Open-access Modernidade e discurso econômico: ainda sobre McCloskey*

Modernity and economic discourse: still on McCloskey

RESUMO

Este artigo é parte de um debate sobre retórica em economia que começou com a publicação dos trabalhos de McCloskey e se espalhou pelo Brasil. Um artigo meu, escrito em 1992, produziu uma intensa polêmica que apareceu na íntegra no livro editado por Rego (Retórica na Economia, São Paulo, editora 34, 1996). No presente trabalho, tento responder aos críticos à minha posição, confrontando as nomeações de McCloskey com as do pragmatismo de Rorthy e considerando, por outro lado, os diferentes significados desenvolvidos no uso do termo “retórico” por McCloskey.

PALAVRAS-CHAVE: Retórica; metodologia da economia; McCloskey

ABSTRACT

This paper is part of a debate on rhetoric in economics that has begun with the publication of the works of McCloskey and spilled over to Brazil. A paper of mine, written in 1992, produced an intense polemics that appeared in its entirety in the book edited by Rego (Retórica na Economia, São Paulo, editora 34, 1996). In the present work I trie to answer the critics to my position confronting the appointments of McCloskey with those of Rorthy’s pragmatism and considering, on the other hand, the different meanings evolving in McCloskey’s use of the term “rhetoric”.

KEYWORDS: Rhetoric; economic methodology; McCloskey

Um artigo que escrevi sobre os trabalhos originais de D. McCloskey sobre retórica na economia (1983, 1985) gerou intensa polêmica, a qual acabou por aparecer por inteiro no livro organizado por José Mareio Rego sobre o tema (Retórica na economia, São Paulo, Editora 34, 1996). Pretendia ali situar filosoficamente tais ideias e, deixando de lado sua sabida filiação ao pragmatismo americano, cujo principal expoente é hoje Richard Rorty, tentei mostrar como, à primeira vista, poder-se-ia vinculá-las ao desconstrucionismo francês, particularmente aquele de J. Derrida. Depois de alguns desdobramentos, mostro que efetivamente não é simples demonstrar tal enquadramento, nem nessa moldura nem em muitas ou­tras. Se não se pode facilmente tomá-lo por um operário da desconstrução, tampouco é simples considerá-lo um “pós-moderno conservador” (só se mantêm em vigor as consequências do Iluminismo, não mais suas premissas), ou um crítico do positivismo em ciências sociais, ou um anarquista metodológico ou, ainda, um signatário da simpática Sprachethik de Habermas.

O incômodo de meus críticos tem dupla natureza: de um lado, a não consideração do neopragmatismo enquanto o lugar adequado para situar as ideias de McCloskey (posição de Rego); de outro, a aparente contradição em que me envolvo, pois, mantendo desde sempre uma postura crítica com relação à ciência econômica convencional, em especial aquela de extração neoclássica, deveria aplaudir McCloskey ao invés de criticá-lo (posição de Fernández)1. Tomemos cada uma delas separadamente.

I.

Realizando um pequeno périplo pela história da matemática, Rego chega a Perelman e finalmente ao neopragmatismo que teria influenciado as ideias de McCloskey. Conclui, então: “A nosso juízo, o equívoco de Paulani está não em recorrer a Habermas mas em optar por analisar o desconstrutivismo ao invés do pragmatismo como influenciador dos trabalhos de McCloskey sobre retórica na economia” (1996: 136). Afirma ainda que, se o caso era usar Habermas, melhor teria sido utilizar, por exemplo, Conhecimento e interesse ou Consciência moral e agir comunicativo e não o Discurso filosófico da modernidade, visto que os primeiros me levariam ao pragmatismo e a Rorty.

Sinceramente simpático a McCloskey, Rego assevera que não tenho razão quando afirmo ser muito difícil colocar McCloskey como defensor de Habermas e, para sustentar sua posição, apela a um argumento de autoridade (extremamente sedutor, não nego). Lembra assim do filósofo Bento Prado Júnior que proclama: “a polêmica de McCloskey não é meramente destrutiva ou negativa, nem se limita a opor a boa filosofia contemporânea a uma epistemologia arcaica[...] A análise lógica dos sistemas teóricos morreu: viva a retórica! Ali onde o projeto universalista de ciência unificada naufragou, nasceu uma nova disciplina universal, em muito semelhante à pragmática universal de Habermas” (1996: 137).

Para não dizerem que não apoio e pratico a Sprachethik (quem, aliás, com um mínimo de comportamento ético não o faria? Nesse particular, não vejo como fugir de Kant) devo realmente confessar que, quando da redação do referido ensaio, e dadas as enfáticas proposições mccloskeyanas, principalmente no artigo de 1983, não pude deixar de ver uma enorme semelhança com Derrida e acabei me afastando de uma análise do pragmatismo, o que poderia, segundo Rego, ter mudado meu diagnóstico. Posso estar enganada, mas ao que eu saiba Rorty, ao contrário de Derrida, nunca disse que “ciência é literatura” (até porque a ideia de representação não está completamente ausente desta última). Acredito, entretanto, que, atirando no que vi, acertei no que não vi, como procurarei demonstrar no que se segue.

Efetivamente, meu incômodo em relação à postura de McCloskey era (e é) muito bem localizado: a despreocupada leviandade com que ele proclama suas convicções levam-no não a uma crítica da ciência econômica que a desvende como ideologia (pois, se assim fosse, isso o obrigaria no mínimo a repensar sua posição enquanto teórico e adepto do paradigma neoclássico, coisa que ele não fez2), mas a uma política de arrasa-quarteirão, que não deixa pedra sobre pedra, política enfim que, tomada ao pé da letra, nos obrigaria a todos (não apenas os economistas mas todos os cientistas) a mudar de profissão.

Filosoficamente falando, trata-se, como tantas outras, de uma tentativa de fazer uma crítica radical da modernidade e de sua razão centrada no sujeito de onde provém, como se sabe, o privilégio que se concede à ciência como tribunal da verdade. Tal postura, porém, não é nova, nem original. Para retroceder só um pouco, é um resultado desse tipo, involuntário ou não, que Marx, em meados do século XIX, vai criticar em seus antigos companheiros da esquerda hegeliana nas páginas da Ideologia alemã. Como mostra Arantes (1996: 363-70), a glosa que faz Max Stirner dos supostos princípios da Revolução Francesa implica, porque considera as formações ideológicas como mera fraseologia (entusiasmo investido em ideias sem substância), uma negação indeterminada dos ideais civilizatórios. Direito, razão, liberdade seriam apenas palavras cuja nulidade deveria ser demonstrada. Marx, de seu lado, trata, em primeiro lugar, de recolocar as ideias em seu contexto de origem para retirar da crítica o viés que lhe era imposto graças ao atraso de então na formação social alemã. Pode então mostrar as formações ideológicas não como mera fraseologia (estatuto que adquirem precisamente porque transplantadas a um contexto inadequado), mas mostrá-las em sua relatividade, em sua impropriedade real mas não absoluta. Ao contrário da crítica de Stirner (e também de Feuerbach), a marxiana caminha no sentido de uma negação determinada.

Isto posto, poder-se-ia então fazer-me a crítica de que, como li equivocadamente McCloskey3 (ele não seria um operário da desconstrução mas um adepto do pragmatismo americano, na versão moderna de Rorty), torna-se impróprio aproximá­lo do ácido solvente de Derrida e da negação indeterminada que resulta de sua empreitada filosófica. Resta então testar a hipótese de que McCloskey enquadra­se sem grandes dificuldades no figurino de Rorty. Para tanto, é preciso, inicialmente, que vejamos, ainda que de modo sumário, em que consiste o projeto rortyano. Já na introdução de seu A filosofia e o espelho da natureza (Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994), Rorty deixa claro seu propósito: “O objetivo do livro é minar a confiança do leitor na ‘mente’ como algo sobre o qual se deveria ter uma visão ‘filosófica’, no ‘conhecimento’ como algo sobre o qual deveria haver uma ‘teoria’ e que tem ‘fundamentos’, e na ‘filosofia’ como esta foi concebida desde Kant” (1994: 22-23). Indica ainda explicitamente sua concepção deweyana de conhecimento (algo que estamos justificados em acreditar), sua concepção wittgensteiniana de linguagem (antes como instrumento do que como espelho) e sua concepção heideggeriana de filosofia (a abertura à estranheza que nos empurra a pensar).

