Open-access Políticas comercial e cambial em programas de ajustamento voltados para o crescimento

Trade and exchange rate policies in growth-oriented adjustment programs

RESUMO

A busca por “programas de ajuste orientados ao crescimento” é uma reação ao desacordo generalizado com os programas de estabilização que o FMI recomenda para as nações endividadas. Uma nova ortodoxia está surgindo dessa situação, que relaciona a recuperação das nações devedoras a uma mudança para o desenvolvimento orientado para o setor externo, baseado na liberalização do comércio internacional. Este artigo descreve muitas limitações importantes desta nova ortodoxia. A forte ênfase na liberalização não tem base histórica e não corresponde realmente às experiências verificadas nas bem-sucedidas economias do Extremo Oriente. Além disso, desvia a atenção das necessidades mais urgentes das economias endividadas.

PALAVRAS-CHAVE: Dívida externa; crescimento; exportações; crise da dívida

ABSTRACT

The search for “adjustment programs oriented towards growth” is a reaction to a generalized disagreement with the stabilization programs that the IMF recommends for indebted nations. A new orthodoxy is emerging from this situation, which relates the recuperation of the debtor nations to a change to development oriented to the external sector, based on the liberalization of international trade. This article describes many important limitations of this new orthodoxy. The strong emphasis on liberalization has no historical basis and does not really correspond to the experiences verified in the successful Far Eastern economies. Moreover, it diverts attention from the more urgent needs of the indebted economies.

KEYWORDS: External debt growth; exports; debt crisis

A busca de “programas de ajustamento voltados para o crescimento” reflete o descrédito em relação aos programas de estabilização recomendados pelo FMI para os países que hoje atravessam crises de dívida externa. Após vários anos de fraco desempenho econômico, a maioria dos países em desenvolvimento onde o ajuste externo é monitorado pelo FMI ainda não voltou a apresentar sinais de recuperação. É cada vez menor a vontade política dos governos devedores de continuar com os programas de ajustamento, e muito menos de seguir a sistemática de serviço da dívida, recomendados pelo FMI. Os acordos de cooperação entre devedores, credores e o FMI firmados nos últimos cinco anos parecem estar à beira do colapso. Dessa forma, tenta-se agora formular novas políticas que permitam aos países devedores retomar o crescimento econômico, enquanto continuam a pagar suas dívidas.

Nesse contexto está surgindo uma nova ortodoxia, para a qual a recuperação nos países devedores deve se pautar por novas estratégias de desenvolvimento “para fora”, tendo as ex­portações como motor de crescimento econômico. As exportações crescentes dos países devedores são vistas como a solução para o crescimento do produto, obtenção de níveis mais elevados de emprego, além de maior volume de divisas para pagar o serviço de suas dívidas externas. Para a nova ortodoxia, tal política “de orientação externa”, deve incluir as seguintes medidas: 1) liberalização do comércio, especialmente quanto à transformação de restrições quantitativas em tarifas baixas e uniformes; 2) depreciação da taxa de câmbio real e unificação da taxa cambial; 3) ênfase no setor privado como fonte de crescimento, incluindo a privatização de empresas estatais; 4) redução geral de todas as formas de intervenção governamental, no mercado de capitais e fatores, bem como redução do nível global de tributação e despesas governamentais. Esse “pacote de liberalização” é estimulado pelo governo dos Estados Unidos, como parte do Plano Baker, por muitos acadêmicos influentes, e pelo FMI e Banco Mundial (conforme está exemplificado pelos trabalhos de Guitian e Michalopoulos para essa conferência).

A percepção da urgência de tais políticas de liberalização está provocando uma redefinição nos programas do FMI e do Banco Mundial. Cada vez mais, o pacote de liberalização, incluindo o acompanhamento do controle da taxa de câmbio, é visto por ambas as instituições como instrumento-chave de controle da crise nos países devedores. As missões do FMI têm crescentemente enfatizado a promoção das exportações. Destaca-se aqui a exigência de uma política ativa de depreciação da taxa cambial, com a finalidade de elevar os ganhos de receita advindos de exportações. As metas de inflação são vistas como secundárias no processo. Essa ênfase maior sobre o ajustamento da taxa de câmbio foi sugerida recentemente através de dados publicados em trabalho do FMI (Occasional Paper n. 36) sobre políticas de taxa de câmbio do órgão, o qual indica que estratégias efetivas para as taxas de câmbio existiam em apenas 31% dos programas do FMI no período 1963-1972, enquanto tais ações estavam presentes em 51% dos programas no período 1973-1980, e 64% dos programas no período 1981-1983 (alcançando 82% se se excluírem da amostra países pertencentes a sistemas monetários).

Com relação ao Banco Mundial, os empréstimos para ajustamento estrutural e setorial estão aumentando suas participações nas atividades do organismo. Com crescente frequência e urgência, o Banco Mundial está oferecendo aos países membros planos detalhados para desnormatização, privatização e liberalização de comércio. Os empréstimos com base em políticas de ajustamento (em oposição a empréstimos por projetos) responderam por não menos que 35% do total dos empréstimos do Banco Mundial aos países fortemente endividados em 1986, percentual que cinco anos atrás não chegava a 10%. Além disso, o FMI e o Banco Mundial estão, cada vez mais, trabalhando conjuntamente para elaborar programas de médio prazo para apoiar ajustamentos estruturais voltados para o mercado externo.

De maneira geral, há mais evidência do sucesso relativo de estratégias de desenvolvimento voltadas para o exterior do que aquelas direcionadas para o mercado interno. As economias em desenvolvimento da Ásia, voltadas para o exterior, têm tido certamente um desempenho melhor do que as economias da América Latina, em geral arredias à expansão externa, conclusão a que chegaram muitos observadores, incluindo este autor (ver Balassa, 1982, e Sachs, 1985, entre outros). É plausível também atribuir grande parte desse melhor desempenho diretamente ao regime de comércio externo adotado. Contudo, observações gerais como estas não justificam, a priori, a relação entre o direcionamento para o exterior com a liberalização do comércio externo, nem tampouco a ênfase sobre a liberalização como um instrumento de controle da crise nos países devedores. A meu modo de ver, a crescente ênfase dada à política de liberalização, como instrumento de controle da crise da dívida, apresenta inúmeras dificuldades.

No mínimo, a estratégia encontra pouco apoio histórico. As experiências de sucesso do Leste da Ásia, tão frequentemente indicadas como ilustrações dos benefícios advindos do crescimento baseado em exportações, não demonstram a utilidade da liberalização do comércio em meio a uma crise macroeconômica. Em primeiro lugar, o Japão, a Coréia e Formosa não adotaram tais estratégias em momentos de crise macroeconômica ou de dívida. Esses países resolveram suas dificuldades macroeconômicas e financeiras dos últimos anos da década de 40 e início dos anos 50 bem antes de entrarem na rota do crescimento voltado para as exportações. Os casos históricos de liberalização durante a crise macroeconômica são os dos países do Cone Sul (Argentina, Chile e Uruguai) durante a década de 70, e esses episódios são fracassos bem conhecidos, em grande parte por causa das necessidades conflitantes de estabilização e liberalização.

Além disso, os exemplos de orientação externa do Leste asiático demonstram a distinção prática entre promoção de exportações e liberalização, isto é, políticas de laissez-faire, uma distinção que lança dúvida sobre alguns conselhos de política emanados das instituições internacionais (ver Bhagwati, 1975, para uma discussão inteligente e interessante de pontos semelhantes). No caso do Japão, por exemplo, o MITI (Ministry of International Trade and Industry) é hoje mundialmente famoso pelo uso de controles cambiais e orientação administrativa para estimular indústrias de exportação; porém, ao que parece, o Banco Mundial não está recomendando tais práticas aos países que buscam promover exportações! Nem está defendendo a tese de que os governos adotem políticas para encorajar a formação de grandes trading companies, como na Coréia. A experiência do Leste Asiático sugere que as políticas de promoção das exportações podem ser implementadas (e talvez com mais sucesso) por um governo intervencionista, e inclusive na presença de fortes controles de importação e regras rígidas no mercado de capitais.

O importante papel do governo no desenvolvimento do Leste Asiático não implica, por certo, o envolvimento do setor público em todo e qualquer aspecto da atividade econômica. Além disso, os sucessos das políticas intervencionistas na Ásia dependeram, provavelmente, da presença de uma burocracia de elevado nível de educação e treinamento profissional, uma base decisiva de capital humano que está em falta em muitos outros países em desenvolvimento. A experiência asiática sugere, todavia, que o desenvolvimento bem-sucedido seja ajudado tanto pela melhoria de qualidade administrativa do setor público como pela privatização de empresas públicas ou liberalização de mercados.

De um ponto de vista global, a liberalização deve ser defendida não como de interesse do país que está começando a adotá-la, mas sim no interesse do resto do mundo, na medida em que as restrições comerciais são políticas de empobrecimento do vizinho. Algumas das pressões dos Estados Unidos para liberalização nos países em desenvolvimento (por exemplo, Brasil, Coréia e México) na verdade emanaram mais das preocupações sobre interesses comerciais americanos do que das preocupações sobre o bem-estar dos países em desenvolvimento. Todavia, na medida em que esta última é a motivação real das pressões para liberalização, seria então admitido como verdade que países pobres, em terríveis dificuldades econômicas, estão sendo pressionados no sentido de promoverem mudanças estruturais rápidas em favor do resto do mundo.

A atual ênfase na liberalização desvia a atenção de outras necessidades urgentes dos países devedores, pela sobrecarga dos circuitos políticos naqueles países e pela absorção da energia e atenção da comunidade financeira internacional. Em países como Argentina, Bolívia, Brasil, México e Peru, com altos níveis de inflação e desequilíbrios macroeconômicos agudos, apenas o retorno a uma situação de maior equilíbrio fiscal e inflação mais baixa possibilitará bases macroeconômicas de estabilidade, necessárias ao crescimento sustentado. Como existem limitações macroeconômicas e políticas para cortar os déficits orçamentários no curto prazo, e como esses limites são especialmente restritivos em meio a uma crise econômica, o perdão da dívida e uma ajuda externa mais generosa podem ter um papel a desempenhar na estabilidade das economias de muitos países. Além disso, enfatizo que a tentativa de estimular as exportações a todo custo, através de liberalização do comércio ou depreciações agressivas das taxas de câmbio, pode, sempre, enfraquecer os programas de estabilização, e assim adiar uma solução para a crise da dívida.

