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Plano Fernando Henrique Cardoso: Exposição de Motivos nº 395, de 7 de dezembro de 1993

O ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso e sua equipe deram publicidade no último dia 7 de dezembro a um novo plano de estabilização, claramente baseado no Plano Arida, que dois dos membros da equipe - Pérsio Arida e André Lara Resende - apresentaram originalmente em Washington, em novembro de 1984: Lara Resende, A. e P. Arida (1984). “Inertial inflation and monetary reform”. In Williamson, J., org. (1985). Inflation and Indexation: Argentina, Brazil and Israel. Cambridge, Mass.: MIT Press. Publicado em português Arida, P., org. (1986). Inflação zero: Brasil, Argentina, Israel. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Publicamos a seguir a íntegra da exposição de motivos do ministro.

EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE DA REPÚBLICA.

A presente Exposição de Motivos contém um breve diagnóstico da crise fiscal brasileira e proposições relativas à estabilização da economia em três frentes de atuação: a) equilíbrio orçamentário no biênio 1994-95; b) sugestões à revisão constitucional; e) reforma monetária. Julguei oportuno consolidá-las neste documento, a fim de explicitar de maneira precisa e coerente as decisões - algumas delas drásticas - que nos cabe submeter ao Congresso Nacional e ao País para assegurarmos o equilíbrio das contas públicas e, num prazo relativamente curto, encetarmos o combate direto à inflação com possibilidade real de sucesso.

  • 1. O País sabe da firmeza do compromisso de Vossa Excelência com as aspirações nacionais de consolidação da democracia, crescimento econômico sustentado e justiça social. É também testemunha da tenacidade com que este Governo tem perseguido o equilíbrio fiscal como meta prioritária, consciente de que a desordem financeira e administrativa do Estado é a principal causa da inflação crônica que impede a sustentação do crescimento, perpetua as desigualdades e mina a confiança nas instituições.

  • 2. Com o propósito de alcançar tal equilíbrio, foi lançado em junho último o Programa de Ação Imediata (P.A.I.). Este previa um conjunto de medidas voltadas para a reorganização do setor público, incluindo redução e maior eficiência de gastos: recuperação da receita tributária; fim da inadimplência de Estados e Municípios com a União; controle dos bancos estaduais; saneamento dos bancos federais; aperfeiçoamento e ampliação do pro­grama de privatização.

  • 3. Importantes avanços foram obtidos na execução desse Programa. Ressalto, entre os principais:

  • a) Graças sobretudo aos esforços de combate à sonegação, em 1993 a receita mensal de impostos da União passou de uma média histórica de 3,3 bilhões para 3,8 bilhões de dólares, ou seja, um acréscimo de 500 milhões de dólares por mês.

  • b) Um corte inicial de 6 bilhões de dólares e medidas posteriores de austeridade estão permitindo fechar a execução orçamentária de 1993 em situação de equilíbrio.

  • c) A reestruturação das instituições financeiras federais foi intensificada, preparando-as para conviver com baixa inflação.

  • d) O fluxo de pagamentos dos Estados e Municípios para as instituições financeiras federais foi retomado, com a assinatura de compromissos de rolagem de dívida, antes mesmo da aprovação da respectiva lei pelo Congresso em novembro último.

  • e) A redefinição das relações financeiras entre o Tesouro Nacional e o Banco Central aumentou a transparência das contas da União.

  • f) O processo de privatização foi aperfeiçoado com a criação de novas moedas sociais que irão democratizar a participação no capital das empresas, a abertura de novas fronteiras através da inclusão do setor elétrico e a configuração de um novo modelo institucional capaz de agilizar o processo, preservando-lhe a necessária transparência.

  • 4. Essas medidas significam o começo da arrumação da casa, uma limpeza do terreno para as decisões, ainda mais importantes, que agora nos cabe encaminhar.

  • 5. Ao submetê-las à consideração de Vossa Excelência, faço-o com a humildade de quem reconhece a vastidão da tarefa. O estabelecimento em bases permanentes do equilíbrio fiscal e da estabilidade monetária requer mudanças profundas na forma de gestão do Estado brasileiro. Supõe definições claras sobre o tipo de Estado que desejamos ter e o encaminhamento das reformas estruturais decorrentes dessa opção. Choca-se, por isso mesmo, com atitudes arraigadas no setor público e na sociedade sobre o papel do Estado, especialmente sobre a concepção e a execução do gasto público.

  • 6. Não é, em suma, tarefa que se complete da noite para o dia. Depende, para chegar a bom termo, da coerência e persistência dos esforços de sucessivos governos. Anima-me, contudo, a convicção plena de que é esta a tarefa que se impõe agora não só ao Governo, mas ao País. É bem assim a certeza de que o País e o Governo terão da parte de Vossa Excelência, como tiveram até aqui, sobejas demonstrações de coragem política e desprendimento para dar os passos necessários, por áspero e longo que seja o caminho.

I. DESEQUILÍBRIO FISCAL, INFLAÇÃO E EXCLUSÃO SOCIAL

  • 7. O ano de 1993 ilustra de forma contundente o paradoxo da economia brasileira. Países com inflação comparável à nossa têm a economia destroçada. O Brasil, não. A produção industrial deve crescer quase 9 por cento este ano e o PIB em torno de 4,5 por cento. Apesar de uma significativa liberalização comercial que eliminou as restrições quantitativas e reduziu a alíquota média de importação para 14 por cento, as exportações devem mais uma vez superar as importações, neste ano, em 13,5 bilhões de dólares, gerando o terceiro maior superávit comercial do mundo, atrás apenas do Japão e da Alemanha.

  • 8. Nada, entretanto, poderia ser mais equivocado e perigoso do que, a partir daí, adotar uma postura complacente em relação à inflação. O mais chocante paradoxo brasileiro não é o crescimento econômico apesar da inflação elevada. É, isto sim, a coexistência de um setor privado moderno, eficiente e internacionalmente competitivo, com um Estado destroçado e uma multidão de excluídos tanto da economia de mercado como das políticas de bem-estar.

  • 9. Diante desse quadro, a insistência no controle do gasto público não é insensibilidade tecnocrática, mas pressuposto de qualquer avanço social consistente.

  • 10. A inflação é o mais injusto e cruel dos impostos. São os mais pobres que o pagam. Empresas e famílias de alta renda aprenderam a se defender. Têm acesso aos substitutos da moeda que a indexação e um sofisticado mercado financeiro desenvolveram nos muitos anos de convívio com a inflação elevada. Enquanto isso os assalariados de baixa renda e a legião dos excluídos do Brasil industrial veem deteriorar-se a cada dia o valor de seus escassos rendimentos.

  • 11. Não há, assim, política social mais eficaz do que a queda da inflação. Combater a fome, priorizar o gasto público com programas de cunho social e aumentar sua eficiência é obrigação de um governo - como o presidido por Vossa Excelência - comprometido com ideais de democratização e justiça social. Mas só a estabilidade de preços criará condições para o crescimento sustentado da produção e do emprego e para a distribuição de renda, permitindo preencher o abismo entre o Brasil rico, industrializado, moderno e eficiente e o Brasil miserável, de tudo desprovido.

  • 12. A reorganização fiscal do Estado é a pedra fundamental do processo de estabilização, ainda que este requeira medidas adicionais para quebrar a “inércia inflacionária” decorrente da indexação e, por fim, chegar ao estabelecimento de um novo padrão monetário estável.

Irrealismo orçamentário e déficit potencial

  • 13. A crise fiscal brasileira tem raízes que remontam à ruptura do padrão de financiamento externo no início dos anos 80 e aos esforços de ajuste daí decorrentes. Entretanto, sua perenização está ligada à descompressão das demandas sociais e corporativas, à deterioração da capacidade de arrecadação do Estado e à redefinição das relações entre diferentes esferas de governo desde os primeiros anos do novo regime democrático.

