Na virada do novo século, Timothy Fitzgerald lançava um potente manifesto acerca dos rumos de nossa disciplina. Desde seus fundadores, o autor argumentava que as Ciências Sociais haviam adquirido certa tendência a reduzir o estudo da religião a um nível de generalidade e abstração que, em vez de tanger efetivamente as formas mais elementares e sutis do fenômeno religioso, propalava concepções bastante específicas - e eurocêntricas - de religiosidade e humanidade, levando o autor a sugerir o abandono da categoria religião ou, ao menos, o imperativo de fazer com que a religião fosse tomada, afinal, como objeto de análise, e não como seu instrumento, por vezes implícito (Fitzgerald 2000:106).1 A posição, embora relativamente isolada, permite dimensionar uma controvérsia basilar que, de certo modo, ainda pesa sobre todos os praticantes da disciplina. Não será exagero enunciar, de saída, que a curadoria de Renata Menezes e Rodrigo Toniol reuniu um conjunto de estudos de grande fôlego, capaz de fornecer respostas elegantes a esse longo mal-estar.
A coletânea Religião e Materialidades resulta de colaboração entre pesquisadores do Laboratório de Antropologia da Religião, sediado na Universidade Estadual de Campinas, e colegas do Grupo de Pesquisas em Antropologia da Devoção e do Laboratório de Antropologia do Lúdico e do Sagrado, ambos sediados no Museu Nacional, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Esses coletivos de pesquisa, atentos à chamada virada material nas Ciências Sociais, foram responsáveis por estudos de grande variedade - seja nos percursos teóricos dos pesquisadores e em sua mirada sobre materialidade e religião, seja nos estágios da profissão em que se encontram, seja na variedade dos objetos empíricos a que se dedicam.
Essa variedade não se trata de incidente salutar, mas do resultado de decisões editoriais inspiradas, que permitiram intensos diálogos Sul-Sul sem negligenciar o diálogo com pesquisadores em países hegemônicos - assim na economia política, como nas instituições acadêmicas. Desse modo, embora Religião e Materialidades destaque a produção brasileira no tema, a seleção dos objetos empíricos é efetivamente transnacional. Além disso, o mesmo coletivo foi responsável pela recente tradução de textos de Birgit Meyer, inclusive de sua crítica, um tanto próxima à posição de Fitzgerald, do mentalismo, do viés protestante que subjaz um dos momentos fundadores dos estudos da religião, e que nos levou a negligenciar, por longo tempo, suas dimensões materiais (Meyer 2019).2
Os estudos reunidos em Religião e Materialidades são precedidos de uma introdução editorial e de um capítulo de cunho teórico que contextualiza a obra de Birgit Meyer, a escola da Religião Material (Material Religion), sua recepção entre pesquisadores no Brasil, abordagens concomitantes das materialidades, e a aposta vigorosamente fenomenológica da coletânea.
O primeiro estudo empírico, que atesta o alcance transnacional da obra e a relevância de instituições religiosas (e pesquisadores) do Brasil, consiste em etnografia de Lívia Reis Santos sobre a atividade da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) em Maputo (Moçambique). Em meio a grupos de fiéis da organização, com uma remissão implícita e “materializante” a certo texto de Michel Foucault (1994),3 e diálogos mais explícitos com a obra de Marcel Mauss, a autora examina as formas materiais (e econômicas), por meio das quais os fiéis constituem a si mesmos e se oferecem em um ato sacrificial coletivo - a Fogueira Santa - que atravessa Brasil, Moçambique e Israel.
Os dois textos seguintes de Religião e Materialidades compõem um díptico de hierópoles. Adriano S. Godoy leva o leitor à Basílica de Nossa Senhora Aparecida, no estado de São Paulo: interpelando a matéria imemorial dos tijolos, o autor analisa as relações, constitutivas e contínuas, entre os fiéis, os materiais que concretizam o templo e um projeto neorromânico que, surpreendendo Roma, pretende superar o próprio Barroco. Em contraste, na capital do mesmo estado, Claudia W. Swatowiski estuda a transladação, pela Iurd, de uma Arca da Aliança, desde Angola até o Templo de Salomão, no Bairro do Brás. O gesto, ritual e performático, farto de objetos e imagens, mais do que inscrever um novo destino para o turismo religioso, busca explicitamente constituir “um pedaço de Israel no Brasil”, corroborando a conclusão seminal de Edlaine Gomes (2011),4 que estabeleceu o modo como a Iurd pensa-e-constrói a si própria como instituição única, universal e capital do cristianismo.
