Resumo:
O artigo procura investigar a formação do campo religioso afro-sergipano. Seu argumento central é de que, associados às práticas de “feitiçaria” e “bruxaria”, os adeptos das religiões afro-brasileiras eram por vezes envilecidos pela imprensa, perseguidos pelas forças de repressão e tratados como “fetichistas” pela Justiça. Neste artigo, defende-se a hipótese de que o julgamento de Evaristo José dos Santos, que foi acusado da morte de Teodomiro de tal em 1939 por questões relacionadas à “macumba”, refletiu esse emaranhado de intransigências e suspeições. Para além de critérios técnicos, seu julgamento assumiu uma dimensão dogmática, por assim dizer, à medida que se converteu em caixa de ressonância dos estigmas e estereótipos imputados às religiões da diáspora negra.
Palavras-chave: Sergipe; campo religioso; população negra; candomblé
Abstract:
This article seeks to investigate the development of the Afro-Brazilian religious field in the state of Sergipe. Its central argument is that, associated with the practices of “sorcery” and “witchcraft,” the followers of Afro-Brazilian religions were sometimes reviled by the press, persecuted by the forces of repression and treated as “fetishists” by the courts. In this article, I argue that the trial of Evaristo José dos Santos, who was accused of killing Teodomiro “Doe” in 1939 over matters related to “voodoo”, reflected that mire of intransigence and suspicion. Going beyond technical standards, his trial took on a dogmatic aspect, so to speak, as it became a sounding board for the stigmas and stereotypes attached to the religions of the black diaspora.
Keywords: Sergipe; religious field; black population; Candomblé
No dia 20 de julho de 1939, Evaristo José dos Santos, brasileiro, negro, com 30 anos de idade, solteiro, residente no sítio Esperança, localizado em Rosário (cidade do interior do estado de Sergipe conhecida hoje em dia como Rosário do Catete), compareceu à delegacia da cidade para prestar declarações a respeito da morte de Teodomiro de tal. De acordo com sua versão dos fatos, na manhã do dia anterior, quando ia a cavalo pela estrada para Maruim, cidade vizinha, para tratar de seus negócios, encontrou-se com Teodomiro que, rispidamente, quis “por força que ele declarante saísse da estrada”. Como não obedeceu, Teodomiro perdeu a compostura e ofendeu o declarante de “negro safado, bandido, covarde e tantos outros nomes” depreciativos. Respondeu-lhe firmemente, mas não quis brigar com ele. No final do desentendimento, cada um tomou seu rumo e foram embora. Que hoje, por volta das seis e meia da manhã, pegou um cavalo no pasto da Lagoa Escura, uma propriedade do senhor Pedro Pantaleão de Souza, para quem trabalha, quando apareceu Teodomiro a lhe provocar briga. Assim que viu o declarante, Teodomiro lhe fez provocações e ameaças e, ao se aproximar da cerca de arame do pasto, lhe desferiu novas ofensas. Ao passar para o lado de dentro do pasto, Teodomiro tentou o cortar com a foice. Percebendo que morreria, o declarante, que carregava uma espingarda de chumbo, reagiu e atirou contra o seu agressor, que, mesmo com o ferimento, investiu para cima dele, de foice em punho, querendo matá-lo. Para melhor se defender, o declarante usou da espingarda e deu uma pancada no seu agressor, daí foi pior. Teodomiro avançou novamente sobre o declarante, com um facão, mas este lhe soltou das mãos e caiu longe. O agressor então voltou a tentar lhe atacar de foice. Travou-se uma luta infernal. O declarante conseguiu tomar-lhe a foice, com a qual desferiu uma sequência de golpes. Finalmente, Teodomiro caiu desfalecido, e o declarante, todo ensanguentado, foi para casa, onde, horas depois, foi preso pela polícia, quando descobriu que o seu agressor veio a óbito1.
Esta foi a versão dada por Evaristo José dos Santos na delegacia de Rosário. Será que foi fiel aos fatos? Ou seja, será que ele agiu em legítima defesa, como argumentou perante a Justiça? No auto de exame cadavérico, os peritos constataram que Teodomiro, “brasileiro, de cor morena, aparentando contar com vinte cinco anos de idade, de estatura regular e compleição forte”, sofreu quatro ferimentos. Somado ao ferimento produzido por arma de fogo, verificou-se “um ferimento na região frontal direita, medindo 8 centímetros de extensão, apresentando o crânio a descoberto; outro sobre o olho direito, dilacerando-o e outro ainda na região parietal esquerdo, medindo 10 centímetros, deixando também o crânio a descoberto”2. Mas por que Evaristo cometeu aquele assassinato tão cruel? Será que ele, deveras, agiu em legítima defesa?
O delegado apurou os fatos, comandou diligências e ouviu uma série de testemunhas. Ao final das investigações, decretou a prisão preventiva do acusado e remeteu o inquérito policial para a Justiça. Baseando-se na denúncia do Adjunto Promotor Público, Oswaldo Lages, o “Ordenador do Pretor”, reconstituiu o crime desde a sua origem. Teodomiro vivia maritalmente com Luiza, uma mulher dada à prática do xangô. Autoridade nessa “crença fetichista”, ela se comunicava com o além. E, por seus conhecimentos mágicos, era respeitada e procurada por muitos indivíduos. Curava-os quando as doenças apareciam. Fechava-lhes o corpo. Tornava-os invulneráveis à bala e à faca. Por meio de outros “feitiços” e “sortilégios”, ela demonstrava a sua força, atraindo uma legião de admiradores e prosélitos. Dessa legião, faziam parte Evaristo e seus parentes que, numa demonstração da sua admiração e simpatia, cederam a Luiza um pedaço de terra que lhes pertencia, para que ela construísse uma casa. Sob a influência daquela mulher tão poderosa, imaginavam, baixariam sobre todos eles as graças de Deus. E foram além: ajudaram-na na construção da casa, onde aconteciam as sessões de xangô. As coisas correram bem no princípio. Viviam todos no “céu”. Mas, como diz o ditado popular, não há mal que sempre dure, nem bem que não se acabe. Desuniram-se por fim. Teria a “representante de Deus” caído em descrédito? Não. Ao que parece, Evaristo tornou-se “senhor dos conhecimentos” que ela possuía. Assim, a “mãe de santo” se tornara desnecessária. Daí por diante, ele mesmo seria o “pai de santo”, o representante de Xangô nos seus domínios. Teodomiro e Luiza, a princípio bem quistos, eram agora um estorvo, e a mulher, pior do que isso, uma concorrente. Começaram as rusgas. Romperam-se as hostilidades. Evaristo queixou-se à autoridade policial da cidade. Solicitou-lhe que intimasse o casal a sair do seu terreno. A autoridade policial, recebida a queixa, convocou Teodomiro e a mulher a comparecerem à sua presença. Ouviu-os e deu-lhes o prazo de quinze dias para se retirarem da casa onde moravam. Mais do que traição, Teodomiro tomou o gesto de Evaristo como uma declaração de guerra. Resolveu tirar satisfação com o então desafeto, oportunamente. Na véspera do crime, eles se encontraram na estrada de Maruim. Discutiram, trocaram farpas, porém, sem maiores consequências. No dia seguinte, pela manhã cedo, Evaristo saiu para pegar um cavalo no pasto da “propriedade” Lagoa Escura, onde trabalhava. Rente ao pasto, pela estrada real, costumava passar Teodomiro para o seu trabalho. E naquele dia não foi diferente. Ambos se defrontaram. Este portando uma foice e uma faca de marinheiro. Já aquele uma espingarda e um facão. Voltaram a trocar ofensas, indo dessa vez às vias de fato. No final, Teodomiro jazia no chão, morto, e Evaristo nem um arranhão sofreu. Praticado o crime, este se dirigiu para cidade, onde se apresentou a Pedro Pantaleão, seu patrão e padrinho. Narrou-lhe toda a tragédia nos seus mínimos detalhes e, a seu conselho, voltou para casa, onde aguardou a chegada da polícia. Assim, os fatos se passaram, segundo o adjunto de Promotor Público3.
Evaristo foi preso e processado, indo parar no banco dos réus. Antes, porém, de revelar o desfecho de seu caso, teceremos os fios da história da formação e do desenvolvimento das religiões afro-brasileiras em Sergipe. Do texto, cujos significados devem ser decifrados, iremos ao contexto, ao idioma geral daquela sociedade no passado (Darnton 1986). Religiões associadas às práticas de “feitiçaria” e “bruxaria”, seus adeptos eram por vezes envilecidos pela imprensa, perseguidos pelas forças de repressão e tratados como “fetichistas” pela justiça. Neste artigo, defendo o argumento de que o julgamento de Evaristo refletiu esse emaranhado de intransigências e suspeições. Para além de critérios técnicos, seu julgamento foi influenciado pela crença e pelo medo do “feitiço”, convertendo-se em caixa de ressonância dos estigmas e estereótipos imputados às religiões da diáspora negra.
Conforme postula Yvonne Maggie, a crença e o medo do feitiço eram algo generalizado entre as pessoas de todas as “cores” e classes sociais no Brasil, entre 1890 e 1945. Em vista de uma nação civilizada, moderna e estribada na fé cristã, as autoridades públicas instituíram mecanismos de controle e regulação das acusações de feitiçaria. Os agentes do Estado - juízes, promotores, delegados e policiais -, além dos advogados, compactuava desse imaginário, legitimando ou não as acusações. O poder judiciário, por intermédio de processos criminais constituídos a partir de inquéritos produzidos pela polícia para investigar acusações de feitiçaria, regulava o sistema, punindo os que eram condenados como praticante da magia e seus sortilégios (Maggie 1992).