  • 14. É na elaboração do Orçamento que se expressam normalmente os conflitos entre os diversos setores da sociedade e do próprio Estado pelos recursos fiscais. No Brasil redemocratizado, entretanto, as instituições representativas - partidos políticos, Congresso e o próprio Governo - abstiveram-se até aqui de arbitrar explicitamente tais conflitos. Em vez disso, têm permitido que se incluam no Orçamento quaisquer despesas politicamente defensáveis (ou nem tanto, como está revelando a CPI em curso), para isso bastando que a previsão de receita seja artificialmente inflada. Como não é possível nem desejável elevar a carga tributária efetiva para atender a todas essas demandas, parte delas acaba sendo financiada pela emissão de moeda, ou seja, através da inflação, e outra parte simplesmente não é atendida.

  • 15. O irrealismo orçamentário acentuou-se no início dos anos 90. A despesa orçada, excluída a rolagem da dívida interna, situou-se respectivamente em 144, 113 e 108 bilhões de dólares nos exercícios de 1990, 1991 e 1992, enquanto a receita efetivamente realizada ficou em 111, 78 e 68 bilhões de dólares. Sobressai desses números a imensa disparidade entre o gasto público desejado e o que é consistente com a nossa realidade tributária, revelada pela disposição da sociedade de pagar impostos.

  • 16. Uma solução usual para esta situação consistiu numa forma simples de racionamento: a imposição de limites quantitativos à realização de despesas autorizadas no Orçamento, conhecida como contingenciamento. Este, porém, conduz a várias distorções, das quais a perda de transparência do processo orçamentário é sem dúvida a mais perturbadora. Em vez da mediação política do Legislativo sobre o confronto aberto das demandas sociais, o arbítrio burocrático do Executivo passa a definir as prioridades efetivas do gasto público.

  • 17. Pior ainda: mesmo nos anos em que se adotou o contingenciamento ele não foi suficiente para resolver o desequilíbrio. A saída então adotada tem sido vedar a emissão de títulos para a cobertura de gastos correntes. Com isso a repressão fiscal- ou seja, o adiamento de despesas e sua consequente corrosão pela inflação - torna-se o único instrumento de ajuste das contas da União.

  • 18. Formou-se assim, ao longo do tempo, uma sociedade espúria entre a Administração Pública, em todos os níveis e instâncias, e o processo inflacionário.

Rigidez orçamentária

  • 19. A crise fiscal da União decorre também do aumento da rigidez das contas públicas. Este engessamento é o resultado da expansão gradual das transferências obrigatórias e vinculações constitucionais da despesa à receita, as quais não podem ser alteradas nos Orçamentos anuais.

  • 20. O gráfico que acompanha esta Exposição de Motivos documenta o avanço das vinculações nos últimos quinze anos. As transferências a Estados e Municípios, de 11,87 por cento das receitas da União em 1983, passam a ocupar 18,8 por cento em 1992. Mais impressionante, no entanto, é o crescimento das outras vinculações, como, por exemplo, das despesas predeterminadas da Seguridade Social, que passam de 34,8 por cento em 1988 para 48,1 por cento quatro anos depois.

  • 21. Deste modo, o escopo da política fiscal da União, correspondente às suas receitas “livres”, viu-se dramaticamente reduzido. Ou seja, os recursos disponíveis para gastos nos Ministérios desprotegidos por vinculações reduziram-se de mais de 40 por cento da receita no início dos anos 80 para pouco mais de 20 por cento no início dos anos 90. Em outras palavras, foram cortados à metade. Do total da receita arrecadada, o Executivo só decide hoje a destinação de uma quinta parte.

  • 22. Algumas unidades de despesa - notadamente a Previdência, os Estados e as empresas estatais - deram um passo além da vinculação de receita. Desenvolveram mecanismos mais ou menos automáticos de cobertura de insuficiências de recursos, de tal sorte a fazerem o Tesouro Nacional assumir seus eventuais déficits. Nessas condições, os gastos dessas unidades tenderam a ganhar grande autonomia e a crescer sem muito compromisso com o seu financiamento. Daí resulta, via de regra, a acumulação de déficits, que se tornam “dívidas” da União junto a essas unidades de despesa e terminam sendo, em alguns casos, assumidas formalmente pela União.

  • 23. De 1988 a l 990 houve um notável crescimento das receitas vinculadas à Seguridade. Isto permitiu a expansão contínua das despesas com benefícios da Previdência, de 2,5 por cento do PIB em 1988 para cerca de 4,5 por cento em 1993. Mais recentemente, a fim de aumentar o espaço para a concessão de beneficias previdenciários, tem havido esforços no sentido de se transferirem para o Tesouro certas responsabilidades da Seguridade - encargos previdenciários da União, gastos com saúde e mesmo as despesas administrativas dos Ministérios da Saúde e da Previdência. Independente disto, todavia, a Lei de Custeio da Previdência obriga o Tesouro Nacional a cobrir as insuficiências de recursos oriundas de beneficias, quaisquer que elas sejam. Este automatismo obviamente enfraquece o incentivo para que haja disciplina no lado da despesa no orçamento da Seguridade.

  • 24. Os Estados, além de desfrutarem de vinculações de receita, também se beneficiam largamente de transferências voluntárias no Orçamento da União e do uso dos bancos estaduais como supridores de recursos. Isto levou a distorções que o Governo de Vossa Excelência vem corrigindo através da repactuação das dívidas dos Estados e de um disciplinamento mais rígido de suas relações com os respectivos bancos (Resolução n. 1996 do Banco Central).

  • 25. As empresas estatais, por seu lado, desfrutam hoje de enorme autonomia de gestão operacional. Quando o mau uso dessa autonomia resulta, por exemplo, em cronogramas de investimento superdimensionados ou em políticas excessivamente “generosas”, o Executivo é pressionado a transferir a conta para os consumidores, via aumentos de preços e tarifas, ou para o Tesouro, via prejuízos operacionais que se traduzem em endividamento crescente ou em aportes de capital.

Os limites da repressão fiscal

  • 26. A operação desses automatismos, bem como o avanço da rigidez orçamentária provocada pelas vinculações de receita, compõe um trágico quadro de fragmentação fiscal, em que as diferentes unidades de despesa procuram assegurar superávits em seus “suborçamentos” à custa das demais unidades e da cada vez mais reduzida capacidade de coordenação da União. Na verdade, o colapso fiscal tem sido contornado, cada vez mais precariamente, graças ao mecanismo de repressão fiscal, com as distorções já mencionadas.

  • 27. A inação diante do quadro acima levou o País à beira da hiperinflação em fins de 1989. O plano de estabilização de março de 1990 não logrou trazer um equilíbrio fiscal duradouro. Em vez de promover as reformas constitucionais ou infraconstitucionais necessárias para reverter esse quadro, o Governo anterior adotou expedientes transitórios para comprimiras despesas e elevar as receitas.

  • 28. A situação das contas públicas deteriorou-se continuamente a partir de 1991, na medida em que a arrecadação retomava a seus níveis históricos, o represamento das despesas com os juros da dívida interna se erodia com a devolução dos cruzados e retomavam-se os pagamentos relativos à dívida externa. Manteve-se a disposição de impedir a recuperação dos salários dos servidores e editaram-se sucessivos decretos de contingenciamento (Decreto n 21, de 1/2/1991, e Decreto n 475, de 13/3/1992), de modo a preservar algum grau de controle fiscal. Não obstante, com a concessão da isonomia salarial aos servidores dos três Poderes e o consequente crescimento real da folha, mantido pelos reajustes concedidos a partir de janeiro de 1993, o valor das despesas de pessoal será este ano (no orçamento fiscal) superior ao observado em 1992.