Os resultados dessa postura são claros: a recusa da verdade objetiva como algo a priori, a verdade pragmática de todas as crenças. Recusar a pretensão sistematizante da filosofia e abandonar, por tabela, o discurso normal a ela acoplado seria, portanto, “abandonar as noções platônicas de verdade, realidade e bondade como entidades que podem não estar espelhadas nem mesmo tenuemente pelas atuais práticas e crenças e reverter ao ‘relativismo’ que supõe que nossas únicas noções úteis de ‘verdadeiro’, ‘real’ e ‘bem’ são extrapolações daquelas práticas e crenças” (1994: 370). Sendo assim, “a incomensurabilidade [das diversas “verdades”, e vocabulários] implica irredutibilidade mas não incompatibilidade[...]” (1994: 380, grifo meu). Em suma, ao que tudo indica, trata-se do resultado simetricamente oposto ao da negação indeterminada, ou seja, algo como uma “afirmação indeterminada”, uma espécie de “conciliação universal” (e redentora).

Qualquer dialética mediana, no entanto, permite perceber com que facilidade uma posição “passa” na outra: negar tudo ou afirmar tudo constituem atitudes “pragmaticamente” indistintas. O próprio Rorty, aliás, não esconde esse movimento. Ao fazer o elogio da “filosofia edificante” (para ele, fundamentalmente Dewey, o segundo Heidegger e o segundo Wittgenstein) por oposição ao que chama de “filosofia sistemática”, ele afirma: “Os grandes filósofos sistemáticos são construtivos e oferecem argumentos. Os grandes filósofos edificantes são reativos e oferecem sátiras, paródias e aforismos. [...] São intencionalmente periféricos. Os grandes filósofos sistemáticos, como os grandes cientistas, constroem para a eternidade. Os grandes filósofos edificantes destroem em benefício de sua própria geração”(1994: 363). Eis porque afirmei acima que, atirando no que vi acertei no que não vi. Em outras palavras, para meus propósitos no artigo original, e independentemente do acerto ou não da análise ali empreendida, não fez grande diferença, como hipótese inicial, tomar McCloskey por adepto de Derrida ao invés de Rorty.

Tais considerações permitem-me também responder a outra das críticas de Rego, a saber, que eu não teria razão em apontar a dificuldade de se tomar McCloskey como defensor de Habermas. Ora, se o pai intelectual de McCloskey é de fato Rorty, vejamos o que diz este último do projeto habermasiano: “Muito da filosofia recente -sob a égide de ‘fenomenologia’ ou de ‘hermenêutica’, ou ambas- tem brincado com essa infeliz ideia [de reunir a filosofia edificante e a filosofia sistemática]. Habermas e Apel, por exemplo, sugeriram modos pelos quais poderíamos criar um novo tipo de postura transcendental, capacitando-nos a fazer algo semelhante ao que Kant tentou fazer, mas sem descambar seja para o cientismo, seja para o historicismo. [....] Esses filósofos vêem a epistemologia tradicional como empenhada em ‘objetivizar’ os seres humanos, e anseiam por um tema sucedâneo à epistemologia que faça pela ‘reflexão’ o que a tradição fez pelo ‘conhecimento objetivante’. [...] Em meu ponto de vista, a tentativa de desenvolver uma ‘pragmática universal’ ou uma ‘hermenêutica transcendental’ é muito suspeita.[...] Tais tentativas começam por encarar a busca do conhecimento objetivo através do discurso normal do modo que sugeri que deveria ser encarado - como um elemento na edificação. Mas elas com frequência continuam rumo a afirmações mais ambiciosas. [...] A noção de que podemos circundar o realismo filosófico excessivamente confiante e as reduções positivistas apenas adotando algo como a postura transcendental de Kant parece-me o equívoco básico em programas como o de Habermas.” (1994: 372-5, grifos meu) Como se vê, pareço ter razão em minha desconfiança da possibilidade de se alinhar McCloskey a Habermas, pois, como indicado pelo próprio Rorty na sua forma oblíqua de dizer as coisas, o projeto habermasiano não implica uma política de arrasa-quarteirão, não está na linha da negação indeterminada. Pelo contrário, trata-se, para ele, de não jogar fora a criança junto com a água do banho, de fazer a crítica da razão objetiva, sem perder de vista os ideais civilizatórios (e universais por definição) que nasceram junto com a modernidade. Bem-sucedido ou não (não é aqui o caso de discutir), o movimento empreendido por Habermas caminha no sentido de uma negação determinada (e também, por consequência, no sentido de uma afirmação determinada) e, sendo assim, está ele em linha com Marx, mas não com Derrida, Heidegger ou Rorty.

Talvez não seja excessivo acrescentar que, certamente por isso, Apel (o “sócio” de Habermas) considera o pragmatismo rortyano como “subjetivamente progressista” mas “objetivamente regressivo”. Prado Jr., que é quem lembra a apreciação de Apel sobre Rorty, diz a esse respeito: “Acompanhando com simpatia [...] Rorty [...], não podemos acompanhá-lo no seu passo final, lá mesmo onde parece desviar­se da boa tradição da Aufkldrung sofística ou do radicalismo do liberalismo norte­americano original. A dificuldade parece ser a recusa, por Rorty, do valor pragmático da teoria social. [...] O que essa desqualificação da ‘teoria social’ deixa escapar, ou não percebe, por sob a diversidade local das formas políticas e culturais, é a unidade global dentro da qual elas estão combinadas, e as carrega todas num único movimento. [...] Trata-se de um fato - a economia globalizada ignora as fronteiras culturais e governa as diferentes Lebensformen - e para descobri-lo basta a leitura cotidiana dos jornais. [...] Um discípulo de Dewey não deveria abrir-se para essa dimensão da experiência contemporânea? Será que ler os jornais e refletir sobre o que eles contêm implica incorrer no pecado da regressão à metafísica? Tudo se passa como se Rorty tivesse que inflacionar a pretensão epistêmica da teoria social, para poder recusar-se a devolver ao liberalismo norte-americano seu radicalismo original.” (1994: 83-4, grifos do autor).

Espero com tudo isso ter deixado claro que, se houve de fato uma distração de minha parte pela não apreciação em meu texto do trabalho de Rorty, mantém-se, no entanto, em pé a natureza de minhas críticas à postura de McCloskey, seja pela convergência dos projetos desconstrucionista e neopragmático, seja pela impossibilidade de se alinhá-lo integralmente a Habermas (ou a Apel)4. Com relação ao primeiro ponto, aliás, cumpre registrar que, salvo engano, todas as vezes em que Rorty cita Derrida, o faz com simpatia. Coloca-o, ademais, como companheiro de Heidegger e dos demais “filósofos edificantes” na empreitada de desconstruir a tradição da filosofia sistemática (1994: 358 e 361) e lembra sua contribuição para a cruzada que deve, afinal, fazer-nos “abandonar a noção de correspondência com sentenças assim como com pensamentos, e ver as sentenças como conectadas antes com outras sentenças do que com o mundo” (1994: 365). Como se percebe, há aqui uma nítida diferença de postura vis-à-vis o espírito francamente crítico com que Rorty aprecia o projeto de uma pragmática universal ou de uma hermenêutica transcendental.5 Com relação ao último ponto (a impossibilidade de se alinhar integralmente Habermas a Rorty), não se quer dizer com isso que não haja afinidades de nenhuma natureza entre o neopragmatismo de Rorty e o neo-iluminismo alemão. De fato, não há como negar o parentesco entre, de um lado, a Sprachethik e a razão comunicacional de Habermas e, de outro, a ‘grande conversação humana’ de Rorty. Essa convergência se dá por conta do mesmo paradigma pragmático-linguístico que embasa as duas posições, de resto, filosoficamente antagônicas.6

Este último ponto permite-me adentrar, finalmente, a questão central levantada pelas críticas que me faz Rego, a saber, que se eu tivesse testado, contra o projeto mccloskeyano, o paradigma rortyano eu teria encontrado um lugar para as ideias de McCloskey. Ora, uma das dificuldades mais substantivas que os textos de McCloskey apresentam é que ele utiliza o termo retórica em diferentes conotações7: ora ela é sinônimo de ciência, e, portanto, a ciência reduz-se à retórica, ora ela é instrumento de persuasão e, pois, a ciência não se reduz à retórica mas faz uso da retórica, ora ela é simplesmente o conjunto de preceitos que devem guiar academicamente os debates na ciência, em uma palavra, Sprachethik. Evidentemente, não há como discordar de McCloskey considerando os dois últimos sentidos assinalados. Como afirmei em meu texto original, não se trata em absoluto de negar a importância da retórica na evolução da ciência econômica e nos debates que aí se travam. Efetivamente, os economistas, como de resto a comunidade científica em geral, recorrentemente sacam de sua caixa de ferramentas, junto com as peças modernistas, também suas armas literárias com o intuito de persuadir seu público da correção de suas ideias. Vejamos o que diz McCloskey quando utiliza retórica nesse sentido: “Retórica é meramente uma ferramenta, não uma coisa ruim em si mesma. Ou melhor, ela é a caixa dos instrumentos de persuasão tomada conjuntamente e disponível para os que querem persuadir, sejam eles bons ou maus” (1985: 37-8).

