessado a partir de qualquer dispositivo eletrônico (computador, tablet ou smartphone). Permite ainda o gerenciamento de informações, a validação de dados em tempo real e a criação de banco de dados clínicos de fácil compreensão20),(21. No Brasil, essa ferramenta é representada pelo Consórcio REDCap Brasil, com mais de 180 instituições, como o IGM/Fiocruz21.
Quanto ao relato de experiência
Os relatos das experiências vivenciadas foram extraídos de um grupo composto por 11 pessoas: três técnicos em enfermagem (mulheres), moradoras da comunidade Truká, que atuavam na equipe como agentes comunitários de saúde (ACS), e oito estudantes de Medicina de diferentes períodos. A decisão de incluir neste relato integrantes do PAI, moradores da comunidade, partiu do pressuposto de que são indivíduos não apenas partícipes do ambiente, mas também integrantes da vida sociocultural e política numa perspectiva epistêmica. Nesse sentido, buscou-se trazer uma narrativa sob a ótica de quem vive na comunidade. Os demais participantes eram estudantes (quatro mulheres e quatro homens) do curso de Medicina da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), campus de Petrolina, em Pernambuco, sendo dois do quinto período, quatro do sexto, um do sétimo e um do oitavo. Com objetivo de sistematizar a análise e descrever o maior número de percepções, os entrevistados foram divididos em dois grupos de acordo com suas relações com a comunidade: ACS e estudantes de Medicina. A diversidade de períodos entre os estudantes traz uma visão mais alargada desse grupo a respeito da temática (princípio da homogeneidade), garantindo uma narrativa mais representativa.
O instrumento usado para o registro das experiências foi a entrevista com questionário semiestruturado, contendo nove perguntas, com visão construtivista, de modo a permitir a livre expressão de opiniões9),(23. As entrevistas foram gravadas em áudio e cuidadosamente transcritas. Adotou-se a técnica da análise de conteúdo de Laurence Bardin, cumprindo as fases de organização dos documentos (pré-análise): leitura flutuante, inferência e interpretação. Após uma leitura minuciosa de cada transcrição, destacando as opiniões negativas e positivas de cada participante, foi efetuada a codificação indutiva. Com base nas codificações, realizou-se a categorização semântica, não apriorística, obedecendo aos princípios da pertinência, exaustividade, objetividade, exclusividade, homogeneidade e produtividade24)-(28. Para isso, como importante ferramenta de auxílio, foi utilizado o ATLAS.ti 22 Desktop, um software destinado a organizar e gerir dados textuais, vídeos, áudios, imagens e gráficos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Para a descrição das experiências do uso da ferramenta REDCap, criaram-se categorias e códigos em todo o corpus da pesquisa, atendendo ao princípio da exaustividade. Dessa forma, os eixos de análises e interpretações foram pautados em cinco grupos de códigos, a fim de identificar o conteúdo explícito e latente a respeito do objeto de estudo29 (Figura 3).
Dentro do eixo de análise, observa-se que, nos resultados das vivências experienciadas, os ACS enfatizaram menos a tecnicidade, ou seja, as habilidades profissionais desenvolvidas, e destacaram o que essas experiências foram capazes de proporcionar no sentido mais interpessoal e humanístico:
Eu melhorei mais ainda como ser humano e profissionalmente... das tecnologias utilizadas, as experiências vividas em cada aldeia e, também, a cada atendimento, as visitas domiciliares, toda a equipe era disposta a mudanças (ACS).
Já entre os estudantes, observa-se o foco no desenvolvimento de competências, principalmente como auxiliador no desenvolvimento de suas habilidades profissionais:
Foi assim fantástico você estar ali. Você conseguia diagnosticar doenças assim, subclínicas para aqueles pacientes. Então, agregou muito no meu conhecimento. Adorei assim ter a ferramenta [...] (Discente do sexto período).
Quando a gente colocava informações, a gente ia aprendendo sobre valores de referência, sobre o que é normal (Discente do oitavo período).