  • 29. A concessão, pela Justiça, do pagamento da correção de 147 por cento das aposentadorias e pensões do INSS dificultou ainda mais a gestão das finanças públicas. Isso veio a agravar significativamente os efeitos da implantação definitiva da nova sistemática de benefícios previdenciários, introduzida pela Constituição de 1988, que somente ocorreu no presente exercício. Em consequência, a Previdência viu-se forçada a suspender a transferência de recursos provenientes da contribuição de empregados e empregadores sobre a folha salarial, tradicionalmente destinados ao financiamento dos gastos com assistência médica e hospitalar, que tiveram que ser cobertos com recursos fiscais.

  • 30. Pela política fiscal adotada no segundo semestre de 1993, o Governo de Vossa Excelência optou por divergir das práticas dos anos anteriores e iniciar a transição na direção de um Orçamento realista. Ao invés do recurso continuado à repressão fiscal, implementou-se, através de projeto de lei submetido ao Congresso Nacional, uma reprogramação orçamentária trazendo o cancelamento de várias dotações. Ao mesmo tempo, através da programação financeira bimestral do Tesouro Nacional, buscou-se garantir que as dotações remanescentes no Orçamento não sofreriam contingenciamento.

  • 31. Os cortes nas dotações orçamentárias atingiram 41 por cento do conjunto das despesas sujeitas a corte, ou seja, financiadas por fontes não vinculadas. O valor em dólares desses cancelamentos, combinado à não-suplementação das rubricas remanescentes de despesas de capital e inversões financeiras, resultou em um corte de despesas de aproximadamente 6 bilhões, ou cerca de 1,5 por cento do PIB.

  • 32. No entanto, este esforço não foi suficiente para restaurar o equilíbrio no Orçamento. E não o foi por duas razões: primeiro, devido à continuada deterioração das finanças da Previdência, conforme já salientado; segundo, por causa do aumento das despesas do sistema público de saúde com atendimento ambulatorial e internações hospitalares, em face da universalização destes serviços estabelecida na nova Constituição.

  • 33. Por isso, apesar do substancial aumento de receita verificado em 1993, seria impossível atingir o equilíbrio fiscal no exercício caso viéssemos a cumprir o compromisso de desembolso assumido anteriormente. Para manter as necessidades de financiamento da União dentro de limites razoáveis, foi necessária nova reprogramação financeira, reduzindo de 42 por cento para 25 por cento as liberações remanescentes para o último bimestre do ano. Dessa forma, deveremos encerrar o exercício de 1993 sem pressão de déficit significativo.

II. RUMO A ESTABILIZAÇÃO: EQUILÍBRIO ORÇAMENTÁRIO 1994-1995

  • 34. No projeto de Orçamento para 1994 enviado ao Congresso em agosto último existia, originalmente, uma previsão de déficit de aproximadamente 26 bilhões de dólares. Feita uma revisão inicial das despesas com juros e descontados os financiamentos de longo prazo não inflacionários, o déficit a ser financiado com recursos inflacionários situou-se em 22,2 bilhões de dólares.

  • 35. A gravidade da situação não pode ser subestimada: é por força desse estado de coisas que o País permanece preso ao mecanismo de pressão por moeda indexada, que mantém uma inflação superior a 35 por cento mensais. A eliminação desse desequilíbrio é tarefa de salvação nacional, e desconsiderar sua importância é uma postura cabível apenas àqueles que se beneficiam diretamente das transferências de renda propiciadas pela inflação.

  • 36. Por isso, Vossa Excelência determinou reprogramar o Orçamento de 1994 com estrito equilíbrio operacional. Estou, em conjunto com o Ministro do Planejamento, encaminhando a Vossa Excelência a proposta de reprogramação, bem como de alteração de alguns dispositivos da Lei de Diretrizes Orçamentárias.

  • 37. Quanto às alterações propostas na LDO, cabe destacar:

  • a) É introduzido um mecanismo uniforme de tratamento das transferências voluntárias aos Estados e Municípios, que passarão a se dar exclusivamente mediante convênio, acordo, ajuste ou instrumento congênere, na forma da legislação vigente.

  • b) Revogam-se os artigos 19 e 44, cujas disposições levariam à pulverização das ações do Governo, prejudicando a consecução dos objetivos dos vários programas de trabalho.

  • c) Limita-se a emissão de títulos do Tesouro Nacional unicamente às necessidades de recursos para o pagamento do serviço da dívida pública federal. Com isto, visa-se à eliminação das pressões sobre o mercado financeiro decorrentes do pagamento de despesas referentes a pessoal, custeio e investimento.

  • 38. Proposta de Medida Provisória também encaminhada a Vossa Excelência veda a utilização da remuneração das disponibilidades de caixa do Tesouro junto ao Banco Central (Fonte 188) para outro fim que não o pagamento do serviço da dívida mobiliária da União.

  • 39. Além disso, na reprogramação do Orçamento para 1994, a previsão de um déficit igual a zero no conceito operacional permite a eliminação de quaisquer pressões adicionais à rolagem do principal da dívida sobre o mercado financeiro interno. O que por sua vez abrirá espaço, na fase mais adiantada do programa de estabilização, para a redução progressiva e sustentada das taxas de juros reais até níveis compatíveis com o mercado internacional.

  • 40. As mudanças propostas no projeto da Lei de Orçamento têm dois objetivos simultâneos: garantir o equilíbrio das contas públicas e equacionar o financiamento dos principais programas sociais do Governo, em especial os referentes a Saúde e Previdência.

  • 41. Na elaboração da nova proposta orçamentária, uma vez verificada a acuidade das estimativas originais das receitas e refeitos os cálculos das projeções de gasto com pessoal e beneficias previdenciários, constatou-se ser ainda necessário efetuar profundos cortes nas despesas relativas a outros custeias e capital. Estes cortes obedeceram a uma série de critérios, entre os quais cabe mencionar:

  • a) manutenção integral dos gastos financiados com recursos externos e respectivas contrapartidas;

  • b) redução significativa das transferências voluntárias da União para Estados e Municípios;

  • c) manutenção de valores mínimos compatíveis com o funcionamento adequado da Administração Pública Federal e com a execução dos programas prioritários do Governo, em especial os relativos à área social.

  • 42. Após reestimar as despesas com pessoal e beneficias previdenciários, o déficit potencial de cerca de 22,2 bilhões de dólares reduziu-se para 16,3 bilhões de dólares. Respeitados os critérios acima, foi necessário então efetuar cortes drásticos nas outras despesas de custeio e capital financiadas com recursos não vinculados, revelando a decidida disposição governamental de ajustar em definitivo suas contas. Isso fez com que, ainda assim, o déficit chegasse, mesmo somando-se a redução das despesas com juros reais obtida pela eliminação do déficit operacional, aos 9,3 bilhões de dólares.

  • 43. Tornou-se preciso, portanto, dispor de um instrumento adicional para financiar o déficit remanescente, dado que os cortes nos gastos de custeio e investimento financiados com recursos não vinculados foram feitos até o limite permitido pelo funcionamento adequado da máquina administrativa do Estado. Neste sentido estamos propondo a criação de um mecanismo emergencial de ajuste, cujas linhas se expõem a seguir.

Fundo Social de Emergência

  • 44. O Fundo Social de Emergência, que proponho seja criado mediante uma emenda constitucional, aqui denominada de Estabilização, tem como principal objetivo equacionar o financiamento dos principais programas sociais que na proposta orçamentária original, mesmo após os cortes feitos, teriam de ser financiados por fontes inflacionárias. Também será utilizado, de forma complementar, no pagamento de despesas relacionadas com outros programas especiais de relevante interesse econômico e social (o que não inclui, vale ressaltar, qualquer gasto novo além dos previstos no Orçamento).

  • 45. Das várias alternativas estudadas para compatibilizar a urgência do programa de estabilização com a agenda da Revisão Constitucional, esta foi inequivocamente a melhor, tanto do ponto de vista financeiro como da equanimidade na distribuição dos sacrifícios inevitáveis do ajuste fiscal.