Assim, se a retórica é simplesmente instrumento de persuasão, e ninguém há de negar que assim seja, nem que ela seja de fato utilizada, a constatação de sua existência implica de imediato a realização de uma análise retórica das peças científicas, o que, certamente, contribui para o aprimoramento da ciência. O próprio McCloskey diz: “A retórica não trata diretamente da verdade; trata da conversação. É, dito sem rodeios, uma forma literária de examinar a conversação [...] Ela pode ser utilizada para se fazer uma crítica literária da ciência [...]” (1985: 28). Nesse sentido, como “ser contra” a retórica? Como sugeri em meu texto original, ninguém que tenha tido algum dia uma ligeira simpatia pela crítica da economia política nos moldes inaugurados por Marx (a saber, mostrar a particularidade classicista de um discurso em princípio universal) terá posição distinta. Mas isso é certamente diferente, havemos de convir, de considerar a retórica como sinônimo de ciência, tal como sugerem as frases bombásticas do artigo de 1983. No limite, aliás, se tudo é retórica, a própria análise retórica torna-se logicamente impossível: de onde tirar os padrões, os algoritmos, os pontos de apoio?

Com relação à aproximação também empreendida por McCloskey, entre retórica e “boa conversa”, entre retórica e Sprachethik, não há, evidentemente, nada a opor a esta última enquanto tal, ainda que a aproximação em questão tenha de ser qualificada. Diz McCloskey: “[...] o melhor que se pode fazer, então, é recomendar o que é bom para a ciência agora e deixar o futuro aos deuses. E o que é bom para a ciência agora é a existência de bons cientistas. Uma crítica retórica da economia talvez torne os economistas mais modestos, tolerantes e conscienciosas e melhore uma das conversações da humanidade” (1985: 53). E ainda: “Retórica, então, pode ser uma forma de avaliar o discurso econômico e de torná-lo melhor. Melhor, não menos rigoroso, difícil, sério, importante. [...] [os economistas] teriam simplesmente que concordar em examinar a linguagem com que atuam e conversar mais educadamente com os demais nas conversações da humanidade” (1985: 35).

Não se trata aqui de afirmar que McCloskey estaria fazendo, em afirmações como essas, uma aproximação espúria entre a retórica de um lado e a Sprachethik de outro. Como lembra Bento Prado Jr., “[...] já tivemos oportunidade de apontar, através da discussão de um belo livro de inspiração rortyana, a cumplicidade entre o neopragmatismo e a ‘retórica’ no sentido antigo do termo. No fundo a conjunção entre algum realismo, ou a necessária modéstia intelectual [...] e uma inegável vontade ética (nas palavras de McCloskey, o imperativo be honest, be fair, acoplado ao lema rhetoric is good for you) redunda na decisão de que é necessário minimizar a retórica da verdade, incentivar uma mudança dessa retórica ou incentivar a retórica da mudança” (1994: 81, grifos meus). Repetindo, não há do que discordar. Toda a dificuldade, porém, encontra-se no fato de que McCloskey passa inadvertidamente de um sentido a outro do termo, ao longo de seus textos. De toda maneira, mesmo considerando que existe uma aproximação entre o projeto retórico e a Sprachethik, nos moldes indicados por Prado Jr. (ou seja, algum realismo mais vontade ética), a utilização muitas vezes enfática por McCloskey dessa aproximação, visível, por exemplo, nas expressões que Prado Jr. relembra, acaba efetivamente por problematizar também a possibilidade de enquadrá-lo estritamente nos moldes do pragmatismo rortyano, dificilmente redutível a uma mera pregação pelo bom comportamento dos cientistas em geral (examinar a linguagem que se utiliza, ser honesto, conversar educadamente etc.). As ideias de McCloskey, por isso, continuariam sem lugar, mesmo se, em meu texto original, eu tivesse levado em conta sua filiação confessa ao pensamento de Rorty.

Em suma, para retomar o ponto em questão, a utilização do termo retórica em múltiplos sentidos coloca perguntas de difícil resposta: será que é necessário dissolver tudo na retórica para advogar a Sprachethik ou para denunciar a pretensa objetividade de conceitos e proposições econômicas? A esse respeito, aliás, e uso eu agora o mesmo e atraente argumento de autoridade de Rego, diz Bento Prado Jr. referindo-se a seu texto sobre McCloskey (publicado originalmente na revista Discurso, nº 22, 1993, e republicado na coletânea organizada por Rego): “Nesse texto, reconhecendo que McCloskey (bem inspirado por Rorty) recorre aos instrumentos adequados em sua cruzada contra o positivismo[...] apontamos para o perigo de jogar o bebê com a água do banho. Nossa pergunta, na ocasião, era: estamos nós condenados a seguir os passos de Dewey, pelo simples fato de recusar a megalomania do fundacionalismo? Toda a epistemologia está morta já que morreram o positivismo e a unified science? Será que a descrição de epistemologia, apresentada em Philosophy and the mirror of nature é razoável?8 Ser anti positivista não significa necessariamente ser rortyano” (1994: 93). Como fica claro, e encerro com isto minha resposta às considerações de Rego, a crítica de Bento Prado Jr. a McCloskey (no mesmo texto em que ele proclama seu viva à retórica citado por Rego) é da mesma natureza daquela que anteriormente esboçamos, vale dizer, o incômodo com essa espécie de negação indeterminada com que McCloskey embrulha sua, de outra forma absolutamente saudável, peroração pela ética no discurso econômico, bem como sua, de resto absolutamente necessária, crítica aos fundamentos metodológicos que os economistas, regra geral, postulam sem obedecer.

II.

Tomemos agora as considerações de Fernández. Incomodado com as críticas recebidas por McCloskey também dos economistas “ alheios ao mainstream”, seu intento é “mostrar que o ‘projeto retórico’ em geral, e a obra de McCloskey em particular, são compatíveis como um todo com uma ‘tradição crítica’ ou com visões não-neoclássicas da economia”.9 (1996: 147, grifos meu). Ainda que não seja muito claro o que é que se pode exatamente entender pela expressão “ projeto retórico”, espero ter esclarecido em minhas respostas às críticas de Rego que, efetivamente, não vejo incompatibilidade entre uma postura crítica ao mainstream e a seus pressupostos metodológicos de um lado e, de outro, a admissão da importância da questão da retórica, particularmente da análise retórica. Muito ao contrário, uma crítica do discurso econômico convencional não poderá jamais furtar-se à análise retórica dos textos. A segunda parte da frase, porém, parece-me difícil aceitar integralmente: dado o imbróglio categorial e conceitual em que McCloskey se envolve, o preço a pagar para aceitar o lado inequivocamente saudável de suas colocações torna-se muito elevado, de modo que não vejo como se possa compatibilizar seu projeto como um todo com uma visão crítica do mainstream. Em suma, parece-me que a crítica de Fernández às minhas críticas a McCloskey advém de que ele considera como “progressista” a posição desse autor, ou seja, ele o entende como um “moderno (ou pós-moderno?) crítico da economia política”. Diz ele: “A breve revisão de diversas críticas formuladas a McCloskey por alguns economistas alheios ao mainstream mostra essencialmente, em nossa opinião, que em termos gerais suas visões são compatíveis, no mínimo no nível metateórico [...] A rejeição de doutrinas que postulam que há um único conhecimento verdadeiro e que portanto todos os outros são falsos abre espaço para um pluralismo teórico que deveria ser bem recebido por todos aqueles cujas vozes são sem dúvida minoritárias entre os economistas” (1996: 157). Evidentemente não compartilho dessa posição. Se a questão é meramente a de forjar um espaço para todos os “programas de pesquisa” em economia, então prefiro ficar com Caldwell10 Como tentarei mostrar adiante, em função de sua postura frente à abordagem de McCloskey, Fernández empreende um louvável esforço para salvar esse “projeto” in totum e acaba por ser bastante indulgente com suas contradições e com o discurso embrulhado que ele constrói.