A formação do Xangô sergipano
Os primeiros registros das casas de cultos afro-brasileiros em Sergipe remontam à segunda metade do século XIX. Tudo indica que o terreiro nagô Santa Bárbara Virgem - fundado pelos africanos nagôs que residiam em Laranjeiras, cidade cravada no coração do Vale do Cotinguiba, principal zona de produção açucareira no período escravista - foi o primeiro do estado. Teria sido chefiado por “Ti Henrique”. Quando este morreu, provavelmente no final do século XIX, assumiu o comando da casa Herculano Barbosa Madureira, um liberto africano “grande e forte”. Reza a lenda que Herculano era “Rei de Obá”. Chegando em Laranjeiras, ele teria escolhido os seus dez “embaixadores” e os distribuiu pelas cidades de Laranjeiras, Riachuelo, Japaratuba, Divina Pastora, São Cristóvão, Boca da Mata, em Alagoas, e Flor da Rocha, em Cuba (Oliveira 1978). O fato é que seu terreiro de linhagem nagô estruturou uma comunidade de culto às divindades africanas, com obrigações, hierarquias e calendário ritual (Amaral 2012:327). Herculano faleceu em 1907, tendo sido sucedido por Umbelina Monteiro de Araújo, ou mãe Bilina, como era mais conhecida. Nessa mesma época, surgiu em Laranjeiras o terreiro Filhos de Obá e dele derivaram outras casas de culto: São Jerônimo, Ulufan, São Sebastião e São José. O principal dirigente do Filhos de Obá foi Alexandre José da Silva, um pai de santo influente, que teria não apenas atualizado a tradição dos nagôs, mas também incorporado ao terreiro o Toré (ou seja, o culto aos caboclos), transplantado do vizinho estado de Alagoas (Dantas 1988:37).
Convém explicar que Nagô significa um conjunto de práticas e crenças tidas como de origem iorubá, termo que no Brasil designa diversos grupos de africanos procedentes da Nigéria e do Benin (antigo Daomé), entre os quais os Oyó, Ijexá, Ketu, Ijebu, Egbá, Ifé e Oxogbô. Caracteriza-se, sobretudo, pelo culto aos orixás - as divindades dos iorubás (Santos 1986). No processo de sua legitimação no Brasil - inclusive entre os intelectuais do naipe de Nina Rodrigues (1976 [1933]), Edison Carneiro (1954 [1948]) e Roger Bastide (1978 [1958]) -, o culto nagô da Bahia consagrou-se numa espécie de modelo para o conjunto das religiões dos orixás, e seus ritos, panteão e mitologia tornaram-se predominantes (Prandi 2005:21). Com efeito, em Sergipe, especialmente em Laranjeiras, o culto nagô revela diferenças em relação ao do estado vizinho. Por exemplo, no nagô sergipano não há o “feitorio”, isto é, o ritual de iniciação à religião baseado na reclusão por determinado período, raspagem de cabeça, escarificações, sacrifícios de animais, etc.
Já o Toré está sempre relacionado aos espíritos dos antepassados da terra brasileira, os índios, que eram chamados de caboclos. Consiste num culto no qual os caboclos ou encantados “baixavam” para realizar, principalmente, consultas e curas terapêuticas (Araújo 1964:45-54). Sem ter esta conotação estritamente curativa, é como sinônimo de terreiro de caboclo que o termo toré era usado em Sergipe. Na medida em que tem uma origem ligada ao indígena ancestral brasileiro e mistura tradições rituais diversas, o Toré distinguia-se do Nagô, considerada uma religião vinculada à herança africana, que cultua os orixás e zela pela “pureza” ritual, não admitindo, assim, a adoração aos caboclos. Apesar das diferenças entre o Nagô e o Toré, que ainda diziam respeito ao calendário das festas, aos toques dos tambores, às danças, às vestimentas, etc., essa dupla tradição de culto passou a caracterizar o campo religioso afro-sergipano. Até pelo menos meados do século XX, as práticas rituais associadas aos caboclos e aos orixás coexistiram em muitos, senão na maioria dos terreiros do estado.
Em Aracaju, as manifestações dos cultos afro-brasileiros ganharam mais densidade com o fim da escravidão. Influenciados pelas experiências religiosas de libertos e seus descendentes que migraram das regiões da Cotinguiba e do Vale do Japaratuba para a capital sergipana em busca de melhores condições vida, os terreiros de Nagô e Toré aí se estabeleceram e se desenvolveram desde, pelo menos, o início do século XX. Os primeiros deles surgiram na região periférica de Aracaju, sobretudo no bairro Siqueira Campos, antigo Aribé, local onde ainda se abrigavam muitos sítios e poucos serviços urbanos. Era ali que em todas as semanas ocorriam os “toques” - festas de louvor às divindades africanas e aos caboclos (Oliveira 1978).
Entre os líderes dos cultos afro-brasileiros dessa época, ganharam destaque os nomes de Maria de Pelage, originária de uma família do município de Japaratuba. Graças ao seu profundo conhecimento da religião dos orixás, granjeou para si a reputação de “rainha” dos Nagôs e amiúde era convidada para dirigir festas e cerimônias em diversos terreiros. Outra personagem lembrada é Maria Izabel dos Santos, nascida em Maruim. Pesando mais de 100 quilos, Izabel Gorda, como era popularmente conhecida, andava com dificuldade, porém em transe ritual costumava rodopiar como um pião. Era adepta do Toré, mas transitava e patrocinava festas nagôs. Não menos rememorada é Maria Paulina dos Santos, que também tocava nagô e caboclo, acompanhada às vezes pela sua prima Izabel Gorda ou ainda a sua amiga Maria de Pelage. Começou a “trabalhar” aos 15 anos de idade e só parou quando faleceu aos 62 anos. João Lázaro dos Santos (João Cabecinha) é outro sacerdote que não caiu no limbo. Nasceu em Laranjeiras, vindo fixar residência em Aracaju. Notabilizou-se em todo o estado devido aos famosos festejos e domínio do culto nagô (Oliveira 1978). O que dizer então de Tia Damiana (ou Dami), que invocava “espíritos de caboclos”? Seu prestígio chegou a causar inveja em muita gente. Comenta-se que Damiana fazia casamentos, desquites e dava sorte aos deserdados da fortuna4.
Todavia, o nome que talvez tenha ganhado mais projeção foi o de Daniel, um pai de santo que chegou a ser definido como o “chefe do xangô”. Como se sabe, Xangô é o orixá africano ligado aos raios, aos trovões e à justiça (Prandi 2001), bastante popular em ambos os lados do Atlântico como força agregadora nos cultos de múltiplas divindades (Parés 2014). Por uma ampliação de sentido, o termo xangô em Sergipe era geralmente empregado para designar tanto as casas de culto de Nagô ou Toré, quanto as cerimônias religiosas conhecidas na Bahia como Candomblé5. No imaginário popular, o vocábulo xangô também era utilizado como sinônimo de “macumba”. De acordo com o Sergipe Jornal de 19 de agosto de 1933, Aracaju vinha tendo os “seus candomblés, as suas macumbas”. O bairro Siqueira Campos seria o “foco dos macumbeiros”. Ali o “preto Daniel transformou-se em ‘pai de santo’” e, de quando em vez, promovia um “barulho ensurdecedor dos ‘ganzás’, dos ‘bambos’ e de tantos outros instrumentos esquisitos, originais da África lendária”, quebrando a “monotonia das ruas silenciosas do grande bairro pobre”6. Apesar da abordagem pouco simpática ao candomblé do “preto Daniel”, o Sergipe Jornal reconhecia que suas festas - rituais que incluíam o toque de instrumentos musicais percussivos, a entoada de cantigas e a realização de danças, com roupas e adereços típicos - repercutiam no Siqueira Campos, quebrando a rotina do bairro. Em 24 de maio de 1934, esse pai de santo voltou a ser pautado pela imprensa sergipana. A reportagem de título sugestivo - “Os ‘candomblés’” - foi publicada no Correio de Aracaju:
Há uns dez anos, mais ou menos, os “macumbeiros”, inveterados na prática dos ritos africanos, deturpados pelos nacionais, reuniam-se, aos domingos, no bairro do Aribé, sob o patrocínio do cafuzo Daniel. Para ali, aos domingos, logo cedo, iam os simpatizantes da “pajelança” e deixavam-se ficar, até altas horas da noite. Gente simples, homens de primitiva educação, mocinhas crédulas na esperança de um casamento, casais de vida doméstica atribulada, negociantes às portas da falência, marmanjos de desejos cupidinosos, cidadãos da alta sociedade à cata de preza fácil aos seus instintos sensuais, rapazes de imprensa em busca de sensacionalismo, todos corriam à “cova” do astuto Daniel. O patusco “pai de santo” ia, assim, aos poucos, colhendo dos pacóvios, por entrada na “sala dos sacrifícios”, o necessário para ir ao Mercado abastar-se do sustento. Foram-se abrindo, depois, em vários pontos da cidade, os tais “torés”, sucursais do “estabelecimento” do esperto Daniel7.
O relato nada apreciativo da reportagem, mas ainda assim suficientemente informativo para dar conta de práticas dos “ritos africanos” em Aracaju na década de 1920, indica o papel de primazia desempenhado pelo “cafuzo Daniel”, um pai de santo do bairro do Aribé, hoje Siqueira Campos. Suas festas assumiam um caráter de evento social, reunindo por motivações diversas pessoas de diferentes perfis. Não consta, entretanto, que ele tenha aberto “sucursais” de seu terreiro em “vários pontos da cidade”, nem que tenha se locupletado explorando os “pacóvios”. Pelo contrário. Embora Daniel tenha sido um sacerdote cujo nome se inscreveu na memória da cidade, ao que parece, não soube aproveitar dos recursos sociais e simbólicos advindos da atividade religiosa. Ao longo do tempo, teria enfrentado dificuldades financeiras, o que lhe obrigou a transferir o seu terreiro para a Lagoa de Jabotiana, um lugar distante do perímetro urbano de Aracaju.