Uma vez que estudos comparativos fornecem um bom antídoto para ortodoxia e uma vez que o objetivo desse trabalho é recomendar uma ortodoxia um pouco menos neoclássica e um pouco mais realista na análise da taxa de câmbio e das políticas comerciais que são aconselhadas aos países devedores de renda média, a seção 2 é dedicada a uma discussão adicional a respeito das experiências dos países do Leste Asiático. Na seção 3 do trabalho, volto a atenção para a América Latina, a fim de estreitar os vínculos entre as políticas cambiais, orçamentárias e da dívida. Discussões sobre controle da taxa cambial algumas vezes deixam a impressão de que existe um acerto técnico na taxa de câmbio que pode estar dissociado de políticas orçamentárias, problemas de distribuição de renda, e assim por diante. Nada poderia estar mais longe da verdade, como espero enfatizar.

ASPECTOS DA POLÍTICA DE CRESCIMENTO ORIENTADA PARA O MERCADO EXTERNO NO LESTE ASIÁTICO

Vamos começar tomando um país como exemplo. O país X atrelou sua moeda ao dólar em 1950, e manteve a paridade nominal fixa, em termos absolutos, por mais de vinte anos. Durante os primeiros quinze anos desse período (até 1964), o câmbio foi estritamente racionado por uma agência governamental, e a moeda esteve sempre sobrevalorizada. Os cálculos de paridade do poder de compra (ppp calculations), utilizando os índices de preços ao consumidor do país e dos Estados Unidos, mostram uma valorização real de 60% no período de vinte anos. Uma lei de controle do comércio internacional e câmbio de 1949 exigia que os exportadores repassassem todo o seu faturamento ao governo dentro de dez dias, tornando-o a única fonte legal de divisas, um privilégio cuidadosamente guardado pelos burocratas que têm a responsabilidade de distribuição racionada de divisas. Regras não explícitas orientaram a distribuição de divisas. Os burocratas fizeram a alocação de moeda estrangeira em setores favorecidos, e claramente deram maior atenção a empresas privadas em cujo crescimento tinham interesse. Os burocratas do governo frequentemente passavam a trabalhar naquelas empresas ao final de suas carreiras oficiais. O racionamento era tão rígido, que pessoas físicas não tinham permissão para adquirir moeda estrangeira para fazer turismo fora do país, entre 1950 e 1964.

O mercado de capitais interno foi altamente regulamentado e isolado completamente dos mercados internacionais. O governo era o único setor com acesso ao mercado de crédito internacional. O investimento direto externo foi pesadamente limitado e a participação majoritária na propriedade por empresas estrangeiras barrada legal e administrativamente. Do início a meados da década de 50, cerca de 1/3 dos fundos externos para investimento industrial teve origem em empréstimos de instituições financeiras governamentais, a taxas preferenciais que variavam de acordo com as firmas e indústrias. Essas instituições financeiras governamentais permaneceram como uma importante fonte de financiamento barato até os anos 60.

O país em pauta, familiar a muitos, é o Japão. Porém a descrição é semelhante à de muitos países na América Latina, principalmente no que se refere a taxas cambiais valorizadas, racionamento de divisas, restrições sobre investimento direto estrangeiro, distribuição governamental de crédito, e assim por diante. Além disso, essa estrutura básica de política esteve presente em grande parte no ‘’período de acelerado” crescimento no Japão (convencionalmente datado ou fixado como o período 1955-1973), que pode ser considerado como o mais notável período de duas décadas de desenvolvimento econômico de um país na história mundial. Começo com esse exemplo para provocar no leitor um estado de espírito despretensioso e indutivo com relação ao ajustamento baseado no crescimento. As políticas econômicas voltadas para o mercado externo no Japão e no Leste da Ásia em geral não se basearam na tese da livre concorrência, conforme se afirma.

Muito embora as lições dos êxitos asiáticos não sejam ainda compreendidas pelos acadêmicos, uma revisão rápida das experiências do Japão, Coréia e Formosa (daqui para a frente denominados simplesmente JCF), pode servir muito para informar o debate atual acerca de programas de ajustamento orientados para o crescimento. As experiências do JCF demonstram que, embora sem o predomínio dos princípios da livre concorrência, esses governos seguiram consistentemente alguns de seus preceitos básicos no esquema de suas políticas econômicas. Primeiro, os orçamentos governamentais têm se mantido geralmente próximos do equilíbrio, frequentemente com grandes superávits em conta corrente. A austeridade orçamentária tem apresentado efeitos bastante salutares. As taxas de inflação têm sido baixas e quase estáveis, já que os governos do Leste Asiático não tiveram que recorrer ao imposto inflacionário para propósitos de financiamento do governo. Isso significa, entre outras coisas, que as taxas nominais de câmbio podiam ser mantidas a níveis praticamente estáveis sem risco de prejudicar a lucratividade das exportações. Além disso, com superávits na conta corrente do orçamento público, as poupanças do governo contribuíram para a rápida taxa de acumulação de capital nesses países. Um terceiro benefício da austeridade orçamentária foi terem os governos contado com os recursos e flexibilidade para utilizar subsídios e outros incentivos fiscais na promoção de setores da economia, ou compensar reduções na lucratividade das exportações, advindas de uma valorização da taxa nominal de câmbio.

Com relação à política de exportação, uma vez que essas economias ingressaram no caminho do crescimento voltado para exportação no início dos anos 60, o lucro desse setor foi cuidadosamente protegido, não através de uma liberação generalizada de importações, mas através de uma combinação de controle da taxa de câmbio e incentivos fiscais para exportações. Os incentivos têm sido aplicados geralmente para promover as exportações com uma vantagem comparativa natural (manufaturados de trabalho intensivo, inicialmente; de capital intensivo posteriormente). A agricultura não foi tributada; ao contrário, foi protegida em relação à indústria. As taxas nominais de câmbio foram ajustadas periodicamente para manter as taxas reais em níveis realísticos (uma política que se tornou mais fácil de ser adotada do que na América Latina, devido à inflação mais baixa), e quando as taxas de câmbio se tornaram supervalorizadas, foram desvalorizadas ou compensadas por maiores subsídios às exportações. Nos três países, os exportadores gozaram de certos incentivos fiscais importantes, especialmente a redução das tarifas incidentes sobre os insumos importados para produção de exportações, impostos de exportação baixos ou zero, e créditos subsidiados. Um princípio básico de política de exportação tem sido o de manter os preços finais e os dos insumos recebidos e pagos pelos exportadores aos mesmos níveis do mercado mundial, de tal forma que os exportadores possam competir efetivamente com empresas internacionais, confrontando preços e tecnologia semelhantes.

A preservação da lucratividade da exportação é urna recomendação de política ortodoxa, mas outras práticas de promoção de exportações no Japão, Coréia e Formosa divergem significativamente das recomendações típicas da política do Banco Mundial e do FMI. Isso não é surpreendente devido à ausência de uma tradição liberal nas histórias de qualquer um desses países. Neles, a política de exportações partiu da premissa de que o seu sucesso exige a importação de tecnologias estrangeiras, a exploração de economias de escala estática e dinâmica, no contexto de mercados de capitais fracos e fragmentados. Nessas circunstâncias, mercados essencialmente livres têm pouco a acrescentar, e mesmo a economia neoclássica reconhece um caso potencialmente forte para intervenção governamental, como foi enfatizado recentemente por Robert Lucas (1986). A possibilidade de intervenção é mais forte quando a adoção de novas tecnologias envolve externalidades positivas (por exemplo, por absorção tecnológica na indústria), ou quando a produção envolve economias de escala significativas.

No Japão, o papel do governo começou com a restauração Meiji, quando as empresas estatais foram criadas como as primeiras empresas exportadoras do país. Smith (1955, p. 102) observa em seu estudo clássico do período Meiji que:

“Ao desenvolver a indústria moderna o governo não teve escolha, a não ser agir como empresário, financiador e controlador. A não ser na indústria de seda, onde prevaleciam condições favoráveis únicas, o capital privado era muito fraco, demasiadamente tímido e deveras inexperiente para garantir o desenvolvimento - mesmo com ajuda do governo, que foi dada generosamente, mas sem sucesso inicial”.

Johnson (1982) detalha muitos dos aspectos da intervenção governamental nos anos após a Segunda Guerra Mundial. Nesse período, a promoção da indústria ocorreu menos por meio da produção estatal direta do que por um papel ativo do governo na manutenção de grandes empresas, fortalecimento de sua posição de barganha frente às empresas estrangeiras (especialmente no licenciamento de tecnologias estrangeiras e das importações de matérias-primas), e evitando sua aquisição por parte de empresas estrangeiras. Até a década de 60, por exemplo, o Japão manteve fortes controles explícitos sobre investimentos externos diretos dentro do país (por exemplo, pela exigência de participação majoritária japonesa na constituição de empresas), e mesmo após a liberalização formal, o MITI continuou a obstruir investimentos externos diretos em indústrias que estava tentando promover.

O objetivo do conjunto das políticas japonesas pode ser considerado como o de promover empresários locais, com uma base tecnológica estável e com uma forte posição de barganha frente a concorrentes internacionais nos mercados externo e interno. Outras políticas discutidas por Johnson na manutenção dessas metas incluem: o papel estatal na alocação de crédito através dos bancos estatais e o Plano de Investimento Fiscal e Creditício (que é o orçamento de investimento do setor público, sob o controle do Ministério da Fazenda); o complexo aparato de promoção do comércio exterior do MITI; o controle virtualmente total sobre as divisas internacionais pelo MITI até 1964; a seleção rigorosa das importações e exportações de capital estrangeiro pelo MITI e Ministério da Fazenda até 1980 (a despeito da liberalização de jure dos investimentos externos diretos na década de 1960); e foros públicos-privados, tais como os conselhos de racionalização industrial mantidos pelo MITI.