  • 46. O Fundo Social de Emergência vigorará por um período de dois anos (abrangendo, portanto, o último ano do Governo de Vossa Excelência e o primeiro do Governo a ser eleito em 1994). Será constituído por meio do aporte de 15 por cento da arrecadação de todos os impostos e contribuições federais (implicando cortes, na mesma proporção, das despesas financiadas com recursos vinculados) e de um adicional de 5 por cento incidindo sobre as alíquotas dos mesmos impostos e contribuições.

  • 47. Observe Vossa Excelência que o Fundo não financia novas despesas, nem implica qualquer concentração de poder discricionário nas mãos do Executivo federal. Apenas permite o uso de recursos fiscais não inflacionários para cobrir as despesas que o Governo terá que realizar mesmo após um extraordinário corte nas despesas de custeio e capital anteriormente orçadas.

  • 48. Do ponto de vista da sistemática de alocação de recursos orçamentários, o Fundo passa a representar uma nova fonte com destinação regulamentada constitucionalmente. Visa reduzir a rigidez orçamentária, já que os recursos tornados disponíveis pelo corte global de 15 por cento das despesas vinculadas deverão ser destinados a cobrir gastos em áreas onde há real necessidade adicional de fundos.

  • 49. As tabelas a seguir ilustram a importância do Fundo Social de Emergência para o equacionamento do desequilíbrio das contas públicas. Todos os valores são expressos em bilhões de dólares referentes a cruzeiros de abril de 1993.

  • 50. A primeira tabela sintetiza os ajustes em relação à proposta orçamentária anterior.

US$ bilhões Déficit Potencial Inicial 22,2 (-) Ajuste por Reestimativa: Despesas de Pessoal (-)3,8 (-) Ajuste por Reestimativa: Contribuições Benefícios Previdenciários e Outras Receitas (-)2,1 = Déficit Potencial Reestimado 16,3 (-) Cortes em Outros Custeias e Capital (exclusive Despesas Vinculadas) (-)5,5 (-) Redução das Despesas com Juros Reais (-)1,5 = Déficit a ser Financiado com o Fundo 9,3

  • 51. O valor do Fundo Social de Emergência é de aproximadamente 15,8 bilhões de dólares, dos quais cerca de 6,5 bilhões não contribuem para a redução do déficit, pois destinam-se à cobertura de despesas com a Previdência e outras despesas de capital não vinculadas, incompressíveis após o profundo corte nelas efetuado. Desta forma, a contribuição líquida do Fundo para o financiamento do déficit soma 9,3 bilhões de dólares, como demonstrado a seguir:

US$ bilhões Contribuição líquida do Fundo ao Financ. Déficit 9,3 Transf. Obrigatórias para Estados e Municípios 2,7 Desp. Vinculadas em Outros Custeias e Capital 2,9 Adicional de 5% sobre Impostos e Contribuições 3,7 Déficit Final 0,0

  • 52. Observe-se que as despesas não financeiras na proposta do novo Orçamento a ser encaminhada ao Congresso Nacional alcançam cerca de 79,2 bilhões de dólares, estando distribuídas nos seguintes itens:

US$ bilhões 1. Transf. Obrigatórias para Estados e Municípios 11,8 2. Pessoal e Encargos 24,0 3. Benefícios Previdenciários 19,2 4. Outras Despesas Custeio e Capital (Ministérios) 24,2

  • 53. A importância do Fundo Social de Emergência sob a ótica do financiamento destas despesas é destacada a seguir:

Despesas Não Financeiras: Total 100% Fontes de Financiamento: 1. Recursos Vinculados 62% 2. Fonte 100 (Recursos Livres) 10% 3. Recursos Financeiros de Longo Prazo 8% 4. Recursos Financeiros Inflacionários 0% 5. Fundo Social de Emergência 20%

  • 54. As perdas nas transferências obrigatórias para Estados e Municípios decorrentes da criação do Fundo Social de Emergência serão compensadas pela receita adicional dos Fundos de Participação que resultará do aumento de mais de 15 por cento na arrecadação dos impostos federais previsto para 1994, por consequência do enorme esforço no combate à sonegação que a Receita vem promovendo com significativo sucesso, bem como da arrecadação do IPM e do Cofins.

  • 55. É de ressaltar, portanto, que em termos reais os Estados e Municípios nada perderão: estarão asseguradas transferências em 1994 no mínimo iguais às de 1993. Mais ainda, os executores dos gastos cobertos pelo Fundo Social de Emergência serão a Previdência e os próprios Estados e Municípios, de acordo com as prioridades sociais definidas no Orçamento.

  • 56. A criação do Fundo Social de Emergência permitirá que o Governo faça frente aos custos da Seguridade Social, sem pressionar a inflação, no próximo biênio. Sem ele, dificilmente o Governo encontrará o necessário equilíbrio fiscal e mais dificilmente ainda terá condições de combater a inflação com a presteza que o País reclama. Aprovado este Fundo, o Governo de Vossa Excelência e o primeiro ano do próximo Governo terão as condições mínimas de gestão adequada. Com isso, separaremos as dificuldades de gestão de curto prazo das questões estruturais.

  • 57. Será, entretanto, imprescindível que se busquem as mudanças mais profundas para tornar permanentes as condições do equilíbrio fiscal. Para isso, a Revisão Constitucional que ora se inicia é de fundamental importância.

III. REVISÃO CONSTITUCIONAL

  • 58. Os constituintes de 1988, a meu ver com sobradas razões, trataram de consolidar a democracia em nosso País, ampliando garantias e direitos individuais e reafirmando a soberania popular como base do sistema de governo, e partiram para o resgate do que então se chamava de “dívida social”. Entretanto, faltou-nos a percepção realista dos mecanismos de financiamento do gasto social e faltou-nos a decisão de efetivamente reconstruir o Estado em bases de competência e eficiência. A percepção de que o texto aprovado era em certos aspectos uma obra inconclusa explica, de resto, a inclusão nas Disposições Transitórias de artigo prevendo a Revisão Constitucional depois de cinco anos.

  • 59. Mais do que um passo necessário para a estabilização da economia, e até para que a estabilidade seja duradoura, a Revisão é fundamental por suas implicações de longo prazo. Ela é a oportunidade de definir com nitidez o perfil do Estado desejado pela sociedade brasileira e de desatar as amarras constitucionais - algumas delas já aludidas neste documento - que hoje impossibilitam o Governo federal de assumir plenamente seu papel de coordenador das ações do Estado e da sociedade, tanto no terreno do desenvolvimento econômico como no do bem-estar social. É, portanto, uma tarefa a ser empreendida sem imediatismos nem facciosismos de qualquer natureza, com a consciência de que, em última análise, é o futuro do País que está em jogo.

  • 60. Por isso entendo, Senhor Presidente - e sei que assim também entende Vossa Excelência-, que ao encaminhar suas sugestões ao Congresso Revisional este Governo não deve ater-se ao horizonte de sua própria duração, nem à do próximo Governo, tanto no que diz respeito à estabilização da economia quanto aos problemas político-eleitorais e partidários.

  • 61. Nesse espírito, encaminhei ao Ministro da Justiça, que foi designado por Vossa Excelência para coordenar as propostas de mudança constitucional a serem defendidas pelo Governo, um conjunto de emendas atinentes à área econômica.

  • 62. Não obstante, desejo expressar a Vossa Excelência as linhas de alteração que proponho e que me parecem indispensáveis para que o Brasil encontre um rumo na consolidação de uma sociedade democrática e de bem-estar social. Para este efeito, agrupei-as sob seis rubricas, que passo a comentar a seguir: a) federalismo fiscal; b) realismo orçamentário; e) reforma tributária; d) reforma administrativa; e) modernização da economia; f) Previdência.