Mas adentremos as críticas propriamente ditas. Em primeiro lugar, Fernández questiona o conceito de modernidade com o qual trabalho. Diz ele: “Sem discutir a interpretação de Habermas que esta autora propõe, não por isso concedo que a definição Habermas-Paulani11 de modernidade e termos correlatos, baseada em Kant, Hegel e o Iluminismo (pp. 154-5), seja a única possível. Na tradição dos países de língua inglesa, ou no mínimo nas discussões de filosofia da ciência e metodologia da economia, os termos modernidade e afins pareceriam estar muito mais vinculados com o racionalismo cartesiano levado ao extremo, ou com a particular mistura de racionalismo e empirismo radicais denominada positivismo lógico” (1996: 148-9). Mais adiante conclui Fernández: “A finalidade disto tudo é mostrar que não acredito estar sendo muito indulgente com McCloskey quando penso que para ele o modernismo é a visão de mundo que se caracteriza pelo que Philip Mirowski denomina ‘o vício cartesiano’, qual seja, supor que ‘o único raciocínio formal, e o único pensamento é o pensamento consciente’...” (1996: 149-50). Concordo em gênero, número e grau. Mas não deveria então McCloskey denominar “racionalista” ou “positivista” o código de regras que ataca? Ao cunhá-lo de “modernista” ele parece estar pretendendo efetivamente realizar muito mais do que uma mera crítica epistemológica. Como tentei demonstrar anteriormente, em muitos momentos, McCloskey faz efetivamente muito mais do que isso e segue, nesse particular, a mesma trilha de Rorty: primeiro reduz a modernidade à questão epistemológica; depois identifica a epistemologia enquanto tal com o empirismo e o racionalismo clássicos; por fim, como lembram Prado Jr. & Cass (1996: 120), redefine a vocação epistemológica dessas correntes como “fundacionalista por natureza e positivista por vocação”.

De qualquer maneira, não vejo por que o conceito mais amplo e, a meu ver, mais esclarecedor, de modernidade por mim utilizado possa ter viesado as críticas que fiz a McCloskey. Segundo Fernández isso teria me levado a fazer afirmações falaciosas que sugerem que, por propor limites à razão, McCloskey estaria sendo identificado com o irracionalismo. Como adiantei anteriormente, o que permite que se faça, em alguns momentos, tal juízo das proposições de McCloskey é precisamente sua posição dúbia e escorregadia, ora como desconstrutor do discurso econômico, ora como crítico do positivismo, ora como defensor da Sprachethik. É bom que se lembre que, depois de tomá-lo por um operário da desconstrução (para nossos efeitos um “irracionalista”), descarto a hipótese justamente em função de frases como a citada pelo próprio Fernández: “se a escolha é entre ciência e irracionalismo, eu sou pela ciência” (1983: 509). Logo, não se deve ao conceito de modernidade que abraço a formulação de tais críticas. Contudo, cabe ressalvar que, se a filiação de McCloskey é realmente a Rorty, como quer Rego, então não há como negar tal aproximação (entre determinadas afirmações daquele autor e o irracionalismo12), precisamente pela visão estreita de modernidade que resulta do projeto rortyano. Rorty (e McCloskey) encapsulam a razão no reduzido conceito de modernidade que constroem, julgando ainda que exista um fio condutor asséptico e não problemático que leva de Descartes ao Círculo de Viena. Ora, “a vida não é tão simples”, só para repetir um bordão do próprio McCloskey.

Uma questão correlata a essa é, evidentemente, a questão da verdade. Segundo Fernández, o ponto central de várias das críticas endereçadas a McCloskey (dentre as quais as minhas) “reside no desprezo pela verdade que o caracterizaria” (1996: 151). Realmente, esta não deixa de ser uma posição incômoda: reduzir a verdade de uma teoria a seu poder de persuasão ou à coerência com um conjunto de crenças de um determinado público (no caso, uma plateia especializada) significa concretamente, enfeite-se o quanto se queira, abandonar a questão do conteúdo de verdade das teorias. Com isso, a prioridade número um de qualquer discurso científico passa a ser “convencer” (por convencer, dever-se-ia acrescentar). Que a ciência precise disso, que esta arte lhe seja necessária, que ela seja mesmo empurrada por isso, está aí sua própria história a o demonstrar. Isto não significa, porém, que devamos, por isso, compactuar com o dissolvimento da ciência na retórica, com sua redução à retórica. Em poucas palavras, para recomendar a Sprachethik (Habermas), ou para defender o pluralismo ou o anarquismo metodológico (Caldwell, Feyerabend), ou ainda, para fazer uma crítica do positivismo e/ou do caráter ideológico de muitas das proposições econômicas (teoria crítica, Marx), não é preciso abandonar ao limbo a questão da “verdade” (seja com minúscula, seja com maiúscula), não é preciso enfim identificá-la com a “quinta roda inoperante” como faz McCloskey.13

Com relação a esta última expressão, gostaria também de me defender de uma outra crítica que me faz Fernández quanto à tradução que fiz da afirmação de McCloskey. Segundo meu crítico, eu teria “exagerado” quando utilizei a expressão “totalmente inútil”. Vejamos então no original. Diz McCloskey: “The very idea of Truth - with a capital T, something beyond what is merely persuasive to all concerned - is a fifth wheel, inoperative except that it occasionally comes loose and hits a bistander” (1985: 46-7). O próprio Fernández, faz a seguinte (e ótima de meu ponto de vista) tradução: “A própria ideia de verdade-com V maiúsculo, algo além do que é meramente persuasivo para todos os envolvidos - é uma quinta roda não operativa exceto quando por acaso se solta e machuca algum circunstante” (1996: 151). Tentando dar conta desta asserção de McCloskey de um modo mais sintético, não a citei por inteiro em meu artigo original e afirmei o seguinte: “[...] para McCloskey, no entanto, a verdade é uma quinta roda, totalmente inútil”. Não acredito que haja aí exagero. Se repararmos bem, tudo indica que, neste caso, fui eu a indulgente com McCloskey. Ele não diz simplesmente que a verdade é uma quinta roda inoperante (inútil). Ele diz mais, diz que, quando ela, casualmente, entra em ação, seu efeito é antes negativo (ela machuca) do que neutro.

Fernández alega que essa, bem como outras expressões bombásticas, são meras boutades de McCloskey que devem ser consideradas retoricamente e que, portanto, não deveriam causar problema. Diz ele: “Qual é o problema então? Uma ou outra frase minimizando a importância da verdade, simbolizada pela citação da quinta roda. [...] acho que estas boutades de McCloskey [...] devem ser avaliadas retoricamente, pensando no público ao qual se dirigem, e dentro de um clima de épater les bourgeois [...]” (1996: 153-4). Em outras palavras, ele está nos dizendo que devemos considerar apenas o bom serviço prestado por McCloskey ao denunciar a metateoria da ciência econômica usual e louvar sua pregação em favor da ética na conversação dos economistas. O resto...bem, o resto é “mera” retórica! Não parece haver aí uma certa contradição de Fernández? Então a retórica não é para ser levada a sério?