Formosa também seguiu políticas industriais ativas, que estão mais identificadas com o importante papel das empresas de propriedade do Estado no setor industrial. Formosa depende mais fortemente da indústria estatal do que provavelmente qualquer país na América Latina, com exceção provável da Venezuela. Durante o período 1978-1980, por exemplo, a indústria de propriedade estatal em Formosa respondia por não menos que 32% da formação interna de capital fixo, enquanto as parcelas comparáveis da Argentina, do Brasil e do México eram de 19,6%, 22,8% e 29,4%, respectivamente.1 Fora do setor estatal, o governo encorajou empresas de pequeno e médio portes através de inúmeros incentivos fiscais e de políticas reguladoras.

As políticas de exportação coreanas diferiram das de Formosa, ficando mais próximas das políticas do Japão, na ênfase de promover grandes empresas do setor privado através de amplo apoio governamental. Um dos principais instrumentos de política foi o de taxas de juros subsidiadas para empresas exportadoras. Embora muitos observadores sintam que a ênfase na ajuda estatal à indústria pesada tenha sido demasiadamente prolongada até o final dos anos 70, o apoio governamental teve importância crítica no desenvolvimento de várias indústrias, particularmente ferro, aço, cimento, fertilizantes e petróleo. Como no Japão, o Estado, conscientemente, promoveu grandes empresas comerciais exportadoras que respondem por uma grande parte do comércio externo do país.

Podemos resumir essa parte da discussão dizendo que o papel do governo no Japão, Coréia e Formosa foi bem expressivo, a exemplo da América Latina, porém sistematicamente diferente. No Quadro 1, alguns dados resumidos mostram que não há nenhuma razão para chamar a Ásia um caso de governo “pequeno” versus América Latina como um caso de governo “grande”, de acordo com critérios padrões, tais como receitas fiscais e despesas governamentais como um percentual no PNB, ou a predominância da empresa estatal na produção industrial e investimento interno fixo.

Quadro 1:
O setor estatal -países selecionados do Leste Asiático e da América Latina (Percentual do Pnb)

Um terceiro aspecto importante da política governamental no JCF tem sido a promoção de distribuições de renda, relativamente iguais, fundamentalmente através de políticas que equalizam a distribuição da renda rural e que mantêm os diferenciais urbanos-rurais muito mais próximos que nos países em desenvolvimento. Uma indicação da maior igualdade da distribuição de renda no JCF em relação à América Latina aparece no Quadro 2, onde são mostradas as participações dos quintis superior e inferior no total da renda. Por contingências históricas, o Japão, a Coréia e Formosa foram levados a realizar reformas agrárias fundamentais nos últimos anos da década de 40 e nos primeiros da década de 50. No Japão, o ímpeto foi das autoridades de ocupação americanas que supuseram (com algum exagero) que os ricos proprietários rurais tinham sido importantes defensores do militarismo japonês. Na Coréia, o ímpeto veio de várias fontes, incluindo o exemplo da reforma agrária na Coréia do Norte em 1946, e o fato de que muitos latifúndios foram mantidos pelos japoneses, ou por indivíduos a eles ligados. Em Formosa, a reforma agrária foi realizada pelo novo governo nacionalista chinês às custas de uma classe proprietária de terras com quem os nacionalistas não possuíam obrigações ou vínculos.

Quadro 2:
Distribuição da renda (Por Quintis)

Como na Coréia, a expulsão dos japoneses tornou mais fácil o caso da reforma agrária. A reforma agrária foi encarada como vital no estabelecimento de apoio, ou, no mínimo, aquiescência do pequeno produtor ao governo nacionalista em Formosa. Em todos os três casos, a reforma agrária foi ampla, virtualmente eliminando o arrendamento de fazendas, muito frequente antes das reformas. No Japão, em 1936, o arrendamento puro abrangia 27% dos trabalhadores rurais, enquanto 42% arrendavam uma parte de suas terras de latifundiários (ver Allen, 1965). Esses trabalhadores rurais foram transformados quase totalmente em proprietários individuais pelas reformas. Na pré-reforma da Coréia, 49% das unidades familiares rurais eram constituídos de arrendatários, sendo 35% parcialmente arrendatários (Cole e Lyman, p. 21). Em Formosa, o arrendamento respondia por aproximadamente 44% das propriedades antes da reforma, e caiu para cerca de 15%, cinco anos depois que as reformas agrárias foram feitas (Fei, Ranis e Kuo, p. 43).

A abrangência dessas reformas agrárias está entre as maiores da história moderna, e chegaram a bom termo graças apenas às extraordinárias circunstâncias nacionais em cada um desses países. Não somente a terra foi redistribuída, mas as reformas agrárias representaram uma substancial expropriação de proprietários de terras, uma vez que a indenização oferecida pela terra desapropriada foi, em cada caso, substancialmente reduzida pelos elevados níveis inflacionários então predominantes. Os proprietários de terra, sem força política no Japão ocupado pelos Estados Unidos, em Formosa sob os nacionalistas e na Coréia em tempo de guerra, não podiam efetivamente mobilizar oposição política.

A importância política e econômica dessas reformas para o subsequente crescimento não deve ser exagerada. Através da criação de um setor rural de pequenos proprietários rurais independentes, as reformas permitiram ao JCF escapar de um círculo vicioso de violência rural e instabilidade, e, em lugar disso, criaram um campesinato conservador que emprestou forte apoio aos governos nacionais. Em termos de produção, os efeitos de longo prazo foram muito salutares, com um grande aumento de incentivos ao setor rural. Em parte, isso reflete a importância da tecnologia, uma vez que as reformas foram aplicadas principalmente nas culturas de arroz, onde as grandes plantações com economias de escala não existiam. Na verdade, a transformação de arrendatários em proprietários teve, provavelmente, pouco efeito direto sobre a tecnologia, visto que os arrendatários da pré-reforma já trabalhavam a terra como produtores individuais.

Todos os estudos mostram que as reformas agrárias diminuíram diretamente a concentração da renda de forma substancial (outros fatores que também contribuíram para igualdade de renda foram: a destruição da riqueza pela guerra, em todos os três países; o fato de boa parte da riqueza ser de propriedade de colonos japoneses na Coréia e em Formosa; e as elevadas inflações nos três países, que destruíram o valor dos bônus governamentais). As reformas agrárias também tiveram um efeito difusor, mas indireto, sobre a distribuição de renda a longo prazo, devido à mudança do equilíbrio político em direção aos interesses rurais. Como grupo, os produtores rurais foram fortalecidos significativamente, uma vez que substituíram uma pequena classe impopular de proprietários de terras por uma massa de pequenos e prósperos fazendeiros, que podiam agora expressar suas próprias reinvindicações. Nos três países, as despesas governamentais e regras subsequentes às reformas atuaram para oferecer proteção efetiva à agricultura e dedicar uma considerável parcela de investimento governamental de infraestrutura ao setor rural. No World Development Report, do Banco Mundial, de 1986, por exemplo, a Coréia aparece como o país que apresenta o mais alto grau de proteção ao produtor de trigo e arroz entre todos os países analisados no estudo (Diagrama 4.1, p. 64; Japão e Formosa não estão na amostra de países).

Em Sachs (1985), ponderei que a força política do setor rural no Leste Asiático poderia ajudar a explicar a disposição histórica das economias da região em fazer oportunamente as desvalorizações cambiais, ao contrário da notória resistência latino-americana às desvalorizações. Com base em estimativas de modelos de equilíbrio geral e em resultados analíticos bem conhecidos, observei que as desvalorizações da taxa de câmbio podem levar à transferência de rendas do setor· urbano para o setor rural, comparadas às políticas de racionamento quantitativo das divisas internacionais. Na Ásia, os interesses rurais dos agricultores independentes foram influentes. Na América Latina, depois da Grande Depressão, os interesses da classe de proprietários rurais foram subordinados aos interesses urbanos. Na Ásia, o efeito da desvalorização sobre a distribuição de renda pode ser neutro ou mesmo equitativo, desde que as rendas da numerosa classe de pequenos proprietários de terra aumentem. Na América Latina, o efeito será o de aumentar a concentração de renda, ou pelo menos será entendido assim pelos agentes políticos, uma vez que os grandes proprietários de terras serão beneficiados com aumento da renda proveniente de aluguéis, enquanto os camponeses sem terra podem experimentar uma queda em suas rendas reais. Infelizmente, os trabalhos do FMI (IMF Staff Papers) nunca apresentaram, nos últimos 30 anos, um estudo empírico sobre os atuais efeitos distributivos das desvalorizações.

O esboço anterior das políticas básicas macroeconômicas, comerciais e industriais do Leste Asiático poderia deixar a impressão errônea de que o sucesso econômico da região foi fundamentalmente derivado de políticas governamentais específicas. Os economistas não conhecem o bastante, mesmo em princípio, para tirar tal conclusão, e é também claro que diversos outros fatores tiveram influência. Para finalizar, deve-se mencionar: as altas taxas de poupança do setor privado; um baixo grau de conflitos trabalhistas, que na Coréia e Formosa é parcialmente devido à supressão, pelo governo, da atividade sindical; a extraordinária estabilidade política, com 30 anos de domínio de um só partido em todos esses países (no Japão, democraticamente, é claro); e intensa ajuda financeira, política e estratégica dos Estados Unidos, especialmente nas primeiras e principais fases do período de maior crescimento.

Finalmente, devemos examinar o problema crítico da execução das políticas no JCF. Muito se tem falado sobre a necessidade da correta execução da estabilização e liberalização, mas se dá pouca atenção ao assunto na prática. O trabalho de Michalopoulos estabelece, por exemplo, que “existe pouca discordância de que a estabilização necessita preceder o ajustamento estrutural para ser bem-sucedido”. Porém, há poucos casos, na verdade, em que o Banco Mundial tenha permitido que assuntos estruturais ficassem esperando alguns meses, para não dizer anos, até que a estabilização se consolidasse. A experiência do Leste Asiático não indica que a estabilização possa se completar em um ano e a liberalização no ano seguinte. Uma programação bem-sucedida tende a ser muito mais extensa.