Foi possível, portanto, observar, dentro da mesma experiência, diferentes reflexões. Embora todas se refiram ao mesmo tema, as vivências são distintas e carregam uma singularidade baseada na história de vida de cada indivíduo. Assim, tornou-se factível identificar as características discursivas de cada subgrupo e de cada indivíduo em particular30),(31. Ou seja, diferentes aspectos da experiência vivenciada foram influenciados pela biografia de cada um, estando inseridos (ACS) ou não (estudantes) na comunidade.
De maneira geral, nas palavras dos entrevistados, foram identificadas 258 citações, classificadas em 12 categorias, relacionadas ao objeto de estudo. As questões relacionadas aos benefícios da ferramenta foram as mais mencionadas (43,41%), principalmente em relação às suas qualidades operacionais. Em seguida, citaram-se as limitações da ferramenta (15,11%), as experiências positivas (14,34%), os resultados da vivência (10,86%) e os desafios associados ao uso da ferramenta na comunidade (9,69%).
Segundo Harris et al. (32, essa ferramenta oferece uma interface amigável e intuitiva, e é possível inserir os dados com precisão usando mais de um código de verificação. Essas características estavam presentes de forma enfática nesta experiência, principalmente no que concerne ao aspecto autoexplicativo e à praticidade, gerando rápido aprendizado, mesmo para aqueles que não tinham habilidades com ferramentas tecnológicas:
Acesso muito fácil e intuitivo. Uma vez que aprendi a manusear o software, já me senti bastante adaptada à ferramenta (Discente do quinto período).
[...] fazer essa inserção com fidedignidade, com rapidez. Então eu acho que é uma ferramenta fantástica. O software, você consegue manuseá-lo de uma forma instantânea (Discente do sexto período).
[...] os softwares, eles são muito práticos. Assim, você pode anotar o número do CPF que vai aparecer aquele paciente, todos os dados, só colocar o nome da mãe. Então, ele [software] dá várias oportunidades (Discente do sexto período).
Ademais, a literatura descreve a segurança do armazenamento das informações e a possibilidade de importação para pacotes estatísticos, quando se deseja produzir informações de pesquisa, usando diferentes instrumentos de acesso, como tablets, Android e notebook14),(32. Essas características também foram vivenciadas em campo, especialmente pelos ACS de saúde:
Sim, é uma ferramenta muito importante e segura (ACS).
O que eu mais gostei é que essa plataforma mantém total sigilo ao guardar a informação de cada paciente (ACS).
[...] comecei a inserir os dados pelo notebook e hoje em dia utilizo mais o celular que, para mim, fica mais fácil inserir os dados (ACS).
Várias outras iniciativas do uso dessa plataforma são descritas na literatura, com relatos de experiência em pesquisa e assistência, com a possibilidade de alimentação do banco de dados simultaneamente por mais de um pesquisador14. Em um trabalho de campo, em que uma equipe atua em várias frentes, esse aspecto é fundamental, uma vez que agiliza o processo e possibilita o armazenamento de maior número de informações rapidamente, com acesso a qualquer momento, desde que esteja cadastrado14: “Sim, já que isso dá um panorama completo e rápido acesso. Isso facilita muito as coisas e guia melhor na hora de tomar decisões” (Discente do sexto período).
No entanto, vale destacar que houve reflexão não apenas a respeito das características operacionais da ferramenta, mas também de seu benefício prático para comunidade, especialmente no que se refere à assistência médica. Essa percepção foi compartilhada pelos estudantes, que se tornaram protagonistas nos atendimentos, participando dos diagnósticos, das orientações e das terapias sob a supervisão da preceptoria médica, como se observa nos seguintes depoimentos:
[...] facilitou muito o atendimento dos pacientes (Discente do quinto período).
[...] atendimento mais rápido e proporcionou agilidade no diagnóstico e, muitas vezes, na conduta [...] (Discente do sexto período).
Esses exames foram importantes na hora da gente montar diagnóstico, pensar em condutas [...] (Discente do sétimo período).