Quando o memorialista Mário Cabral lá esteve assistindo a uma noite de “macumba” na década de 1940, produziu um relato minucioso daquela “estranha aventura”. Dezenas de “negros” e “mulatos”, mas também “muito branco da melhor sociedade”, procuravam, no xangô do pai Daniel, a solução para os seus problemas. Prendiam-se ao “sortilégio das vozes e dos tambores, repercutindo, longamente, no silêncio do descampado”. Para iniciar a cerimônia, o “mestre do terreiro” providenciava um “banho geral de arruda”. A “jurema” começava a correr fartamente. Os “pontos” (as canções) eram cantados “em verso, ora em linguagem africana, ora em linguagem brasileira”. No terreiro - “muito limpo, muito varrido, cercado de árvores” -, os homens posicionavam-se de um lado; as mulheres de outro. A dança contagiava. Então, pai Daniel invocava os “deuses” por meio “de cabeças, de agogôs e de atabaques”. Desciam Xangô, Oxossi e o “grande” Oxalá. As filhas de santo entravam em transe de possessão, sendo recolhidas à camarinha para vestir o santo. Quando voltavam, os “deuses” iniciavam as suas danças. A euforia era geral. Havia “gritos, palmas, muita cachaça e muita comida afro-brasileira”. Para finalizar seu relato, Mário Cabral faz uma advertência: “você precisará voltar, porque, muitas vezes, a macumba se prolonga por dias e noites, sem parar, o tambor marcando o compasso bárbaro da religião negra” (Cabral 2002 [1948]:50-51).
Descontando o olhar etnocêntrico de Mário Cabral, duas coisas nos chamam atenção em seu relato. Primeira, gente de todas as classes e cores - “negros” e “mulatos” e “muito branco da melhor sociedade” - recorria ao xangô do pai Daniel para buscar resolver os mais diversos tipos de problemas. Talvez fossem devotos desejando agradar os deuses, simpatizantes querendo consultar os oráculos antes de tomar decisões, gente pretendendo desfazer “feitiço” e proteger o corpo; enfermos em busca de cura, solteiros e mal casados procurando um bem-sucedido namoro ou matrimônio, endividados tentando resolver suas dificuldades financeiras ou simplesmente curiosos que ali estavam para usufruir da celebração religiosa como espetáculo “exótico” (Prandi 2005; Amaral 2012). Segunda coisa digna de nota no relato do memorialista: verifica-se como o xangô do pai Daniel reunia códigos, ritos e símbolos religiosos de origem diversa. A presença do “banho de arruda”, da “jurema”, dos “pontos” cantados em português, por exemplo, remetia-se à tradição do Toré, ao passo que a reverência aos “orixás”, o “vestir o santo” para iniciar as suas “danças” e os “pontos” cantados em “linguagem africana” se remetiam aos ritos do Nagô. Não é de se estranhar que isso acontecesse. Os pais e mães de santo costumavam ser ecléticos e praticar ambos os cultos, promovendo festas alternadas de Toré e Nagô, quando não buscavam amalgamar elementos dos dois cultos, tocando na mesma festa Nagô e Toré.
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A partir da década de 1920, uma nova manifestação religiosa instalou-se em Sergipe: o candomblé de “feitorio”, caracterizado por um conjunto de elaborados rituais de iniciação de fiéis, que abrangia “reclusão na camarinha, raspagem de cabeça, cortes no corpo, sacrifícios de animais”, enfim, uma série de procedimentos ritualísticos conhecidos como feitura de santo (Dantas 2002:94). Desde esse momento, o Toré e o Nagô passaram a dividir o seu espaço com essa modalidade de candomblé, “importado” da Bahia.
Para focalizar esse novo cenário, vamos nos valer de um processo crime, cuja narrativa gira em torno de uma confusão gerada por um “ex-amante” ciumento. Segundo o inquérito policial desse processo, no sábado, 23 de setembro de 1929, Maria José dos Santos - com 25 anos, solteira, doméstica, natural de Sergipe, analfabeta, residente à rua de Propriá da Capital - juntamente com sua irmã e uma amiga, acompanhadas dos rapazes Josino dos Santos - com 25 anos, solteiro, estivador, natural de Sergipe, analfabeto - e Maurício dos Santos - com 22 anos, solteiro, saveirista, natural de Sergipe, analfabeto -, assistiram nas “oficinas da Estrada de Ferro” a um “candomblé”. De lá voltaram em companhia dos rapazes para suas casas, onde chegaram depois da meia-noite. Manoel Messias Feitoza - com 25 anos, solteiro, natural de Sergipe, analfabeto, residente à rua Propriá -, “ex-amante” de Maria José, com ciúmes de tê-la visto àquela hora acompanhada, esperou os rapazes irem embora e a abordou no portão de sua casa. Maria José reclamou da abordagem e chamou sua mãe. Neste momento, Manoel Messias gritou: “não abra a porta, não, a esta cachorra, que isto não são horas desta bandida andar na rua”. Aberta a porta pela mãe de Maria José, esta foi logo questionando que negócio era aquele, ao que Manoel Messias reagiu, chamando-a de “cachorra velha, e outras ofensas”. O “bate bocas” acordou João André - com 22 anos, solteiro, natural de Sergipe, analfabeto, residente à rua Propriá -, irmão da moça, que se dirigiu até o portão para tirar satisfação com o indivíduo que maltratava sua irmã e sua mãe, sendo por este recebido a “bofetadas”. Travou-se então uma luta entre ambos, da qual resultou o ferimento descrito no auto de corpo de delito, feito por João André em Manoel Messias8.
Importa ressaltar aqui que esse processo crime, de 1929, foi o primeiro registro da existência de um terreiro de candomblé em Aracaju que encontramos no conjunto documental que serviu como fonte para este estudo. Pode-se supor que o vocábulo “candomblé”, utilizado pelo escrivão, não garantia que tal fosse o caso, mas indicava a presença de cultos afro-brasileiros de alguma forma. Conforme argumenta Agamenon Guimarães de Oliveira (1978), o candomblé de “feitorio” chegou a Sergipe por volta da década de 1920, trazido pelos pais de santo baianos. Consta que o primeiro deles foi Capianga, que, oriundo de Salvador, alugou uma casa no Siqueira Campos, onde realizava festas e cerimônias de culto aos orixás. Como não conseguiu adeptos, já que havia uma predominância do Nagô e Toré, Capianga regressou a sua cidade natal. Depois dele, outros pais de santo baianos ligados às diversas nações de candomblé tentaram fazer carreira em Sergipe na década de 1930, como Manezinho Sandaió (cognominado Manezinho de Oxóssi), tido como o responsável pelo primeiro “barco de iaôs”9 da nação ketu; Manezinho Baiano (vulgo Manezinho Preto), que fez alguns iniciados no candomblé da nação angola; e Manezinho Boiadeiro (ou Manezinho Mulato), que se supõe ter tido vinculação com a nação ijexá (Oliveira 1978). O deslocamento desses pais de santo era facilitado pela linha ferroviária, cujos trens da Leste Brasileira - popularmente conhecidos como Maria Fumaça - atravessavam a periferia de Aracaju e várias outras cidades sergipanas, transportando mercadorias, ideias, crenças religiosas e gente. Gente que, por vezes, ia fazer “noviciado sacerdotal” em Salvador, como a sergipana que a antropóloga estadunidense Ruth Landes encontrou, no final da década de 1930, “morando temporariamente” no terreiro de Mãe Sabina (Landes 2002 [1967]:228-229).
Foi nesse momento que os cultos afro-brasileiros se tornaram, pouco a pouco, alvos da imprensa sergipana. Em 18 de setembro de 1934, o jornalista Zózimo Lima manejou sua pena para trazer a lume no Correio de Aracaju uma crônica intitulada “Um profissional do Candomblé”, na qual relatava um virtual encontro dele com Julião, “um cabra reforçado, bem falante, cor de piche” e “beiçola”. A conversa teria gravitado em torno da trajetória de Julião e seu gosto para cair na “folia da macumba”. Depois de dialogar e ouvir atentamente Julião falar de algumas das “folganças fetichistas do candomblé”, cujas cerimônias atraíam um “grande número de crentes” do “Alto do Pepino, no Pau Miúdo e na Mata Escura” em busca de uma “graça” para suas demandas, Zózimo Lima teria feito uma última indagação ao “sergipano da gema, natural do Gerú, filho de baiano nascido no Cabula”:
- Agora, Julião, vais me contar a cerimônia do quarto escuro, quando o ‘ogã’ vai tirar os ‘santos’ das atuadas. - Eu não posso agora, branco, porque vou ao Aribé a chamado de seu Carlos. Fica para outra vez. Vá me desculpando. Adeusinho. E lá se foi o negralhão pernóstico, lampeiro, gingando, no passo do urubu malandro10.
A partir de uma crônica, Zózimo Lima se referiu a fatos e personagens do cotidiano da cidade e traçou uma alegoria do Candomblé, ressaltando os aspectos exóticos, pitorescos e essencialistas dessa coisa de gente “negra”, “ignorante” e “malandra”. O jornalista via os adeptos das “folganças fetichistas” como se o fizesse por cima de um abismo. Para ele, eram “espécimes”, embora naturalmente seres humanos com direito inalienável de viver como quisessem. Três meses depois, ele abordou a temática num artigo veiculado na primeira página do Correio de Aracaju, mas, desta vez, não se valeu de nenhuma figura de linguagem para desancar a prática do “baixo espiritismo em suas múltiplas variedades, como sejam os candomblés e outras bruxarias transplantadas das aldeias africanas no tempo da escravidão”11.