Federalismo fiscal

  • 63. A Constituição de 1988 aumentou de forma significativa, através dos Fundos de Participação, a fatia dos Estados e Municípios no bolo tributário nacional. Mas o fez sem qualquer contrapartida de esforço tributário próprio ou estabelecimento de padrões mínimos de atendimento a demandas sociais prioritárias. Ao mesmo tempo, preservou integralmente os encargos do Governo federal nas mais diferentes esferas de atuação, sem, contudo, dotá-lo dos recursos necessários para seu financiamento. A receita que antes era arrecadada para tal finalidade foi transferida, a partir da entrada em vigor da nova Carta, para as diferentes unidades da Federação.

  • 64. A volta ao centralismo tributário anterior está fora de cogitação. O que se impõe, isto sim, é aprofundar a opção dos constituintes pela descentralização. Ao invés de reconcentrar os recursos e o poder discricionário de distribuí-los, equilibrar recursos e atribuições, reservando à União a coordenação e as ações de caráter nitidamente nacional e remetendo aos Estados e Municípios a execução dos serviços de interesse local. É esta a orientação geral das emendas propostas aqui. Cabe destacar algumas de suas implicações.

  • 65. A União se desvincula claramente da execução das políticas locais ligadas ao desenvolvimento urbano (habitação, saneamento, transporte coletivo). Mantém apenas a responsabilidade pelo fomento às ações dos Estados e Municípios nessas áreas, com a capacidade implícita de promover padrões de eficiência e economicidade para os serviços.

  • 66. Nas áreas de saúde e assistência social, cabe consolidar a orientação descentralizante do Sistema Único de Saúde e da Lei Orgânica Social, recém-sancionada. Aqui, também, a execução dos serviços fica com os Estados e Municípios, deixando ao Governo Federal funções de cooperação técnica e financeira, segundo critérios objetivos a serem definidos em lei.

  • 67. Na área de educação, o avanço da descentralização impõe que se prepare o terreno para a progressiva transferência das instituições federais de ensino superior à órbita dos Estados. Estes ficam também - como em grande parte já acontece - com a responsabilidade principal pelo ensino médio, mantendo-se o ensino pré-escolar com os Municípios e cabendo à União funções de coordenação e fomento, através do repasse criterioso de recursos às outras esferas de governo.

  • 68. Por fim, a responsabilidade pelo planejamento e promoção das ações de defesa civil, antes reservada privativamente à União, passa à esfera de competência comum da União, Estados e Municípios. Na prática tal atribuição já vinha sendo assumida pelas demais esferas de governo, pela frequente exigência de mobilização emergencial de recursos.

Realismo orçamentário

  • 69. O principal problema a enfrentar nesta matéria é o do engessamento do gasto público, já caracterizado mais acima e ilustrado pelo gráfico que demonstra a redução da margem de recursos “livres” no Orçamento da União.

  • 70. Como é do conhecimento de Vossa Excelência, a Constituição de 1988, além de reforçar os Fundos de Participação dos Estados e Municípios, garantindo-lhes uma parcela ampliada da arrecadação dos impostos federais, criou uma série de outros fundos e incentivos fiscais. E determinou ainda que 18 por cento da receita de impostos fosse alocada à educação, bem como vinculou a receita das contribuições à Seguridade Social.

  • 71. Tal rigidez na alocação prévia de recursos, associada às pressões crescentes sobre a receita fiscal por conta da contínua ampliação dos benefícios previdenciários, do acesso à saúde pública e da folha de salários dos servidores ativos e inativos, praticamente esterilizou o Orçamento anual como instrumento do exercício de políticas públicas.

  • 72. É preciso reduzir todas essas vinculações a um nível compatível com a boa gestão dos recursos. As propostas que estou submetendo a Vossa Excelência nesta matéria buscam viabilizar a transição para um regime de maior flexibilidade orçamentária dentro da seguinte linha:

  • a) Eliminam-se das disposições permanentes da Constituição todas as vinculações estabelecidas, exceto para Estados e Municípios.

  • b) Atribui-se ao Congresso, através de lei complementar, competência para estabelecer vinculações de receita, mas sempre por prazo determinado.

  • c) Em disposição transitória, mantêm-se em vigor as vinculações constitucionais hoje existentes por um período de cinco anos.

  • 73. Desta forma, atende-se ao objetivo de desengessar o gasto público, sem por outro lado ameaçar a continuidade do fluxo de recursos para setores essenciais, como educação, e dando ao Executivo, ao Congresso e aos setores interessados um prazo razoável de adaptação à nova regra.

  • 74. Outra ordem de proposições, Senhor Presidente, diz respeito ao processo de elaboração do Orçamento. Uma boa gestão orçamentária requer não só a ampliação dos recursos “livres”, mas transparência no processo decisório da sua alocação. A CPI ora em curso está desnudando um problema grave de base. Existe um sistema de interesses político­regionais, sociais e econômicos que se aninhou numa forma arcaica de distribuição do gasto público. Tal sistema precisa ser quebrado para permitir a democratização e a melhoria social do Brasil.

  • 75. Cabe ressaltar que para mudar o padrão vigente de gestão orçamentária não basta mudar a Constituição. Em alguns casos, sequer é necessário. É preciso que as práticas administrativas sejam modificadas. Sei da disposição de Vossa Excelência para realizar reformas nesse sentido. Eu as aplaudo.

Reforma tributária

  • 76. Há consenso na sociedade sobre a direção das mudanças desejadas em matéria tributária: simplificação do sistema, através da diminuição do número de tributos (impostos, taxas e contribuições); ampliação da base de arrecadação e das formas automáticas de recolhimento; aumento da progressividade e, dentro do possível, diminuição de alíquotas.

  • 77. É fácil definir objetivos. Dificil é construir o sistema tributário capaz de alcançá-los, principalmente quando ele tem que ser definido em detalhe no texto da Constituição, exigindo quórum especial para qualquer correção ulterior. Por isso, considero que o Governo de Vossa Excelência deve se empenhar, antes de tudo, em favor de modificações que assegurem maior flexibilidade à definição do sistema tributário. O ideal seria tirá-lo da Constituição, mantendo ali somente os princípios gerais e tratando os detalhes em nível de lei complementar (como aliás acontece no resto do mundo, incluindo a totalidade dos países dotados de sistemas tributários eficazes e estáveis). Estou apresentando sugestão de emenda neste sentido.

  • 78. Se, entretanto, tal grau de flexibilidade não encontrar acolhida no Congresso Nacional, recomendo que o Governo apoie algumas das propostas já em curso no Legislativo que consagram os objetivos acima indicados. Isto não quer dizer, Senhor Presidente, que devamos abster­nos da discussão. Além da emenda referida acima, encaminhei outras ao Ministro da Justiça que tocam em pontos específicos do capítulo tributário, com a preocupação básica de preservar a capacidade de arrecadação da União no processo da transição para um novo sistema tributário. Destaco entre elas:

  • a) explicação da incidência de contribuição social sobre a receita das instituições financeiras;

  • b) criação a título permanente, a partir do término da vigência do IPM, de imposto sobre movimentações financeiras com caráter de antecipação do imposto de renda e imposto de renda mínimo;

  • c) criação de imposto especial sobre energia elétrica, combustíveis e lubrificantes, minerais e serviços de transportes e de comunicações;

  • d) flexibilização das condições para o exercício da competência residual da União em matéria tributária e para a instituição de empréstimo compulsório.

  • 79. Destaco ainda as propostas que aperfeiçoam o combate à sonegação. Sem chegar ao extremo de dizer que basta esse combate para a solução do problema tributário brasileiro, nossa experiência recente mostra que é possível aumentar sensivelmente a arrecadação combatendo-se a evasão fiscal. O que se requer neste terreno é um equilíbrio razoável entre direitos e obrigações, respeitando a privacidade do contribuinte sem negar à administração tributária os instrumentos necessários ao desempenho da sua função arrecadadora.