Nas áreas mais distantes, a equipe usou o REDCap Mobile App, que permite o registro de informações em locais sem acesso à internet ou com sinal intermitente21. No entanto, no que tange ao registro dos dados, seu uso foi insatisfatório, com necessidade eventual de recorrer a formulários físicos, como se verifica nos seguintes relatos:
[...] se eles estão em uma aldeia mais afastados. A questão da internet realmente vai ser um problema (Discente do oitavo período).
As planilhas impressas utilizadas tornam mais fáceis de serem usadas, pois podemos respondê-las, mesmo sem internet. E quando chegamos em casa, por exemplo, nos conectamos à internet (ACS).
[...] não pudemos ter acesso ao recurso on-line muitas vezes, e assim a gente não lançou alguns dados de forma imediata, mas, sobretudo nas consultas em que eu tive acesso à internet, foi interessante, já que eu consegui ter acesso rápido aos exames anteriores, e isso terminou agilizando o processo (Discente do sexto período).
Nesse sentido, quando se trata de muitas informações para registro, o desafio seria o desenvolvimento de uma ferramenta complementar que operasse de forma off-line com mais eficiência, como relatado a seguir:
Eu acho que, assim, o melhoramento das ferramentas off-line, que seria muito interessante, porque a gente fica muito dependente ainda partir on-line [...] (Discente do sétimo período)
[...] um aprimoramento do carregamento dos dados do software. Ainda que seja necessária a conexão com a internet/rede wifi para o acesso às informações [...] (Discente do quinto período).
Entre os ACS, destacam-se também as limitações de ordem pessoal, como a dificuldade com a língua inglesa, que, mais tarde, foi superada com treinamento e manuseio da ferramenta. Assim, na descrição das experiências, observa-se que a coocorrência de “experiências positivas e negativas” foi de 54,5%, o que denota não necessariamente uma contradição, mas sim desafios inerentes aos benefícios (Figura 4).
Esquema em rede mostrando as relações entre “experiência”, “limitações” e “desafios” do uso da ferramenta na comunidade indígena Truká.
Quando se analisaram as respostas dadas aos desafios, identificou-se uma associação com as limitações, mostrando uma coerência no discurso, ou seja, o tamanho do desafio é proporcional às suas limitações. Nessa conjuntura, como artifício auxiliar da análise de conteúdo e objetivando encontrar novas interpretações e concatenações, aplicou-se a estratégia de “nuvem de palavras”, em que se destacou a palavra “internet”, seguida de “dados”, “acesso”, “paciente” e “desafio” (Figura 5). Percebe-se, portanto, que, na perspectiva das metanarrativas, o acesso à internet para o registro dos dados dos pacientes foi o maior desafio.
É inequívoco o papel dessa ferramenta em benefício da comunidade nas atividades de atenção à saúde. Nesse aspecto, todos os entrevistados fizeram ao menos uma citação, destacando benesses, como registro completo e seguro das informações nas visitas domiciliares, acesso aos exames nos atendimentos e auxílio diagnóstico. Portanto, apesar dos pontos de fragilidade da ferramenta, eles não comprometeram o resultado assertivo da vivência, pois, de acordo com os discentes, o instrumento é “extraordinário”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da complexidade de saúde do país, há a necessidade de melhorar o acesso às informações nas ações de promoção da saúde e prevenção de agravos em comunidades tradicionais. Para isso, um dos caminhos é instrumentalizar as equipes com ferramentas que promovam a possibilidade de práticas efetivas, respeitando as peculiaridades de cada região33)-(35.
Este relato de experiência adota uma abordagem científica ao explorar as aplicações práticas de uma ferramenta de tecnologia digital na assistência à saúde de uma comunidade indígena do Nordeste brasileiro. Além de abordar aspectos inexplorados até então, destacam-se a originalidade, a viabilidade e o enorme potencial contributivo dessa ferramenta. Apesar das limitações discutidas, a experiência demonstrou resultados positivos, mesmo em uma equipe heterogênea, com percepções diversas, fornecendo segurança, qualidade e praticidade aos atendimentos. Espera-se que este relato estimule a adoção de práticas semelhantes em outras comunidades tradicionais, visando expandir os benefícios alcançados
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Ago 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
16 Fev 2023 -
Aceito
05 Jul 2023