Resumos
Resumo: Ação Democrática Parlamentar (ADP) foi um bloco suprapartidário que atuou no Brasil entre 1961 e 1964. Com viés anticomunista, a frente parlamentar reuniu cerca de 150 deputados federais. Dentre estes, havia cinco membros da Igreja Católica: Monsenhor Arruda Câmara e os padres Godinho, Medeiros Neto, Nobre e Vidigal. Analisa-se a retórica anticomunista desses clérigos, partindo da hipótese de que tal discurso associou o que era proposto pelas esquerdas a valores anticristãos. A principal fonte se encontra no Congresso Nacional. Livros escritos por esses deputados também serão analisados, tal como artigos em jornais e revistas. O trabalho pontua que, ao congregar uma retórica anticomunista a princípios religiosos, os clérigos da ADP contribuíram para acentuar a polarização da década de 1960.
Palavras-chave: Ação Democrática Parlamentar; Igreja Católica; golpe de 1964; anticomunismo.
Abstract: The Parliamentary Democratic Action (ADP) was a political group in Brazil between 1961 and 1964. With a strong anticommunist aim, the parliamentary front brought together around of 150 congressmen. Among these deputies, there were five members of Catholic Church: monsignor Alfredo de Arruda Câmara and the priests Godinho, Medeiros Neto, Nobre and Vidigal. The aim is analyzing the anticommunist rhetoric, starting from the hypothesis that these discourses strengthened the association between national reformism proposed by the political left and anti-Christian values. The main source for this paper will be in the Congress. Besides, the books which were written by these congressmen will also be analyzed as the articles in newspapers and magazines. This paper emphasizes that putting together the anticommunist rhetoric to religious principles, the ecclesiastical congressmen of ADP contributed to polarization in the 1960’s.
Keywords: Parliamentary Democratic Action; Catholic Church; 1964’s coup; anticommunist.
Introdução
A relação entre política e religião é um tema constantemente mobilizado pela historiografia brasileira, principalmente por se tratar de um país que tem no catolicismo uma de suas mais fortes bases identitárias. Assim, estudar a conexão entre as duas esferas é não ignorar uma estrutura de poder que se faz longeva no Brasil.
Neste trabalho, procuramos observar uma das várias faces do anticomunismo, ideologia poderosa em boa parte do século XX no mundo. Olhamos para esse pensamento a partir da sua matriz católica, que se fez presente com bastante intensidade na política partidária brasileira na República de 1946. Nosso objetivo é analisar o discurso anticomunista dos clérigos que militaram na Ação Democrática Parlamentar (ADP), bloco suprapartidário que atuou entre o período 1961-1964 e que reuniu mais de uma centena de deputados aderentes à ideia do anticomunismo.
Para a consecução do artigo, cinco representantes do clero católico formam o objeto do estudo: Monsenhor Arruda Câmara (PDC-PE), Padre Godinho (UDN-SP), Padre Medeiros Neto (PSD-AL), Padre Nobre (PTB-MG) e Padre Vidigal (PSD-MG). O período observado é de 1961 a 1964, o mesmo em que funcionou a Ação Democrática Parlamentar.
As fontes principais para este trabalho estão nos Diários do Congresso Nacional, onde se encontram os discursos dos deputados federais.2 A partir deles, vemos como se articulou o pensamento conservador da Igreja Católica com uma frente parlamentar que abraçava grande parte dos seus ideais, contrária à maioria das propostas reformistas que estavam em jogo. Ademais, analisamos algumas matérias produzidas por órgãos da imprensa que abordaram o anticomunismo desses clérigos, como a revista Ação Democrática, ligada à ADP, e obras publicadas pelos religiosos da frente parlamentar.
A hipótese sugerida é a de que os deputados clérigos do bloco suprapartidário, com base em seu lugar enquanto membros da Igreja Católica, associavam as propostas de políticas públicas de setores nacional-reformistas ao comunismo, e, por isso, essas seriam passíveis de rejeição, haja vista a demonização histórica da ideologia marxista pelo catolicismo. Ao fazer tal associação, os cinco clérigos teriam contribuído para o discurso conservador da frente parlamentar a qual eram ligados, acentuando a polarização política dos anos 1960, que teve como um dos resultados o golpe civil-militar de 1964.
Utilizaremos algumas ferramentas da Análise de Discurso para observar a retórica utilizada pelos clérigos. Embora não tenhamos a intenção de nos debruçar sobre o extenso debate em torno dessa corrente inaugurada por Michel Pêcheux nos anos 1960, acreditamos que algumas variáveis decorrentes de estudos sobre a Análise de Discurso possam ser úteis ao que é proposto pelo artigo, sobretudo pela vantagem de não nos fixarmos na mera questão formalista da linguagem, dirigindo-nos para uma interpretação mais contextual do que é dito. Para este trabalho, interessa-nos, em particular, as proposições de Eni Orlandi (2003) sobre o discurso religioso - a serem exploradas ao longo do artigo.
A primeira seção do artigo versa sobre algumas características da Ação Democrática Parlamentar, destacando sua estrutura organizativa e chamando a atenção para a sua principal matriz ideológica - o anticomunismo. No segundo item, apresentamos os cinco clérigos que fazem parte do escopo deste trabalho, articulando suas ideias ao pensamento religioso dominante, e explicitando algumas linhas gerais do anticomunismo religioso. Na terceira parte, são analisados os principais discursos desses deputados federais, divididos em quatro subitens: reforma agrária, relações internacionais, João Goulart, e “infiltração comunista”. Esperamos, com isso, contribuir para os estudos sobre o pensamento conservador católico e suas relações imbricadas com a política, além de lançar luz sobre grupos extraoficiais que, apesar da sua importância, foram pouco estudados pela historiografia, como é o caso da Ação Democrática Parlamentar.
A Ação Democrática Parlamentar e o anticomunismo
Dentre as várias organizações que surgiram ao longo da república brasileira em torno da luta anticomunista estava a Ação Democrática Parlamentar, que, além disso, foi a segunda experiência de grupo suprapartidário na Câmara entre os anos de 1946 e 1964.3 Fundada em 1961, a ADP surgiu com o lema “anticomunistas sempre, reacionários nunca”,4 anunciando, desde o início, aquilo que seria a sua principal bandeira.
Estruturada com base em dois comitês principais de direção, a Comissão Executiva e o Conselho Orientador (Ribeiro 2017:122), a ADP se mostrou extremamente organizada desde o princípio. Ainda que não houvesse previsibilidade do registro de frentes parlamentares na Constituição de 1946, há fortes evidências de que o grupo teria sido constituído por cerca de 150 deputados, o que representaria mais de 1/3 da Câmara (Lamarão 2001).
A bibliografia sobre a ADP é extremamente precária, com apenas um trabalho que se propôs a investigá-la a fundo feito por Thiago Nogueira de Souza em uma dissertação de mestrado (2015). Essa lacuna historiográfica pode ser explicada em razão do caráter extraoficial da frente parlamentar, o que dificulta, entre outras coisas, o reconhecimento dos deputados que faziam parte do grupo.
Na literatura política que mencionou a ADP, ainda que não se propusesse a estudá-la com mais rigor, encontramos o trabalho de Dreifuss (1981). Nele, a preocupação central está em delinear como os grupos formados pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) foram agentes fundamentais na conspiração que levou ao golpe civil-militar de 1964, retirando o presidente João Goulart do poder. Articulados com outras organizações, como a Ação Democrática Popular (ADEP), criada para atuar nas eleições de 1962, e a própria ADP, esses grupos alçaram o comunismo como o principal adversário a ser combatido.