Lançando o olhar para além de grupos cristãos, os dois estudos seguintes capturam religiosidades originárias das Américas e da singular Igreja Messiânica Mundial, nipo-brasileira. Rodrigo I. Caravita analisa a biografia cultural (Kopytoff 1986)5 de seu próprio petynguá, cachimbo intimamente associado à cosmovisão Guarani, na América do Sul, como àquela dos Lakota e de outros povos nativos, na América do Norte. O autor e seu petynguá percorrem a riqueza material, ritual e afetiva do Caminho Vermelho, entrelaçando religiosidades e semeando diálogos entre povos nativos do continente. Hellen Fonseca, também com base em sua própria experiência com a Ikebana, analisa a trajetória do arranjo floral, incorporado pela Igreja Messiânica como principal concretização da prática estética-e-salvífica de contemplar e fazer, com as mãos, expressões do Belo. Enquanto circula em campo, a Ikebana, em sua efemeridade, agencia dinâmicas interreligiosas tão vigorosas quanto a díade da conversão e da apostasia.
A relação entre materialidades e experiência está no cerne dos estudos seguintes. Raquel dos S. Sousa Lima analisa as trocas rituais das rosas na devoção a Santa Rita de Cássia, na cidade do Rio de Janeiro. Em observações que recordarão ao leitor atento os “anéis medicinais”, em texto clássico de Marc Bloch (1961),6 os regimes de circulação das rosas de Santa Rita difundem suas propriedades taumatúrgicas no meio de pessoas e coisas “comuns”. Leonardo O. de Almeida inaugura a presença das religiões afro-brasileiras na coletânea, considerando a incorporação ritual e performática do audiovisual e de mídias sociais na quimbanda sul-rio-grandense, a partir de empresas de “cobertura de mídia”. Em campo junto aos exus e seus objetos, justamente as entidades que, na cosmologia nativa, presidem todas as formas de circulação e comunicação, Almeida observa como a quimbanda do novo século produz certa equivalência entre presença digital e poder mágico-religioso. No Mercado de Santa Bárbara e seus arredores, em Salvador, Débora S. de S. Mendel assinala a interpenetração e a alternância de objetos e imagens católicas e afro-brasileiras associadas a Oya-Iansã. Contra profecias - jornalísticas ou acadêmicas - que prenunciavam, na segunda metade do século XX, o ocaso dos festejos, a secularização não abalou a capela do Mercado: pelo contrário, tomou a este e a toda a região da Baixa dos Sapateiros em exemplo contundente do “reencantamento” do mundo ou, ao menos, de uma necessidade de repensarmos a sacralidade das coisas (Sherry 2009).7
Essa agenda orienta decisivamente os estudos seguintes. Morena B. M. de Freitas, em análise sobre a indumentária ritual das Ibejadas, entidades infantis do panteão de Umbanda, analisa detidamente o modo como os trajes acionam diversos tempos, técnicas corporais e dimensões sensoriais para exprimir as texturas infantis do sagrado no corpo adulto, objeto dessa expressão. Edilson Pereira apresenta, em meio às festividades processionais da Semana Santa em Ouro Preto, Minas Gerais, os entrecruzamentos da agência objetal de peças de arte sacra e da memória afetiva. A amizade do pesquisador com uma participante focal permitiu descortinar a coextensibilidade entre pessoas e imagens sagradas no ambiente doméstico, e mesmo além dele, quando uma escultura barroca obtém, da restauradora encarregada de sua manutenção, práticas de pudor, reverência e personificação semelhantes àqueles dos devotos. Esse contágio das coisas também é evidente no estudo de Hugo Soares. A causa canônica de um padre salesiano em São José dos Campos, São Paulo, envolveu a exumação de restos mortais que, embora ainda em vias de serem reconhecidos como relíquias, já exercem suas propriedades taumatúrgicas sobre o antigo jazigo, que passa a articular, a contragosto dos sacerdotes envolvidos no processo, uma devoção cemiterial espontânea.
Renan B. Dantas volta o olhar às formas por meio das quais a Igreja Católica buscou absorver e transformar as técnicas do corpo que os missionários encontravam, como o yoga, com foco sobre a Companhia de Jesus (entre outras ordens, como os Cistercienses, que visitaram o tema com semelhante cuidado). A contribuição de Ana Carolina C. Rigoni, Letícia R. T. e Silva e Dulce Maria F. de Almeida, sobre as sensibilidades da Renovação Carismática Católica, destaca que atividades como a dança e os esportes de aventura são propostos tanto como sociabilidades protetivas - que visam limitar a apostasia na sucessão geracional dos fiéis - quanto em sua capacidade de utilizar a corporeidade como ponto de acesso à experiência do sagrado. O texto de Lucas Baccetto problematiza a questão teológica e socioantropológica dos milagres e das graças - vale dizer, de intervenções mais ou menos dramáticas do inefável sobre as materialidades - com base em uma exposição de ex-votos no Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, e da participação de médicos brasileiros na investigação canônica de um dos milagres atribuídos a Teresa de Calcutá.