Nos três países do Leste Asiático em análise, o período pós-guerra começou com uma fase inicial de instabilidade macroeconômica, que· foi seguida por vários anos de estabilização, de crescimento baseado na substituição de importações, e, eventualmente, por uma reversão para o crescimento voltado para as exportações, nos primeiros anos da década de 60.2 No Japão, a hiperinflação prevaleceu desde a derrota do país na Segunda Guerra Mundial até o programa de 1949 (conhecido como “linha Dodge”). De 1950 até por volta de 1960, o crescimento foi orientado principalmente em direção à substituição de importações e à construção da infraestrutura interna. O surgimento do esforço de crescimento acelerado voltado para as exportações pode ser atribuído ao início do Plano de Duplo Crescimento de 1960. Na Coréia, a hiperinflação ocorrida durante a guerra somente foi controlada a partir de 1957. Durante a década de 50, a administração democrática de Rhee Seung Man adotou uma política de substituição das importações fortemente· financiada por ajuda norte-americana. A fase de promoção das exportações começou após a queda de Rhee em 1960, com uma desvalorização em 1961, mas é geralmente associada às reformas de política econômica realizadas pelo governo militar do general Park Chung Hee em 1964 e 1965. A perspectiva da retirada escalonada da assistência financeira dos Estados Unidos, em meados da década de 60, representou mais um estímulo a essas mudanças políticas. Em Formosa, a hiperinflação da guerra civil chinesa foi controlada por volta do ano de 1951. Como na Coréia, o novo governo adotou uma política de substituição de importações durante a maior parte dos anos 50. A perspectiva de redução da assistência financeira norte-americana foi novamente o maior estímulo à mudança para promover a exportação ao final da década de 50. No período 1958-1959, o governo nacionalista introduziu uma desvalorização e unificação da taxa cambial, bem como outras reformas, para iniciar a fase de crescimento voltado para as exportações.

Destacam-se três aspectos importantes nessas transições. O primeiro é o significativo intervalo de tempo entre a estabilização econômica e o início de crescimento voltado para as exportações. Nos primeiros anos da década de 60, em cada um dos países, os graves desequilíbrios macroeconômicos da década anterior já estavam superados. A inflação e os desequilíbrios orçamentários estiveram sob controle por pelo menos cinco anos. O crescimento econômico era adequado, se não espetacular, na Coréia e Formosa, e já era verdadeiramente espetacular no Japão. Os governos possuíam ou tinham condições de obter os meios financeiros para aumentar os investimentos em infraestrutura, oferecer subsídios ou outros incentivos fiscais às exportações quando desejáveis, e de evitar um constrangimento fiscal em futuro próximo. Por certo, as economias não pareciam tão fortes como parecem agora, e a perspectiva da retirada da assistência financeira norte-americana dos territórios da Coréia e de Formosa foi vista com grande ansiedade, mas, pelo menos, as reformas não foram medidas de emergência.

Existem boas razões conceituais para crer que essa fase foi importante para o sucesso político e econômico das políticas de crescimento orientadas para exportações. Em um cenário macroeconômico instável, é improvável que os investidores comecem a expandir a capacidade de exportação para absorver a folga de um declinante setor competitivo de importações. Além disso, os instrumentos de estabilização podem se chocar com os instrumentos de liberalização. A estabilização poderia exigir a adoção de uma taxa cambial estável, enquanto a liberalização poderia exigir uma desvalorização da taxa de câmbio real. A estabilização poderia exigir uma elevação nas receitas dos impostos sobre o comércio externo; a liberalização poderia exigir um corte nesses impostos ou até mesmo um aumento nos subsídios às exportações. A estabilização poderia exigir uma redução nos investimentos públicos; a liberalização poderia exigir uma elevação no investimento público de infraestrutura em portos, comunicações e transportes. Como Calvo (1986) enfatizou, os ganhos de bem-estar advindos de uma reforma podem ser diminuídos, ou até mesmo se tornarem perdas, quando a viabilidade da reforma é considerada incerta pelo público, ou, nos termos de Calvo, quando ela é uma “reforma inacreditável”. Todos esses problemas obviamente afligiram as estabilizações do Cone Sul ao final dos anos 70.

O segundo aspecto importante do processo de transição foi o dos substanciais níveis da assistência financeira norte-americana fornecida a cada um dos países. Existe atualmente um mito perigoso de que os governos podem afastar as dificuldades de suas economias, não importa quão severas sejam, apenas pela adoção de políticas corretas; as economias do Leste Asiático são tomadas como exemplo, onde essa árdua tarefa teve sucesso. A verdade, todavia, nos casos do Japão, Coréia e Formosa, é que a ampla assistência financeira e política dos Estados Unidos significou um componente vital de estabilização. (O mesmo importante papel estabilizador da assistência estrangeira, na forma de substancial perdão da dívida, bem como ajuda externa, é evidente no caso da Indonésia após a queda de Sukarno.) Os Estados Unidos contribuíram na cobertura de substancial parcela das importações e despesas fiscais da Coréia e de Formosa nos anos 50, e as despesas militares dos Estados Unidos no Japão (os denominados “fundos de aprovisionamento especial”) foram igualmente de grande valia para o balanço de pagamentos. A importância dessa ajuda externa está ilustrada no Quadro 3, onde observamos que a ajuda externa norte-americana a Formosa e Coréia financiou significativa parcela de suas importações durante o período, e uma grande parte das despesas governamentais (outras estimativas de parcelas de importações cobertas por ajuda externa, como em Mason et alii (1980, pp. 165-208), no caso da Coréia, mostram o papel até maior da ajuda financeira). Voltaremos posteriormente ao caso de perdão parcial da dívida nas economias latino-americanas como uma forma de dar-lhes uma saída financeira comparavelmente salutar.

Quadro 3:
Assistência financeira Norte-Americana à Coreia e formosa. 1955-1959 (US$ milhões)

O terceiro aspecto do processo envolve a adoção das reformas de políticas econômicas, uma vez iniciado o crescimento voltado para as exportações. Em nenhum dos países houve uma retirada repentina de tarifas ou de quotas protecionistas para a indústria nacional, nem, na verdade, qualquer coisa que se aproximasse da adoção de um piso tarifário de 10 a 20% em um período de cinco anos (essa é a política recomendada por Balassa et alii (1986, p. 89) para a América Latina, que é feita depois do inevitável reconhecimento do sucesso do Leste Asiático). Como Lin (1984, p. 46) observa em relação à Coréia e Formosa:

“De fato, a liberação sistemática das importações não ocorreu em qualquer desses países antes do final dos anos 60, bem depois do sucesso de seus esforços de promoção das exportações. Nesse ínterim, as medidas de liberalização do comércio exterior consistiram, primordialmente, na permissão de importação de produtos intermediários, livre de impostos para utilização na produção para exportação, e em exigir dos produtores de bens substitutivos de importações a redução de seus preços em relação às importações potenciais como condição para a manutenção da proteção a seus produtos”.

Também no Japão, o processo de mudança para o crescimento voltado para as exportações ocorreu apenas na década de 60; na verdade, foi somente a partir de 1964 que o iene se tornou uma moeda conversível, no sentido de adesão ao artigo 8º. do Convênio do FMI. Mesmo depois que o Japão adotou os compromissos formais de conversibilidade de moeda e de tarifas reduzidas, o processo de liberalização foi lento. Certamente, nenhuma autoridade americana de comércio internacional desejaria citar o Japão como um caso onde a rápida liberalização foi o instrumento de promoção das exportações!

POLÍTICAS CAMBIAL E COMERCIAL PARA OS DEVEDORES LATINO-AMERICANOS

Sumário

Comparado à experiência do Leste Asiático, o debate atual sobre a política dos países latinos devedores é problemático sob várias formas. A maior parte das discussões de política econômica entre os governos latino-americanos e as instituições internacionais gira em torno da liberalização de mercado, muito embora a liberalização das barreiras alfandegárias não seja, provavelmente, essencial à promoção das exportações, além de ter pouquíssimas chances de sucesso, em meio a instabilidade macroeconômica. As instituições internacionais estão também se referindo a conceitos distributivos de renda de uma forma vaga, na melhor das hipóteses, quando se sabe que os conflitos de distribuição de renda estão no âmago de muitos dos problemas da região.

Para a maioria dos países latino-americanos, o problema mais grave é o da atual crise fiscal que eclodiu nos primeiros anos da década de 80. A crise surgiu por várias razões, dentre as quais destacamos: 1) os gastos exagerados na década de 70, que deixaram uma herança de enormes dívidas externa e interna; 2) o acentuado aumento nas taxas de juros internacionais em 1980, que elevou os encargos da dívida do setor público; 3) a suspensão dos empréstimos internacionais aos governos latino-americanos em 1982, que os deixou subitamente impedidos de financiar os seus déficits fiscais com empréstimos internacionais; 4) a mudança adversa nos termos de intercâmbio que reduziu as receitas do setor público; 5) as enormes quedas na renda real nos países latinos a partir de 1982, que provocaram redução adicional na arrecadação de impostos. Como resultado, as finanças do setor público estão sob enorme pressão em vários países. As altas inflações verificadas na Argentina, Bolívia, Brasil, México e Peru representam os melhores exemplos da terrível situação fiscal.