O anticomunismo propalado pela ADP não deve ser entendido fora do contexto da Guerra Fria, e em particular da então recente conversão de Cuba ao socialismo, o que seria motivo de críticas constantes do grupo suprapartidário, tanto em seus documentos oficiais quanto nos discursos dos políticos a ela ligados. A revista Ação Democrática, controlada pelo IBAD, representou também um dos maiores polos anticomunistas da época, e foi intimamente ligada à ADP, contribuindo para expor as ideias do grupo em um órgão da imprensa de grande circulação nacional, especialmente a partir das fortes críticas às experiências comunistas mais conhecidas naquela época: além de Cuba, a China e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Nesse sentido, não foi coincidência o fato de a frente parlamentar ter sido instalada oficialmente na Comissão de Relações Exteriores da Câmara (Souza 2015:54), em plena vigência da chamada Política Externa Independente (PEI), que previa, entre outras coisas, o restabelecimento das relações diplomáticas do Brasil com nações comunistas.
Outros temas constantes levados a cabo pelos políticos da frente parlamentar eram os relacionados às reformas de base, especialmente a agrária, que motivou debates polarizadores na década de 1960. Quando defendiam a necessidade da reforma agrária, quase sempre os partidários da ADP o faziam pautando a questão da produtividade, não se atendo à distribuição (Souza 2016:234), que era uma das preocupações constantes das esquerdas.
Entre outras demandas, a ADP defendia com veemência a iniciativa privada e os investimentos estrangeiros no Brasil (Delgado 2010:151). Como um dos seus objetivos era o de enfrentar os setores que se autoproclamavam “nacionalistas” e que desejavam maior presença do Estado na economia, a ADP reforçava assim princípios liberais clássicos, além de estreitar laços com setores empresariais, que viam na frente parlamentar uma forte aliada no Congresso.
Quando se analisa a atuação das frentes parlamentares na década de 1960, torna-se imprescindível destacar as eleições de 1962, paradigmáticas no tocante à polarização cada vez maior entre as forças nacional-reformistas, reunidas sobretudo na FPN, e as que se intitulavam anticomunistas, representadas no parlamento pela ADP. Um dos fatores mais marcantes daquelas eleições - e que serão retomados a partir dos discursos dos clérigos que iremos analisar neste trabalho - foi o financiamento de candidatos considerados anticomunistas, que atingiu um número expressivo: 250 postulantes a deputado federal, 600 a deputado estadual, oito a governador e outros vários a senador, prefeito e vereador (Dreifuss 1981:331). Foram gastos de 12,5 a 20 milhões de dólares, e a suspeita de que esse dinheiro teria vindo do exterior, o que era proibido pela legislação eleitoral, gerou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), com o objetivo de investigar todo esse financiamento (Dreifuss 1981:336). Antes mesmo do fim dos trabalhos da CPI, o então presidente João Goulart fechou por decreto o IBAD e a ADEP.5
Para este trabalho, uma das principais características da ADP a serem ressaltadas diz respeito à penetração do pensamento religioso dentro do grupo. Além dos cinco nomes que serão investigados com mais afinco, por serem membros da ADP e por fazerem parte do corpo eclesiástico, havia outros deputados muito ligados à Igreja Católica, como Hamilton Nogueira (UDN-GB), que foi vice-presidente do Centro Dom Vital, e Cardoso de Menezes (UDN-GB), presidente da Confederação Católica Arquidiocesana (Souza 2015:227). Ambos fizeram parte do Comitê Executivo da ADP, destacando-se Nogueira, que chegou a ser 2º vice-presidente da frente parlamentar (Ribeiro 2017:127-130).
Não era incomum ver a defesa de uma democracia “cristã” em pronunciamentos de deputados da Ação Democrática Parlamentar e nos manifestos lançados pelo bloco suprapartidário. Como veremos nas próximas seções, a presença de sacerdotes na ADP ajudou a reforçar princípios defendidos pela frente parlamentar. Isso porque o sujeito que fala - no caso, o religioso - assume uma posição social e política que vai muito além apenas do que aparece no discurso proferido por ele (Orlandi 2003). Os clérigos, ainda que com algumas diferenças, contribuíram para endossar um pensamento que associava determinadas políticas defendidas pelas esquerdas ao comunismo, uma das razões ideológicas mais mobilizadas para justificar a necessidade do golpe de 1964.
“Não há cristianismo onde há comunismo”: Igreja Católica e os clérigos da Ação Democrática Parlamentar
A Igreja Católica foi uma das instituições mais fortes na sociedade brasileira durante boa parte do século XX. No período abarcado por este trabalho, 1961-1964, o catolicismo, embora em menor grau que outrora, continuava a ser dominante, ditando regras de comportamento e orientando seu grande número de fiéis para determinadas concepções políticas. Diante de seu evidente potencial de persuasão junto a grande parte do eleitorado, “não raro extrapolou o âmbito estritamente religioso e assumiu protagonismo na cena política do país” (Quadros 2013). Era de se esperar, portanto, que a própria instituição tivesse representantes no parlamento, o que de fato aconteceu, como exemplificado pela presença dos cinco clérigos que são o objeto do presente estudo.
O anticomunismo católico e suas consequências práticas na moldagem de um pensamento conservador no Brasil já foram trabalhados por inúmeros autores em textos que já se tornaram clássicos na historiografia (Motta 2002; Rodeghero 2003; Codato & Oliveira 2004). Essa ideologia está contida em um contexto mais amplo, que data de décadas anteriores, especialmente a iniciada nos anos 1920, quando a Igreja Católica, frente aos desafios da modernidade e toda a sua ênfase no racionalismo e na liberdade, passou a arregimentar uma elite intelectual leiga que pudesse embasar teoricamente o conservadorismo religioso, que já contava com grandes expoentes na Europa (Miceli 2001). Acorde com o pensamento da Santa Sé, a Igreja Católica, no Brasil, adentrou o espaço público para criticar veementemente o comunismo, considerado uma doutrina nefasta (Miceli 1988).
O que pretendemos neste artigo é perceber como a presença de sacerdotes da Igreja Católica em uma frente parlamentar que carregava algumas bandeiras congêneres à da instituição religiosa foi providencial para associar determinados pontos defendidos por grupos nacional-reformistas ao comunismo, tornando-os passíveis de serem criticados e combatidos.
A força do catolicismo na sociedade brasileira levou a que o imaginário anticomunista, que evidentemente não era apenas expresso pela instituição religiosa, tivesse consequências práticas em diferentes meios. Exemplo disso foram as “Marchas da Família com Deus e pela liberdade” (Presot 2004; Codato & Oliveira 2004), que objetivavam, entre outras coisas, defender o Brasil do “perigo” representado por algumas políticas abraçadas pelas esquerdas, como as reformas de base.
Durante a vigência da República de 1946, houve pelo menos dois momentos em que a Igreja usou o temor do comunismo para fins eleitorais. Em 1958, a instituição se mobilizou para derrotar o Partido Comunista do Brasil (PCB), mesmo com este na ilegalidade. Em São Paulo, a Igreja teve como representante ao pleito do Senado Padre Calazans, da UDN, que saiu vitorioso contra Frota Moreira, do PTB, mas ligado aos comunistas (Motta 2002:29). Outro exemplo de engajamento eleitoral católico foi no sufrágio geral subsequente, ocorrido nas eleições de 1962, quando a Igreja liderou a criação da Aliança Eleitoral pela Família (ALEF), apoiando candidatos comprometidos com suas causas religiosas e, por consequência, mobilizados contra o “perigo” comunista (Motta 2002:29).