Os três textos seguintes retornam às artes, buscando seus transbordamentos sobre outros domínios do social. Júlia V. Goyatá apresenta os primeiros anos do Bureau d’Ethnologie, no Haiti, e seu papel no reconhecimento e na patrimonialização do vodu. Lucas Bártolo investiga alegoria do carnavalesco Jorge Caribé para a Escola de Samba Renascer de Jacarepaguá. A etnografia do processo criativo de uma agremiação mais modesta permite ao autor dar amplo destaque à biografia cultural dos materiais de um desfile que precisou negociar as tensões do sincretismo na cor da pele de santos-orixás que foram à avenida, afinal, com a pele branca. O texto de Giovanna P. dos Santos captura um momento-chave da contrição sociopolítica dos anos 2010, a saber, o desfile da transexual Viviany Beleboni na edição de 2015 da Parada do Orgulho LGBT da cidade de São Paulo, para produzir um panorama das representações de mulheres e pessoas LGBTQIA+ crucificadas.
Os dois últimos textos da coletânea consistem em relatos bastante diversos. Mariana de C. Ilheo apresenta dados de pesquisa em curso acerca da ocupação do espaço público de Campinas por anúncios de cartomantes e benzedeiras. Com originalidade, a autora observa que o fenômeno remete a práticas terapêuticas religiosas e não religiosas, ou aos atravessamentos entre elas (Duarte 1983).8 O último texto é um testemunho de Renata Menezes sobre o assombro e a recuperação dos restos do Museu Nacional, sede de protagonistas da coleção, consumido por um incêndio em 2 de setembro de 2018. Com iconografia poderosa, a professora realiza um paralelo entre sua experiência de percorrer e trabalhar no recolhimento das “cascas” do Museu, e a experiência de Georges Didi-Huberman (2017),9 ao percorrer os resultados da musealização dos campos de concentração de Auschwitz-Birkenau.
Como afirmei, a curadoria inspirada dos textos de Religião e Materialidades está acima de crítica, mas algumas escolhas editoriais recomendam tecer um convite a colegas que militam no tema, a partir do fim do relato de Ilheo. Ao privilegiarmos formas confessionais e institucionais do fenômeno religioso, deixamos frequentemente de capturar suas formas sutis, implícitas ou difusas (Schnell 2012; Cipriani 2017).10 Essas formas estão igualmente imbuídas de materialidades, e poderiam ampliar significativamente o alcance da fenomenologia da religião entre nós.
Religião e Materialidades apresenta um panorama compreensivo e oportuno da pesquisa sobre o tema no Brasil, sendo de interesse tanto para acadêmicos que procurem tomar pé do estado da arte, quanto para leitores não acadêmicos, cujo interesse lhes traga à satisfação de uma boa leitura.
Referências bibliográficas
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1
FITZGERALD, Timothy. (2000), The ideology of religious studies. Oxford: Oxford University Press.
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2
MEYER, Birgit. (2019), “Mediação, a gênesis da presença: rumo a uma abordagem material da religião”. In: E. Giumbelli; J. Rickli; R. Toniol (org.). Como as coisas importam: uma abordagem material da religião - textos de Birgit Meyer. Porto Alegre: Editora da UFRGS, p. 159-204.
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3
FOUCAULT, Michel. (1994), L’écriture de soi. Dits et Écrits IV. (1980-1988). Paris: Gallimard, p. 415-430.
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4
GOMES, Edlaine de Campos. (2011), A era das catedrais: a autenticidade em exibição. Rio de Janeiro: Garamond, 2011.
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5
KOPYTOFF, Igor. (1986), “The cultural biography of things: commodization as a process”. In: A. Appadurai (ed.). The social life of things: commodities in cultural perspective. New York: Cambridge University Press. p. 64-91.
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6
BLOCH, Marc. (1961), Les rois thaumaturges: étude sur le caractère surnaurel attribué à la puissance Royale particulièrement em France et an Angleterre. Paris: Armand Colin.
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7
SHERRY, Patrick. (2009), “Disenchantment, Re-Enchantment and Enchantment”. Modern Theology, 25 (3), 369-386.
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8
DUARTE, Luiz Fernando Dias. (1983), “O culto do eu no templo da razão”. In: Três ensaios sobre pessoa e modernidade. Boletim Museu Nacional. Rio de Janeiro. nº 41, 2-27.
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9
DIDI-HUBERMAN, Georges. (2017), Cascas. São Paulo: Editora 34.
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10
SCHNELL, Tatjana. (2012), “On method: a foundation for empirical research on implicit religion”. Implicit Religion. 15 (4), p. 407-422. CIPRIANI, Roberto. (2018), Diffused religion: beyond secularization. London: Palgrave Macmillan.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Fev 2023 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2022
Histórico
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Recebido
17 Out 2022 -
Aceito
01 Nov 2022