Como afirmei anteriormente, Fernández acaba sendo muito indulgente com McCloskey para dar cabo da tarefa a que se propôs. Neste último caso, por exemplo, não me parece possível minimizar tais boutades, no mínimo em função de sua filiação confessa ao pragmatismo rortyano. Mas é McCloskey sempre isto, sempre esse destruidor (de ilusões, segundo ele)? Não! E é aí, repetindo, que está todo o problema. Fernández cita um trecho da entrevista de Arjo Klamer à Methodus (vol. III, nº 1) em que ele afirma que McCloskey e ele ficam espantados com a incompreensão de que é vítima a abordagem retórica, “como se nós nos ocupássemos de linguística ou da linguagem; como se fôssemos relativistas e não nos preocupássemos com a verdade. Isso é bobagem” (apud Fernández, 1996: 152, grifos meus). Muito bem, mais uma vez, por meio da lamúria de Klamer, desponta o imbróglio mccloskeyano que tanto dificulta o trabalho de Fernández.

Outro exemplo dessas dificuldades e da indulgência com que Fernández trata o “projeto” de McCloskey está na análise que ele faz das expressões desse autor quando ele afirma que “boa ciência é boa conversa” e que “ciência não é ciência, é uma coleção de formas literárias” (1985: 27 e 55). Fernández me critica por ter eu considerado anticientífico este amálgama que indiferencia ciência e literatura, e por ter, com isso, colocado McCloskey como inimigo da ciência.14 Segundo sua avaliação, pretender que uma frase do primeiro tipo “seja um exemplo de irracionalismo ou algo semelhante é pouco habermasiano. É concebível boa ciência que não seja boa conversa?”(1996: 156). Evidentemente não, e devo aqui concordar com meu crítico. Contudo, eu a construiria de uma outra forma, essa sim, parece-me, coerente com a postura de Habermas. Refeita nesses moldes, ela rezaria: “boa ciência é também boa conversa”.

No que tange à segunda das expressões em questão (“ciência não é ciência, é uma coleção de formas literárias”), Fernández alega inicialmente que não pode ser ela avaliada à luz da lógica formal, dando a entender que, por esse equívoco, teria eu considerado que McClosey some de cena com a ciência. Em outras palavras, eu estaria dizendo que se ciência é literatura como quer McCloskey, então, para ele, ciência não existe (se A não é A e sim B, então A não é, e, logo, não pode ser B nem coisa alguma, raciocina Fernández, imaginando estar reconstruindo meu pensamento, 1996: 156). Penso que, efetivamente, considerada a afirmação de McCloskey, torna-se difícil escapar de tal conclusão, a menos que se julgue que o valor de verdade de proposições teóricas e de proposições expressivas é o mesmo (verdade e veracidade seriam então sinônimas). Mas já que é para utilizar a lógica, vejamos o que acontece com a proposição de McCloskey se utilizarmos, para interpretá-la, não a lógica formal, mas a lógica dialética que, como sabe meu amigo Fernández, me é mais cara. Retomemos a afirmação de McCloskey: “ciência não é ciência, é uma coleção de formas literárias”. Quando ele diz que ciência não é ciência, está ele dizendo de fato que ela não é. Porém, se falamos dela (sobre ela), ela de uma certa forma é, algumas de suas determinações existem (não se pode falar de algo cuja inexistência seja absoluta). Em linguagem dialética isto significa que a ciência está pressuposta, vale dizer ela é e não é. Nesses casos, o que invariavelmente acontece é que o sujeito da proposição passa no predicado e só o predicado é posto. Então, o privilégio da existência efetiva fica aderido ao predicado e escapa do sujeito (no caso, fica com a literatura e não com a ciência). Como se percebe, tivesse eu utilizado outra lógica, o resultado seria o mesmo.

Para um dialético sério, porém, esta última conclusão seria adequadamente qualificada e implicaria dizer não simplesmente que a ciência não existe porque o que existe é literatura, mas dizer que a ciência existe e não existe, que ela está em sua pré-história, que está no seu processo de vir-a-ser sujeito e encontrar seus predicados adequados. E o que significam tais considerações para o caso específico da ciência econômica? Significam que, ontologicamente, as ideias e conceitos que a constituem derivam sua relatividade não primordialmente de um conjunto de práticas e crenças como quer o pragmatismo de Rorty, nem do arsenal teórico-conceitual partilhado por um público especializado, como dá a entender McCloskey, mas da posição objetiva, concreta, de uma determinada formação social. É fácil perceber aonde se chega por essa trilha: na crítica da economia política tal como Marx a inaugurou. Não se deve esquecer que, a despeito de suas objeções à economia política inglesa, Marx nunca deixou de dar-lhe o devido crédito, nem de diferenciá-la do que ele então chamava “economia vulgar” (esta sim, para ele, pura enrolação com objetivos claramente definidos). Entre outras coisas, Marx tentou mostrar que seus antecessores ingleses só puderam armar o arsenal teórico-conceitual que armaram e dar início, com isso, à ciência econômica, porque a realidade objetiva que os circundava já o tinha posto (ainda que a seu modo anárquico): a sociedade já se organizava primordialmente pela troca, o trabalho já era o trabalho assalariado etc. Então, só para concluir o raciocínio, no caso particular da ciência econômica, seu processo de posição, seu processo de vir-a-ser culminará com sua própria negação, esta sim absoluta. Se a ciência econômica nasceu com o capitalismo, que operou precisamente este processo de autonomização dos fenômenos relativos à existência material do homem vis-à-vis as demais esferas da sociedade que possibilitou seu (da ciência econômica) surgimento, é com ele que ela caminha e com ele ela se extinguirá, se um dia qualquer isto porventura ocorrer.15 Terá então chegado a hora da posição do homem como sujeito da história, pois o capital que, até então, vinha ocupando esse lugar, não mais existirá.16• Mas deixemos de lado essa maquinaria dialética e nosso hipotético dialético sério. No caso de McCloskey, que seguramente não cabe em tal figurino, a conclusão da análise dialética de sua afirmação permanece não qualificada e redunda de fato no desaparecimento da ciência, em seu dissolvimento na literatura. Mais uma vez, negação indeterminada neste último caso, negação determinada no caso anterior. Apontar, por exemplo, o caráter ideológico de muitas das proposições da ciência econômica é questionar seu valor de verdade, não confundi-la com literatura.

Vejamos, porém, que interpretação dá Fernández a essa polêmica afirmação de McCloskey: “Posso sugerir que simplesmente [ele] está dizendo que qualquer maneira de fazer ciência tem de passar através de (i.e., utiliza necessariamente) formas literárias” (1996: 156). Convenhamos que é necessária uma boa vontade brutal para se fazer tal interpretação. Há, parece-me, uma imensa distância entre a afirmação original de McCloskey e a forma como Fernández a reescreve. Ele próprio concede, mais à frente e baseado em Mirowski, que os objetivos da ciência e da literatura não podem se confundir (a primeira busca o crescimento do conhecimento, enquanto a segunda persegue essencialmente fins estéticos) e que, por isso, a utilização de metáforas nos dois campos também tem sentido diferente. Ora, mas se é assim, então estamos de acordo: ainda que a ciência necessariamente faça uso da retórica não pode se confundir com ela; logo, persiste a questão do valor de verdade das teorias, problema que obviamente não se coloca para as peças literárias.