Para este trabalho, como já dito na introdução, cinco membros do clero católico serão analisados: Monsenhor Alfredo de Arruda Câmara, Padre Godinho, Padre Medeiros Neto, Padre Nobre e Padre Vidigal. Apesar do pequeno número, é sintomático ver que não há uma uniformidade partidária, pois os religiosos são de quatro agremiações diferentes: além do PSD e da UDN, legendas a que eram filiados a maioria dos políticos da ADP, vemos também um político do PTB, legenda com pautas quase sempre opostas às da frente parlamentar, e também um deputado do Partido Democrata Cristão (PDC), com poucos representantes dentro do grupo (Ribeiro 2017:67-68). Essa heterogeneidade aponta que o elemento anticomunista, marca principal da ADP, ia além das questões partidárias, unindo deputados de organizações com tendências ideológicas distintas. A seguir, faremos breves comentários sobre a biografia dos religiosos que são o objeto deste estudo.6
Alfredo de Arruda Câmara foi combatente na Revolução de 1930, chegando inclusive a ser preso. Com doutorado em filosofia e teologia dogmática, foi eleito deputado constituinte já em 1933, tendo participado da criação do PDC em 1945, quando da abertura democrática do Estado Novo. Logo no ano seguinte virou presidente do partido, o mesmo que integraria até sua extinção pelo Ato Institucional número 2, de 1965.7 Foi ordenado Monsenhor da Igreja Católica ainda em 1948.
Antônio de Oliveira Godinho tornou-se padre em 1946, embora não tenha chegado a exercer o sacerdócio. Começou a vida partidária em 1959, elegendo-se deputado estadual. Foi vice-líder da UDN em 1963, quando já estava na Câmara.
Luiz de Menezes Medeiros Neto ordenou-se padre em 1935 e foi deputado federal constituinte dez anos depois, reelegendo-se sucessivamente pelo PSD até a decretação do AI-2. Tornou-se também vice-líder de seu partido em 1958.
O único parlamentar do Partido Trabalhista Brasileiro, José de Souza Nobre, tornou-se padre em 1940, atuando como vigário em algumas paróquias. Na eleição de 1958, não conseguiu se eleger, ficando como suplente de deputado federal, efetivado em alguns momentos. No sufrágio de 1962, finalmente se elegeu para a Câmara, iniciando o mandato no ano seguinte.
O último nome investigado é o de Pedro Maciel Vidigal, que também foi vigário em diversas paróquias nas décadas de 1930 e 1940 em seu estado. Começou sua vida partidária em 1954, quando foi eleito deputado estadual, e já na eleição seguinte se tornou deputado federal. Em 1961, passou a ser vice-líder da maioria e de seu partido.
É importante salientar que o fato de esses deputados serem, ao mesmo tempo, membros do clero e integrantes da ADP, não indica que tenham formado um “subgrupo” na frente parlamentar ou terem agido no Congresso de forma coordenada entre si. Não há nenhuma evidência que indique isso, mas seus pronunciamentos reforçavam, embora em graus distintos, o temor anticomunista que caracterizava o bloco suprapartidário como um todo.
Três clérigos que fazem parte do escopo deste trabalho escreveram livros sobre o comunismo. Embora duas das obras não estejam inseridas no recorte cronológico do presente estudo, ainda assim são importantes para refletir sobre alguns pontos que marcariam os discursos dos deputados na Câmara nos anos 1960. Não foram investigados todos os livros escritos pelos clérigos, mas apenas aqueles que versaram sobre o tema aqui proposto.8
Três obras de autoria dos clérigos membros da ADP foram analisadas: o livro Contra o comunismo, do Monsenhor Arruda Câmara (1946); Catolicismo, comunismo e outros assuntos, de Padre Godinho (1947); e O Nacionalismo, de Padre Vidigal (1963). Mesmo escritos em momentos diferentes e para públicos distintos, os três livros delinearam os principais argumentos mobilizados pela Igreja Católica na demonização do comunismo. O fato de duas obras terem sido escritas na década de 1940 não é nenhuma coincidência, visto que, segundo Rodrigo Motta, o curto período de legalidade do PCB (1945-1946) e seu rápido crescimento foram fatores que incentivaram a necessidade da Igreja dar uma resposta ao avanço comunista no Brasil (Motta 2002:23). Já o livro de Padre Vidigal, datado de 1963, situa-se no período que Rodrigo Motta considera o “segundo surto anticomunista”, motivado tanto por razões internacionais, como a Revolução Cubana, quanto por questões nacionais, como o crescimento de organizações da esquerda no Brasil (Motta 2002:231-233).
Em ordem cronológica, o primeiro dos livros teve um nome autoexplicativo: Contra o Comunismo. Nele, Alfredo de Arruda Câmara organizou uma espécie de compêndio com seus principais discursos a respeito do tema. A preocupação do religioso em reunir discursos proferidos em diferentes momentos é, por si só, um dado sintomático sobre a sua militância no campo anticomunista. No texto, fica claro que a legalização do PCB foi o motor que o impulsionou a fazer tantas oratórias contra a ideologia, mas o Monsenhor também dirigiu fortes críticas à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), o que se tornaria uma constante na retórica dos clérigos da ADP nos anos 1960. Nas palavras de Raymundo Padilha (UDN-RJ), secretário-geral da frente parlamentar, um dos principais objetivos do grupo era atacar a “insidiosa ação moscovita no Brasil”.9 Segundo Rodeghero, “a ação comunista [...] era vista sempre como parte de um plano maior, comandado pelo imperialismo soviético” (Rodeghero 2003: 38), e os livros refletiram exatamente esse aspecto.
Alertando contra a “tirania da minoria”, referindo-se aos poucos parlamentares eleitos pelo PCB nas eleições de 1945 - 14 deputados e um senador -, Arruda Câmara afirmou que “a maioria do Brasil não aceita a sua tutela nem a sua liderança” (Câmara 1946:5). Em diversos momentos, o clérigo apelou para a religião, clamando uma reação a essa minoria, na forma de uma resposta da “consciência cristã”, que não poderia se sujeitar à tal “tirania” (Câmara 1946:5).
As denúncias ao regime de Moscou foram comuns nos pronunciamentos do Monsenhor na década de 1940. A estratégia, que se repetiria nos discursos dos deputados religiosos da ADP nos anos 1960, consistia em desmistificar a ideologia comunista, mostrando que, na prática, o que se fazia era bem diferente do que se propunha. Em diversas ocasiões, Arruda Câmara falou em uma “superexploração do operariado” (Câmara 1946:9), justamente o contrário das proposições marxistas principais. A associação do comunismo a valores não democráticos também era frequente nas críticas dirigidas a regimes que assumiam tal doutrina, especialmente pela insinuação de que os cidadãos que viviam nesses países não teriam “liberdade nem direitos” (Câmara 1946:14), o que seria repetido por Padre Godinho, que considerava “pueril” a ideia de tratar esses lugares como democráticos (Godinho 1947:81). Anos depois, várias instituições se nomeariam com palavras adjacentes à “democracia”, como forma de demarcar sua oposição ao comunismo, como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática, a revista Ação Democrática, a Ação Democrática Popular e a própria Ação Democrática Parlamentar.
A preocupação com o direito à propriedade privada também era central entre os clérigos, sendo um dos principais fundamentos para o combate à reforma agrária proposta pelas esquerdas nos anos 1960. Para o Monsenhor Arruda Câmara, tratava-se de um “direito natural” (Câmara 1946:17). Usando seu lugar como religioso, o sacerdote chegou a fazer uma analogia com o mandamento “Não furtarás” (Câmara 1946:18), associando o confisco das propriedades ao roubo.
Outro a publicar um livro sobre a temática do anticomunismo foi Padre Godinho, no ano seguinte a Arruda Câmara. Sua justificativa para a divulgação da obra partiu de uma série de indagações a que o padre teria sido submetido, embora não diga por quem, sobre a relação entre o comunismo e o catolicismo, confrontados por uma “radical oposição” (Godinho 1947:87). Seu objetivo era o de mostrar a superioridade da Igreja diante de outras crenças.