  • 80. Quer por meio de lei complementar, quer através de emendas constitucionais, parece-me fundamental que as mudanças no sistema tributário sejam introduzidas progressivamente. Experientes funcionários da Receita Federal recordam que “imposto bom é imposto antigo”. Descontando-se o conservadorismo que a frase possa implicar, ela serve de alerta para os prejuízos que eventuais erros de orientação ou de dosagem nas mudanças pretendidas poderiam acarretar para o Tesouro e para o País.

  • 81. Recomenda a prudência, em função disso, que o novo sistema seja implantado à medida que seus resultados venham a ser comprovados. Existem no Congresso propostas neste sentido que permitirão uma melhoria progressiva no perfil da arrecadação, garantindo-se, ao mesmo tempo, a carga tributária necessária para o Estado fazer face às demandas sociais que pesam sobre ele. Tudo isso, é claro, sem sobrecarregar o contribuinte injustamente e até inutilmente, pois ele reage aumentando as várias formas de evasão.

Reforma administrativa

  • 82. Outro nó constitucional que a Revisão deve desatar é o das regras relativas à Administração Pública, especialmente à gestão do pessoal. A Constituição de 1988 estabeleceu normas que agravaram o peso da burocracia, dificultando a melhoria da qualidade das carreiras do funcionalismo e privando o Governo de alternativas para definir prioridades em sua política de pessoal e para remunerar melhor a todos, em vez de manter pequenos núcleos privilegiados.

  • 83. O Ministro-Chefe da Secretaria da Administração Federal está encaminhando as emendas pertinentes a sua área de atuação, para reverter este estado de coisas. Não obstante, permito-me oferecer sugestões sobre aquilo que, a meu ver, constitui o mínimo necessário para tornar administrável a pressão dos gastos de pessoal sobre o Orçamento.

  • 84. Quanto à estabilidade, propõe-se uma fórmula que busca preservar a garantia de emprego do servidor público e, ao mesmo tempo, evitar que “estável” seja tomado como sinônimo de “indemissível”. Procurou-se também dar à administração maior flexibilidade na alocação de seus recursos humanos, para que ela seja capaz de otimizá-los dentro da variabilidade de condições da vida social e econômica do País.

  • 85. Houve a preocupação de desvincular o repasse automático aos inativos de qualquer alteração na forma de remuneração dos servidores em atividade, oferecendo-se como contrapartida a garantia da manutenção do poder real de compra dos proventos da inatividade.

  • 86. Dentre os privilégios a serem eliminados está a acumulação de aposentadorias e destas com vencimentos.

  • 87. Finalmente, buscou-se caracterizar de forma precisa o que seja isonomia entre servidores públicos, já que a amplitude do conceito, tal como expresso na Carta de 1988, termina por igualar desiguais e multiplicar as pressões no sentido da expansão da folha de salários.

Modernização da economia

  • 88. Há, ainda, duas áreas ligadas ao Ministério da Fazenda, sobre as quais desejo expressar a Vossa Excelência meu pensamento: monopólios estatais e reservas do mercado.

  • 89. Nos dias de hoje, há duas forças dinamizadoras na economia de um país: de um lado, o mercado; de outro, o interesse público assegurado pela ação democrática do Governo e da própria sociedade.

  • 90. Vão longe os dias em que o Estado - como ainda o faz em diversos setores - tinha que monopolizar as atividades produtivas para criá-las e controlá-las, a fim de assegurar as condições do crescimento econômico. No mundo inteiro, governos de diferentes orientações ideológicas têm encontrado na privatização uma alternativa para aliviar o peso da máquina estatal e aumentar a eficiência de gestão das empresas, aumentando seu potencial de crescimento.

  • 91. No caso do Brasil, a privatização tem um papel-chave no esforço de estabilização da economia. A alienação das participações acionárias hoje detidas, direta ou indiretamente, pelo Tesouro Nacional contribui para restabelecer o equilíbrio das finanças públicas. As medidas que vêm sendo adotadas pelo Governo de Vossa Excelência com vistas ao aperfeiçoamento do Programa Nacional de Desestatização reconhecem, no mais amplo grau, todos os endividamentos de responsabilidade do Tesouro e possibilitam sua quitação através da opção voluntária dos credores pela aquisição de ativos detidos pelo setor público federal.

  • 92. Além de contribuir para a redução do peso do endividamento atual, a privatização concorre para a estabilização ao estancar a necessidade de aportes do Tesouro em atividades que podem ser exercidas pelo setor privado.

  • 93. De igual modo, se no passado o capital estrangeiro, ou não dinamizava as economias nacionais, ou operava através de trustes, hoje, com a internacionalização do sistema produtivo e, simultaneamente, com o fortalecimento das sociedades e da capacidade reguladora dos governos para assegurar o interesse público nacional, perde sentido o temor das consequências negativas do capital estrangeiro. Este temor se consubstancia na diferenciação legal entre capital estrangeiro e nacional e na restrição ao acesso do capital estrangeiro à economia nacional.

  • 94. Por certo, existem áreas de interesse estratégico a serem preservadas: as de fronteira, por exemplo, ou mesmo o controle da produção de insumos estratégicos.

  • 95. Entretanto, a meu ver, devem ser revistas tanto a noção de que monopólio estatal é o equivalente a interesse público quanto a de que o capital estrangeiro deva distinguir-se do nacional além dos limites razoáveis prevalecentes em qualquer país independente. Limites que impõem, por exemplo, reciprocidade nas normas de tratamento das empresas e investidores.

  • 96. Não estou propondo a quebra do monopólio estatal do petróleo. Mas há condições para que se flexibilize a execução desse monopólio em benefício do País e da própria Petrobrás. Estou propondo emenda neste sentido.

  • 97. Com o mesmo espírito, acredito que na área de telecomunicações, preservando-se o controle estatal de setores estratégicos, como os serviços interurbanos, e fortalecendo-se a capacidade reguladora do poder público sobre os concessionários, não há por que impedir a atuação dos capitais privados. De resto, é importante notar que na prática já houve uma “privatização cega” das telecomunicações. Hoje o Tesouro detém apenas 17,5 por cento das ações da Telebrás (incluindo a maioria das ordinárias).

  • O resto do patrimônio foi vendido em bolsa, nem sempre de acordo com seu valorou com uma política de longo prazo de valorização das ações.

  • 98. Melhor, neste caso, redefinir regras, quebrando-se o monopólio, mantendo-se não obstante o controle estatal dos núcleos vitais do sistema de telecomunicações do que aferrarmo-nos ideologicamente à ideia abstrata de monopólio que, nestes termos, passa a atender apenas aos interesses corporativistas de funcionários e políticos, servindo de guarda-chuva para as empresas privadas que se acoplam a este falso monopólio estatal.

  • 99. Por outro lado, sobram razões para que os serviços locais de gás canalizado possam ser explorados sob regime de concessão a empresas estatais ou privadas.

  • 100. Ainda nesta matéria, defendo a eliminação das restrições ao capital estrangeiro na exploração do subsolo e das fontes de energia hidráulica. Também aqui o fundamental, para que se resguarde o interesse nacional e popular, é reforçar o poder regulador do Estado neste tipo de exploração, feito por empresas estatais ou privadas, nacionais ou estrangeiras. É esta a noção moderna de soberania que está faltando: Governo e sociedade atentos organizadamente ao desempenho das empresas que exploram áreas essenciais para o desenvolvimento do País e para o bem-estar coletivo.

Previdência

  • 101. O sistema previdenciário proposto na Carta de 1988, baseado na aposentadoria por tempo de serviço e na ampla concessão de aposentadorias especiais, não tem qualquer viabilidade econômica. Trata-se de obra de ficção social. É imperiosa sua substituição por um sistema misto, que combine idade e tempo de serviço, com a eliminação das aposentadorias especiais, e a criação de um mecanismo factível de financiamento.