Isto tudo me obriga a concluir que, com todos os méritos devidos ao esforço de Fernández, acredito que ele se propôs uma tarefa inglória: não é fácil dar coerência ao discurso de McCloskey.17 Ou a leitura se torna um tanto ingênua, como acontece quando ele coloca McCloskey simplesmente como um defensor da ética nos debates acadêmicos ou quando alega que deveríamos (nós, os alheios ao mainstream) receber bem as colocações de McCloskey porque elas dão lugar ao pluralismo metodológico, ou faz com que ele caia em contradição, como ocorre quando ele, de uma certa forma, desqualifica as proposições bombásticas de McCloskey como mera retórica que, enquanto tal, não deveriam ter sido levadas tão a sério. Isto posto, espero que, além de ter me defendido, tenha praticado a Sprachethik tão simpática e tão necessária ao debate intelectual, particularmente no meio dos economistas, que, familiarizados como ninguém com o “homem econômico racional”, sabem perfeitamente do que ele é capaz.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ANUATTI NETO, Francisco (1994) Persuasão Racional em Keynes; uma Aplicação de Retórica em História das Ideias Econômicas. São Paulo: IPE/USP, Tese de doutoramento, mimeo.
  • ARANTES, Paulo E. (1994) “ Alta Costura Parisiense: nem Apel, nem Rorty”. In: O Relativismo enquanto Visão de Mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
  • ARANTES, Paulo E. (1995) A Transformação da filosofia (resenha de A Filosofia e o Espelho da Natureza de Richard Rorty). Jornal de Resenhas (suplemento mensal da Folha de S. Paulo), 115.
  • ARANTES, Paulo E. (1996) Ressentimento da Dialética - Dialética e Experiência Intelectual em Hegel (Antigos Estudos sobre o ABC da Miséria Alemã). Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • BIANCHI, A. M. (1992) “Muitos Métodos é o Método”, Revista de Economia Política, 12 (2), junho.
  • BIANCHI, Ana M. & SALVIANO JR., Cleófas (1996) “Prebisch, a CEPAL e seu Discurso: um Exercício de Análise Retórica”. In: REGO, José M. (org.) Retórica na Economia. São Paulo: Editora 34.
  • FAUSTO, Ruy. (1983) Marx - Lógica & Política - vol. 1. São Paulo: Brasiliense.
  • FERNÁNDEZ, Ramon (1996) “A Retórica e a Procura da Verdade em Economia”. In: REGO José M. (org.) Retórica na Economia. São Paulo: Editora 34.
  • HABERMAS, Jürgen. (1994) O Discurso Filosófico da Modernidade. Porto: D.Quixote.
  • MÄKI, Uskali (1988a) “How To Combine Rhetoric and Realism in the Methodology of Economics”, Economics and Philosophy, 4 (1).
  • MÄKI, Uskali (1988b) “Realism, Economics and Rhetoric - A rejoinder to McCloskey”, Economics and Philosophy, 4 (1).
  • McCLOSKEY, D. (1983) “The Rhetoric of Economics”, Journal of Economic Literature, vo IXXI.
  • McCLOSKEY, D. (1985) The Rhetoric of Economics. Madison: The University of Wisconsin Press.
  • McCLOSKEY, D. (1988a) “The Consequences of Rhetoric”. In: KLAMER, A., McCLOSKEY, D., e SOLOW, R. (org.) The Consequences of Economic Rhetoric. Cambridge: Cambridge University Press.
  • McCLOSKEY, D. (1988b) “Two Replies and a Dialogue on The Rhetoric of Economics - Mäki, Rappaport and Rosenberg”, Economics and Philosophy, 4 (1).
  • McCLOSKEY, D. (1994) “How Economists Persuade”. The Journal of Economic Methodology, 1 (1), junho.
  • MIROWSKI, Philip (1988) “Shall I compare thee to a Minkowski-Ricardo-Leontief-Meltzer matrix of the Mosak-Hicks type? Or, rhetoric, mathematics and the nature of neoclassical economic theory”. In: The Consequences of Economic Rhetoric. Cambridge: Cambridge University Press.
  • PAULANI, Leda M. (1996) “Ideias sem Lugar: sobre a Retórica da Economia de McCloskey”. In: REGO, José M. (org.) Retórica na Economia. São Paulo: Editora 34.
  • PRADO JR., Bento (1994) “O Relativismo como Contraponto”. In: O Relativismo enquanto Visão de Mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
  • PRADO JR., Bento & CASS, Mark J. R. (1996) “A Retórica da Economia segundo McCloskey”. In: REGO, José M. (org.) Retórica na Economia. São Paulo, Editora 34.
  • REGO, José M. (1996) “Retórica na Economia: Ideias no Lugar”. In: REGO, José M. (org.) Retórica na Economia. São Paulo: Editora 34.
  • RORTY, Richard (1994a) A Filosofia e o Espelho da Natureza. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
  • RORTY, Richard (1994b) “Relativismo: Encontrar e Fabricar”. In: O Relativismo enquanto Visão de Mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
  • SILVEIRA, Antonio M. (1996) “A Sedição da Escolha Pública: Variações sobre o tema das Revoluções Científicas”. In: REGO, José M. (org.) Retórica na Economia. São Paulo: Editora 34.
  • *
    Este texto faz parte de uma pesquisa mais ampla que conta com financiamento do CNPq. Agradeço os comentários da professora Ana Maria Bianchi. Os equívocos são meus.
  • 1
    Devo aqui assinalar que, no mesmo livro, encontro uma posição mais favorável às minhas colocações no artigo de Bianchi & Salviano Jr. (1976: 175-6).
  • 2
    Este ponto é também sublinhado por Fernández, meu outro simpático crítico: “Estas considerações tornam-se especialmente interessantes considerando o perfil muito particular de McCloskey, economista tão completamente ortodoxo em questões teóricas como heterodoxo em questões metateóricas ou metodológicas” (1996: 143). Também nesse sentido, não é demais lembrar uma afirmação de Philip Mirowski: “Acredito que McCloskey tenha compreendido que a teoria social implícita na retórica clássica é diametralmente oposta à existência atemporal do homo economicus neoclássico e que, portanto, uma análise retórica plena será sempre congenitamente crítica à teoria econômica neoclássica”(1988: 123). Concordamos inteiramente com Mirowski quanto à incompatibilidade entre uma análise retórica consequente e a permanência incólume do homem econômico neoclássico. Contudo, cumpre perguntar novamente por que continua então McCloskey um economista ortodoxo em questões teóricas. Nossa conclusão é, nesse sentido, distinta da de Mirowski: McCloskey parece não ter se dado conta dessa incompatibilidade ou, alternativamente, ele não é, de fato, um retórico consequente. Tudo isso está relacionado ao imbróglio categorial no qual McCloskey se envolve utilizando o termo retórica em múltiplos sentidos. Voltaremos a esse ponto.
  • 3
    Cabe lembrar que, em meu texto, depois de levantar a hipótese inicial de que as posições de McCloskey poderiam ser aproximadas das de Derrida, eu a desconsidero pela seguinte razão: apesar de as declarações enfáticas de que a ciência econômica (e a ciência em geral) não é ciência mas uma coleção de formas literárias, McCloskey não se coloca coerentemente como um operário da desconstrução (“se a escolha é entre ciência e irracionalismo”, diz, “eu sou pela ciência”) e, em momentos como esse, toda sua cruzada pro-retórica aparece apenas como uma crítica à posição delicada em que se encontra a maioria dos economistas, visto realizarem uma prática científica que não condiz com os preceitos que abraçam metateoricamente. Na realidade, todo o titubeio de McCloskey e a dificuldade daí derivada de enquadrá­lo filosoficamente advém, como já adiantamos, de que ele utiliza o termo retórica em diversos sentidos.
  • 4
    Com relação à afirmação de Rego de que eu teria utilizado o trabalho errado de Habermas, talvez seja interessante lembrar que as críticas que faz Rorty a Habermas tomam por base precisamente Conhecimento e interesse (o livro que Rego recomenda), de onde ele retira, aliás, as citações de Habermas que discute. De resto, como já deve ter ficado claro, utilizo o Discurso filosófico da modernidade não para buscar aí informações sobre o projeto habermasiano, que sei perfeitamente estarem em outro lugar (particularmente na Teoria do agir comunicativo), mas para precisar o conceito de modernidade e para me inteirar do discurso desconstrucionista de Derrida.
  • 5
    Em outro artigo diz Rorty: “Até aqui estivemos falando de ‘nós, ditos relativistas’ e ‘nós, os anti-platônicos’, mas agora é preciso ser mais específico, citar alguns nomes. Como afirmei no início, o gru­po de filósofos ao qual me reporto separa-se em duas vertentes. Uma delas é a corrente da filosofia europeia pós-nietzschiana - Heidegger, Sartre, Gadamer, Derrida e Foucault -, e a outra é a corrente da filosofia americana pós-darwiniana, à qual pertencem James, Dewey, Kuhn, Quine, Putnam e Davidson, e que configura a tradição do pragmatismo” (1994b: 119). Cabe notar que, ao contrário do nome de Derrida, não aparece na lista de filósofos na qual Rorty se auto-enquadra o nome, por exemplo, de Apel, exclusão compreensível dada a maquinaria transcendental pesada desse pensador, mas tampouco aparece o nome de Habermas, mais light, com uma filosofia da conversação que envolve, no dizer de Arantes (1994: 107), tão-somente um transcendentalismo envergonhado. No entanto, meus dois críticos (Rego e Fernández) rejeitaram minha afirmação quanto à dificuldade de se aproximar McCloskey de Habermas. A confusão toda advém de que ambas as posturas, o pragmatismo de Rorty e o neo-iluminismo alemão partilham a mesma base comunicacional (ou linguística).