Durante todo o livro, vê-se que Antônio de Oliveira Godinho rejeitou qualquer tipo de aproximação entre as duas doutrinas que se propôs a estudar. Em seus discursos como deputado federal nos anos 1960, tal antagonismo voltaria a ser destacado. A principal via de abordagem do padre era a de que o comunismo ia contra os valores espirituais (Godinho 1947:88), donde se explica o motivo de ser inconciliável com a religião, implicando na ideia de que os verdadeiros católicos não poderiam ser também comunistas (Godinho 1947:91). Nessa época, uma das principais preocupações da Igreja não era apenas atacar as mudanças econômicas propostas pelo comunismo, mas havia um receio de ordem filosófica do descrédito a valores cristãos básicos, como família, Deus e caridade (Motta 2002:20). Nesse tocante, não surpreende que a própria ADP tenha usado a defesa da “civilização cristã” como princípio basilar para a sua atuação na Câmara.10
O materialismo apregoado por quem seguia os preceitos de Marx e Engels era extremamente perigoso no imaginário católico. Assim, eram constantes os apelos dos clérigos no sentido de pensar o homem mais do que em termos de sobrevivência física, mas espiritual. Em uma das assertivas de Padre Godinho, pode-se ver essa preocupação, quando o religioso dizia que o comunismo só enxergava o “estômago do homem, reduzindo a solução dos problemas da humanidade aos problemas da fome” (Godinho 1947:89). Na abordagem feita pelos clérigos nos anos 1960 acerca dos países aderentes à ideologia comunista, como China, Cuba e Rússia, a tônica de suas críticas se dirigia a essa visão materialista, clamando ao sentimento religioso dos brasileiros.
Padre Vidigal é o terceiro religioso presente no escopo deste trabalho a expressar preocupação com o comunismo em livro. Em O Nacionalismo (1963), escrito no afã da polarização política da década de 1960, o deputado não se propôs a dissertar exclusivamente sobre a ideologia marxista, mas as críticas contidas a ela são evidentes ali. A obra é resultado de um discurso feito pelo clérigo a concluintes de um colégio de Minas Gerais, ocasião em que o padre foi paraninfo.
No curto livro, Pedro Maciel Vidigal procurou explicar a sua conceituação de nacionalismo, alertando os alunos, e futuramente leitores, “contra o comunismo internacional” (Vidigal 1963:23). Ainda nesse sentido, o religioso afirmou que os soviéticos deturpavam o nacionalismo, reservando sua “irritação, a sua alergia, para a Inglaterra e os Estados Unidos” (Vidigal 1963:25), que no seu conceber seriam exemplos de democracia. Não era incomum ver, entre os deputados da ADP, uma preocupação em separar o “falso” do “verdadeiro” nacionalismo. Para eles, o primeiro seria representado por grupos como a Frente Parlamentar Nacionalista, constantemente considerada uma espécie de apêndice do comunismo (Ribeiro 2017:103-104). Segundo reportagem da revista Ação Democrática, o comunismo estaria travestido no Brasil de “nacionalismo”, que era um “disfarce da moda”.11
A militância anticomunista dos clérigos da ADP ia muito além dos discursos na Câmara enquanto deputados, e não se restringiu à radicalizada década de 1960. Parte desses religiosos expressou suas ideias em livros e outros meios de comunicação, não se atendo somente às suas paróquias, tornando-se vozes importantes no que se refere à mobilização contra a ideologia materialista.
Em 1949, o Monsenhor Arruda Câmara deu uma entrevista à Rádio Tamoio, na qual, acusando os comunistas de “bárbaros”, afirmou que tal doutrina “atira-se pelos seus tiranos covardes contra a Igreja Católica”. Como se não bastasse, ainda usou a imagem de Barrabás, que, segundo a Bíblia, seria um ladrão e assassino, para caracterizar o comunismo.12 A referência a esse personagem não pode ser vista como casual, pois, como nos lembra uma das teóricas da Análise de Discurso, “a voz do padre - ou do pregador, ou em geral, de qualquer representante seu - é a voz de Deus” (Orlandi 2003:242), reforçando a sua posição de autoridade no campo eclesiástico.
O mesmo clérigo supracitado, mostrando a repulsa que sentia em relação à ideologia marxista, fez uma autocrítica do apoio dado por católicos à Rússia na Segunda Guerra Mundial, em um discurso em Recife, quando criticava a condenação de um cardeal na Hungria. Segundo Câmara, “devíamos ter feito primeiro deixar que as feras se entredevorassem, pois, criamos um problema mais sério e pior do que o primeiro”.13
Em uma entrevista ao programa televisivo Peço a palavra, feito pelo IPES em novembro de 1962,14 portanto já dentro do arcabouço temporal deste artigo, Padre Godinho foi taxativo na afirmação de que “não há cristianismo onde há comunismo”, insistindo no mesmo assunto dos demais religiosos: a da inviabilidade de conciliação entre as duas doutrinas. Nessa mesma entrevista, o tópico principal girou em torno da Política Externa Independente, que, como veremos na próxima seção, foi o principal ponto de desconforto dos clérigos da ADP. Godinho fez duras críticas à condução das relações internacionais feita pelos governos brasileiros, sobretudo no que toca ao reatamento diplomático com os países socialistas, destacando que o Brasil foi o único dentre os latino-americanos a reconhecer o governo de Cuba, tema que estava em efervescência na Câmara à época. O padre acusou os governantes brasileiros de “inépcia” e “incapacidade”, afirmando que só restava ao povo brasileiro a luta e o combate a essa “ameaça”, que pouco tempo depois seria uma das principais justificativas para o golpe de 1964.
A retórica anticomunista dos clérigos da ADP na Câmara Federal
Dentro da Ação Democrática Parlamentar, os clérigos analisados neste trabalho contribuíram para dar um sentido ainda mais amplo ao anticomunismo, destacando a questão religiosa em um país já notoriamente cristão. O sentido empregado por várias de suas falas, como a Análise de Discurso religioso empreendida por Orlandi (2003) demonstrou, era de uma posição assimétrica em relação ao interlocutor, pois o clérigo representava o próprio Deus. Não é estranho inferir, portanto, que esse tipo de discurso fez com que a radicalização dos anos 1960 se intensificasse.
Na baliza temporal proposta por este trabalho, as frentes parlamentares polarizaram o debate na Câmara, opondo duas visões de Brasil completamente antagônicas: a que era representada pela FPN, e que reunia diversos grupos que tinham como principal bandeira a defesa das reformas de base; e a segunda, que aglutinava políticos que se consideravam anticomunistas, na ADP (Delgado 2010; Ribeiro 2017). Em algumas ocasiões, os sacerdotes que são o objeto do nosso estudo fizeram questão de reforçar o seu pertencimento a este grupo, o que marcava uma posição contrária a algumas políticas defendidas pela FPN. Além disso, em um dado momento de polarização aguda, motivado pelo sufrágio de 1962, que contou com a participação de organizações estranhas ao parlamento, muitos integrantes da ADP foram confrontados com a questão do recebimento de dinheiro oriundo do exterior para financiar suas candidaturas. Com os clérigos, a situação não foi diferente.
Monsenhor Arruda Câmara confessou ter recebido 500 mil cruzeiros em nome de João Mendes (UDN-BA), presidente da ADP, dinheiro que seria “legítimo e legal”. Apesar de dizer que nunca compareceu a nada que fosse do IBAD, admitiu fazer parte da frente parlamentar.15 Outro que procurou marcar a diferença entre o IBAD e a ADP foi Padre Nobre, que afirmou desconhecer o primeiro, mas integrar o segundo.16 Mesmo sendo do PTB, este deputado foi reconhecido pela revista Ação Democrática como partícipe da ADP, recebendo o mais “irrestrito apoio”17. Padre Medeiros Neto também se envolveu com a polêmica do dinheiro recebido para o sufrágio de 1962, mas fez pouco caso da quantia, dizendo inclusive que iria devolver o cheque de 200 mil cruzeiros recebido, considerando-o “migalha” dada a candidatos pobres. Nessa mesma ocasião, o deputado aproveitou para reconhecer os “méritos” do IBAD.18 Outro a admitir que recebeu ajuda, que consistiu no empréstimo de automóvel e na confecção de 200 faixas foi Padre Vidigal,19 considerado por João Mendes “um dos líderes da Ação Democrática Parlamentar”.20
Apesar de alguns clérigos afirmarem não ter relação com o IBAD, ou mesmo negarem conhecê-lo, deve-se lembrar que o instituto foi criado em 1959, e foi por meio dele que se realizou o aporte financeiro para as eleições de 1962 (Dutra 1963:16), sendo muito difícil a ausência de conhecimento de sua existência por parte de algum deputado. Reconhecemos que há diferenças de ação e objetivos entre o IBAD e a ADP, não considerando esta como “canal” do primeiro, ao contrário do que quer Dreifuss (1981:102), mas as conexões entre os dois grupos eram evidentes.