  • 102. Sobre o assunto, o Ministro da Previdência está encaminhando sugestões à Revisão Constitucional que foram discutidas com os técnicos do Ministério da Fazenda e que contam com o nosso endosso:

  • a) retirar da Constituição a garantia de aposentadoria por tempo de serviço, estabelecendo em disposição transitória regra de transição que combine os critérios de tempo de serviço e idade, protegendo direitos adquiridos;

  • b) fixar teto para a universalização dos benefícios da Previdência estatal, de maneira compatível com o autofinanciamento do sistema a longo prazo;

  • c) instituir Previdência complementar facultativa, pública e privada;

  • d) igualar a sistemática de aposentadoria dos servidores públicos à dos demais trabalhadores.

  • 103. O Ministro do Trabalho também elaborou propostas sobre o FGTS e o contrato coletivo de trabalho que me parecem condizentes com o desenvolvimento da sociedade brasileira.

  • 104. Enfim, Senhor Presidente, entendo que a Revisão Constitucional é a oportunidade que se apresenta ao País para responder a questões fundamentais: para permitir que tenhamos uma economia capaz de crescer equilibradamente e com competitividade no contexto internacional; para que a ação social do Governo possa ser eficaz no combate à fome e à miséria; para que o Estado seja mais eficiente e adequado aos desafios da sociedade; para que o povo goze de maior bem-estar, vivendo em uma democracia capaz de decidir com presteza que não abrigue, como hoje, tantas injustiças. Tudo isso com forte sentido de responsabilidade pública e, portanto, regido por normas éticas de conduta.

  • 105. É este o espírito do Governo de Vossa Excelência, ao qual me orgulho de servir.

IV. REFORMA MONETÁRIA

  • 106. Diagnosticadas as causas da crise fiscal brasileira e propostas suas soluções emergenciais e permanentes, através do novo Orçamento de 1994, da Emenda de Estabilização e das proposições para a Revisão Constitucional, cabe-me submeter a Vossa Excelência minha proposta do que deverão ser os passos subsequentes para a tão esperada e necessária estabilização da economia.

  • 107. Toda a sociedade anseia pelo fim da inflação e espera que o Governo faça alguma coisa para atingi-lo o mais rápido que puder. Talvez nada deixasse a população mais satisfeita do que se fosse imposto agora um congelamento de preços ou outra forma de intervenção direta na economia. Já experimentamos, no passado recente, o que é conviver com a estabilidade alcançada desta forma. Mas todos experimentamos, igualmente, a frustração da vida curta que os efeitos daqueles mecanismos têm.

  • 108. Tenho dito sem cansar, correndo o risco de, por repeti-lo muitas vezes, perder a atenção dos que me ouvem: sem o ajuste fiscal e a reorganização definitiva das contas públicas, qualquer esforço de combate à inflação terá curta duração e estará fadado ao fracasso.

  • 109. O Ministério da Fazenda avaliou ser inviável a alternativa, por exemplo, da prefixação, tanto por poder provocar graves distorções de preços relativos, o que acarretaria maior pressão inflacionária no futuro, quanto por ter um impacto pouco significativo na queda da inflação, embutindo altos custos e riscos, com expectativa de resultados medíocres. Seria, mais uma vez, ceder à tentação imediatista.

  • 110. O êxito de qualquer programa de estabilização exige, desde o primeiro momento, alto grau de credibilidade por parte dos agentes formadores de preços e da população. Esta meta o Governo de Vossa Excelência está alcançando aos poucos, sem precipitações, atuando sobre os fundamentos do problema inflacionário. Não podemos, portanto, comprometê-la com ações imediatistas de resultados pouco duradouros.

  • 111. Não é viável, também, eliminar a indexação por antecipação à estabilidade dos preços. Desindexar sem ter condições de garantir preços estáveis retira a única proteção de que a economia dispõe para conviver com a inflação. Corre-se o risco de desorganizar fundamental e definitivamente a atividade econômica.

  • 112. A agenda da estabilização requer trabalho e tempo. Não é tarefa da noite para o dia. É um processe, uma sequência de ações que se desenrolam ordenadamente na direção desejada. E, mais do que um programa de Governo, tem que ser um programa da Nação.

Indexador contemporâneo

  • 113. A restauração da racionalidade e do equilíbrio fiscal levará à redução das expectativas de inflação futura decorrentes da percepção, por parte dos agentes econômicos, da desorganização das finanças públicas.

  • 114. Sabemos, contudo, que em algum momento ao longo desse processo devem ser tomadas medidas para reduzir a influência da inflação passada sobre a inflação corrente. Toda indexação é retro-alimentadora quando corrige os preços de hoje de acordo com a inflação observada em algum período anterior. A indexação que corrige os preços de hoje pela inflação passada estabelece a inflação de ontem como ponto de partida para a inflação de hoje. Ainda que venham a ser eliminadas as causas fundamentais das pressões altistas sobre os preços, a inflação se manterá alta hoje porque foi alta ontem.

  • 115. É, portanto, desejável e possível reduzir a memória que a indexação introduz no processo inflacionário. Para isso, propomos a adoção de uma unidade de referência cujo valor nominal ou monetário será corrigido em intervalos mais curtos.

  • 116. Uma unidade de referência cujo valor nominal é corrigido em intervalos mais curtos de tempo e com base na melhor estimativa da inflação corrente expressa os valores de maneira condizente com a realidade. A indexação tradicional, em contraste, torna-se crescentemente incapaz de garantir o valor real dos contratos à medida que recrudesce o processo inflacionário, como bem o sabemos pela nossa própria experiência. Outra vantagem importante de um indexador contemporâneo está em reduzir as distorções no sistema de preços relativos. Ao promover um padrão estável de valor, o indexador contemporâneo permite que as decisões econômicas de compra e venda, poupança, consumo e investimento tornem-se mais racionais e eficazes.

  • 117. Uma economia que adote uma indexação mais contemporânea, ou seja, com menor peso para a inflação passada e maior para a inflação corrente, opõe menos resistência à queda rápida da inflação. E, contudo, também muito mais suscetível à rápida aceleração dos preços se pressões altistas ainda estiverem presentes ou vierem a aparecer.

  • 118. Por esta razão, a adoção generalizada de uma unidade de referência baseada na inflação corrente deve ser subordinada ao avanço significativo da reorganização fiscal. O uso generalizado de uma indexação mais instantânea antes da garantia do equilíbrio fiscal sustentado significa ampliar o risco de uma rápida aceleração dos preços diante de qualquer choque adverso. Do mesmo modo, a manutenção de uma política monetária rígida será imperativa nesta transição, até que o equilíbrio fiscal sustentável seja obtido.

  • 119. A adoção da unidade de referência corrigida pela inflação corrente deverá, por conseguinte, estar subordinada à convicção de que o processo de reorganização fiscal está suficientemente avançado para ser percebido como irreversível. Esta é a garantia de que o Governo não precisará mais emitir moeda ou quase-moeda para financiar o seu déficit.

  • 120. Porque estaremos avançando firmemente neste processo, uma vez aprovada a Emenda de Estabilização e o novo Orçamento para 1994, em breve será criada uma nova unidade de referência, denominada Unidade Real de Valor (URV).

A Unidade Real de Valor

  • 121. A URV terá seu valor em cruzeiros reais anunciado diariamente pelo Banco Central. Para tal este utilizará sua melhor estimativa da inflação corrente, da mesma forma que o faz para balizar sua atuação no mercado de câmbio, de forma a manter estável o valor das divisas estrangeiras com relação a mercadorias no Brasil. Assim como essa política em relação à taxa de câmbio tem contribuído para o sucesso do comércio exterior ao longo dos últimos anos, a disseminação da URV nos outros setores da economia através de uma regra de manutenção do seu valor real deverá, seguramente, reduzir o grau de incerteza dos preços relativos num ambiente ainda inflacionário e preparar o caminho para a estabilização definitiva dos preços.