Em 26 de fevereiro de 1942, Zózimo Lima voltou a pautar o assunto numa crônica e, novamente, carregou na tinta. Conta que, num determinado sábado, procurou por esses “becos e ruelas” do subúrbio da cidade algum desses “iluminados” que lhe tirasse a “jettatore”. Há muito que ele desejava ouvir um desses “desvendadores do futuro, detentores de forças ocultas que impedem o prosseguimento do mal, cortam os embaraços que se nos entolham obstando a marcha da felicidade” e resolvem, “com meia dúzia de palavras cabalísticas e uns banhos de folhas de alecrim em infusão, os mais complicados problemas do destino”. Relata que foi, por uma pessoa frequentadora dos “terreiros de pai-de-santo e as sessões onde se operam as transformadoras condensações fluídico-espirituais”, encaminhado à casa de “respeitável matrona”, que era “assessorada pelo espírito do nosso silvícola conterrâneo Aperipê”. Acertado o preço da consulta, a “madama”, que era “desenvolta e tagarela”, levou-o à sala de jantar e deu início ao “trabalho psíquico de alta relevância. Cruzou as mãos no peito chato de mamas derramadas, fechou os olhos como quem saboreia um gostoso trago de cachaça com angico, deu três suspiros longos e ruidosos e caiu em aparente transe”. Daí a instantes ele ouvia, da mulher a “passear pela sala como sonâmbula”, a declaração de que a felicidade dele ia ser completa dentro de pouco tempo, com a morte de um seu padrinho rico, que o deixaria vultosa soma em “dinheiro de contado”. Ao ouvir essas palavras da “Cassandra suburbana”, ele teria “disparado” do local indignado, deixando-a “estarrecida, a dizer sandices para os caibros e as paredes”. Zózimo Lima então expressou sua contundente opinião: “E ainda existe, por aqui, o que causa admiração, quem frequente esses centros de embuste onde predominam a estupidez e a ignorância de certas criaturas que ganham a vida explorando a credulidade dos papalvos”12.
Em que pese o jornalista não ter o mínimo de apreço pelos terreiros de pais e mães de santo, numa coisa ele tinha razão: existia gente que a eles recorria - e numa escala cada vez maior. Entre adeptos, simpatizantes e clientes, houve uma expansão das religiões afro-brasileiras em Sergipe na década de 1940, fenômeno presumível nas cidades de Laranjeiras, Nossa Senhora do Socorro, Riachuelo, Santo Amaro das Brotas, Maruim, São Cristóvão, Siriri, Japaratuba, Simão Dias, Frei Paulo, entre outras13. De acordo com Beatriz Góis Dantas (2014), essa expansão estava relacionada ao crescimento do número de casas de culto, que, desde a década anterior, se ampliava com a atuação de pais de santo procedentes da Bahia, os quais trouxeram o “feitorio de santo”. Desse modo, eles contribuíram não só para diversificar a tradição local dos Nagôs e dos Torés, como também aumentar o número de seguidores e de chefes religiosos que abriram novos terreiros (Dantas 2014).
Paradigmático disso foi o que aconteceu com Nanã, nome pelo qual ficou conhecida Erundina Nobre dos Santos, famosa mãe de santo de Aracaju. Migrante da cidade de Riachuelo, abriu com menos de 30 anos um centro de Toré na capital, onde fazia sessões e trabalhava com um preto velho, Pai João, e entidades caboclas. No início da década de 1940, ela se submeteu ao “feitorio de santo” (ou seja, aos rituais de iniciação típicos do candomblé baiano) pelas mãos de Zequinha do Pará, um pai de santo homossexual ligado à nação ijexá de Alagoinhas (BA), que montou terreiro no Alto João de Crôa, no bairro Santos Dumont, e passou a recolher candidatos à iniciação. Sem deixar de cultuar o seu preto velho e abrir mão dos caboclos que festejava em seu antigo toré, Nanã legitimou-se no Candomblé como mãe de santo feita e logo adquiriu mais prestígio, passando a iniciar um número crescente de novos fiéis que, por sua vez, abriram terreiros em cidades do interior e em outros estados como Bahia, Alagoas, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo (Dantas 2002).
Entre três fogos cruzados: imprensa, polícia e Justiça
As manifestações religiosas afro-brasileiras também ganharam maior capilaridade na capital, onde se multiplicaram as casas de culto em diferentes bairros - Grajeru, Santo Antônio, Jabotiana, Santos Dumont, 18 do Forte, Cidade Nova, Cabeludas, Caixa d’Água e Siqueira Campos. Tudo isso se refletiu no nível de interesse dos intelectuais pelo assunto. Em 1949, Freire Ribeiro trouxe à baila Curral, uma “novela-poema” cuja narrativa girava em torno da trajetória de uma prostituta. Livro publicado originalmente sob a forma de capítulos no Sergipe Jornal, seu título era um homônimo ao lugar onde se concentrava os cabarés do baixo meretrício em Aracaju. O autor retratou o “submundo” da cidade, com direito a fazer menções a “macumbeiros” e despachos, bem como informar sobre chefes de terreiro e sua inserção na vida da comunidade (Ribeiro 1949).
Se Freire Ribeiro se apropriou da literatura para abordar os cultos afro-brasileiros, Felte Bezerra preferiu se valer da linguagem acadêmica. Em 1947, o antropólogo sergipano assistiu a uma festa do “xangô” de Zeca, situado nas imediações do bairro de Atalaia Velha, e produziu um relato etnográfico meticuloso. O “terreiro” funcionava dentro da própria residência do “pai de santo”, uma casa de “estilo rural nordestino, de telha vã, com alpendre e atijolada interiormente” (Bezerra 1984 [1950]:137-142). O relato de Felte Bezerra deve ser compreendido no contexto de expansão dos xangôs em Sergipe, quando alguns intelectuais sinalizaram interesse em cartografar as “sobrevivências” africanas no estado14. Porém, se, por um lado, se ampliou o número de centros de cultos e de adeptos da religião, por outro, ampliou-se também o número de reclamantes. Em 18 de fevereiro de 1939, o Correio de Aracaju publicou em sua primeira página:
A nossa reportagem constatou, ontem, a existência de um “toré” na Getimana, dirigido por um grupo de pretos que se entregam, ainda hoje, ao fetichismo africano. Lamentável é que os cafuzos que organizam a extravagante festa, onde os atabaques e abocós entram numa barulheira infernal, incorporem ao grupo crianças que deveriam ser encaminhadas à escola. A polícia deve dar um passeio àquela zona e acabar com o tal “toré”, que é um atentado à moral e à civilização15.
Percebe-se, nesse instante, que as religiões afro-brasileiras passaram a despertar mais a atenção da imprensa sergipana. Conquanto a julgar pelas imagens e representações urdidas pelos jornais, tem-se a impressão de que os centros de culto se constituiriam em núcleos virtuais de “perigo” e “desordem”, por reunir “grupos de pretos” que se rendiam ao “fetichismo africano”. Vale assinalar que a Constituição brasileira de 1891 garantia a liberdade religiosa, mas as práticas dos terreiros - com suas festas, cantigas, rituais, magias e simbologias - eram vistas como quebra do sossego público, exercício ilegal da medicina, “feitiçaria”, “curandeirismo”, “charlatanismo”, “magia negra”, “baixo espiritismo”16, portanto, imputáveis como crime pelo Código Penal de 1890, em seus artigos 156, 157 e 15817. Seja como for, os órgãos da imprensa geralmente empregavam um discurso tendencioso e ideológico contra os terreiros, tidos como coisa de gente atrasada, e não hesitavam em solicitar providências das autoridades policiais no sentido de coibir aqueles atentados ao progresso, “à moral e à civilização”.
Na sua edição de 18 de março de 1941, O Nordeste publicou uma nota sob o título “Espiritismo ou Changô”, na qual chamava a “atenção da polícia para a praga de feitiçaria que lavra na cidade”. Segundo o jornal, “uma meia dúzia de malandros” encontrava nas “negras práticas de feitiçaria um bom meio de vida”, que lhes garantia subsistência sem trabalho. “Vivem por aí impunes rufando os tambores as nossas barbas e às barbas da Polícia”18. O tom da notícia é evidentemente policialesco, com denúncias de feitiçarias e crimes que estariam sendo cometidos devido ao “Espiritismo ou Changô” e com a advertência às autoridades. Em alguns casos, mais do que advertências, as notícias adquiriam um tom notadamente alarmista e sensacionalista19. Essa exortação à ação policial contribuiu para deflagrar, se não legitimar, a perseguição aos cultos afro-brasileiros em Sergipe.
Em 1939, o Correio de Aracaju denunciou a existência de “macumba”, ligada às práticas dos ritos africanos, na rua do Bonfim (atual avenida Sete de Setembro), na região central da cidade. De acordo com a matéria, os “ogãs”20 recrutavam entre o baixo meretrício as “coadjuvantes” das “sessões” onde imperavam a mais “desbragada licenciosidade”. A polícia, entretanto, como “zeladora da ordem social”, teria ido a campo e, aos poucos, debandou os “farristas que se desmandavam, muitas vezes, em práticas que estão condenadas pelo Código Penal”. Para finalizar a matéria, o jornal conclamava seus leitores a terem uma postura de intolerância: “vez por outra reúnem-se os ‘pais de santos’, em ‘conclave’, lá para as bandas do ‘Forte dos 18’, manejam os ganzás e atabaques, porém logo fogem à aproximação da ronda policial. Acabemos, de vez, com essas patifarias com o nome de candomblés”21.