A crise da dívida externa na América Latina é em grande parte um aspecto dessa crise fiscal. Três quartos da dívida externa na América Latina são de responsabilidade do setor público. O problema da dívida não é somente (nem principalmente) que os vários países devem grandes cifras a credores internacionais, mas, principalmente, que os débitos são do setor público com sérios problemas de caixa. Em alguns casos, particularmente Argentina, México e Venezuela, suspeita-se que a posição da dívida externa líquida do país seja mais modesta como percentual da renda nacional, porque as dívidas externas do setor público são parcialmente compensadas pelos ativos externos do setor privado (evasão de capital acumulada no passado). De acordo com algumas estimativas (Dooley, 1986), no final de 1983, a evasão de capital acumulada respondeu por 61% da dívida externa bruta da Argentina, 44% do México e 77% da Venezuela. Dado o equilíbrio das dívidas externas com os ativos no exterior, o problema relevante da transferência é mais o de conseguir dinheiro do setor privado para o setor público no país devedor, do que o de transferir renda do país para o resto do mundo. Por não associar a crise da dívida com a crise fiscal, muitos observadores ficaram perplexos, ao verificarem que a crise da dívida não se resolveu, a despeito dos grandes saldos comerciais em muitos dos países devedores. Os banqueiros expressaram irritação, por exemplo, com o fato de que, a despeito dos grandes saldos comerciais do México em 1984 e 1985, a situação da dívida mexicana não melhorou. A interpretação dos banqueiros para o México (e outros países em situação semelhante) foi a de que os saldos líquidos de exportações se perdiam através da evasão de capital, de forma que as exportações líquidas não reduziam a carga da dívida do México. Uma prescrição para esse problema foi a de evitar que os exportadores mexicanos acumulassem haveres externos. Esse enfoque, todavia, não permite o pleno entendimento do problema. O governo mexicano é responsável pela dívida, mas não pelas exportações líquidas. O fato de que os grandes superávits comerciais não atenuam a crise da dívida é porque, com saldos comerciais ou não, o governo mexicano não possuía recursos para atenuar o serviço da dívida do setor público.

Mesmo um boom nas exportações não seria diretamente relevante para a solução de crise da dívida, exceto na medida em que ele elevaria a renda nacional e, consequentemente, as receitas governamentais. Um boom nas exportações poderia melhorar o bem-estar dos cidadãos mexicanos, mas não aliviaria diretamente a crise da dívida por si só. As políticas para estimular as exportações, a exemplo de grandes desvalorizações da taxa de câmbio real, ou cortes de tarifas sobre importações, podem piorar ou melhorar a situação do orçamento público, e se o déficit do orçamento aumentar, a crise da dívida pode piorar, mesmo no caso de as exportações aumentarem. Um corte nas tarifas tenderá a elevar o déficit orçamentário, e poderá intensificar bastante a crise da dívida; uma conversão de restrições quantitativas em tarifas tenderá a reduzir o déficit orçamentário, e assim melhorar a crise.

As medidas de liberalização, que não apresentam relevância direta sobre o orçamento, tais como uma remoção de restrições quantitativas, podem também ter importantes efeitos indiretos sobre o equilíbrio orçamentário. O governo realiza despesas com bens não-comerciáveis (por exemplo, salários do setor público) e comerciáveis (por exemplo, pagamento de juros sobre a dívida externa), enquanto aufere renda de não-comerciáveis (por exemplo, impostos sobre salários) e comerciáveis (por exemplo, ganhos provenientes de exportações de empresa estatal e de impostos sobre comércio). As mudanças nos preços relativos de não-comerciáveis e comerciáveis podem, por conseguinte, ter importante consequência sobre o equilíbrio orçamentário. Com uma dívida externa superdimensionada, uma desvalorização da taxa de câmbio real (isto é, uma queda nos preços não-comerciáveis relativa aos preços dos comerciáveis) tenderá a piorar o déficit orçamentário. O custo em dólar do serviço da dívida externa permanecerá o mesmo, mas o valor em dólar das receitas advindas de impostos internos (que aumentam em parte devido à tributação sobre bens não-comerciáveis) tenderá a cair. Assim, a remoção das restrições quantitativas de comércio pode intensificar o déficit orçamentário, mesmo quando essas restrições não tenham efeito fiscal direto, devido ao fato de poderem provocar desvalorizações reais de câmbio. (Por outro lado, em casos em que parte da renda do governo é derivada da venda de bens comerciáveis de empresas estatais, uma desvalorização real poderia ajudar a reduzir o déficit fiscal.)

Minha ênfase sobre os problemas do orçamento público não descarta a possibilidade de um crescimento voltado para as exportações na América Latina, mas privilegia a necessidade de uma estabilização macroeconômica completa da região como pré-requisito para o crescimento de longo prazo. A fase de estabilização exigirá vários anos, e terá uma chance maior de sucesso se a implementação de reformas para o crescimento voltado para o mercado externo for gradual durante esse período. Os cenários de crescimento no longo prazo da região serão certamente melhorados com uma orientação externa mais abrangente, conforme enfatizado em Sachs (1985) e em muitos outros trabalhos, desde que a orientação externa ocorra no contexto de estabilidade macroeconômica. Partindo da experiência do Leste Asiático, os maiores ganhos de longo prazo do crescimento voltado para as exportações seriam: a transferência mais rápida de tecnologia para a região, a exploração da vantagem comparativa da região na produção de manufaturados intensivos em trabalho; o fim da discriminação contra a agricultura na região; os benefícios de importantes economias de escala estáticas e dinâmicas obtidos em função da produção para mercados mundiais. Uma outra lição do Leste Asiático é a de que, como os países latino-americanos se movem em direção a uma orientação externa, podem agir dessa forma com a interação dos setores públicos e privados.

Não poderíamos ser pessimistas acerca do crescimento das exportações a longo prazo. Não há dúvida de que, mesmo no ambiente favorável à substituição das importações latino-americanas, muitos países têm sido capazes de estimular as exportações de manufaturados, um aspecto salientado por Pazos (1985-1986). Como exemplo, os ganhos em dólares do Brasil, oriundos das exportações de manufaturados, cresceram mais de dez vezes entre 1972 e 1981, não obstante uma economia fortemente controlada e protegida (Banco Mundial, Nota Econômica sobre o Brasil, 1984, Quadro 3.3). As exportações de manufaturados tiveram a sua participação elevada de 21% para 48% no total das exportações. As razões para tal comportamento foram: taxa de câmbio realista; bens intensivos em mão-de-obra; políticas consistentes de promoção de exportações; mas não uma economia de laissez faire com uma política liberal de importações.

Controle da inflação e déficits orçamentários

Sem as medidas fiscais necessárias, não há desvalorização da taxa cambial ou liberalização de comércio que possa estabilizar as economias da América Latina, mesmo se tais políticas estimularem as exportações e melhorarem os saldos comerciais. A elevada inflação em toda parte do hemisfério é o primeiro e o principal reflexo da persistência de déficits fiscais. Na ausência de modificações de caráter fiscal, será necessário o recurso ao imposto inflacionário e a taxa de câmbio terá que ser desvalorizada e alinhada com as necessidades orçamentárias básicas do imposto inflacionário. Se o governo decidir manter a política cambial baseada na livre conversão de moeda, sem corrigir a situação fiscal, perderá reservas cambiais. Se instituir controles cambiais e racionamento de divisas, provocará elevação nas cotações do câmbio paralelo, o que não evitará a elevação dos preços, mas, arbitrariamente, exercerá pressão sobre os exportadores na medida em que sejam remunerados à taxa oficial de câmbio, ou necessitem importar no mercado paralelo, a custos mais elevados.

Vários países decidiram estabilizar as taxas cambiais com o propósito de acabar com as elevadas taxas de inflação sem corrigir as fontes dos déficits orçamentários. A referida política pode ser em demasia penosa, e, particularmente, perniciosa, pois dará a impressão de estar dando certo em seus estágios iniciais, mesmo quando o público sabe que ela não terá sucesso. Os perigos podem ser ilustrados com um simples exemplo teórico. Suponha-se que um país está dependendo de um imposto inflacionário para financiar um déficit orçamentário. A inflação está evoluindo a uma taxa elevada, e a taxa cambial está se desvalorizando à mesma taxa, mantendo-se a taxa de câmbio real constante. Suponhamos que a paridade do poder de compra da moeda se mantenha de tal forma que, com a taxa cambial fixa, mesmo temporariamente, a taxa de inflação pode ser levada a cair ao nível da taxa de inflação mundial, que nós consideraremos igual a zero. A demanda efetiva de moeda é uma função decrescente da taxa de inflação instantânea e, assim, da taxa instantânea de desvalorização da moeda. Suponhamos, finalmente, que a moeda é perfeitamente conversível. Quando o governo atua no sentido de estabilizar a taxa de câmbio, ele compra e vende livremente moeda estrangeira àquela taxa, a menos e até que se esgotem suas reservas (ou que estas alcancem um nível mínimo aceitável), em cujo ponto permite a flutuação da taxa cambial.

Se o governo parte de um nível positivo de reservas, será capaz de fixar a taxa de câmbio por um certo tempo, durante o qual as reservas se esgotam, mesmo que o déficit do orçamento não esteja sob controle. A inflação estará temporariamente sob controle. Eventualmente, a taxa fixa entrará em colapso e a inflação elevada voltará. Nesse caso, o tempo específico de duração das reservas e da redução da inflação é especialmente interessante. Na época em que o governo começa a fixar a taxa, a inflação cai a zero. Muito embora todo mundo na economia entenda que o programa fracassará (talvez em seis meses ou um ano) quando as reservas se esgotarem, todos sabem, contudo, que o programa não fracassará imediatamente. Por conseguinte, eles escolhem a alternativa de elevar seus estoques reais de moeda no curto prazo, sabendo que a inflação será pequena durante curto espaço de tempo. A formação do estoque de moeda é baseada no ingresso de ativos externos, mas todos se preparam para reverter o processo antes que a taxa fixa seja alterada e a inflação recrudesça. Assim, com o anúncio da fixação da taxa de câmbio, as reservas internacionais no banco central se elevam, mas isso não representa um sinal de confiança de longo prazo, porém de curto prazo.

Com o correr do tempo, embora a inflação seja zero, as reservas cairão abaixo de seu nível atual. Eventualmente, as reservas cairão o suficiente para que o prudente setor privado volte novamente a enviar seus ativos financeiros para fora do país. Isso ocorrerá antes que o nível mínimo de reservas seja atingido. Acontecerá uma corrida especulativa sobre o banco central, embora as reservas estejam aparentemente bem acima do mínimo, e a corrida especulativa, na verdade, levará rapidamente as reservas para o nível mínimo. A taxa de câmbio fixa entra em colapso, levando a um novo processo de inflação com desvalorização. Agora, todavia, o aceleramento inflacionário ocorrerá mais rapidamente do que no início, em função de o governo estar agora mais endividado liquidamente (pois perdeu reservas cambiais enquanto o programa durou). Dessa forma, o governo precisa de um imposto inflacionário mais elevado para pagar o serviço da dívida mais elevado.

Essa estória representa a essência de muitos episódios de taxas cambiais fixas nos últimos anos. As políticas de Martínez de Hoz na Argentina (1978-1981), as políticas de Aridor em Israel (1982-1984) e o Plano Cruzado no Brasil (1986-1987) incorreram no equívoco de acreditar que a estabilização da taxa cambial, sozinha, pudesse eliminar uma inflação elevada, muito embora o déficit fiscal não estivesse equacionado. Nos casos de Martínez de Hoz e Aridor, a inflação, após o colapso do programa de ajustamento, esteve bem acima das taxas iniciais, e o mesmo deverá ocorrer com a Plano Cruzado. Os defensores dessas políticas frequentemente não compreendem, mesmo fazendo estudo retrospectivo, o motivo de seu fracasso. Além disso, o ministro da Fazenda assinala que as reservas sobem no início (um sinal de confiança!) e que a inflação se estabiliza (sucesso!). E, então, mesmo quando as reservas parecem ser adequadas (“forçando um pouco a barra”), o programa entra em colapso. A sociedade parece ser instável, ingrata, e até um pouco impatriótica, por instigar uma corrida às reservas do banco central.

Mesmo quando os governos entenderam a necessidade de cortes orçamentários, não houve mais do que um lento processo de reestruturação do setor público na América Latina. Existem duas razões inter-relacionadas para a falta de processo decisivo. Primeiro, a dimensão dos choques foi enorme, muito maior do que qualquer coisa que os países industriais tiveram que enfrentar durante décadas. Segundo, há um poderoso dilema relativo à questão da distribuição de renda na maioria dos países latino-americanos, que evitam a ocorrência de ações fiscais decisivas. Os ricos podem bloquear impostos mais elevados, mas não podem forçar cortes de gastos sem provocar inquietação. A situação é agravada pelo fato de que a dívida pública externa representa grande parcela da carga fiscal, e a vontade de desenvolver ações poderosas em favor de bancos comerciais estrangeiros é compreensivelmente limitada. O FMI e o Banco Mundial algumas vezes parecem esquecidos do conflito distributivo, que é notável, dado o grau de injustiça e desigualdade que prevalece na sociedade latino-americana.

Vários dos maiores países latino-americanos desfrutaram de notável folga fiscal durante o período de dinheiro fácil da década de 70. O México gastou urna grande parte das receitas advindas do petróleo com déficits do setor público, que alcançaram quase 18% do PNB em 1982. A Argentina, a Bolívia e o Brasil, da mesma forma, enfrentaram grandes e crônicos déficits orçamentários durante os anos 70, os quais foram facilmente financiados com recursos externos. Por volta de 1980, os níveis da dívida pública nesses países já eram extraordinários. A crise fiscal real não se tornou óbvia, todavia, até que as taxas de juros mundiais sobre a dívida do setor público crescessem acentuadamente nos primeiros anos da década de 80, e até que o acesso a empréstimos externos fosse cortado, o que aconteceu na maioria dos países em 1982 (1981 para a Bolívia; 1983 para a Venezuela). O impacto dos choques foi tamanho que mesmo severos ajustamentos a partir de 1982 mostraram-se insuficientes, devido à proporção da crise fiscal resultante. Ilustrarei esse fato com um caso que conheço bem, da Bolívia, que quase mergulhou em regime de anarquia devido a sua crise fiscal (ver Sachs, 1987, para detalhes adicionais). Embora o quadro da Bolívia seja extremo (a inflação, como consequência, atingiu 50000% em 1985, antes de ser controlada), os aspectos técnicos básicos são indicativos para a Argentina, Brasil, México e Peru.

O governo boliviano estava recebendo uma transferência externa líquida de recursos de cerca de 5% do PNB no período de 1978 a 1980. Quando as taxas de juros mundiais se elevaram abruptamente em 1980, a Bolívia enfrentou um período de crise fiscal, e os novos empréstimos cessaram. Uma série de governos instáveis tentou, a despeito disso tudo, manter o serviço da dívida. Com as taxas de juros mundiais a níveis altíssimos e ausência de novos empréstimos, a transferência líquida de recursos do setor público chegou a representar 5% do PNB. Os vários governos bolivianos no período de 1980 a 1983 pouco fizeram para reduzir os gastos ou elevar os impostos. Melhor, eles substituíram os empréstimos externos, que perderam, pela seignorage (isto é, emissão de moeda). A emissão de moeda, como percentual do PNB, dessa forma, cresceu em quase 10% do produto entre 1980 e 1983, aproximadamente igual ao valor das transferências líquidas de recursos.

A inflação naturalmente acelerou. Um novo governo democrático assumiu o poder em outubro de 1982, determinado a estabilizar a situação, mas foi vencido pela dificuldade da tarefa. Embora o governo de Siles não elevasse os gastos, a despeito de enormes pressões sociais oriundas de seu eleitorado, e na verdade enfrentasse várias batalhas para cortar os gastos, ocorreu um período de colapso do sistema tributário antes que fosse reconhecida tal situação. A elevada inflação corroeu um sistema frágil de impostos sobre a propriedade, fixado em termos nominais, impostos específicos sobre comércio, impostos específicos sobre consumo e imposto de renda pago com uma significativa defasagem. O efeito Tanzi atuou de forma vingativa. Os preços do setor público e a taxa de câmbio ficaram bastante defasados, em termos reais. Entre 1980 e o primeiro semestre de 1985, as receitas governamentais como percentual do PNB caíram de cerca de 10% para pouco mais de 1%! Muito embora o governo Siles tenha administrado o período de pior hiperinflação mundial em 40 anos, não pode ser considerado pródigo ou expansionista. Os cortes reais nos gastos do governo de Siles foram certamente os maiores da história moderna boliviana. O governo foi vencido por um processo cumulativo, no qual os grandes déficits provocaram uma elevação da inflação, que levou à erosão da receita tributária, que, por sua vez, levou a uma ampliação posterior dos déficits orçamentários.

O governo de Paz foi eleito em agosto de 1985, e acabou com a hiperinflação dentro de dois meses. Foram tomadas medidas decisivas sobre o orçamento e sobre a taxa de câmbio, medidas essas fundamentais. A taxa de câmbio foi estabilizada vis à vis do dólar, o que rapidamente estabilizou os preços, mas, em contraste com o exemplo teórico anterior sobre a fixação da taxa de câmbio, a estabilização da referida taxa ocorreu no contexto de profundas reformas fiscais. As despesas governamentais foram reduzidas com a completa moratória sobre os pagamentos da dívida externa, bem como através do corte nos gastos do setor público e da virtual cessação de projetos de investimento público. As receitas do governo foram elevadas principalmente através de aumentos mais acentuados nos preços públicos, e, mais tarde, por um programa de reforma tributária, cuja execução se tornou possível graças à estabilidade dos preços.

Embora o grau de severidade das crises varie conforme o país devedor, a estrutura é a mesma. O setor público em cada um dos principais países experimentou uma reversão acentuada no processo de transferências líquidas de recursos do exterior entre 1980 e 1983, passando de receptores a remetentes de recursos. Nos casos da Argentina, Brasil, México e Peru, os governos substituíram parte dos empréstimos suspensos por emissão de moeda. Em cada um desses países, a redução dos empréstimos externos contribuiu para uma queda na produção real, que, juntamente com a inflação crescente, diminuiu as receitas fiscais. Por volta de 1985, a carga da dívida pública externa era uma parcela muito grande das despesas públicas. Isto está ilustrado no Quadro 4 para a Argentina, Bolívia e México, onde se compara a dívida externa e os encargos de juros da dívida pública total com as receitas governamentais globais. Somente as despesas com juros responderam por cerca de um terço das receitas governamentais. (Observe-se, todavia, que a Bolívia suspendeu os ·pagamentos de juros aos bancos comerciais e reescalonou 100% dos pagamentos de juros devidos em 1986 a credores oficiais bilaterais.) Na Argentina e na Bolívia, a alta inflação corroeu o valor real de grande parte da dívida interna, enquanto no México a dívida real cresceu rapidamente, em função do papel dos títulos públicos no financiamento de grande parte dos gastos governamentais, no período 1983-1986, antes do aparecimento da inflação de três dígitos. Através do financiamento propiciado pelos títulos públicos, o México adiou sua elevada inflação até recentemente; pagará agora, porém, com taxas de inflação muito maiores do que se tivesse diminuído seus déficits orçamentários anteriormente.

Quadro 4:
Carga orcamentária da dívida pública - indicadores selecionados para Argentina, Bolívia, México (como proporções das receitas totais do governo)

Os governos com sérios problemas de caixa devidos à dívida têm várias opções fiscais no que concerne ao tamanho do déficit e aos métodos de financiá-lo. As diferentes formas de diminuir os déficits orçamentários têm consequências macroeconômicas distintas, para não mencionar consequências distributivas. Normalmente, supõe-se que um corte no déficit do orçamento terá um efeito contracionista sobre a economia real no curto prazo, e isso provavelmente é correto na medida em que o financiamento da dívida passa a ocorrer através de maiores impostos ou de menores gastos. Todavia, quando a mudança é de financiamento inflacionário para tributação, o efeito contracionista é provavelmente bem menor. Um aumento nos impostos que permita uma estabilização de preços é, na verdade, uma mudança de um imposto, o “imposto inflacionário”, para outro. Há pouca razão para acreditar-se que tal mudança de impostos seja contracionista. Por essa razão, os programas de choque anti-inflacionários, envolvendo simultaneamente aumentos de impostos e cortes abruptos na inflação, não precisam ter maiores efeitos contracionistas sobre a economia. No caso em que a redução fiscal envolve a suspensão do pagamento do serviço da dívida externa, como na Bolívia e no Peru, o programa poderia ser expansionista, no cômputo geral, desde que a queda no imposto inflacionário seja compensada pela redução das transferências para o exterior, em vez de ser compensada pelo aumento nos impostos internos. O setor privado, no final, acaba pagando menos “impostos” (inclusive o imposto inflacionário).

Os exemplos do pós-guerra no Leste Asiático e as histórias das hiperinflações da Europa Central mostram os limites da reforma fiscal. O financiamento externo tem sido, quase sempre, necessário para ajudar um governo a acabar com uma inflação alta, como já observamos nos casos do Japão, Coréia e Formosa. A generosa ajuda externa desempenhou, da mesma forma, um papel importante na estabilização de Israel em 1986, que recebeu USS 4,5 bilhões de ajuda norte-americana, representando cerca de 20% do PNB. Alguns processos de estabilização começaram sem ajuda externa (Alemanha em 1923), mas foram sustentados, mais tarde, através de financiamento externo (o empréstimo Dawes de 1924). Considerando que os países latino-americanos não recebem muita ajuda externa e que a captação de novos empréstimos foi interrompida, a estabilização nesses países não deverá ser obtida sem uma significativa melhoria nas condições de pagamento das dívidas externas junto aos bancos comerciais e aos credores bilaterais. A melhoria das condições de pagamento da dívida seria mais efetiva se fosse sancionada internacionalmente, como no caso da Indonésia no fim da década de 60. O FMI e o Banco Mundial podiam desempenhar um papel preponderante na definição de normas internacionais para tal prática. Porém, se essa melhoria, sancionada internacionalmente, não estiver próxima, então, os países devedores podem adotar o caminho de uma moratória unilateral da dívida, como Bolívia e Peru fizeram com algum êxito no ano passado.

Até hoje, as instituições financeiras deram atenção inadequada a esse caso de aliviamento da carga da dívida. Na verdade, mesmo em meio à hiperinflação de 50000% na Bolívia, a missão do FMI pressionou duramente o governo para não interromper o pagamento dos juros da dívida com os bancos comerciais. Isso ocorreu a despeito do fato de que o serviço normal de juros das dívidas bancárias, em termos de mercado, equivaleria a cerca de metade das despesas do governo central na época, e a uma parcela ainda maior das receitas do governo central. O governo boliviano recusou o acordo com os bancos comerciais em termos normais de reescalonamento, e o FMI ameaçou recusar a aprovação do programa de stand by. Eventualmente o Fundo se tornou menos severo com relação a essa ameaça. Incrivelmente, após vários meses de estabilidade de preços na Bolívia em 1986, e depois de um declínio de 50% nos termos de intercâmbio (estanho e gás natural) no final de 1985 e início de 1986, o FMI continuou a pressionar por uma maior desvalorização. O Fundo lamentou que o governo boliviano não pudesse de alguma forma diminuir o hiato cambial na forma recomendada pelo FMI, que inclui pagamentos expressivos de juros aos bancos comerciais. Com efeito, o FMI estava propondo ao governo boliviano que usasse a realimentação inflacionária como instrumento de financiamento do serviço da dívida. O governo boliviano recusou a oferta.

Programas de choque para eliminar altas inflações

Os programas de choque objetivando a estabilização estão agora em andamento (ou estão em um estágio intermediário de colapso) na Argentina, Bolívia, Brasil, Israel e Peru. Todos esses programas datam da época das hiperinflações na Europa, bem como das inflações de pós-guerra no Japão, Coréia e Formosa, quando se tentou sustar bruscamente as inflações elevadas (ver Sargent, 1982, para estudos de casos do final das hiperinflações da região centro-europeia). Do grupo, somente a Bolívia estava sofrendo uma verdadeira hiperinflação, com a taxa inflacionária atingindo 20000% em doze meses (agosto de 1985 sobre agosto de 1984) antes da estabilização. Nos outros casos, a elevação dos preços pré-choque foi muito menor: Argentina, 3000%; Brasil, 300%; Israel, 700%; Peru, 200%.

Todos os programas objetivam atrelar a taxa cambial ao dólar norte-americano como mecanismo para reduzir bruscamente a inflação aos níveis da taxa de inflação mundial do dólar. A ideia central é a de tornar esse atrelamento viável através de um controle decisivo do déficit público. Na Argentina, Brasil, Israel e Peru, o atrelamento da taxa cambial e o acompanhamento das medidas fiscais são complementados pelo congelamento de preços e salários, com o objetivo de assegurar que os preços e salários internos não subam ao mesmo tempo em que a taxa cambial é mantida constante. Finalmente, na Argentina, Brasil e Peru uma nova moeda foi criada à época em que a taxa de câmbio se manteve constante, que serviu, pelo menos na Argentina, como um brilhante instrumento técnico para contornar a legalidade dos contratos financeiros preexistentes.

A fixação da taxa cambial para eliminar uma inflação alta é comum ao final da maioria das hiperinflações históricas. Um aspecto controverso dos atuais programas, com exceção da Bolívia, é o uso de controles de preços e salários em combinação com a taxa cambial fixa. O argumento teórico para tais políticas auxiliares é claro. O ponto principal é uma distinção entre hiperinflação (como na Bolívia) e inflações simplesmente altas. Durante uma verdadeira hiperinflação, os contratos nominais internos virtualmente desaparecem. Os preços das mercadorias são cotados geralmente em uma moeda estrangeira. Os preços internos das commodities são calculados de acordo com o preço internacional, convertido à taxa cambial prevalecente na época da transação. Assim, em uma verdadeira hiperinflação, a estabilização da taxa cambial é suficiente para estabilizar os preços dos bens em moeda local. Com uma inflação mais baixa, todavia, os contratos nominais e esquemas de indexação com defasagens ainda prevalecem. A fixação da taxa cambial não é suficiente para acabar com a inflação instantaneamente, devido à projeção de contratos nominais de salários e preços assinados antes da estabilização entrar em vigor. O resultado da imediata fixação pode, por conseguinte, ser uma significativa e indesejada valorização da taxa de câmbio real, como no Chile, no período 1979-1981. Os controles de preços e salários são usados para suplantar os contratos preexistentes e para tornar os preços e salários compatíveis com a nova fixação da taxa cambial.

No caso da Bolívia, que atingiu taxas de variação de preços hiperinflacionárias, a fixação da taxa cambial foi suficiente para estabilizar os preços internos, sem o uso de controles de preços e salários (na verdade, os controles existentes foram eliminados no início do programa de estabilização). Como foi documentado em Sachs (1987), os preços internos pararam de subir e começaram a cair no espaço de nove dias após a nova taxa cambial fixada. Nos casos de outras inflações elevadas, as condições iniciais foram muito menos severas. A fixação da taxa cambial não foi, provavelmente, suficiente para estabilizar a taxa cambial, e isso não foi percebido com clareza pelas autoridades nacionais. Assim, os controles foram instituídos juntamente com a fixação da taxa cambial. Em todos esses países, o efeito inicial da combinação de uma taxa fixada e um congelamento salário-preço foi suficiente para diminuir a taxa calculada de inflação a quase zero. No Brasil e Peru, todavia, os controles provocaram escassez quase imediata de algumas mercadorias e concomitantes aumentos de preços no mercado paralelo.

Conforme exemplificado anteriormente, uma taxa cambial fixa sem medidas fiscais complementares terá alguma viabilidade no curto prazo, mesmo quando se sabe que a fixação será interrompida em pouco tempo. A chave para manutenção da taxa fixa por um tempo maior é, sem dúvida, um grau de ajustamento fiscal que mostre claramente a necessidade do imposto inflacionário. Embora dados atualizados comparáveis de posições fiscais não estejam disponíveis publicamente para os cinco países com programas de choque, parece que diferentes graus de ajustamento fiscal foram usados. Na Bolívia e Israel, as medidas fiscais foram profundas, e provavelmente bastante grandes para manter a inflação baixa por um período de tempo prolongado (a menos que as pressões políticas forcem uma reversão da austeridade fiscal). Na Argentina e no Peru, as ações fiscais foram mais moderadas, e provavelmente suficientes apenas para reduzir as taxas de inflação a elevados dois dígitos (ou baixos três dígitos) num breve espaço de tempo. No Brasil, as medidas fiscais foram provavelmente perversas, no sentido de que aumentaram o déficit no começo do programa. Não apenas os salários reais do setor público foram elevados, mas o déficit do governo cresceu devido aos subsídios, usados para ajudar a manter o congelamento de preços. A ausência de medidas fiscais corretivas no Brasil tem sido manifestada por observadores que acompanharam de perto o Plano Cruzado, e isso fez com que houvesse muito ceticismo a respeito do seu sucesso, já no verão de 1986, a despeito da quase euforia do governo brasileiro e dos bancos comerciais internacionais.

Convém salientar que a maior parte das medidas fiscais na Bolívia, e talvez a principal medida fiscal no Peru, foi a suspensão parcial de pagamentos de juros sobre a dívida externa do setor público. Quantitativamente, essa suspensão de pagamentos tem sido um fator decisivo no sucesso do programa boliviano. Talvez a maior ameaça ao programa seja a possibilidade de o governo, eventualmente, ceder às pressões da comunidade internacional para “ser responsável”, e voltar a usar o imposto inflacionário para financiar o serviço da dívida aos credores internacionais. Em Israel, a necessidade de tal ação se tornou desnecessária, por causa da enorme ajuda externa recebida dos Estados Unidos, bem como pelas medidas fiscais em outras áreas adotadas pelas autoridades israelenses. Na Argentina e no Brasil, onde as medidas fiscais internas de magnitudes necessárias não foram tomadas, uma eventual moratória do serviço da dívida não pode ser descartada.

Um aspecto decisivo dos programas de choque é a questão do tempo na integração de todas as partes do programa. Um problema vital é o de que as medidas sobre taxa cambial e preços irão, quase necessariamente, superar muitas das medidas fiscais de ajustamento. É simplesmente impossível planejar e executar uma reforma tributária durante uma inflação muito alta, de forma, por exemplo, que os aumentos de preços sejam sustados antes que novos tipos de receitas tributárias sejam criados. Na Bolívia, o pacote de reforma tributária foi aprovado no Congresso somente nove meses depois do início do programa anti-inflacionário, e o começo da implementação se deu um ano inteiro depois do surgimento do programa. O ciclo orçamentário deve, igualmente, exigir que certos cortes de orçamento sejam adiados até a fase posterior ao início do programa de choque. A defasagem entre as medidas cambiais (e de preço-salário) e as medidas fiscais de apoio não inviabilizam necessariamente um programa, desde que as expectativas sejam de estabilização durante esse período e desde que a sociedade propicie algum alivio fiscal ao governo, através do aumento na demanda por saldos monetários reais (elevando dessa forma as reservas do banco central) no início do programa de estabilização. O risco é o de que as autoridades passem a crer durante esse período que o programa funciona por si mesmo, sem a necessidade de medidas fiscais politicamente dolorosas.

A principal questão analítica não resolvida na formulação de programas “anti-inflacionários de choque” é o problema das taxas de juros e da política monetária no processo da estabilização. Todos os países experimentaram taxas reais de juros muito altas ex post no processo da estabilização. Dornbusch (1986) atribuiu as altas taxas de juros reais ao insucesso das autoridades monetárias em permitir que a oferta monetária crescesse adequadamente em resposta a expectativas inflacionárias declinantes. Sachs (1987) atribui as altas taxas de juros existentes na Bolívia a uma continuada falta de confiança no programa por muitos meses após seu início. Blejer e Liviatan (1986) parecem apoiar esta última análise para os casos da Argentina e de Israel. Quando as altas taxas refletem condições monetárias apertadas, pode haver espaço para uma expansão inicial do crédito interno, no começo do programa, para atender ao aumento da demanda por moeda. Quando, porém, as elevadas taxas de juros refletem uma falta continuada de confiança, tal expansão do crédito interno causará apenas uma perda das reservas do banco central e posteriormente minará a confiança no plano de estabilização.

Aspectos distributivos de renda no processo de estabilização

Existem sempre duas formas fundamentais para reduzir um déficit orçamentário: impostos mais elevados ou despesas mais reduzidas. Suas consequências sobre distribuição de renda são, por certo, muito diferentes. Existe uma forte suposição nos dias atuais, no FMI e no Banco Mundial, de que menores despesas constituem o método apropriado de ajustamento. Blejer e Liviatan (1986, p. 28) são adeptos desta visão, a qual postula que “a tarefa básica de reduzir o setor público é, por conseguinte, o principal teste que programas (anti-inflacionários de Israel e Argentina) devem enfrentar no prazo mais longo”. Ironicamente, esses autores discutem o programa de estabilização argentino de 1967 de forma favorável, sem ao menos observar que o programa naufragou numa onda de distúrbios trabalhistas (o chamado Cordobazo) dois anos após seu início. O problema da Argentina, e de outros países da região, foi o de encontrar um conjunto de políticas de estabilização que fossem tecnicamente razoáveis e também sustentáveis do ponto de vista social. Os programas baseados principalmente em cortes de despesas, provavelmente, não preencherão essas exigências em muitos países latino-americanos.

Aqui, uma vez mais lembramos uma crucial, porém, não devidamente avaliada lição do Leste Asiático. Nesses países, a existência de uma distribuição de renda relativamente equânime permitiu maior liberdade de ação à política econômica para empreender as reformas necessárias para uma maior eficácia. Na ausência de tal igualdade de renda, as políticas orientadas principalmente em direção à eficácia podem exacerbar uma já desigual distribuição de renda e podem ser impostas apenas com forte repressão, como no Chile. Considere-se, por exemplo, a receita política de uma desvalorização profunda da taxa real de câmbio, com o objetivo de promover as exportações. Nas economias latino-americanas, caracterizadas pela posse desigual da terra e dos recursos naturais, tal política poderia ter consequências distributivas muito adversas e pode, na verdade, ser politicamente desestabilizadora. A mesma política no cenário mais igualitário do Leste Asiático poderia ser eficaz tanto econômica como politicamente.

A distribuição da renda nos países latino-americanos está entre as mais desiguais no mundo, e a maioria dos observadores suspeita que as desigualdades de renda se ampliaram consideravelmente na década de 80 (ver, por exemplo, ECLAC, 1986).

Os indivíduos de renda mais alta têm escapado sistematicamente do impacto da crise através da evasão do capital, controle governamental das dívidas externas privadas em termos favoráveis, e, em alguns casos, redução da carga tributária, enquanto os indivíduos de renda mais baixa têm sofrido através da redução das despesas do setor público, especialmente nas áreas de educação e saúde, e da redução real de salários nos setores público e privado. O Quadro 5 mostra que, dentre a redução na despesa total do setor público, os cortes nos gastos com educação e saúde têm sido mais acentuados do que a média. (Infelizmente, os dados estão disponíveis apenas até 1983; a situação a partir daí provavelmente se tornou muito pior.) O Peru oferece um notável e trágico exemplo dessa situação. Entre 1981 e 1984, as reduções nas despesas forçaram um corte de 54% na ajuda de alimentos para as mães, de 37% na assistência ao aleitamento materno e pré-escolar, e de 17% na ajuda a crianças em idade escolar (ECLAC, 1986, p. 53).

Quadro 5:
Participação das despesas públicas com educação e saúde (%)

O Banco Mundial e o FMI deveriam dar-se conta de que os aumentos de impostos, especialmente sobre rendas elevadas e propriedades, em vez de cortes nos gastos públicos, podem frequentemente proporcionar ajustamentos mais equânimes para a atual crise e talvez aumentar as chances de êxito dos programas de estabilização. Vimos que, quando comparados com o Leste Asiático, os países latino-americanos não se encontram super-tributados, e na verdade estão sub-tributados. Simplesmente não há evidência para a afirmativa de que cortes de gastos sejam preferíveis aos aumentos de impostos, devido à sua eficiência como método de ajustamento. Na verdade, à falta de políticas mais vigorosas para minorar os extremos na desigualdade de renda existente na América Latina, a probabilidade de crescimento econômico durável e sustentável num contexto de estabilidade social torna-se realmente difícil.

CONCLUSÕES

Este trabalho analisa a prioridade urgente que o FMI e o Banco Mundial parecem estar dando à liberalização do mercado nos países devedores. Acho que o problema mais premente nesses países é a prolongada crise fiscal, que tem causado uma acentuada retração dos investimentos do setor público e de gastos em bem-estar social, e tem provocado elevadas inflações em vários países. Em grande parte, a crise da dívida internacional é um reflexo dessa crise fiscal, e não um reflexo do problema de transferência de nações devedoras para nações credoras. A experiência dos bem-sucedidos países do Leste Asiático é aqui lembrada para oferecer três grandes lições. Primeiro, a estabilização quase sempre precedeu qualquer mudança dramática para liberalização. Segundo, a orientação em favor das exportações foi adotada sem uma liberalização das importações, e pode ser promovida por um governo ativo. Terceiro, a distribuição relativamente equânime de renda no Leste Asiático liberou os governos para se dedicarem aos problemas de eficácia. Por essa razão, além da própria equidade social, os programas de ajustamento na América Latina podem muito bem aumentar suas chances de sucesso se, em parte, objetivarem aperfeiçoar a distribuição de renda, extremamente desigual nessas economias.

O trabalho também questiona o uso de tratamento de choque para eliminar elevadas inflações. Referidos programas, postos atualmente em prática com grande sucesso na Bolívia e em Israel, e com êxito parcial na Argentina e no Peru, combinam uma taxa cambial fixa com disciplina fiscal para conseguir uma rápida desinflação. No contexto de hiperinflação, como na Bolívia, atrelar a taxa cambial é uma medida suficiente para eliminá-la. Para elevadas inflações, mas não hiperinflações, a presença da inflação inercial pode oferecer uma razão para se complementar a taxa cambial fixa com políticas de renda e congelamento de preços. Uma dificuldade desses programas é a de que, quase inevitavelmente, alguma contenção fiscal terá que vir após o atrelamento inicial da taxa de câmbio, visto que os maiores aumentos de impostos podem ser conseguidos somente depois de a alta inflação ter sido controlada. Isso significa dizer que o passo inicial de atrelamento da taxa de câmbio pode ser seguido pela perigosa negligência quanto à adoção das medidas fiscais. Esse perigo é aumentado pelo fato de que, por um curto período de tempo, o programa baseado unicamente na taxa cambial fixa parecerá ser bem-sucedido, com as reservas aumentando e a inflação desacelerando.

Dado que o ponto central da crise na América Latina é o de natureza fiscal, e considerando os limites políticos e econômicos para execução de uma rápida reforma fiscal, uma substancial melhoria nas condições de pagamento da dívida pode ter um papel importante a desempenhar no processo de estabilização. A substancial assistência externa tem sido um fator importante para acabar com a maioria das elevadas inflações, incluindo as hiperinflações na Europa Central; as altas inflações pós-guerra no Japão, Coréia e Formosa; a hiperinflação pós-Sukarno na Indonésia; e a elevada inflação israelense em 1986. Da mesma forma, a suspensão do pagamento do serviço da dívida contribuiu para a eliminação da recente hiperinflação na Bolívia. Tais medidas podem melhorar substancialmente as perspectivas de uma bem-sucedida estabilização em alguns outros países devedores. Os resultados em tal caso seriam grandemente melhorados se a redução do serviço da dívida externa fosse feita de forma cooperativa, medida pelo Banco Mundial e FMI, e não através da iniciativa unilateral dos governos devedores.

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  • 1
    Ver Floyd, R. H. et alii, Public Enterprise in Mixed Economies, Washington D. C., FMI, 1984, Quadro 1
  • 2
    As altas taxas de inflação nas três economias dão uma indicação da extensão dos desequilíbrios macroeconômicos iniciais. As taxas de inflação anuais alcançaram 334% no Japão, em 1947, 500% na Coréia, em 1951, e 3400% em Formosa, em 1950.
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    O trabalho aqui apresentado faz parte do programa de pesquisas do NBER - National Bureau of Economic Research. Texto traduzido por Francisco Raimundo Alves da Silva, Hélio Cézar Bontempo e Sérgio Fonseca Rola.
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    JEL Classification: H63; F31; F34; F43.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1988
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