  • 122. A utilização da URV deverá ocorrer de forma espontânea e, portanto, será um processo gradual. Não deverá haver compulsoriedade de seu uso no setor privado. Proceder-se-á, contudo, a uma adaptação das normas legais para permitir a livre contratação em URV, oferecendo-se à sociedade uma régua confiável para se medirem valores. A superioridade da URV sobre os sistemas alternativos de indexação hoje existentes deverá levar à generalização de seu uso, de forma natural, nos contratos privados.

  • 123. O mesmo processo gradual deverá caracterizar a utilização da URV por parte do Governo em suas relações com a sociedade, inclusive no que diz respeito às tarifas públicas. Como primeiro passo, a URV será utilizada para atualizar o valor da receita fiscal, como forma de garantir o compromisso do Governo com a manutenção de seu valor real. A credibilidade da URV é de importância crucial para sua aceitação e para que possa desempenhar adequadamente seu papel de unidade de conta, capaz de reduzir as distorções que a desordem inflacionária cria no sistema de preços.

  • 124. O compromisso do Governo em atualizar a receita fiscal pela URV, bem como a ligação desta com as políticas cambial e monetária, revela com muita clareza que o Governo não se dispõe a patrocinar artificialismos na fixação da URV. A arrecadação de impostos, cuja importância este programa enfatiza a cada linha, estará indexada à URV, sendo, dessa forma, evidente que o Governo corrigirá sempre a URV de forma adequada.

  • 125. O mesmo vale para as reservas internacionais, que representam a acumulação de esforços de muitos anos para afastar o risco de crises cambiais e garantir a independência das políticas monetária e cambial. Esse esforço de modo algum poderá ser desperdiçado mediante manipulações na URV. Tanto que o Banco Central se disporá a vender dólares no mercado de câmbio de taxas livres de acordo com a cotação da URV.

  • 126. Em resumo, ao associar à nova unidade de conta suas receitas fiscais e suas políticas monetária e cambial, o Governo entende oferecer sólidas garantias de que não haverá distorções e que a escala de medição de valores reais que a nova URV oferece veio para ficar.

  • 127. Sem prejuízo dos títulos em circulação referidos aos indexadores hoje existentes, o Tesouro Nacional deverá ser autorizado a emitir títulos da dívida em URV. O objetivo é que os títulos em URV venham a substituir em grande parte, de forma gradual e voluntária, os títulos públicos hoje existentes. A credibilidade da URV e a percepção de sua superioridade como unidade de valor real estável deverão contribuir para a redução dos juros e dos custos de financiamento da dívida, cujos níveis elevados hoje decorrem do estado de desordem das contas públicas.

  • 128. A adoção da URV será, portanto, mais uma etapa do processo de estabilização que vimos trilhando. A velocidade de sua implantação estará condicionada ao progressivo avanço da reorganização fiscal pelas razões que foram expostas anteriormente. Os diversos passos poderão ser antecipados na medida do consenso político e da aceitação pela sociedade.

A nova moeda

  • 129. Olhando mais à frente, o objetivo final do processo de estabilização é dotar a economia de uma moeda forte e de poder aquisitivo estável. Com o processo de reorganização fiscal avançado, ter-se-á a garantia de que o Governo não precisará recorrer à emissão de moeda ou quase-moeda de qualquer espécie para se financiar. Neste momento, convertidos os contratos na URV de forma generalizada, estando asseguradas as condições necessárias, será feita uma reforma monetária para introduzir uma moeda forte e estável.

  • 130. É preciso observar que não se cogita da adoção de nenhum padrão monetário estrangeiro nas linhas do que se convencionou chamar de “dolarização”. Desde o início da história das nações, a moeda nacional é uma das mais importantes expressões de soberania. Buscamos, sim, a recuperação da verdadeira moeda nacional. A moeda com que ora convivemos, bem sabe Vossa Excelência, já não exerce integralmente as sua funções. Foi corroída ao longo de muitas décadas de um virulento processo inflacionário.

  • 131. Vale repetir: a moeda degradada que hoje temos está intimamente ligada ao apartheid social que vivemos no País. É uma moeda para o pobre, que não tem como se defender da inflação. A moeda do rico é a moeda indexada, que o isola do processo inflacionário e chancela transferências de renda em favor deste grupo. A moeda forte que este programa procurará introduzir eliminará essa dualidade e será um passo essencial para a construção de uma nação próspera e justa.

  • 132. A nova moeda a ser criada representa uma conquista em favor do fortalecimento da soberania do País e um passo adiante na direção de uma economia moderna, competitiva e socialmente mais justa, respaldada em instituições independentes e respeitadas. O porte da economia brasileira requer soluções nacionais, sem reprodução de modelos ou experimentos de outros países.

  • 133. Como temos tido oportunidade de reiteradamente afirmar à Nação, neste processo não haverá quebra de contratos, confiscos, tablitas, redutores, nem haverá coexistência de duas moedas. Estaremos instaurando em primeiro lugar um processo gradual e natural de utilização facultativa e livre de uma unidade de conta superior aos indexadores hoje existentes. Recupera-se, assim, uma propriedade perdida da moeda, para num segundo momento, com o equilíbrio fiscal assegurado, transformar a URV na moeda nacional, atribuindo-lhe a propriedade de meio de pagamento.

  • 134. Após anos de deterioração da gestão de um padrão monetário, é necessária uma reorganização institucional que favoreça a disciplina fiscal e monetária. Apenas instituições monetárias protegidas de pressões serão capazes de permitir a recuperação da confiança perdida na moeda. Mais ainda, só um Banco Central isolado de influências é capaz de assegurar o compromisso do Governo da União com a disciplina fiscal, reforçando definitivamente a credibilidade necessária para o sucesso do programa de estabilização.

  • 135. Assim como a reorganização fiscal, a confiança na moeda só poderá ser alcançada através de um processo de reeducação, tanto do público quanto das autoridades. O necessário debate em torno do desenho das instituições monetárias deve ser parte fundamental desse processo e pretendemos estimulá-lo.

  • 136. Uma instituição monetária autônoma, com o objetivo bem determinado de garantir a estabilidade, é, por esta razão, imprescindível para uma economia que pretende ser competitiva e socialmente mais justa. Ela é peça fundamental do processo de reorganização do Estado, necessária ao saneamento completo das finanças públicas, sem o qual não se reencontrará o caminho do crescimento sustentado, do emprego e da melhor distribuição de renda e riqueza.

  • 137. Infelizmente não há atalhos. A estabilização definitiva é um programa de transformação de mentalidade que toma tempo e requer coerência e persistência de todos. A ansiedade por resultados imediatos é compreensível, mas altamente perigosa, como a própria experiência brasileira tem demonstrado. É justamente o imediatismo que impede que o caminho mais longo da estabilização seja trilhado com a coerência e persistência necessárias.

  • 138. O programa que estou propondo a Vossa Excelência para que seja levado à Nação, na sequência das ações que vimos perseguindo desde o Programa de Ação Imediata, não abrandará talvez a ansiedade daqueles que continuam a demandar resultados imediatos e contundentes, a despeito da precariedade de soluções mágicas que, ademais, reiteradamente temos descartado. Não obstante, é justa e, mais do que isso, imperativa a ansiedade da população por posturas firmes do Governo no combate à inflação.

  • 139. Tenho, contudo, certeza de que este programa, porque ataca frontalmente os seus fundamentos e progressivamente constrói a transição que apontamos no processo de estabilização, assegura que a inflação estará sob controle e irá se reduzir consistentemente na direção da moeda forte e estável que queremos.

  • 140. Ao submeter, portanto, a Vossa Excelência este conjunto de proposições, estou certo de poder consolidar os rumos que considero indispensáveis ao Governo e à sociedade brasileira para atingir a estabilidade econômica que todos perseguimos e que é essencial para assegurar o crescimento sustentado, requisito básico para a construção de uma sociedade justa para todos, como é o objetivo do Governo de Vossa Excelência.

Respeitosamente,

Fernando Henrique Cardoso

Ministro de Estado da Fazenda

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1994
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