À campanha da imprensa contra as religiões afro-brasileiras somaram-se as queixas de uma parcela da população. “Ao comandante do destacamento do posto policial do 10º. distrito”, reportou-se o Sergipe Jornal em 1933, “foi denunciado que no alto do Urubu se dançava ‘candomblé’ e o resultado foi a prisão de vários chefes fetichistas e a natural dissolução do Xangô”22. No Diário de Ronda de 25 de julho de 1931, um policial relata que um sujeito de nome Marcelino denunciou a existência de um “forte candomblé” nas imediações dos bairros do Siqueira Campos, Bonfim e Curral. Depois de rondar a região, a patrulha policial encontrou a casa de culto, mas já era tarde. O “candomblé” havia terminado. “Mesmo assim” - lavrou o agente da lei - “revistei todo o pessoal. Nada encontrando que perturbasse a ordem em vigor, pois o mesmo pessoal sabia que a patrulha para lá se dirigia”23. Algumas vezes a polícia realizava diligências gerais, circulando por diversos bairros, ruas e becos, à procura de candomblés. Deixava-se guiar, principalmente, pelo som dos atabaques. Outras vezes as batidas policiais ocorreram graças às delações de moradores que prestaram queixas. Estas se relacionavam à “barulheira infernal” dos atabaques, à “perturbação” da ordem pública, aos “perigos” de frequentar aqueles “antros de perdição e licenciosidade”, ao medo do “feitiço” e da “bruxaria”, ao incômodo causado pelos vestígios de “fetichismo africano” (despachos, velas e oferendas: por exemplo, galinha preta, alguidar com farofa e garrafas de cachaça) nas esquinas das ruas, nas estradas, nos logradouros e nas encruzilhadas; aos “males” provocados pelo “charlatanismo”, pelo exercício ilegal da medicina, etc.
Em pesquisa relativa ao Rio de Janeiro, Yvonne Maggie constatou que as práticas reportadas pelos artigos 156, 157 e 158 do Código Penal estavam enraizadas no cotidiano da população. Ainda assim, os cultos religiosos de origem africana ou afro-brasileira atraíam a atenção da imprensa, quando não eram perseguidos e acusados de produzir malefícios em meio a complexas relações estabelecidas entre os “feiticeiros”, a população carioca e as autoridades. As acusações de feitiçaria - feitas por vizinhos, clientes, parentes de pessoas ligadas aos terreiros ou até mesmo instituições públicas - não somente eram bem-vindas, como também reforçavam a crença na magia e seus sortilégios. Essa crença precisava da delação e da denúncia públicas para que a polícia perseguisse o acusado, prendesse-o e constituísse a figura do feiticeiro, que poderia ou não ser alvo de inquérito e ação penal (Maggie 1992).
De maneira similar, pode-se inferir que, em Sergipe, as religiões afro-brasileiras ficavam entre três fogos cruzados: da imprensa, dos delatores e da polícia. Qualificadas de “baixo espiritismo”, vez que praticavam “sortilégios”, “feitiçarias” e “curandeirismos”, e estigmatizadas como despidas de moralidade e motivadas por interesses escusos envolvendo pessoas negras, desclassificadas socialmente e ignorantes, continuaram sendo enquadradas no Código Penal de 194024. Se ao longo da década de 1930 há notícias de prisões de “chefes fetichistas” e da “dissolução dos Xangôs”, foi durante o Estado Novo - nos governos dos interventores federais Eronides de Carvalho (1937-1941), Milton Azevedo (1941-1942) e, especialmente, Augusto Maynard Gomes (1942-1945) - que a repressão aos cultos afro-brasileiros em Sergipe chegou ao seu auge25. A repressão, até então esporádica, tornou-se organizada. Batidas policiais, prisões, apreensões, inquéritos e processos criminais passaram a fazer parte do cotidiano de pais e mães de santo e seus fiéis, causando-lhes pesadelos e calafrios.
Na cidade de Laranjeiras, assinala Beatriz Dantas, foi “forte a perseguição policial movida contra os terreiros de xangô” nesse período, e os que “desafiavam a proibição de fazer festejos eram presos e tinham seus objetos rituais apreendidos e ‘queimados no fundo da cadeia pública’” (Dantas 1988:221). Em Aracaju, esse quadro de “caça às bruxas” repetiu-se. Muitos terreiros foram invadidos pela polícia. Tiveram seus rituais interrompidos, peças e objetos sagrados destruídos, quando não confiscados e levados para a delegacia como prova dos crimes de que os “macumbeiros” eram acusados. Após as formalidades legais, alguns desses objetos das casas de cultos - instrumentos musicais, adornos rituais, símbolos sagrados, entre outros - foram remetidos ao Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE), em 1946 (Dantas 2014).
A atitude de agressividade por parte do Esquadrão de Cavalaria da Polícia - uma corporação militar instituída em 1942 com a missão de manter a “ordem pública” - ficou marcada na memória de pais e mães de santo. Em entrevistas concedidas a Janaina Couvo de Aguiar na década de 1990, eles reconstituíram vários episódios de violência e intolerância contra suas práticas religiosas. Durante uma festa no terreiro de Maria de Pelage, os policiais invadiram o espaço de celebração, deram voz de prisão e obrigaram a sacerdotisa e os fiéis presentes, inclusive aqueles em transe de possessão, a desfilarem pelas ruas com as oferendas e os objetos rituais na cabeça, em direção à delegacia. No terreiro de José de Obacossô, localizado na Avenida Rio de Janeiro, os agentes da lei interromperam abruptamente uma cerimônia, desrespeitaram os símbolos e artefatos sagrados do local e furaram os atabaques26. O terreiro de Mãe Anadir foi outro alvo de arbitrariedades. Os policiais ali igualmente acabaram com os rituais, investiram contra os atabaques e artefatos sagrados e obrigaram os fiéis a caminharem pelas ruas com as oferendas na cabeça (Aguiar 2008:26-28). As informações prestadas oralmente por alguns dos principais líderes das religiões afro-brasileiras em Sergipe na década de 1990 - embora tenham um cunho memorialístico e, portanto, fiquem sujeitas a imprecisões e distorções factuais - são respaldadas por um editorial d’O Nordeste, publicado ainda na década de 1940:
Houve um tempo, em Aracaju, e não vai muito longe ainda, que a Polícia não dava tréguas ao changô, chegando mesmo a ponto de extingui-lo. De quando em quando os guardas civis, orientados por denúncia, por deliberação própria ou dos chefes, infiltravam-se, disfarçadamente por escusos recantos da cidade, onde, no recinto de sórdidos casebres, se abroquelavam blocos temíveis de sectários da terrível seita. Ao surpreendê-los, ali, na prática de suas proezas religiosas, rebocavam-nos para os cubículos da Detenção, depois de inutilizarem os ídolos horripilantes e jogavam na rua, às garras das crianças e aos olhos dos curiosos, seus pedaços, vestes e outros utensílios de suas bruxarias. […] Os sectários do Changô se viram atordoados com a perseguição tenaz da polícia, impossibilitados de exercer sua freuda religião. Era preciso que se descobrisse um meio de ludibriar a polícia, já que fugir-lhe às garras não era mais possível. Galvanizaram-se então com o nome de espiritismo e de peito empolado, com ligeiras alterações nos ritos, vão, surdinamente, estendendo seu domínio. E parece que vai tendo resultado, pois em algumas ruas afastadas do núcleo civilizado da Capital, onde se amortece um tanto a vigilância da polícia, embuçada no manto do “Espiritismo” vai-se edificando a tenebrosa religião da feitiçaria. Há poucos dias tivemos denúncia de que em uma das ruas que ficam por traz da Igreja Católica de N. S. do Rosário, estava em plena atividade um templo augusto do malsinado Changô. […] Aqui fica o nosso aviso à Polícia. Cuidado com essas sessões espíritas, que realmente não passam de conluios de Changô disfarçados com o rótulo de espiritismo, mas tão temíveis e vergonhosos quanto os antigos27.
O editorial atesta que a “Polícia não dava tréguas ao changô, chegando mesmo a ponto de extingui-lo”. Além de efetuarem batidas nas casas de culto, os agentes da repressão teriam prendido parte dos presentes, salvo os que conseguiam fugir antes. As prisões eram feitas quase sempre em flagrante, mas temporárias, com os denunciados sendo novamente soltos. De acordo com a memória de pais e mãe de santo, o cabo da corporação militar conhecido como Ferrugem foi um dos principais algozes dos terreiros de Sergipe. Seus métodos de truculência e intolerância - profanando os símbolos sagrados, quebrando ou recolhendo os objetos dos rituais, ameaçando, espancando ou prendendo os fiéis -, trazia medo e apreensão para os praticantes das religiões afro-brasileiras28. Devido à repressão, pais e mães de santo procuraram adotar medidas de discrição, conforme apontou O Nordeste, disfarçando o frontispício de suas casas, de Candomblé para Espiritismo; efetuando “ligeiras alterações nos ritos”, escondendo os pegis e certos objetos de culto, se não transferindo suas festas e celebrações para as cidades vizinhas à capital. Mãe Santa de Caçador passou a realizar seus “toques” na região da Várzea da Canoa, no município de São Cristóvão; enquanto Mãe Manadeuí decidiu fazer seus rituais num local chamado de Oco do pau, também em São Cristóvão, ou no povoado Calumby, na cidade de Nossa Senhora do Socorro (Aguiar 2008:26-28)29.
Na avaliação de Maggie, as forças de repressão invadiam as casas e nelas apreendiam os objetos sagrados com a intenção tanto de interditar os cultos, como também de atestar a participação dos indivíduos nas ações de feitiçaria. Os objetos seriam a prova do “crime”, no sentido de que o ato de fazer o mal tinha materialidade e continuava operando nas ruas das cidades (Maggie 1992). Isto porque, afora as prisões, havia a possibilidade do enquadramento penal, com a consequente instauração dos inquéritos (investigações criminais), dos indiciamentos, julgamentos e possíveis condenações. Vejamos dois casos em Sergipe. Em 1929, foi instalado um inquérito policial contra Alexandre José da Silva, o influente sacerdote do terreiro Filhos de Obá, em Laranjeiras, após uma mulher de nome Leopoldina procurar o hospital de caridade da cidade e alegar ter por ele sido espancada durante a “prática de candomblé, exorcismos e baixo espiritismo”. O Promotor Público o denunciou à justiça. Estranhamente, Leopoldina não foi submetida a corpo de delito, peça basilar do processo criminal. Oito testemunhas por parte da acusação e cinco da defesa depuseram no caso e “nada adiantaram quanto aos ferimentos por ventura sofridos pela ofendida, tão pouco em relação à surra ou espancamento relatado na denúncia”, por mais que o juiz tivesse insistido em sua inquirição direta. A irmã de Leopoldina, de maneira surpreendente, abordou a ocorrência com “naturalidade”, declarando que a irmã se tratava de uma “doida”, refém de “ataques epiléticos causadores de convulsões no corpo”. As evidências indicavam que tudo não passou de uma trama de Leopoldina contra Alexandre. Diante disso, o Juiz entendeu “inconsistente, sem base, obscuro e vago” o “suposto crime”, não podendo “por tal ser punido o indiciado”. E prescreveu a ação penal em 11 de agosto de 1932. Muito provavelmente o chefe do terreiro Filhos de Obá comemorou o reconhecimento de sua inocência30.
Já Deoclécio Freire de Carvalho, do município de Itabaianinha, não teve a mesma sorte. Em 1928, ele foi denunciado e processado por praticar o “espiritismo, claqueando a boa fé pública, persuadindo cura de moléstias, tirando lucro ou proveito do engano, causando prejuízo à saúde pública”. Não obstante o caráter genérico das acusações, o que diluía a especificidade do culto daquele provável líder religioso, há indícios no inquérito policial da presença da tradição cultural ligada à herança afro-brasileira. Várias testemunhas informaram que Deoclécio de Carvalho, quando atendia as pessoas em consulta, “usava de cerimônias reveladoras dos sortilégios da magia e feitiçaria”, além de valer-se de “substâncias de um dos reinos da natureza”. O Promotor Público julgou procedente a denúncia e pronunciou o réu de incorrer no “ofício de curandeiro”, de tirar “proventos do seu charlatanismo” e de abusar da “credulidade pública”. Submetido a processo, Deoclécio de Carvalho foi preso, enquadrado nos artigos 157 e 158 do Código Penal e sofreu condenação formal após julgamento31. Portanto, além de caso de polícia, a repressão aos acusados das práticas mágico-religiosas tornou-se um assunto judiciário.
O Xangô nas barras do tribunal
Depois desse apanhado panorâmico pela história da formação e do desenvolvimento do campo religioso afro-brasileiro em Sergipe, vamos revelar o desfecho do processo judicial envolvendo Evaristo José dos Santos, que foi acusado do assassinato de Teodomiro. Se do texto fomos ao contexto, chegou a hora de voltarmos ao texto. O inquérito policial obedeceu às formalidades legais, tendo sido realizadas audiências nas quais se colheram os depoimentos do acusado e das testemunhas. Baseado nas “provas”, Saturnino Santos, o adjunto de Promotor Público, inclinou-se pela responsabilidade penal de Evaristo e o denunciou de ter cometido o crime de homicídio, conforme o Art. 294 do Código Penal. Em sua peça acusatória, o promotor argumentava que a causa do homicídio se relacionava ao “xangô” e à “macumba”:
Rixas e desavenças provenientes de rudes crenças fetichistas, despeito e rivalidades nascidos nos xangôs e nas macumbas, são, quase sempre, meio caminho andado para a criminalidade. Homens que se desentendem e se desgostam na prática dos hediondos cultos fetichistas, nunca mais voltam à harmonia primitiva. O ódio e o despeito gerados entre eles crescem cada vez mais, assumindo proporções assustadoras. Nasce-lhes, instintiva, a vontade destruidora. Dos afilhados surgem os pais de terreiro, das afilhadas as madrinhas e das louxas as baba-louxas. E nesse evoluir, há uma luta, luta tremenda de interesses místicos e pecuniários, onde, à semelhança de Netuno ou de Ugolino na Torre da Fome, os pais tentam devorar os filhos recém-criados, conhecedores já de suas manobras, de seus artifícios e de seus mistérios. Essa a razão da rivalidade entre os macumbeiros […]. Essa, por sem dúvida, a razão geradora da inimizade do denunciado e da vítima. Ambos fetichistas, praticantes de xangô, frequentadores de macumba, rivais e inimigos perigosos. Tão perigosos, quanto crentes nos espíritos, seus guias e seus protetores. [Da perspectiva do acusado], seu inimigo estava morto, sua rivalidade extinta, e pronto para as suas finalidades fetichistas e triunfantes no seu terreiro, no bárbaro culto do Xangô, os feitiços e bruxarias32.
Como já assinalamos, Teodomiro vivia maritalmente com Luiza, uma mulher devotada à prática do xangô, na qual era autoridade. Por meio de “feitiços” e “sortilégios”, ela demonstrava seu poderio mágico, atraindo admiradores e adeptos, entre os quais Evaristo. Este, numa demonstração de deferência, cedeu a Luiza um pedaço de terra, onde se construiu uma casa. Era ali que a “mãe de santo” realizava as sessões de xangô. No início, as coisas transcorreram bem, mas, por alguma razão, Evaristo decidiu se desvencilhar dela e do amásio. Solicitou à autoridade policial da cidade que intimasse o casal a sair do seu terreno. A autoridade policial assim o fez. Teodomiro tomou a atitude de Evaristo como desrespeitosa, para não dizer ultrajante. Resolveu então tirar satisfação com ele. Na primeira oportunidade em que ambos se encontraram, na estrada de Maruim, discutiram asperamente, porém cada qual seguiu seu caminho. Um dia depois, voltaram a se defrontar no pasto da propriedade Lagoa Escura. Trocaram farpas, indo dessa vez às vias de fato. No final, Teodomiro jazia no chão, sem vida, e Evaristo, nem um arranhão sofreu. Para o promotor público, a causa da rivalidade entre ambos residia nas “rudes crenças fetichistas” ou, melhor dizendo, na disputa pelo poder do terreiro. A seu ver, as pessoas ligadas aos “Xangôs” e às “Macumbas” tendiam a travar uma luta fratricida de “interesses místicos e pecuniários”, na medida em que os iniciados conheciam as “manobras”, os “artifícios” e os “mistérios” dos pais e mães de santo. Dessa perspectiva, Evaristo quis se livrar de Luiza, porque se tornou “senhor dos conhecimentos” dela. Dali por diante, ele mesmo seria o “pai de santo”, o representante de xangô no seu terreiro. Teodomiro e Luiza, a princípio bem quistos, teriam se convertido num obstáculo, e a mulher, pior do que isso, numa concorrente, daí a origem das hostilidades que resultaram na tragédia. Será que essa versão dos fatos, elaborada pelo promotor de acusação, tem lastro nas “provas” coligidas nos autos?
A literatura sobre os cultos afro-brasileiros tem salientado os laços comunitários, de solidariedade, união e harmonia forjados no interior dos grupos de Xangôs e Candomblé, sem, contudo, deixar de apontar a existência de rivalidades e conflitos intragrupais que vêm à tona nesses ambientes. Tais embates internos têm sido interpretados como estratégias na luta pelo poder e prestígio. Beatriz Dantas revela que, após a morte de Herculano em 1907, a sucessão na chefia do terreiro nagô Santa Bárbara Virgem, na cidade sergipana de Laranjeiras, foi marcada por uma disputa homérica envolvendo Inácia e Umbelina. Esta, dentre outras coisas, foi acusada de ter trazido um “cesto de feitiçaria da Bahia” contra aquela que, por sua vez, acusava, também, a sua rival de ter tentado matá-la com feitiço. O clima de tensão chegou ao ponto de, numa determinada cerimônia no terreiro, ter eclodida uma briga que saiu até sangue entre os apoiadores das duas candidatas. Todos foram parar na delegacia da cidade. No final, Umbelina venceu a disputa interna e assumiu a direção do terreiro nagô Santa Bárbara Virgem (Dantas 1988:83-86).
Em livro sobre o “povo de santo” de Salvador entre 1938 e 1939, Ruth Landes fez alusão a alguns conflitos que emergiam no seio dos grupos de culto. Apesar de Sabina, uma sacerdotisa do candomblé ligada aos cultos caboclos, ter aprendido os segredos da religião na casa de Constância, uma mãe de santo conhecida pelo seu dom da vidência, “brigara e tentara fazer despachos contra ela” (Landes 2002 [1967]:237). Algo semelhante foi registrado por Yvonne Maggie (2001). Quando pesquisou a vida de um terreiro na cidade do Rio de Janeiro na década de 1970, a antropóloga verificou que havia divergências entre os membros do grupo de culto relativas às posições hierárquicas de dominação e prestígio. O conflito era irrompido pelos membros que tinham uma “demanda” com outros e que se utilizavam dos orixás em termos de defesa e ataque. Acreditava-se que, no terreiro, “não era apenas a hierarquia que estava em jogo. Os orixás guerreavam e nessa guerra vencia o mais forte”. O auge dessa “guerra de orixás” envolveu o pai de santo e o presidente da casa de culto, com cada qual desferindo acusações contra o outro. Segundo Maggie, ambos estavam tentando delimitar, através dessa peleja, as fronteiras internas do grupo. Ou seja, quem deveria ser o dirigente supremo, quem deveria ter autoridade no terreiro, como deveriam ser distribuídos os postos da hierarquia e quais práticas seriam legitimadas. Isto demonstra que uma estrutura religiosa não pode ser tratada de forma monolítica, alerta a autora. O terreiro por ela estudado estava inserido numa sociedade complexa e “era palco onde se representavam as contradições e conflitos vividos pelo grupo na sociedade mais ampla”. Se a estrutura hierárquica da “terra dos orixás” (o terreiro) simbolizava a hierarquia da “terra dos homens”, pode-se dizer que a “guerra de orixás” foi uma representação ideológica da própria guerra dos homens. “Na exegese dos membros do grupo, a demanda era vista como um conflito gerado pelos homens” (Maggie 2001:122-125, 133).
Portanto, a literatura especializada vem destacando que a própria noção de comunidade, que procura associar as religiões afro-brasileiras a grupos homogêneos, deve ser revista. Os terreiros caracterizam-se por uma ampla gama de tensões, disputas e clivagens dentro do próprio grupo (Corrêa 1998; Vallado 2010)33. Embora estruturados a partir de preceitos religiosos e códigos éticos, eles revelam, como um espelho invertido, os problemas, as contradições, porosidades, fraturas e relações de poder e prestígio da sociedade mais ampla. Dessa perspectiva, até seria plausível concluir que a morte de Teodomiro por Evaristo, na cidade sergipana de Rosário, realmente decorreu das “rudes crenças fetichistas” ou, melhor dizendo, da disputa pelo poder do terreiro. A “guerra” de Xangô teria significado, antes, a própria “guerra” dos homens.
No entanto, ao ler todo o processo crime com aproximadamente 150 laudas, atentando-se inclusive para os depoimentos das testemunhas, não fica evidenciado que esta tenha sido a causa do assassinato. Quando interrogado sobre o assunto, Pedro Pantaleão de Souza - patrão e eventual confidente de Evaristo - declarou que seu empregado quis enxotar Teodomiro e Luiza do terreno dele e de seus parentes, porque o casal vinha “trazendo desassossego aos moradores vizinhos”. Evaristo teria convidado Teodomiro para se retirar da sua propriedade, “este se recusando deu lugar a que o acusado procurasse a polícia e lhe pedisse as providências necessárias”34. O depoimento de Pedro Pantaleão de Souza é de certo modo corroborado pelas declarações prestadas por Luiza ao delegado. Assumindo “trabalhar” efetivamente com xangô, a mãe de santo teria dito que esta prática religiosa era “pactuada” por Evaristo e seus parentes, os quais, além de terem consentido que ela e Teodomiro morassem no terreno deles, os ajudaram na construção da casa; mais tarde, contudo, Evaristo avisou-lhes que queria acabar com o xangô e se insurgiu contra ela e Teodomiro, tanto fazendo para pô-los fora da casa onde moravam35.
Isto significa que Evaristo não ambicionava a chefia do terreiro. Os indícios sugerem que ele, por algum motivo, rompeu com o xangô e, talvez para sacramentar seu afastamento dessa prática religiosa, procurou se despojar de qualquer vínculo com Luiza, daí ter exigido que ela e seu amásio se retirassem do terreno dele e de seus parentes. Essa “ordem de despejo” desgastou de vez o relacionamento de Evaristo com sua até então mãe de santo, o que acabou desencadeando o atrito com Teodomiro, cujos desdobramentos culminaram na tragédia. A versão dos fatos construída pela promotoria - de que o que estava em jogo ali era a disputa pelo controle do terreiro - é especulativa, não sendo confirmada pelas fontes coligidas nos autos. Por que então “se inventou” a tese de que “rivalidades nascidas nos xangôs e nas macumbas, são, quase sempre, meio caminho andado para a criminalidade”? Ou de que os “fetichistas, praticantes de xangô, frequentadores de macumba” são, de forma imanente, “rivais e inimigos perigosos. Tão perigosos, quanto crentes nos espíritos, seus guias e seus protetores”? É difícil, se não impossível, responder com plena certeza por que a promotoria “inventou” essa tese tão sensacionalista para explicar a origem da beligerância entre Evaristo e Teodomiro, mas certamente tal retórica acusatória se alimentou dos estigmas e estereótipos imputados às religiões afro-brasileiras e amplamente difundidos naquele período.
Religiões classificadas como primitivas, fetichistas e mágicas, elas estariam - ante outras religiões, primordialmente o cristianismo - num estágio inferior da evolução cultural. De acordo com Maggie (2001), os primeiros estudiosos do assunto explicaram esse primitivismo relacionado ao fato de serem religiões de negros ou “sobrevivências” africanas, transplantadas para o lado de cá do Atlântico na época da escravidão. Sendo seus protagonistas identificados como negros, suas crenças deveriam ser compatíveis com o estágio “primitivo” ou mesmo “inferior” dessa raça. Mais tarde, com aperfeiçoamento das abordagens científicas, o primitivismo foi vinculado às camadas subalternas da população brasileira, que, com significativa presença negra, se apropriavam dessas religiões por não terem ainda alcançado a “civilização”, o estágio mais elevado da evolução cultural (Maggie 2001:14).
Se, por um lado, os estudiosos se esforçaram para compreender o valor da herança africana no Brasil, por outro, contribuíram para germinar e colocar em circulação imagens e representações pouco abonadoras sobre os cultos afro-brasileiros. Nina Rodrigues, professor da Faculdade de Medicina da Bahia, escreveu O animismo fetichista dos negros bahianos - um conjunto de cinco artigos, quatro deles publicados originalmente na Revista Brazileira entre 1896 e 1897, editados sob forma de livro no ano de 1900, em francês, e, posteriormente, no ano de 1935, em português -, no qual procurou descrever os rituais de Candomblé, bem como entender a possessão ou explicá-la como um caso típico de histeria dos negros e povos mestiçados. Para o médico maranhense, a histeria seria uma forma de degeneração e a possessão sua manifestação mais emblemática (Rodrigues 1935). Seu discípulo Arthur Ramos - médico alagoano que fez carreira profissional no Rio de Janeiro - publicou o livro O negro no Brasil, em 1934. Nesta obra, cuja proposta era investigar as culturas negras do Brasil através do “sentimento religioso” e das “sobrevivências” da herança africana, seu autor atribuía aos praticantes dos “candomblés, Xangôs e macumbas” um pensamento fetichista, pré-lógico. A crença em elementos da natureza e objetos portadores de forças sobrenaturais e significações especiais seriam próprios a representações de mentes pré-lógicas (Ramos 1934). Já Ulysses Pernambucano de Melo, médico psiquiátrica e também fiel discípulo de Nina Rodrigues, que se propôs a dar continuidade à obra do mestre em Recife na década de 1930, via o fenômeno da possessão nos xangôs como uma síndrome patológica (Pernambucano e Campos 1932; Freyre 1959 [1943]:XXII).
Outros segmentos da sociedade civil e do Estado iam além da “zona de conforto” dos intelectuais, assumindo por vezes um discurso e uma prática de intolerância em relação às religiões afro-brasileiras. Na visão dos detratores da imprensa, das forças policiais e do poder judiciário, o Xangô não consistia numa religião, e sim na mais desqualificada forma de mistificação, perigosa à sociedade dos pontos de vista da sanidade mental, da moralidade e da ordem pública, incondizente, assim, com as pretensões da nação à civilização, à modernidade e à fé cristã. O fato é que as religiões afro-brasileiras eram tidas como nocivas à sociedade, sob o pressuposto de que a causa de grande parte dos males deste mundo se devia à presença de feitiços e bruxarias, coisas geralmente associadas aos deuses dos “bárbaros” cultos dos “Xangôs” e das “Macumbas”.
Finalmente, ocorreu o julgamento de Evaristo, ocasião na qual este alegou, através de seu “curador”, haver cometido o crime em legítima defesa de sua pessoa, após ter travado uma “luta infernal” contra Teodomiro; entretanto, os agentes da justiça não acreditaram na sua versão dos fatos. Para o Juiz Municipal, a alegação da legítima defesa, além de desacompanhada de “provas”, não resistia ao “sopro do mais leve argumento” e não encontrava respaldo nos autos. O acusado tivera mais de uma discussão com a vítima. E embora negasse que tivesse partido para um acerto de contas, no dia em que se deu o crime ele se encontrava armado com uma espingarda no pasto da propriedade onde trabalhava. Fora pegar um cavalo. Mas convenhamos, ponderava o Juiz Municipal, uma espingarda não era necessária para quem ia pegar um cavalo. Muito pelo contrário. Ela não podia deixar mesmo de ser um estorvo. Assim é que Evaristo, humilhado pelas ofensas recebidas na véspera - quando foi achincalhado por Teodomiro de “negro safado, bandido, covarde e tantos outros nomes” - e ciente de que o desafeto passaria por ali em direção ao seu serviço, se armou e, sob o pretexto de pegar um cavalo, foi esperá-lo para um acerto de contas. Teodomiro passou, levando com ele uma foice e uma pequena faca de marinheiro, utensílios tão de uso dos trabalhadores do campo. Não chegou, porém, ao seu destino. Segundo o Juiz Municipal, Evaristo não consentiu, prostrando a vítima por terra com um tiro de espingarda desfechado à queima-roupa. Não saciada a sua sede de sangue, retalhou-a a facão. O acusado saiu incólume. Nem um arranhão sofreu, muito embora Teodomiro estivesse armado com uma foice e uma faca de marinheiro, a qual nem chegou a ser puxada. “Isto nos leva forçosamente a crer que não houve luta, que a vítima não foi a agressora”, concluía o Juiz Municipal36.
O processo correu os trâmites legais, sendo Evaristo enquadrado no Art. 294 do Código Penal em “sentença de pronúncia”37 do Juiz Municipal, em 30 de agosto de 1939. Tal decisão do magistrado foi confirmada pelo Juiz de Direito da Comarca de Maruim, o que levou o réu a ser submetido ao júri popular de Rosário em sessão de 7 de novembro de 1939. Por unanimidade do veredictum, foi considerado culpado pela morte de Teodomiro. Ao que parece, o Conselho de Sentença sensibilizou-se com a violência e a perversidade do delito, bem como se convenceu de que o crime não se justificava pelas armas utilizadas. O réu foi condenado a dez anos e seis meses de prisão celular, pena que devia ser cumprida na Penitenciária do Estado38.
Desde o primeiro código penal republicano, de 1890, o Estado brasileiro, especialmente o poder judiciário, imiscuiu-se legalmente nos assuntos da magia, legitimou a denúncia aos feiticeiros e regulou as acusações, punindo os que usavam seus poderes sobrenaturais para supostamente praticar o mal. Muitos pais e mães de santo e seus asseclas foram perseguidos, presos e acusados de produzirem infortúnios à sociedade. Casos como o de Evaristo, em que a prática da justiça se desviou da lógica das leis penais para a lógica das leis mágicas, tornaram-se comuns no Brasil. A peça de acusação da promotoria deslocou, então, o foco do criminoso para o esconjuro dos “fetichistas, praticantes de xangô e frequentadores de macumba”. Eis mais um exemplo inegável, diria Maggie, da fé e do medo do feitiço, a um só tempo (Maggie 1992).
Abordar respostas judiciais para casos relacionados à magia e à religião pode contribuir para a compreensão do que os “homens da lei” falaram e pensaram a respeito dos “homens místicos fora da lei”, em nome da ciência, da cidadania e da modernidade brasileiras (Schritzmeyer 2004). Os princípios que regulavam e norteavam o discurso dos juízes eram também princípios ordenadores de discursos da sociedade de um modo geral. Ou seja, no ambiente jurídico, as disputas ocorriam em meio a versões reguladas por um mesmo universo ritual e linguístico. O que se encontrava nos autos se tornava verdade perante o julgamento, mesmo que tivesse ocorrido fatos que pudessem incriminar ou absolver o acusado. O juiz, acompanhado do Conselho de Sentença, acreditou na tese de que a feitiçaria, em última instância, precisava ser combatida.
Sem entrar no mérito da sentença - mesmo porque o historiador não é juiz, como bem adverte Carlo Ginzburg39 -, cabe fazer uma última observação: esse julgamento não assumiu tão somente contornos técnicos. Ao condenar Evaristo, a justiça não perdeu a oportunidade de criminalizar, pelo menos simbolicamente, as religiões da diáspora negra. Que o leitor não se engane. Nessa ação penal, o Xangô também se viu encurralado no banco dos réus. Todo esse emaranhado de intransigências e prevenções, entretanto, não foi capaz de proscrever uma fecunda tradição religiosa que tem sido reinventada em Sergipe ao longo do tempo.
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4
“Um ‘candomblé’ que acabou na polícia”. Sergipe Jornal, Aracaju, 19 ago. 1933, p. 4. O memorialista Corinto Mendonça conta que, na Praça da Matriz, na região central de Aracaju, morava uma viúva – de codinome Sinhá Jacaré – que, na velhice, “havendo abandonado tudo que lhe dava grandes afazeres, montou uma tenda de mandraquice”. A sua casa passou a ser bastante procurada. Chegava-lhe à porta “toda sorte de gente, inclusive figurões da política pensando de, por meio da macumba, conseguirem posições” (Mendonça 1974:31-32).
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“Variações em fá sustenido”. Correio de Aracaju, Aracaju, 26 fev. 1942, p. 3. Para uma coletânea que reúne um conjunto de crônicas de Zózimo Lima, este que é considerado um dos maiores “ficcionistas da realidade” na imprensa sergipana, ver Zózimo Lima (2003).
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O relato etnográfico de Felte Bezerra foi originalmente publicado em 1948, numa revista na área de Ciências Sociais de São Paulo, e republicado em 1950, no livro Etnias sergipanas, que recebeu o prefácio de Gilberto Freyre. Essa etnografia divulgou, pela primeira vez, o xangô sergipano nos principais circuitos de produção acadêmica, dentro e fora de Sergipe.
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Sobre algumas das dimensões envolvidas na produção e utilização da categoria “baixo espiritismo” a partir da delimitação de seus enunciantes no Brasil durante a primeira metade do século XX, ver Emerson Giumbelli (2003).
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O Art. 156 do Código Penal instituía como crime “exercer a medicina em qualquer dos ramos, a arte dentaria ou a pharmacia; praticar a homeopathia, a dosimetria, o hypnotismo ou magnetismo animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos”. Por sua vez, o Art. 157 estabelecia como crime “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis e incuraveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica”. O terceiro tópico que versava sobre o assunto era o Art. 158, que definia como crime “ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou externo, e sob qualquer fórma preparada, substancia de qualquer dos reinos da natureza, fazendo, ou exercendo assim, o officio do denominado curandeiro” (Coleção de Leis do Brasil).
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Para manchetes e reportagens sensacionalistas sobre as religiões afro-brasileiras em Sergipe, a partir da década de 1950, consultar Ana Cristina Mandarino (2007).
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No candomblé, ogãs são os homens responsáveis pelos sacrifícios votivos, pelo toque dos atabaques e outras atividades indispensáveis ao culto e ao funcionamento do terreiro. Ogã refere-se, ainda, ao título ou cargo atribuído àqueles capazes de auxiliar e proteger a casa de culto e aos que prestarem serviços relevantes à comunidade religiosa.
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Lísias Nogueira Negrão argumenta que foi no período do Estado Novo, quando a ditadura se instalou amordaçando a sociedade, que os cultos afro-brasileiros se viram particularmente combatidos. Não teria havido, contudo, perseguição religiosa generalizada. O Catolicismo foi parceiro preferencial: a Igreja de dom Leme constituiu-se num dos pilares do regime. O Protestantismo ainda não despertava a atenção, com pouca presença cultural e nenhuma expressão política. Os kardecistas, em razão de sua reputação social e acomodação política, voltados à prática da caridade tradicional, legitimaram-se, apesar das restrições do clero católico. No campo religioso, os “cultos afro-brasileiros, em todo o Brasil, tiveram a primazia, talvez a exclusividade, da ira do Estado Novo, ainda em nome do combate ao arcaísmo e à ignorância”. O não tão moderno, mas certamente arbitrário e autoritário regime, lançou-se decididamente contra as formas “arcaicas e heterodoxas” das práticas mágico-religiosas (Negrão 1996:70).
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A trajetória de vida de José Augusto dos Santos (1929-2006), conhecido pela alcunha religiosa Zé D’Obacossô, sintetiza de certo modo as transformações pelas quais passou o campo religioso afro-sergipano. Nascido no município de Divina Pastora, na região do Vale do Cotinguiba, começou a desenvolver sua espiritualidade frequentando sessões de Toré; quando adolescente se transferiu para Aracaju e, em 1945, submeteu-se à sua primeira obrigação no Nagô sergipano. Quatro anos depois, fez “santo” no candomblé da nação angola. Em 1951, recebeu de Nanã o adeká (título de sacerdote/babalorixá). Abriu terreiro no bairro Suíssa, mas, devido ao aumento da clientela e do número de adeptos, mudou-se para a Av. Rio de Janeiro. Em vista de ampliar seu raio de atuação, em 1960, ele abriu um terreiro filial na cidade de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense (RJ). Durante sua permanência por lá, ele se afiliou ao candomblé da nação ketu, auferiu reconhecimento e desfrutou de prestígio, quando, em 1989, regressou à terra natal e inaugurou um novo terreiro na região metropolitana de Aracaju, cidade de São Cristóvão, onde viveu até o falecimento. Para mais dados e informações sobre a vida de José Augusto dos Santos, ver a sua autobiografia (Santos 2000).
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No caso de Salvador, a autoridade policial que mais acossava o povo de santo chamava-se Pedro Azevedo Gordilho, o vulgo Pedrito. Pelo menos até a década de 1980, toda a população mais velha da cidade conhecia ou já tinha ouvido falar nesse delegado. Angela Luhning frisa que ele não foi o primeiro nem o último delegado a perseguir o candomblé. Porém, foi “um dos mais violentos e temidos, e de certa forma tornou-se um símbolo da perseguição durante uma certa época”, entre as décadas de 1920 e 1930. Famoso como autoridade de “pulso, enérgica, talhada a manter a ordem na vida da cidade”, costumava utilizar a “cavalaria da polícia para dissolver reuniões de candomblés num clima de terror, seguido de prisões dos pais de santo” (Luhning 1995/1996:195).
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É importante frisar que a repressão aos cultos afro-brasileiros não se restringiu à experiência histórica sergipana. Para pesquisas sobre o assunto nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia, Alagoas, Maranhão e Pará, ver Lísias Negrão (1996), Yvonne Maggie (1986), Diana Brown (1994), Zuleica Dantas Campos (2009), Júlio Braga (1995), Angela Luhning (1995/1996), Luiz Augusto Leal (2011), Ulisses Rafael (2012) e Mundicarmo Ferretti (2015).
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33
Como argumenta Reginaldo Prandi, o candomblé vê o mundo como um território naturalmente competitivo e conflituoso. “Mesmo no terreiro o cotidiano é encarado como espaço de disputa, no qual a afirmação das qualidades míticas herdadas é constantemente incentivada. As contendas dentro dos terreiros e entre eles não somente são vividas, mas são apontadas como inteiramente esperadas” (Prandi 2005:149).
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37
Decisão que leva o acusado ao julgamento pelo Tribunal do Júri. O magistrado, ao verificar a presença e a materialidade do crime e dos indícios suficientes de autoria, submete o réu a julgamento pelo júri popular por meio de sentença fundamentada, indicando os dispositivos de lei pelos quais ele responderá.
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39
Na concepção de Carlo Ginzburg, o uso de registros de tribunais “não implica que os historiadores, disfarçados de juízes, devam tentar reconstruir os julgamentos do passado – um objetivo que poderia ser desprovido de fundamento, se já não o fosse intrinsecamente impossível. Debates como o perpetrado por Robert Finlay e Natalie Davis sobre a culpa ou a inocência de Bertrande de Rols, a mulher de Martin Guerre [personagens do livro O retorno de Martin Guerre], parecem um pouco fora de propósito”. As tarefas do historiador e do juiz, salienta Ginzburg, “implicam a habilidade de demonstrar, segundo regras específicas, que x fez y, sendo x designado ator principal, ainda que não nomeado, de um evento histórico ou de um ato legal, e y, qualquer tipo de ação. Mas, às vezes, casos que um juiz pode desconsiderar como juridicamente inexistentes se tornam frutíferos aos olhos de um historiador” (Ginzburg 2011:349, 356).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Maio 2019 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2019
Histórico
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Recebido
19 Maio 2017 -
Aceito
01 Mar 2019