  • 6
    Paulo Arantes vai além, quando aponta a convergência dessas duas posições e, apesar de referir-se não a Habermas propriamente mas a Apel, parece interessante reproduzir sua análise. Diz Arantes: “ De fato, então, nossos dois antagonistas de sua [de Bento Prado Jr. - LMP] exposição, os dois filósofos [Rorty e Apel - LMP], as duas posições filosóficas antagônicas, na verdade, convergem no mesmo paradigma pragmático-linguístico para mostrar de que maneira nós podemos conviver ou de que maneira nós poderemos administrar alguma coisa que eles estão supondo já estabelecido, que é a normalidade do capitalismo que veio aí para ficar e essa é a forma final na qual felizmente nos livramos dos grandes chatos que são os ideólogos, os intelectuais teóricos ou filósofos, na acepção antiga do termo” (1994: 112). Em suma, Arantes, a um só tempo, confirma o diagnóstico de Apel sobre Rorty (subjetivamente progressista, objetivamente regressivo) e devolve-o ao próprio neo-iluminismo alemão.
  • 7
    Bianchi & Salviano Jr., depois de terem praticado um belo exercício de análise retórica sobre o discur­so de Prebisch, também tocam na questão, lembrando ainda a dimensão de “arte” que a retórica envolve: “Especulando um pouco, porém, conseguimos encontrar um lugar para a retórica, por sobre as idiossincrasias de McCloskey. Este lugar provém de uma dupla função instrumental da retórica, como arte e como análise. Na condição de ferramenta de raciocínio, ela pode ajudar os economistas como produtores e consumidores de conhecimento especializado[...] A arte retórica pode armá-los para escrever melhor, falar melhor, dar melhores aulas [...] Afinal, também para as teorias científicas, beleza é essencial, corno já proclamava mestre A. Smith. Mas isso não é tudo que se deve esperar de teorias econômicas, nem isso dispensa o uso de outros critérios de avaliação, dentre eles, com destaque, a correspondência com o mundo real. A questão do conteúdo de verdade das teorias persiste, e não se resume àquele que parece ser o sentido predominante do termo em McCloskey, que é o de coerência com um conjunto de crenças de um auditório especializado (Mäki, 1993). McCloskey considera que esta condição garantiria uma verdade com v minúsculo, um conceito fraco de verdade, portanto, que acredita ser o único que uma teoria pode pretender atingir. Pode ser. Mas insistimos que o fundamental na ciência não é a produção de um discurso convincente. Querer convencer e querer dizer a verdade não são incompatíveis, mas também não são substitutos. No limite, dois dos sentidos que McCloskey atribui à retórica, o de discurso persuasivo e o de conversa civilizada, podem chocar-se entre si” [1996: 175). Na mesma linha, ainda que sem tocar diretamente na questão da retórica, Silveira (1996), empreende uma análise daquilo que denomina “a sedição da escolha pública” e, ao comparar os modelos de Harry Johnson e de Kuhn para dar conta das chamadas revoluções científicas, aponta para a retórica também como arte de enganar: “ Finalmente, em termos mais especulativos, o processo kuhniano de persuasão com base nos valores científicos da comunidade é retórica como método, enquanto o johnsoniano é retórica como arte de enganar [...]” (1996: 201).
  • 8
    A crítica ao conceito de modernismo e de epistemologia de Rorty (e de McCloskey por tabela) tem o seguinte teor: “O que estamos aqui sugerindo, é que, no empirismo e no racionalismo clássicos, há uma modernidade (no sentido das nossas mais vigorosas filosofias contemporâneas) que nada tem a ver com o modernismo descrito por Rorty, e que, muito ao contrário, é antipositivista avant la lettre - isto é, antes do nascimento da bête noire do anti modernismo. [....] Mas a questão não é puramente filológica: a simplificação operada por Rorty tem efeitos desastrosos no próprio coração da filosofia. É só porque se redefine a vocação ‘epistemológica’ do racionalismo e do empirismo modernos como fundacionalista por natureza e positivista por vocação[...], que se pode recusar, a priori, toda e qualquer epistemologia. [....] Um corolário pernicioso da definição demasiadamente estreita que McCloskey nos oferece da epistemologia, é uma demarcação da retórica que é ampla e vaga demais. Um imbróglio categorial que se revela também na localização equivocada da ideia aristotélica de dialética [...l” (Prado Jr. & Cass, 1996: 120).
  • 9
    Mais uma vez caberia perguntar por que então permanece McCloskey um economista ortodoxo em questões teóricas se sua obra é “compatível corno um todo com uma tradição crítica ou com visões não­neoclássicas da economia”, como sustenta Fernández.
  • 10
    A esse respeito, ver Bianchi (1992).
  • 11
    Cabe esclarecer novamente que não realizo nenhuma “interpretação” de Habermas, vale dizer, do projeto habermasiano. Simplesmente utilizo as colocações de Habermas no Discurso filosófico da modernidade (ver nota 4). Em todo caso, cumpre-me agradecer a meu amigo Ramon Fernández o honroso status intelectual em que me coloca ao falar de uma “definição Habermas-Paulani de modernidade”.
  • 12
    A esse respeito, ainda que não se referindo especificamente à questão da razão mas à questão a ela conexa do “ realismo”, diz Mäki: “Eles [McCloskey e Klamer] parecem pensar que, em função de ter a ciência econômica um caráter retórico, ela não pode ser compreendida em termos realistas. Eu argumentarei que esta visão é equivocada: retórica e realismo não excluem-se mutuamente; ao contrário elas podem ser combinadas numa coerente metodologia da economia. Trata-se de uma contribuição valiosa importar os insights da recém-habilitada retórica para a metateoria da economia; mas não é necessário amarrá-los com o entusiasmo pelo anti-realismo de Rorty e outros, tão em voga atualmente” (1988a: 89-90) Nossa posição é, nessa questão, bastante próxima à de Mäki. Não se trata, para repetir mais uma vez, de negar a importância da retórica, menos ainda de negar validade às análises retóricas do discurso econômico. Acredito mesmo que elas sejam indispensáveis e que, quando seriamente conduzidas, ensinam-nos muito a respeito dos caminhos de nossa ciência, de seu caráter historicamente determinado, de sua inescapável dimensão ideológica. Aqui mesmo no Brasil temos já excelentes exemplos de exercícios desse tipo (Bianchi & Salviano Jr., (1996); Silveira, (1996); Anuatti Neto, (1994), entre outros). Mas não me parece preciso, para isso, comprar todo o indigesto pacote rortyano, ou qualquer outro de resultados similares.
  • 13
    Mäki toca num interessante ponto em relação a essa questão e que demonstra, por outros meios, mais uma das contradições do projeto retórico de McCloskey. Depois de colocar em termos precisos o que separa o pragmatismo de McCloskey daquele de Friedman, Mäki diz o seguinte: “Parece haver uma interessante incongruência ou tensão entre a forma como McCloskey e Klamer vêem a natureza e as tarefas da ciência econômica de um lado, e a metateoria da ciência econômica de outro. Eles parecem estar (implicitamente) comprometidos com a seguinte proposição normativa: enquanto não é nem deve ser o objetivo dos economistas empenhar-se por descobrir verdades sobre a economia, deve ser o objetivo dos metateóricos perseguir a verdade sobre a ciência econômica” (1988: 97). Mais adiante, Mäki completa: “eu acredito que eles queiram mudar alguma coisa na retórica metateórica dos economistas, porque eles a consideram, em algum sentido, falsa. De outra maneira seria difícil que sua campanha fizesse sentido. Não tivessem eles uma crença na verdade da metateoria retórica, não haveria nada que justificasse seu comprometimento com ela, porque ela não se mostraria corno a metateoria mais persuasiva. Em questões metateóricas, pelo menos, a mera capacidade de persuasão não parece ser, afinal, suficiente” (1988a: 99, grifos do autor). E no artigo em que comenta as respostas de McCloskey a seus diversos críticos, dentre os quais ele próprio, diz Mäki: “Parece haver um válido tu quoque contra um anti-realista retórico, mas também um outro contra um anti-retórico realista. Portanto, este é meu ponto, retórica e realismo podem ser melhor combinados. A retórica humana pode consistentemente ser a favor da verdade e contra as falsificações a respeito da realidade objetivamente existente” (1988b: 168). Quanto à distinção entre o pragmatismo dos adeptos do projeto retórico e o de Friedrnan, Mäki coloca corretamente sua marca no caráter não-epistêmico do primeiro (1988a: 94-95).