No que se refere à ocupação de cargos estratégicos na frente parlamentar, dois dos sacerdotes analisados tiveram postos hierárquicos na ADP. Padre Godinho fez parte da Comissão Executiva do grupo suprapartidário, que tinha a função de “referendar os nomes que podiam entrar no bloco” e se reunia uma vez por semana (Ribeiro 2017:124). Já o Monsenhor Arruda Câmara integrou o outro órgão de comando da ADP, o Conselho Orientador, que examinava as contas da Diretoria e conduzia os problemas do grupo (Ribeiro 2017:124).
Mesmo sem ser o nosso interesse principal, é mister pensar como os clérigos votaram nos sufrágios em que a ADP apresentou forte coesão na Câmara, pois isso é mais um indicativo do grau de pertencimento ao grupo.21 Nas votações que instituíram o parlamentarismo, à exceção de Padre Godinho, que ainda não havia sido eleito deputado federal, os demais religiosos votaram coesos com a ADP, contribuindo para a aprovação do sistema de governo. O mesmo aconteceu com a indicação dos nomes de San Tiago Dantas e Auro de Moura Andrade a primeiro-ministro, ocasiões em que a ADP votou unida pela rejeição, no primeiro caso, e pela aprovação, no segundo, saindo vitoriosa em ambos. No outro momento de grande coesão da ADP, referente à rejeição da emenda constitucional proposta pelo governo sobre indenização em caso de desapropriação de terras, apenas Padre Nobre seguiu seu partido e votou a favor da emenda. Os demais clérigos acompanharam a frente parlamentar.
Na votação proposta por Cardoso de Menezes (UDN-GB), integrante da ADP, a respeito de uma moção de censura ao então chanceler brasileiro San Tiago Dantas, dois clérigos da frente parlamentar se pronunciaram, informações que são importantes para verificarmos o comportamento do grupo naquele momento. A moção havia sido elaborada em razão do posicionamento do Brasil na Conferência de Punta Del Este, quando o país decidiu votar contra a expulsão do governo de Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA). Ao justificar seu voto a favor da proposta, Padre Nobre disse que o fez com “bases em questão de métodos”, sem dar maiores explicações.22 Padre Vidigal foi mais enfático, criticando o comportamento de seus colegas de frente parlamentar que não votaram contra Dantas. Para este clérigo, “a pobre Ação Democrática Parlamentar a esta hora deve estar enrolando a sua bandeira, porque, dos cento e setenta e tantos membros de que se compõe, trinta e poucos votaram, seguindo a sua orientação, a favor da censura”23. Mesmo assim, dos 46 deputados que votaram a favor da moção, 36 eram membros da ADP (Ribeiro 2017:166), dado que não é irrelevante.
Para esta seção, decidimos olhar para os temas que eram recorrentes nas falas dos clérigos analisados, procurando demonstrar quais eram as suas principais preocupações enquanto deputados federais da década de 1960. Com base nisso, fizemos um recorte em quatro temas: reforma agrária, relações internacionais, João Goulart e “infiltração comunista” nas organizações da sociedade civil. Quanto ao primeiro, é incontestável sua centralidade para a radicalização vivida pelo Brasil nos anos 1960. No que toca ao segundo item, o que mais sobressaiu foi a Política Externa Independente, alvo de críticas constantes da ADP. O terceiro tema escolhido foi bastante presente nos discursos dos clérigos, ora na postura crítica a João Goulart, ora o eximindo de culpa em relação aos problemas correntes da época. Por fim, a “infiltração comunista” foi uma expressão usada com frequência pelos deputados da ADP, e mais especificamente, pelos religiosos que são o objeto deste trabalho, indicando que alguns movimentos civis organizados já estariam sob controle comunista. Em todos esses assuntos, analisamos o comportamento discursivo dos clérigos, no sentido de verificar se estes mobilizaram os seus lugares enquanto sacerdotes para demonizar aquilo que procuravam combater, acentuando o forte sentimento anticomunista da época.
Reforma Agrária
Durante a década de 1960, pulularam algumas propostas de reforma agrária, e estas não se restringiram aos grupos de esquerda (Gomes & Ferreira 2014). A diferença estava na forma de se propor as mudanças, que, no caso dos grupos mais conservadores, consistiam no estímulo à produtividade rural, na luta pela indenização em dinheiro quando houvesse desapropriação de terras e no combate a qualquer alteração constitucional em termos de reforma agrária (Camargo 1983).
Ao se pronunciar sobre o tema, Monsenhor Arruda Câmara preferia a expressão “organização agrária”, em detrimento do termo reforma. Essa “organização” deveria se inspirar no governo italiano, que a promoveu “sem desequilíbrios, sem perturbações, sem agitações”,24 deixando clara a preocupação do religioso em não haver nenhum tipo de reforma radical no Brasil. Posicionando-se no debate, Medeiros Neto afirmou que não era preciso haver desapropriação do latifúndio, uma vez que o próprio governo poderia dispor a enorme quantidade de terras que possuía, partindo “do que tem para dar a quem não tem”.25
Usando de ironia em grande parte dos seus acalorados discursos, Padre Vidigal também sugeria um rearranjo simples para a estrutura agrária. Segundo o clérigo, os deputados que lutavam pela reforma agrária deveriam ser “sinceros com o povo e anunciassem aos que esperam terra que não vão receber terra gratuitamente. Terão de pagar ao próprio governo a terra cedida pelo governo”,26 em um raciocínio que ia ao encontro do de Medeiros Neto.
Além disso, qualquer alteração à Constituição era considerada “desnecessária”,27 palavra usada por Arruda Câmara, que se apoiava na ideia de que “o direito de propriedade pertence ao direito natural”,28 pensamento que seria repetido por seus colegas. Padre Vidigal chegou a se dizer “entusiasmado” pela “luta contra a reforma da constituição para efeito de qualquer reforma agrária”.29 Medeiros Neto, bastante mobilizado a respeito desse tema, afirmou que “o direito de propriedade” era o “principal fundamento da democracia”, não podendo ele “sofrer qualquer arranhão sem que o país corra o risco de bolchevizar-se”.30 Segundo Vidigal, mexer na Constituição e “atentar” contra a propriedade privada era agir “conforme o figurino comunista”.31
Na análise dos pronunciamentos feitos por esses religiosos, é notória a preocupação em evitar quaisquer tipos de transtornos quer seriam decorrentes das reformas. Dias antes do golpe de 1964, Padre Vidigal, assíduo opositor de mudanças agrárias profundas, citou dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para defender a ideia de que o Brasil já estava fazendo a sua reforma agrária, tornando desnecessárias a desapropriação ou emendas constitucionais. Segundo o padre, do modo que a reforma estava sendo proposta, “esses comunistas querem é mesmo desgraçar o Brasil”,32 pois ela seria a primeira etapa de um processo de transformação rumo ao socialismo.
No entanto, apesar da tônica predominante ser enfática no combate à reforma agrária proposta por grupos de esquerda, percebemos um comportamento diferente por parte de Padre Nobre em relação aos seus colegas. Além de, como vimos, o deputado ter votado a favor da proposta de desapropriação de terras na forma de emenda constitucional, ele repetia em discursos a necessidade da implantação gradual das reformas, mostrando estar mais sintonizado com seu partido do que com a frente parlamentar, pelo menos nesse assunto. Ainda assim, não renunciava a referências religiosas para justificar a necessidade de mudanças no tocante a esse tema, como nos fins de maio de 1962, quando citou as Encíclicas do Vaticano, além de ter rebatido Celso Brant (PR-MG) quando este lembrou que alguns religiosos se “opõem tenazmente a qualquer modificação de base”, declaração não apoiada por Nobre.33
De maneira geral, o que se verifica nos discursos é uma preocupação com a maneira com que a reforma agrária vinha sendo discutida por setores da esquerda e do governo. Em sua maioria, os clérigos rejeitavam propostas de mudança constitucional e de desapropriações de terra. No entanto, pouco explicitavam o discurso religioso, repetindo argumentos que seus colegas da ADP já mobilizavam com frequência, apostando na ideia de um suposto perigo trazido por mudanças estruturais no campo, que poderiam desembocar na implantação do comunismo.
Relações internacionais
Os quase sete meses do governo Jânio Quadros pouco se destacaram em relação a políticas públicas efetivas, sendo mais recordados por medidas supérfluas no que concerne aos costumes, como a proibição da briga de galos, além de um modus operandi peculiar na comunicação com seus ministros, por meio de bilhetes. Ainda assim, foi em seu curto mandato que houve o início da chamada Política Externa Independente, sob comando do conservador Afonso Arinos de Melo Franco (UDN-MG), que consistiu em uma posição de neutralidade do Brasil em relação às duas grandes potências da Guerra Fria, EUA e URSS. A ADP se mostrou forte opositora dessa nova diretriz das relações internacionais, que continuaria em vigor no governo seguinte, e os clérigos que a integravam não ficaram de fora do debate.
Um dos fatores de maior repercussão na Câmara foi o já citado posicionamento brasileiro na OEA, quando houve o debate sobre a expulsão do governo de Cuba desta organização. Padre Vidigal chamou San Tiago Dantas, então chanceler brasileiro, de “representante dos cubanófilos e dos comunistas”.34 Arruda Câmara também lhe dirigiu críticas duras, comparando-o a Pôncio Pilatos, pois ambos teriam fugido de suas reponsabilidades em momentos-chave. Ao fim do discurso, o Monsenhor admitiu falar em nome dos católicos e das tradições.35 Como retaliação ao reconhecimento do governo de Cuba, Arruda Câmara votou a favor da moção de censura proposta a Dantas, lembrando ainda que o anúncio do reatamento diplomático entre Brasil e URSS havia se dado no Dia de Ação de Graças, revelando mais uma vez seu pertencimento religioso.36
As críticas às posições que estavam sendo tomadas pelo governo brasileiro em suas relações internacionais repercutiriam entre os clérigos ainda por bastante tempo. Em fins de 1962, Padre Medeiros Neto criticou a condução da política externa brasileira por Afonso Arinos e continuada por San Tiago Dantas, argumentando que “faliu toda a política internacional de visionários arautos do Itamarati”,37 tamanha a quantidade de erros cometidos.
Uma ocasião em que ficou escancarada a insatisfação com os rumos internacionais postos em prática com a PEI se deu na visita do Marechal Josip Broz Tito (1892-1980), presidente da Iugoslávia, ao Brasil. Este momento, no qual “intensificou-se a aproximação com os países não-alinhados” (Villa 2004:39), foi bastante reverberado pelos clérigos da ADP, que se pronunciaram na tribuna da Câmara para condenar o convite. Todas as críticas à chegada de Tito tiveram também fortes referências religiosas, corroborando a nossa hipótese principal.
Ao afirmar, mais uma vez, que estava agindo em nome dos seus “eleitores católicos”, Arruda Câmara protestou contra a visita, chamando Tito de “ditador vermelho da Iug0slávia”, e usou de ironia ao dizer que a única homenagem que lhe era devida seria a de “dobrar os sinos e hastear a meio mastro a nossa bandeira”.38 Padre Godinho também não poupou críticas à chegada do marechal e lembrou que este havia sido excomungado, afirmando que “se isso não tem nenhuma importância para o Presidente da República, para o Itamarati e para os comunistas do governo, tem muita importância para os milhões de católicos brasileiros, cuja voz e cujas convicções o governo não pode desconhecer e muito menos afrontar”.39 Padre Vidigal usou argumento parecido, acrescentando que seria um vexame para o Brasil ter em seu território alguém que foi excomungado e que se tornou “um dos maiores perseguidores do cristianismo”, com o marechal sendo “a prova de que, pelo ódio, o homem toca as profundidades do inferno onde se sataniza”.40 Para este padre, o mais ácido nas críticas a Tito, a política do mandatário era “apocalipticamente bestial” e “teologicamente satânica”.41 Medeiros Neto, por sua vez, recordou que a visita se dava no mesmo dia que o Brasil comemorava a assinatura da Constituição de 1946, em 18 de setembro, lamentando ainda o fato de se tratar de um governante que havia comandado o assassinato de vários clérigos em seu país.42
No período analisado, o que se viu foi uma quantidade muito expressiva de apelos ao sentimento cristão dos brasileiros por parte dos deputados clérigos da ADP em relação à política internacional. Exemplo disso foi o questionamento de Padre Nobre ao ministro das Relações Exteriores, Afonso Arinos, a respeito da condução da PEI, já nos momentos finais do governo Jânio Quadros. Chamando atenção para a religiosidade de Arinos, o clérigo dizia que estava falando de “um católico a outro católico”, argumentando que um país cristão não poderia reatar com um comunista.43
Para fundamentar a crítica ao restabelecimento de relações diplomáticas com países comunistas, fazia-se mister divulgar práticas condenáveis, na visão dos religiosos, que ocorriam nesses lugares, como nos momentos em que os clérigos denunciavam a “perseguição” à Igreja, o que também fazia parte do imaginário anticomunista (Giménez & Ribeiro 2014: 199). No entanto, essa não foi a única maneira de desconstruir esses países; sobre a Rússia, por exemplo, Padre Nobre a condenou por promover explosões atômicas.44 A URSS foi o principal alvo dos religiosos, sendo acusada de “toda sorte de misérias” (Motta 2002:70), considerada “foco propagador da ameaça revolucionária” (Motta 2002:56). Cuba também não ficou de fora da representação anticomunista, sendo recorrentemente lembrada pelos religiosos como um perigo real para o Brasil.45 Por isso Padre Vidigal criticava o encantamento dos que se deixavam iludir por esse país, chamando-os de “cripto-comunistas”, “pseudo-comunistas” e “inocentes úteis do Itamarati”.46
No tocante às relações internacionais do Brasil no início da década de 1960, o posicionamento dos deputados clérigos da ADP foi no sentido de rejeitar as tentativas de aproximação com países que viviam a experiência socialista. Apelando algumas vezes para um “imaginário demoniológico” (Rodeghero 2003:34), principalmente Padre Vidigal, esses parlamentares usaram o seu lugar religioso para acentuar o discurso crítico que se fazia em relação à política externa independente, lançando mão da ideia do “medo” tão difundido pelo pensamento anticomunista e pela Igreja ao longo do tempo, além da noção de ameaça metafísica àqueles que não seguissem a lógica religiosa (Orlandi 2003), contribuindo para a polarização da época.
João Goulart
Conspira o governo e acusa de conspiradores os que denunciam a conspiração. Esquece-se de governar, o governo, ou não governa, por incapacidade, por inconsciência ou por falta de gosto. [...] O país pede governo e lhe oferecem sítio. O país pede pão e lhe prometem reformas. O país pede paz e lhe acenam com a revolução.47
A declaração de Padre Godinho, feita na tribuna da Câmara em outubro de 1963, ajuda a entender a insatisfação da ADP e da Igreja Católica quanto aos rumos tomados pelo governo João Goulart. Depois de um período em que ocupou a presidência sem exercer a chefia do governo, sob o sistema parlamentarista, Jango, como era conhecido o ex-presidente, passou por grandes dilemas quando finalmente assumiu o principal cargo político do Brasil com plenos poderes: ameaça de estado de sítio, revolta dos sargentos, rebelião dos marinheiros, plano econômico fracassado e muita agitação social, culminando com um golpe de estado em abril de 1964 (Gomes & Ferreira 2014). Com todo esse repertório e ainda carregado de uma imagem negativa por parte de grupos conservadores desde o início da década de 1950 (Delgado 1989:153), João Goulart foi alvo constante de críticas proferidas pelos clérigos da ADP.
Logo após a renúncia de Jânio Quadros, criou-se um clima de instabilidade política com a resistência dos ministros militares em aceitar a posse imediata do vice-presidente João Goulart (Gomes & Ferreira 2007:116). Monsenhor Arruda Câmara se pronunciou a respeito, com uma declaração que mostrava o paradoxo em tolerar a ascensão de Jango à presidência, respeitando a Constituição, ou rejeitá-la pelo suposto perigo que isso simbolizava. Assim, Arruda Câmara reconheceu os direitos constitucionais da posse do petebista, mas admitiu que esperaria as razões dos que eram contra, afirmando ainda que poderia seguir os argumentos destes.48
Pouco antes da vitória do presidencialismo no plebiscito ocorrido em inícios de 1963, Medeiros Neto criticou a possível naturalização do padre português Alípio de Freitas, jornalista com bastante circulação pelas esquerdas e colunista do jornal O Semanário, ligado à Frente Parlamentar Nacionalista. Aliás, foi Freitas quem escreveu o texto com a primeira aparição do nome da ADP nesse periódico, bastante irônico na depreciação da frente parlamentar (Ribeiro 2017:111). Para Medeiros Neto, as ideias do jornalista, mesmo sendo também clérigo, não coadunavam com o pensamento cristão, chamando-o de “padre vermelho e apátrida”. Para o deputado da ADP, a decisão de naturalizá-lo exprimia as tendências “francamente bolchevizantes” do governo, que estava sob comando do primeiro-ministro Brochado da Rocha, petebista muito próximo a João Goulart e Leonel Brizola.49
A postura crítica a Jango foi tão forte que o mandatário não foi poupado nem nos primeiros dias de seu governo pós-plebiscito, acusado de letargia pelo Padre Vidigal. Para este, tanto o presidente quanto seus “dedicados aduladores e abnegados companheiros de sempre” culpavam o parlamentarismo pelas mazelas sociais do país, mas nada fizeram desde que o sistema presidencialista voltou a vigorar.50
O que alguns clérigos consideravam permissividade e tolerância do PTB - especialmente de João Goulart - com o comunismo foi constantemente rebatido por Padre Nobre, que procurava mostrar equidistância da legenda com a ideologia comunista.51 Mesmo assim, em um discurso, Padre Vidigal criticou a presença de João Goulart em um comício de “comunistas no RJ” em 1962, sem especificar qual. Segundo o clérigo, Jango teria ouvido tudo sem reagir, o que poderia demonstrar consentimento.52 O mesmo Padre Vidigal criticaria a própria “conivência” de seu partido com o que chamou de “desgoverno da nação”, referindo-se ao apoio do PSD ao presidente, denunciando o que seria uma “criminosa tolerância” da legenda.53 Não resta dúvidas de que foi este o clérigo que mais perseguiu Goulart, chegando a dizer que “prestigiar Jango é, na verdade, desservir o Brasil”.54
Em seu trabalho sobre a Ação Democrática Parlamentar, Thiago Nogueira de Souza afirmou que durante o período parlamentarista, poucas críticas foram dirigidas a Jango, e muitas foram direcionadas para outros políticos, como Brizola (Souza 2015:231). Em relação aos clérigos, também verificamos que Jango foi mais poupado durante a vigência do primeiro sistema de governo. Mesmo assim, deve-se ressaltar que personagens diferentes e que defendiam bandeiras nem sempre próximas, como Francisco Julião, Leonel Brizola, Luís Carlos Prestes e o próprio João Goulart, eram colocados, muitas vezes, no mesmo patamar, tachados de “comunistas” (Rodeghero 2003:38-39), anátema repetido constantemente por clérigos da ADP.
As menções negativas que alguns desses religiosos faziam de João Goulart tinham ligação com as principais propostas de seu governo que, longe de serem comunistas ou próximas disso, atacavam algumas estruturas bastante solidificadas no Brasil, sobretudo a agrária, o que não era tolerado por determinados grupos. João Goulart era considerado um dos principais símbolos dessas ideias, sendo por isso visto como a materialização de uma ameaça real a valores cristãos intocáveis, como o direito à propriedade, razão que explica o teor crítico e duro dos pronunciamentos dos religiosos.
“Infiltração comunista” em organizações da sociedade civil
Fazia parte do imaginário conservador a ideia de que o comunismo estava se infiltrando em diversos movimentos da sociedade civil, alguns bastante tradicionais. Dentro da lógica anticomunista, os métodos e táticas dos “vermelhos” poderiam não ser explícitos, quando, por exemplo, usavam as regras do jogo capitalista para instalar o comunismo em seus países, o que foi “denunciado” no livro Assalto ao Parlamento (1962), em que o deputado Jan Kozak teria explicado, minuciosamente, como os adeptos da doutrina chegaram ao poder na Tchecoslováquia, em uma publicação patrocinada pelo IBAD, que procurava com isso mostrar a semelhança entre a escalada comunista naquele país e o que poderia ocorrer no Brasil (Kozak 1962:5).
A própria Igreja teria sido alvo da “infiltração comunista” através da chamada “esquerda católica”, muito criticada por Padre Nobre dias após o golpe de 1964.55 Segundo Rodrigo Motta, um dos principais motivos para a insatisfação da cúpula da Igreja com esse grupo residia no fato de ele não se preocupar em combater o comunismo, uma das prioridades da instituição naquele momento (Motta 2002:24).
Como a reforma agrária foi um assunto bastante debatido no início dos anos 1960, os grupos que a defendiam com veemência provocaram reações de algumas organizações conservadoras, como a própria ADP, e mais especificamente, os clérigos que a integravam. Assim, as Ligas Camponesas, movimento rural com bastante repercussão à época, foram atacadas com veemência por religiosos como Arruda Câmara, que a acusava de receber instruções de Cuba. Para ele, era preciso haver uma repressão mais forte a esse grupo.56 Para alguns desses clérigos, o governo de Pernambuco comandado por Miguel Arraes também estaria sob controle comunista e seria responsável direto pelas ações das Ligas Camponesas. Para Medeiros Neto, as Ligas eram “chefiadas, inspiradas, orientadas pelo Governador Miguel Arraes e pelo seu caudatário Francisco Julião”,57 um dos principais líderes desse grupo. Ainda segundo o padre, Arraes faria uma pregação “afoita, altaneira, revolucionária vermelha, viva, queimando a vasta inteligência de todos os que têm uma parcela de responsabilidade neste país”.58 Pernambucano, Monsenhor Arruda Câmara tinha um discurso parecido, ao dizer que o governador estaria executando um trabalho de “cubanização” do estado.59
O Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), um dos principais órgãos de assessoria do governo Juscelino Kubitscheck e da Frente Parlamentar Nacionalista, também não foi poupado de críticas. Padre Nobre atacou um dos panfletos lançados pelo grupo no final de 1962, sem detalhar seu conteúdo. De acordo com o religioso, o documento era anticlerical e, por isso, o padre procurou em seu discurso concitar os governantes “superiores desses rapazes [ISEB]” a dizerem se o aprovavam, mobilizando, mais uma vez, o “eleitorado católico”.60 Dias após o golpe de 1964, o petebista voltaria ao plenário para falar do ISEB; nessa ocasião, parabenizou o então presidente Ranieri Mazzili por ter extinguido o instituto, que seria palco de “aleivosias”.61 É necessário dizer que Padre Nobre pertencia a um partido que, além de ter ligações com esse grupo, foi também um dos alvos preferenciais do golpe, mas, mesmo assim, o deputado não titubeou em comemorar a extinção do ISEB por, supostamente, estar sob o jugo comunista.
A Petrobras foi outro grupo com o qual os clérigos da ADP mostrariam preocupação. No final de janeiro de 1964, Monsenhor Arruda Câmara, aquele que mais fez discursos dessa natureza, informou no plenário que a organização estava no caminho do caos, afirmando existirem vários elementos comunistas nela.62 Pelo pronunciamento, vê-se que já não havia tanto a necessidade de detalhar esse tipo de “denúncia”, uma vez que, com a radicalização em seu auge, os atores envolvidos procuravam manter aceso o tom extremista do debate. Prova disso é outro discurso do Monsenhor feito a poucos dias do golpe, no qual alertava para a ameaça real do comunismo no Brasil,63 sem absolutamente especificar do que se tratava, mostrando que os religiosos que pertenciam à ADP não fugiam à regra do conflito polarizado.
Não só havia a preocupação com os sinais de que determinados grupos estariam sendo “contaminados” pelo comunismo, mas igualmente os clérigos apresentados neste trabalho objetivavam prevenir a sociedade de uma “invasão vermelha”, expressão sintomática usada por Padre Nobre ao repudiar um congresso comunista que seria organizado em seu estado, no início de 1964.64 Assim, os deputados clérigos da ADP intensificaram a noção da “ameaça comunista” ao generalizarem o que consideravam um perigo real para as instituições democráticas brasileiras, conclamando uma reação por parte de uma sociedade profundamente marcada pelo catolicismo.
Considerações finais
Este trabalho procurou verificar a retórica anticomunista de cinco lideranças importantes da Igreja Católica vinculadas à Ação Democrática Parlamentar, grupo suprapartidário muito forte no Brasil no início dos anos 1960. Para tanto, recorremos ao trabalho de Orlandi (2003) para embasar a especificidade do discurso religioso, que, como vimos, deu uma dimensão de autoridade e legitimidade à ideologia defendida pela ADP. Mesmo não havendo evidências de que os cinco clérigos formariam um subgrupo dentro do bloco temático, percebe-se que estavam sintonizados com o pensamento majoritário da Igreja, que via na doutrina materialista um dos principais vilões da instituição durante boa parte do século XX.
A hipótese sugerida foi a de que os religiosos analisados usavam o seu lugar enquanto membros do corpo eclesiástico para reduzir as mudanças propostas pelos grupos nacional-reformistas a iniciativas comunistas, aproveitando a rejeição da ideologia em camadas expressivas da sociedade brasileira. Verificou-se essa hipótese no caso das relações internacionais, em um contexto de Política Externa Independente, com a recorrência de um imagético religioso visando a amedrontar os fiéis, tornando o “perigo” comunista uma “ameaça” real e que, por isso mesmo, precisava ser enfrentada.
Ao observar o discurso desses deputados em outros tópicos, como o da reforma agrária, opiniões sobre João Goulart e a suposta “infiltração comunista” em organizações da sociedade civil, pode-se observar que a retórica anticomunista está presente, mas não necessariamente acompanhada do discurso religioso. Ainda assim, não podemos cometer a ingenuidade de achar que as referências cristãs estavam completamente ausentes, visto que os clérigos se dirigiam a um eleitorado massivamente católico, instado a se envolver na luta que se travava entre a Igreja e a doutrina marxista, batalha forjada “entre o que era ou não moralmente aceito, entre amor e ódio, entre luz e trevas, entre natural e antinatural” (Rodeghero 2003:32).
Os clérigos, ainda que nem sempre fizessem referências religiosas literais, contribuíram para dar um novo sentido ao anticomunismo a partir de seu pertencimento à Igreja Católica. Assim, mesmo que a retórica apresentada não abrangesse, em todos os casos, um discurso religioso específico, ela ganhava o sentido sacro quando proferida por homens nessa posição (Orlandi 2003)
Algumas diferenças no comportamento dos cinco deputados que são objeto do presente estudo chamaram a atenção durante a análise. Padre Godinho foi o que menos teve suas falas analisadas, haja vista que só tomou posse na Câmara em 1963. Monsenhor Arruda Câmara e Padre Vidigal foram os que mais se destacaram em todas as temáticas analisadas, correspondendo quase sempre às bandeiras que eram defendidas pela ADP, sendo bastante enérgicos em suas opiniões. Padre Medeiros Neto se mostrou ferrenho opositor das propostas de reforma agrária do governo, não se abstendo também de criticar com veemência a Política Externa Independente. Já Padre Nobre teve uma postura diferente de seus colegas, principalmente por pertencer ao PTB, partido que estava no governo e que era um dos alvos dos grupos conservadores. Mesmo assim, foi bastante duro na temática das relações internacionais, indo ao encontro de seu lugar enquanto clérigo e militante da ADP.
Para futuros trabalhos, é mister pensar na amplitude da receptividade dos discursos desses religiosos. Como tais pronunciamentos repercutiram em jornais locais? E dentro de suas paróquias? E em seus partidos? Rodeghero (2007) investigou a questão da recepção do discurso anticomunista religioso em entrevistas que fez com um grupo de católicos gaúchos algumas décadas depois do golpe de 1964, o que é uma iniciativa importante em estudos afins à essa temática. Nosso objetivo, contudo, foi apenas o de analisar a retórica anticomunista dos clérigos da ADP no locus restrito da Câmara, uma vez que exerciam o cargo de deputado e faziam parte de um grupo que atuava, primordialmente, dentro do parlamento.
O comportamento conservador dos clérigos que faziam parte da ADP não se ateve à polarizada década de 1960. Mostramos na consecução deste trabalho que algumas dessas lideranças religiosas aqui analisadas carregavam a bandeira do anticomunismo muito antes do surgimento da frente parlamentar na qual militaram, escrevendo livros e aparecendo na grande imprensa como representantes desse pensamento. Com o golpe consumado em 1964, à exceção de Padre Nobre, os outros quatro religiosos se filiaram ao partido situacionista, a Aliança Renovadora Nacional (Arena), mantendo assim sua postura no combate àquele que era considerado o grande inimigo interno. Saudando o que chamou de “revolução”, Padre Vidigal afirmou dias depois da instalação do governo militar que “morreram as esperanças que os comunistas tinham de cubanizar o Brasil”.65 Vê-se, desse modo, como o anticomunismo estava enraizado em instituições e outros grupos sólidos no Brasil, traduzindo-se em uma vertente poderosa de deslegitimação de pautas reformistas das esquerdas, sendo “a fagulha principal a detonar o golpe militar” (Motta 2002:231).
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Disponível em: http://www2.camara.leg.br/deputados/discursos-e-notas-taquigraficas. Acesso em: 29/10/2018.
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Revista Ação Democrática, Ano III, n. 26, p.11.
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Além das obras que serão analisadas, foram escritas também: Esfolando uma calúnia (1961) e Ação Política (1971), de Padre Vidigal; e Atuação Parlamentar (1961-1978) - Principais discursos proferidos (1979), de Padre Nobre. Essas não foram incluídas por não apresentarem as impressões dos autores sobre o comunismo.
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Jornal do Brasil, 20/02/1949, p.6.
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Arquivo Nacional. Fundo Paulo de Assis Ribeiro, Caixa 51, PT 3, Documento “O que é o IPES?”.
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Diário do Congresso Nacional, 27/08/1963, p.5842.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Jun 2021 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2021
Histórico
-
Recebido
18 Mar 2019 -
Aceito
22 Dez 2020