  • 14
    Para dizer a verdade, não acredito que tenha colocado as coisas dessa maneira tão explícita. Em todo caso, foi mesmo essa uma das intenções de meu artigo original, mas não foi a primordial. O que eu pretendia de fato, e busquei fazê-lo por meio das tentativas de enquadrar McCloskey em algum paradigma e/ou corrente filosófico-epistemológica, foi mostrar a incoerência de seu discurso. Daí o título provocativo das “Ideias sem lugar” que, como indiquei anteriormente, eu manteria, mesmo agregando ao conjunto de paradigmas testados contra o discurso de McCloskey também o pragmatismo rortyano, reclamado com razão por Rego.
  • 15
    Robert Heilbroner, comentando a empreitada de McCloskey, não chega a discordar dele de modo tão veemente, mas dirige suas considerações precisamente para esse ponto. Para ele, é preciso deslocar o eixo das preocupações de McCloskey. Segundo sua visão, o principal problema com a ciência econômica não é de ordem puramente epistemológica, para o qual a análise retórica poderia constituir um paliativo. Seu principal problema é que ela é e será sempre “ideológica”, o que, para ele, significa dizer que ela não consegue escapar dos estreitos limites impostos pela experiência econômica intramuros de uma determinada formação social: “A julgar pelo extraordinário interesse despertado por seu artigo no Journal of Economic Literature [...] McCloskey tocou num nervo exposto da profissão. Na verdade, se o principal problema da ciência econômica fosse sua continuada obediência a uma estéril e antiquada metodologia, ele venceria, e a American Economic Review voltaria a ser escrita numa prosa mais articulada, compreensível a não-especialistas, tal como era há 30 anos. O problema é que esta não é a principal dificuldade com a ciência econômica, pelo menos da forma como eu vejo as coisas. Tampouco sua incapacidade de prever os movimentos da economia ou os efeitos das políticas governamentais constitui a questão fundamental. [...] para mim, o problema fundamental com a ciência econômica não é sua incapacidade de livrar-se de uma retórica danosa e obsoleta, mas sua incapacidade de reconhecer o caráter inescapavelmente ideológico de seu pensamento. Para colocar as coisas de outra forma, suponha que os economistas convencionais desenvolvam, da noite para o dia, a flexibilidade metodológica e as ferramentas literárias do próprio McCloskey: Por acaso suas conversas a partir de então fariam algum sentido fora dos limites da própria experiência econômica? Elas iluminariam nossa situação histórica, nossas possibilidades de evolução social? The Rhetoric of Economics não levanta tais questões; na realidade ela acaba por manifestar uma certa satisfação com o estado da ciência econômica tal como ela atualmente existe, desconsiderada a sombria retórica. Donald McCloskey poderia, creio, encontrar muito mais sobre o que escrever se mudasse seu foco de atenção do estilo da ciência econômica para sua substância “ (1988: 40-3). Para tornar mais clara a posição de Heilbroner e indicar em que ponto acredito haver uma convergência entre esta e a minha própria posição, é preciso mostrar em que sentido utiliza ele aqui o termo ideologia: “Por ideologia eu não compreendo uma sabidamente viesada ou imprecisa descrição da forma de funcionamento da sociedade, ou uma tentativa de lograr a população com explicações que os economistas sabem no mais fundo de seus corações serem falsas. Eu entendo, ao contrário, um sério e sincero esforço de explicar a sociedade tal como os ideólogos eles mesmos a percebem [...] O que é ‘ideológico’ em tal esforço não é sua hipocrisia mas sua ausência de perspectiva histórica, sua incapacidade de perceber que seus pronunciamentos constituem um sistema de crenças, condicionado, como todo sistema de crenças, pelas premissas sociais e políticas da ordem social” (1988: 40-1). Segundo entendo suas colocações, Heilbroner parece estar expressando aqui algo semelhante ao que eu coloquei em linguagem dialética: o vir-a-ser da ciência econômica será sua própria negação; por ora, ela é e não é. Só para completar essas considerações, cumpre notar que McCloskey não parece concordar com Heilbroner. Para ele, a retórica fornece também, contrariamente ao que assevera Heilbroner, um local para que os economistas vejam de fora seu próprio trabalho: “Um approach literário, humanístico, retórico sobre a ciência econômica provê o economista com um lugar para ficar, fora de seu próprio campo. Nós precisamos dele[...] como se demonstra por nossos frequentes apelos às fantasiosas regras da epistemologia ou do método científico” (1988a: 283).
  • 16
    Para uma análise completa dessas questões na abordagem aqui definida, vide Ruy Fausto, Marx - Lógica & política - vol. I, São Paulo, Brasiliense, 1993, especialmente ensaio 1. Para uma compreensão mais clara das noções de posição e pressuposição, bem como para sua relação com os tipos de juízo aí envolvidos ver, no mesmo livro, também os ensaios 3 e 4.
  • 17
    Um exemplo, que beira o pitoresco, das contradições em que se envolvem os adeptos da abordagem retórica, particularmente McCloskey e Klamer seus dois maiores expoentes, revela-se no seguinte tipo de argumento utilizado para demonstrar a importância da retórica e, pois, das atividades de persuasão. Diz McCloskey: “A persuasão é a terceira parte da conversa econômica. Ela não é bem compreendida. Mas ela é surpreendentemente grande. Tome as categorias de emprego e faça uma suposição quanto à parcela de tempo que cada categoria gasta em persuasão (o cálculo pode ser melhorado com maiores detalhes fatuais e econômicos; por exemplo, os trabalhadores podem ser ponderados pelo salário; o produto marginal da persuasão pode ser considerado em maiores detalhes; as categorias ocupacionais podem ser subdivididas: eu pretendo aqui apenas levantar essa questão científica, não decidi-la). O resultado dá 28,2 milhões de pessoas em 115 milhões de empregados, ou quase um quarto da força de trabalho dedicada à persuasão. Um quarto da renda nacional” (1994: 27). Num artigo posterior a esse, escrito junto com Klamer, McCloskey retorna à questão. O trabalho é citado por Fernández, que diz: “Segundo McCloskey e Klamer [num artigo na American Economic Review, 85(2), mai/95], as atividades persuasivas - desde todo o tempo de trabalho de juízes, de especialistas em relações públicas etc., passando por 75% do empo de professores e vendedores até a quarta parte do tempo dos especialistas em ciências naturais, inter alia - vão abrangendo paulatinamente um espaço crescente nas ocupações da humanidade na mesma medida em que se reduz aquele dedicado às atividades diretamente produtivas, passando o tempo empregado em persuasão de representar 23% do PNB norte-americano em 1983 para 25% em l988 e 26% cm 1993” (1996: 148). Deixando de lado a questão não pouco controversa sobre o efetivo significado de tais cifras, bem como sobre os critérios utilizados para se chegar às mesmas, cumpre notar que, se McCloskey e Klamer aplicassem a si mesmos a ironia com que tratam as “evidências empíricas” e as “questões científicas” em sua pregação contra a metodologia modernista, eles matariam seu próprio argumento. Se, porém, eles querem com isso persuadir os renitentes, enfrentarão com certeza um dos dois resultados seguintes: na melhor das hipóteses, os renitentes ignorarão tais informações visto que, crentes na verdade e não na persuasão, certamente não encaram como atividade persuasiva boa parte daquilo que McCloskey e Klamer assim vêem, particularmente o trabalho de professores e especialistas em ciências naturais; neste caso, o argumento será inócuo; na pior das hipóteses, os renitentes mostrarão aos nossos dois pregadores que as separações que recusam como antiguidade modernista entre fato e valor, entre verdade e opinião, entre coisas e palavras etc., retorna aqui com força total, pois, só assim o argumento faz sentido; dito de outra forma, os renitentes estarão neste caso mostrando a McCloskey e Klamer a contradição em que eles se envolveram.
  • 19
    JEL Classification: B41; B31; B20.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1999
location_on
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro