Resumos
A tradução que se segue é uma versão resumida e revisada do artigo "Schicksal Nietzsche? Zu Nietzsches Selbsteinschätzung als Schicksal der Philosophie und der Menschheit (Ecce Homo, Warum ich ein Schicksal bin §1)" - publicado originalmente em Nietzsche-Studien 37 (2008) - que foi especialmente preparada para ser apresentada em palestra organizada pelo Grupo de Pesquisa Spinoza & Nietzsche (SpiN), na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 14/09/2009. No texto, o autor faz uso de sua própria metodologia filológico-hermenêutica, denominada interpretação contextual, com vistas a esclarecer os conceitos do primeiro aforismo de "por que sou um destino", de Ecce Homo no seu contexto próprio, no contexto de Ecce Homo e no contexto da obra de Nietzsche como um todo.
Ecce Homo; Interpretação contextual; Destino; Loucura; Verdade
The following translation is a reduced and revised version of the paper Schicksal Nietzsche? Zu Nietzsches Selbsteinschätzung als Schicksal der Philosophie und der Menschheit (Ecce Homo, Warum ich ein Schicksal bin §1)" - originally published in Nietzsche-Studien 37 (2008) - which was specially prepared to be presented in lecture organized by the Grupo de Pesquisa Spinoza & Nietzsche (Spinoza & Nietzsche research group - SpiN), in the Universidade Federal do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro's Federal University), on September 14, 2009. In the text, the autor employs his own philological-hermeneutical methodology, which is called contextual interpretation, in the purpose to clarify the concepts of the first aphorism from "Why I am a destiny", from Ecce Homo, in its own context, in the context of Ecce Homo and in the context of the entire work from Nietzsche.
Ecce Homo; Contextual interpretation; Destiny; Madness; Truth
Nietzsche como destino da filosofia e da humanidade? interpretação contextual do § 1 do capítulo "por que sou um destino", de ecce homo1
Werner Stegmaier
Professor Doutor na Ernst Moritz Arndt Universität Greifswald e coeditor dos Nietzsche-Studien.
Tradução: João Paulo Simões Vilas Bôas 2
RESUMO
A tradução que se segue é uma versão resumida e revisada do artigo "Schicksal Nietzsche? Zu Nietzsches Selbsteinschätzung als Schicksal der Philosophie und der Menschheit (Ecce Homo, Warum ich ein Schicksal bin §1)" publicado originalmente em Nietzsche-Studien 37 (2008) que foi especialmente preparada para ser apresentada em palestra organizada pelo Grupo de Pesquisa Spinoza & Nietzsche (SpiN), na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 14/09/2009. No texto, o autor faz uso de sua própria metodologia filológico-hermenêutica, denominada interpretação contextual, com vistas a esclarecer os conceitos do primeiro aforismo de "por que sou um destino", de Ecce Homo no seu contexto próprio, no contexto de Ecce Homo e no contexto da obra de Nietzsche como um todo.
Palavras-chave:Ecce Homo. Interpretação contextual. Destino. Loucura. Verdade.
ABSTRACT
The following translation is a reduced and revised version of the paper Schicksal Nietzsche? Zu Nietzsches Selbsteinschätzung als Schicksal der Philosophie und der Menschheit (Ecce Homo, Warum ich ein Schicksal bin §1)" originally published in Nietzsche-Studien 37 (2008) which was specially prepared to be presented in lecture organized by the Grupo de Pesquisa Spinoza & Nietzsche (Spinoza & Nietzsche research group - SpiN), in the Universidade Federal do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro's Federal University), on September 14, 2009. In the text, the autor employs his own philological-hermeneutical methodology, which is called contextual interpretation, in the purpose to clarify the concepts of the first aphorism from "Why I am a destiny", from Ecce Homo, in its own context, in the context of Ecce Homo and in the context of the entire work from Nietzsche.
Keywords: Ecce Homo. Contextual interpretation. Destiny. Madness. Truth.
Estrutura
1 A presunção nietzscheana de uma fatídica transvaloração de todos os valores
2 §1 do capítulo "Por que sou um destino", de Ecce Homo
3 A decidibilidade da verdade como destino da humanidade
1 A presunção nietzscheana de uma fatídica transvaloração de todos os valores
As pretensões nietzscheanas à filosofia, já presunçosas em sua juventude, atingem o extremo ao final de Ecce Homo. "Eu carrego nos ombros", escreve o pensador, "o destino da humanidade" (Ecce Homo, O Caso Wagner, §4). Em "Por que sou um destino", ele vai tão longe, a ponto de nomear a si próprio como um destino. Nenhum filósofo antes de Nietzsche se expressou assim: ninguém se declarou como um destino, não apenas da filosofia, mas também da própria humanidade. Contudo, quem se ocupa com Nietzsche precisa estar pronto para lidar com essa sua pretensão inaudita3.
Diante disso, precisamos então nos perguntar: por que ele se expressou desse modo? Teríamos aqui apenas uma retórica excessiva ou a transvaloração nietzscheana poderia de fato ser um destino? A resposta não é fácil, Nietzsche não a oferece facilmente. A presunção poderia apenas ser um recurso retórico e também ser objetivamente fundamentada: o filósofo poderia ter se expressado dessa maneira inconveniente apenas para ser ouvido tornando-se igualmente conhecido e reconhecido por suas pretensões desmedidas. Mas essa pretensão poderia também ser irônica.
A ironia já fora empregada antes por Sócrates, na forma de seu saber paradoxal de nada saber. Assim como ele se apresentava diante de seus interlocutores como alguém que sabia mais, eles e, mais tarde, os leitores dos diálogos nos quais Platão o apresentou, acabavam por ter de considerar o seu nada-saber como algo apenas alegado, apenas arrogado. Contudo, essa ironia era coisa séria: não se podia naquela época, nem se pode tampouco hoje, saber exatamente quando Sócrates estava sendo irônico e quando não o estava, separando o que ele falava apenas como gracejo e o que falava seriamente; pois falar ironicamente quer dizer justamente isso: não permitir que se saiba quando e se estamos falando ironicamente. Somente sob a proteção dessa pressuposição, dessa presunção, é que o Sócrates dos diálogos platônicos podia então interrogar seus interlocutores do jeito como o fazia e revelar o saber deles como sem fundamento.
Sócrates também tratou com ironia o próprio oráculo de Delfos que preconizava os destinos e que proclamara que ninguém era tão sábio quanto ele , pois não aceitou sua revelação como pertencente a um oráculo divino, mas antes pôs-se persistentemente a prová-la, para o que ele perguntava a outros, se eles não seriam mais sábios que ele próprio. Sócrates arrogou-se submeter um oráculo divino a uma prova filosófica e, para tanto, reportou-se a um deus próprio, seu daimónion, que falava somente com ele e permanecia desconhecido aos demais. Com essa dupla presunção, a qual, por fim, custou-lhe a vida4, ele tornou-se um destino da filosofia e da humanidade. Assim como Nietzsche, Sócrates obteve, com "ironia histórico-universal" (Ecce Homo, O Caso Wagner, §4), uma importância histórico-universal.
Acima de tudo, foi contra Sócrates que Nietzsche se posicionou5. Contra ele e contra a "moral cristã", a qual, como o pensador alemão quis revelar, deveu sua força de convencimento fundamentalmente ao ateniense. Com sua própria transvaloração, Nietzsche coloca-se contra Sócrates e contra a transvaloração histórico-universal socrática, e o pensador alemão faz isso com ironia histórico-universal, com uma sabedoria que se mostra, por sua vez, declaradamente questionável. Seria isso uma presunção?
No penúltimo parágrafo de "Por que sou um destino", Nietzsche descreve sua "tarefa":
O descobrimento da moral cristã é um acontecimento que não tem igual, uma verdadeira catástrofe. Quem a coloca a descoberto é uma force majeure, um destino ele parte a história da humanidade em dois. Vive-se antes dele, vive-se depois dele... O raio da verdade fulminou precisamente o que até então era do mais alto valor: quem compreende o que foi destruído, que veja se ainda lhe resta algo nas mãos. (Ecce Homo, Por que sou um destino, §8)6.
Pode-se tomar esse trecho tanto como declarações de um demente, megalomaníaco, ou ainda como uma autoexaltação fanática7. O próprio Nietzsche considerou tal possibilidade e respondeu a ela, em Ecce Homo: "[...] em vão procure-se em meu ser um traço de fanatismo. Não se poderá demonstrar qualquer postura presunçosa e patética em nenhum instante de minha vida" (Ecce Homo, Por que sou tão inteligente, §10). Sua presunção de uma fatídica transvaloração de todos os valores coloca-se contra aquilo que ele, por sua vez, "descobriu" como sendo uma presunção: as transvalorações socrática e cristã, que se mantiveram por milênios. Sua transvaloração não era para ser mais do que esse "descobrimento", a revelação da transvaloração cristã. Importava menos elevar a transvaloração nietzscheana ao divino, do que trazer de volta para a dimensão humana, demasiado humana, as transvalorações socrática e cristã, que buscam sua justificação em Deus.
Na medida em que Nietzsche numa ironia histórico-universal se eleva ao parâmetro divino, ele faz com que o suposto parâmetro divino se deixe reconhecer como sendo humano. Nesse sentido, os últimos escritos do filósofo, por mais chocantes que possam soar, por mais megalomaníacos que possam parecer, poderiam ainda assim ser levados a sério. O tom desses escritos pode talvez assustar, porque ele sobressalta dos parâmetros divinos, que, por milhares de anos, foram considerados naturais e evidentes.
No primeiro aforismo do capítulo "Por que sou um destino", o qual dá o tom para o restante da seção, Nietzsche explica o que significa para ele ser um destino. Como constantemente ocorre em seus escritos, os tons elevados com os quais ele fala de si devem ressaltar diferenças sutis. O pensador se expressa com grande paixão e, simultaneamente, de maneira irônica8 , trabalhando como se fizesse anotações para si próprio, consciente da "magia dos extremos"9, e é por isso que um aforismo como o §1 do capítulo "Por que sou um destino" de Ecce Homo apresenta problemas metódicos de interpretação. Pelo fato de o pensamento de Nietzsche não se deixar medir pelos parâmetros que questiona, é preciso se arriscar a aderir experimentalmente aos seus próprios parâmetros, o que, no entanto, não deixa de ter consequências.
Conforme sua sentença de que "todos os conceitos em que um processo inteiro se condensa semioticamente se subtraem à definição; definível é apenas aquilo que não tem história" (Para a Genealogia da Moral, II, §13), Nietzsche evitou definições fixas. E ainda, contrariamente à imagem criada pela compilação de fragmentos A Vontade de Poder, o filósofo não apresentou quaisquer resultados conclusivos para sua filosofia.
Mesmo em textos onde ele formulou esses resultados experimentalmente para si, como, por exemplo, no fragmento Lenzer Heide, era evidente que ele não tinha a intenção de publicá-los10. Assim como mais tarde Wittgenstein, Nietzsche procurou continuamente trazer conceitos filosóficos aparentemente inequívocos de volta para o seu uso cotidiano e para as múltiplas margens de manobra11 e, acima de tudo, procurou também trazer o pensamento, das ilusões metafísicas, de volta para "terapias"12.
Em Nietzsche, os conceitos são sempre utilizados em um contexto específico que lhes fornece um sentido específico; sendo que, em contextos alternativos, eles recebem um sentido alternativo. Portanto, uma interpretação metódica e reflexiva dos textos de Nietzsche deve perseguir os contextos nos quais ele utiliza os seus conceitos e desenvolver o processo semiótico no qual eles possivelmente recebem novos sentidos. Apenas esse método, por mais demorado e amplo que possa ser, assegura uma exploração metódica da filosofia de Nietzsche, que segue a exigência metódica do próprio filósofo de que se leia seus escritos "lentamente" e em seu próprio contexto, sem extrair deles "doutrinas" gerais e apressadas13.
Tentaremos esclarecer os conceitos do aforismo em questão no seu contexto próprio, no contexto de Ecce Homo e no contexto da obra de Nietzsche como um todo. Faremos ainda uso de anotações não publicadas de Nietzsche, na medida em que elas contribuírem para a compreensão do texto, desfazendo também com isso aparentes ambivalências14.
2 §1 do capítulo "Por que sou um destino," de Ecce Homo
Nietzsche usa o conceito "destino" apenas no título desta seção e não no próprio aforismo, onde ele fala de "sina" e "fatalidade"15. O filósofo emprega o termo "destino" mais de cem vezes em seus escritos, primeiramente referindo-se ao destino do herói trágico, em seguida, ao destino da formação e da cultura alemãs e, finalmente, no sentido de um acontecimento imprevisível e inalterável, ao qual podem ser submetidos povos e Estados, instituições e valores e, por fim, também religiões e filosofias.
Já cedo Nietzsche anotou em seus registros: "O destino do filósofo é pensar"16. Ao mesmo tempo, contudo, ele permanece cético com relação ao conceito de destino17: "'destino' é um conceito que fazemos com base em um acontecimento imprevisível e inalterável para identificar (e muitas vezes também personificar) aquilo que não é identificável. O conceito define o indefinível, e na medida em que faz isso, é um conceito paradoxal. Mas na medida em que o imprevisível e o inalterável são determinados conscientemente, pode-se também 'representar um destino' e com isso 'ser um destino' para alguém ou algo18. Nesse sentido, como filósofo, pode-se ser um destino quando se colocam em dúvida conceitos e convicções sobre os quais até então construímos nossa vida com naturalidade e quando se aportam novos valores para discussão sobre os quais possamos construí-la.
Zaratustra quer ser um destino dessa maneira, e esse querer se transforma no seu destino.19 De acordo com o conceito tradicional, o destino é involuntário, é "fatal". Querer seu destino torna ainda mais paradoxal o conceito de destino, que então não abrange apenas o indefinível, mas ao mesmo tempo também o involuntário e o desejado. Nietzsche faz com que Zaratustra chame o destino como uma "vivência", algo que é vivenciado, mas que não pode ser conceitualizado.20 Quando se aceita o involuntário, não se opõe mais a ele a própria vontade, de sorte que se pode estar "vitorioso e com passo firme [...] em pé no seu destino."21
O "indivíduo soberano", que Nietzsche concebe, em Para a Genealogia da Moral, nesse sentido, pode fazer uma promessa, "porque ele sabe que é forte o bastante para mantê-la contra o que for adverso, mesmo 'contra o destino'" (Para a Genealogia da Moral, II, §2). Soberano é aquele que pode fazer, de tudo aquilo que lhe sucede, algo que ele próprio deseja. E os homens que querem seu destino podem, eles próprios, atuarem como um destino. Eles vêm "como o destino, sem motivo, razão, consideração, pretexto, eles surgem como o raio, de maneira demasiado terrível, repentina, persuasiva, demasiado 'outra', para serem sequer odiados" (Para a Genealogia da Moral, II, §17). O destino é sem razão e sem motivos aparentes, tampouco é passível de ser conceitualizado racionalmente, a partir de conceitos gerais, e, na medida em que uma pessoa quer o destino, ela igualmente deixa de ser conceitualizável racionalmente. Todavia, mesmo assim, ela pode dar uma razão sua razão ao seu destino. É dessa maneira que Nietzsche se apresenta no final de Ecce Homo. Ele chama de "destino" à sua "tarefa" que ele voluntariamente assume (Ecce Homo, Por que sou tão inteligente, §9). O destino torna "grande" a tarefa de atar um "nó" no "destino da humanidade" (Ecce Homo, Assim falou Zaratustra, §5) e, uma vez que isso coube a ele, ele também o quer.
O processo semiótico no conceito de destino em Nietzsche parte dele próprio e culmina em seu próprio destino. Processo semelhante será visto, na sequência, repetidas vezes. Os conceitos de Nietzsche se desenvolvem de tal modo que o pensador pode, no fim, compreender-se a si próprio, a partir deles. No § 1 de Ecce Homo, Por que sou um destino, que mal ocupa uma página na KSA, o pensador converge todos os grandes temas da filosofia ocidental destino, religião, verdade e política em um único ponto: ele próprio e sua transvaloração de todos os valores.
Começo, pois, a exegese do aforismo, passo a passo.
[1] Conheço a minha sina. [2] Um dia, meu nome será ligado à lembrança de algo tremendo, [3] de uma crise como jamais houve sobre a Terra, da mais profunda colisão de consciências, de uma decisão conjurada contra tudo o que até então foi acreditado, santificado, requerido. [4] Eu não sou um homem, sou dinamite. [5] E com tudo isso nada tenho de fundador de religião [6] religiões são assunto da plebe, [7] eu sinto necessidade de lavar as mãos após o contato com pessoas religiosas... [8] Não quero "crentes", penso22 ser demasiado malicioso para crer em mim mesmo, nunca me dirijo às massas... [9] Tenho um medo pavoroso de que um dia me declarem santo: perceberão por que publico este livro antes, ele deve evitar que se cometam abusos comigo... [10] Eu não quero ser um santo, seria antes um bufão... Talvez eu seja um bufão... [11] E apesar disso, ou melhor, não apesar disso pois até o momento nada houve mais mendaz do que os santos , a verdade fala em mim. [12] Mas a minha verdade é terrível: pois até agora chamou-se à mentira verdade. [13] Transvaloração de todos os valores: eis a minha fórmula para um ato de suprema auto-gnose da humanidade, [14] que em mim se fez gênio e carne. [15] Minha sina quer que eu seja o primeiro homem decente, [16] que eu me veja em oposição à mendacidade de milênios... [17] Eu fui o primeiro a descobrir a verdade, ao sentir por primeiro a mentira como mentira ao cheirar... [18] Meu gênio está nas narinas... [19] Eu contradigo como nunca foi contradito, e sou contudo o oposto de um espírito negador. [20] Eu sou um mensageiro alegre, como nunca houve, eu conheço tarefas de uma altura tal que até então inexistiu noção para elas, somente a partir de mim há novamente esperanças. [21] Com tudo isso sou necessariamente também o homem da fatalidade. [22] Pois quando a verdade sair em luta contra a mentira de milênios, teremos comoções, um espasmo de terremotos, um descolamento de montes e vales como jamais foi sonhado. A noção de política estará então completamente dissolvida em uma guerra dos espíritos, todas as formações de poder da velha sociedade terão explodido pelos ares todas se baseiam inteiramente na mentira: haverá guerras como ainda não houve sobre a Terra. Somente a partir de mim haverá grande política na Terra.(Ecce Homo, Por que sou um destino, §1).
[1] O texto inicia-se com provocações. A palavra "conheço" ("Conheço a minha sina") gera a expectativa de um conhecimento seguro. Mas não se pode verdadeiramente conhecer uma "sina" (Loos): a palavra "sorte" (Los) acentua o caráter fortuito e inatingível do destino. Quem se arroga conhecer sua sorte, porta-se como um profeta. Contudo, os profetas (pelo menos aqueles do Velho Testamento) não predizem tanto o destino, mas sobretudo veem e anunciam contra a inércia da superficialidade cotidiana aquilo que já começou a acontecer e o que disso deve seguir (os profetas bíblicos, em sua maioria, anunciam a corrupção do povo escolhido de Deus).23
Nietzsche, que viu e anunciou a "morte de Deus" para o seu tempo, quer mostrar as consequências que muito provavelmente ocorrerão, sendo que ele já o fizera antes de modo mais espetacular em Assim falou Zaratustra, e antes e depois desse livro, nos aforismos 125 e 343 da Gaia Ciência sem, no entanto, conseguir ser suficientemente ouvido. Sua sortefoi e é a de ser (no duplo sentido) um profeta inaudito. Através da genealogia de seu pensamento, levada a cabo nas seções anteriores de Ecce Homo, Nietzsche torna patente sua sorte a partir das condições fortuitas de sua vida, que se ajustaram a um destino inevitável, necessário: de ser, com a sua "descoberta", um "destino da humanidade".
[2] "Um dia, meu nome será ligado à lembrança de algo tremendo". Nietzsche novamente prossegue com aparente certeza. Contudo, o fato de ele vir a se tornar um destino em algum tempo indeterminado depende de outros o reconhecerem como um destino. Em outras palavras, seu destino somente "se realizará" quando outros também considerarem o destino do filósofo como sendo o deles. Vai depender da lembrança futura de seu nome. Depende de ser lembrado novamente e de o deixarem ser passado adiante; a lembrança alheia é seu destino24.
Um nome, por sua vez, é um signo geralmente utilizado para um indivíduo, e lhe é dado por outros indivíduos antes que ele próprio possa falar e dizer "eu". O nome é um signo estranho, que o indivíduo (na maioria das vezes) usa como seu, para se identificar frente a outros. Desse modo, um nome igualmente é um destino que se apropria para si. Tudo aquilo que ocorrer com o portador do nome cristaliza-se no próprio nome. O nome torna-se "conceito"25 e perdura por tanto tempo quanto alguém se lembrar dele26.
Com isso, a lembrança de um nome é o destino de um destino que outros precisam querer, pois as pessoas se lembram apenas daquilo que querem lembrar ou daquilo que se veem obrigadas a lembrar. Nietzsche elabora seu destino sobre essa coação: com aforismos como este que estamos analisando, o filósofo quer assegurar tanto que seu nome seja lembrado, como ainda que se tenha de lembrar que não se pode esquecer daquilo que foi escrito nesse nome.
[3] Desde então, não se pode de fato esquecer-se do nome Nietzsche. Mesmo seus opositores atribuem a ele "algo tremendo", "uma crise como jamais houve sobre a Terra, [...] a mais profunda colisão de consciências, [...] uma decisão conjurada contra tudo o que até então foi acreditado, santificado, requerido".Dentre outros leitores, Jürgen Habermas entende a repercussão de Nietzsche27 justamente desse modo, pois julga que Nietzsche seria tão perigoso quanto ele próprio se julgava. Contudo, o filósofo de Naumburg apenas "revelou" que, no que diz respeito à razão na filosofia ocidental, trata-se de uma "contrafactualidade" ou seja, o fato não mais pode ser tomado como critério de justificação de um discurso que, em outras palavras, a razão era objeto de uma crença que agora também para Habermas perdeu sua autoevidência. Depois de Nietzsche, pode-se ter necessidade ou não dessa crença; aqueles que são incapazes de viver sem ela não poderão fazer mais do que rejeitar as impertinências de Nietzsche. Contudo, aquele que se arriscar a tomar parte em seu "esclarecimento" se encontrará na "mais profunda colisão de consciências" que é justamente o que o filósofo esperava.
Kant concebeu sua "crítica" da razão na consciência de que a razão que, ao longo dos séculos, ultrapassou seus limites e entrou com isso em um mero "tatear às cegas" em meio a crenças metafísicas indemonstráveis apenas alcançaria o "caminho seguro das ciências" através do estabelecimento seguro dos seus limites.28 A razão permanecia aqui ainda como uma instância da própria crítica e, enquanto tal, ainda estava elevada acima da experiência e em condições de fazer juízos a priori, reconhecidamente independentes das condições da vida ou do tempo.
Todavia, mesmo as ideias de que a razão seria independente das condições de vida ou de tempo e de que deveria haver uma razão "pura" corriam, já no século XIX, bastante risco de tornarem-se meras crenças, as quais acabariam por ser cada vez menos críveis. E Nietzsche, que agudamente reconheceu isso, extraiu corajosamente a "perigosa consequência"29: a crítica da razão se transformaria na sua crise e forçaria a uma nova orientação dos fundamentos mesmo na Europa, que até então acreditara firmemente em uma razão eterna.
No entanto, como Nietzsche anotou no fragmento Lenzer-Heide, essa nova orientação levará, em seguida, a uma desorientação massiva, à liberação de forças que, em desespero, só podem e querem destruir. Essa "crise" irá irromper em uma "convulsão", em uma "fúria cega" "de niilismo e vontade de destruição".30 A "perigosa consequência" tornou-se profecia: as guerras mundiais, totalitarismos, genocídios e terrorismos, como mostrou o século XX, podem ser compreendidas (ao menos também) como consequências dessa crise espiritual, na qual entraram as convicções fundamentais do pensamento europeu, em especial a convicção do efeito benéfico de toda razão em geral. Desde esse tempo, não podemos mais estar seguros com relação à razão europeia.
[4] Nietzsche empregou a metáfora "dinamite": "Eu não sou um homem, sou dinamite."31 Com a metáfora dinamite, introduzida pela primeira vez em Além de bem e mal32, o filósofo, por um lado, ainda dramatiza a transvaloração. Por outro lado, ele pensa em "uma dinamite do espírito, uma niilina russa recém-descoberta" (Além de Bem e Mal, §208) que permanece despercebida por longo tempo e, de repente, mostra seu efeito. No prólogo de Ecce Homo,ele cita Zaratustra: "As palavras mais silenciosas são as que trazem a tempestade, pensamentos que vêm com os pés de pomba dirigem o mundo " (Ecce Homo, Prólogo, §4)33. Isso quer dizer que pensamentos podem desenvolver força explosiva contra pensamentos, podendo demolir relações de pensamentos tidas até então como firmes34.
O pensamento da "igualdade das almas diante de Deus" também foi, conforme Nietzsche mostrou n'OAnticristo, § 62, um "explosivo de conceito que afinal se tornou revolução, idéia moderna e princípio decadente de toda a organização social [foi] dinamite cristã"35. O filósofo chama de "dinamite", sem o adendo de "do espírito", a si próprio: "Eu não sou um homem, sou dinamite." A contradição homem-dinamite reside no seguinte perigo: enquanto os homens forem conduzidos pela moral cristã, eles não serão perigosos; mas quando se libertam dela, daí, sim.
[5] Mas a dinamite não tem efeito apenas destrutivo. Quando se aprende como lidar com ela, pode-se destruir obstáculos e criar lugar para construções, ruas, linhas férreas etc., demolindo de maneira precisa aquilo que é velho, para abrir espaço para o novo. O novo, para o qual Nietzsche quer abrir caminho, não poderia ser uma nova religião e moral totalizadora. Ele não quer ser um criador de religiões: "E com tudo isso nada tenho de fundador de religião".
Dizer isso parece trivial, por um lado, e altamente presunçoso, por outro. Entretanto, faz sentido: a forte crise de orientação que a transvaloração dos valores traz consigo faz com que se espere que ela desperte uma necessidade ainda mais forte pela religião. Uma transvaloração de todos os valores, como o pensador a anuncia, deve deflagrar um forte impulso por novas religiões _ e nós vivenciamos isso ainda hoje. Segundo Nietzsche, as religiões respondem à necessidade de se lidar facilmente com a totalidade da vida. Contudo, na medida em que elas protegem o homem da verdade da vida, elas também mantêm essa necessidade. Nietzsche, no entanto, diferentemente de outros críticos da religião, não substitui a religião pela verdade, pois ele também foi o crítico mais mordaz da verdade36.
Nietzsche entende que a verdade também seria um tipo de erro, para o qual coage a necessidade da vida37. E, nas circunstâncias onde esse erro for deliberadamente propagado como verdade, Nietzsche o chama de mentira. Desse modo, ambas _ religião e verdade _ são, para a maioria das pessoas, erros necessários à vida. Mas, para aquelas pessoas que fundam as verdades e religiões, que buscam aliviar os sofrimentos humanos, aumentando assim seu próprio poder; para essas pessoas, religião e verdade são mentiras. Por isso, os fundadores de religião são "horrendos híbridos de doença e vontade de poder" (Ecce Homo, Prólogo, §4) também eles foram e são transvaloradores de valores e figuras histórico-universais das mais ativas. Os filósofos se movem perigosamente próximos aos fundadores de religião: a diferença é que eles são apenas menos bem-sucedidos.38
[6] Os fundadores de religião têm a capacidade de "dar a essa vida uma interpretação, mediante a qual ela pareça iluminada pelo mais alto valor, de modo a se tornar um bem pelo qual a pessoa luta e, em algumas circunstâncias, dá a própria vida" (AGaia Ciência, §353). Porém, isso Nietzsche também quis, aproximando-se tanto de um fundador de religião que as pessoas (e talvez também ele próprio) facilmente poderiam tomá-lo como se fosse um deles. Dessa maneira, nesse momento a separação foi difícil, inclusive para ele próprio.
Diante disso, ele faz uso de seu meio mais explícito, a polêmica: "religiões são assunto da plebe". Ele utiliza a expressão "assunto da plebe" apenas aqui. Plebeu é aquele que não quer ser conveniente e Nietzsche, especialmente, não quer. Por outro lado, no entanto, é difícil separar a plebe das pessoas convenientes. Zaratustra lida incansavelmente com essa delimitação, opondo à plebe os "destacados".
Não obstante, há igualmente uma "crença de superioridade" plebeia no erudito que "trata o homem religioso como um tipo inferior e de menor valor, que ele mesmo superou, deixou para trás, para baixo" (Além de Bem e Mal, §58), e há um "instinto plebeu" na "declaração de independência do homem científico", acima de tudo na sua "emancipação da filosofia", como o filósofo a entende.
Também na filosofia há plebeus; pessoas que seguem as verdades e valores dominantes, para obterem boa aceitação e aplausos. O "verdadeiro filósofo", ao contrário, "sente o fardo e a obrigação das mil tentativas e tentações da vida ele arrisca a si próprio constantemente, jogando o jogo ruim..." (Além de Bem e Mal, §205), ele tem a coragem de ficar sozinho e lança ironias contra todos os conhecimentos ensináveis.
Aqui, Nietzsche duvida por fim de Sócrates e ainda de si mesmo. Em 1885, ele escreve a Köselitz: "Em todos os meus estados de enfermidade, sinto, com medo, um tipo de impulso baixo para fraquezas plebeias, suavidade plebeia, até mesmo virtudes plebeias você entende isso? Oh você, o mais saudável!"39
[7] Em meio à polêmica do texto de Ecce Homo, Nietzsche mostra que continua "em contato" com "homens religiosos", não se esquivando deles: "eu sinto necessidade de lavar as mãos após o contato com pessoas religiosas". Dos seus "contatos" com pessoas religiosas, o pensador tem "necessidade" de se manter "limpo" daquilo de "plebeísmo", mas também daquilo de "destacado" que elas vivem. Para tanto, ele próprio precisa lidar, debater-se com isso. Os religiosos o "afetam", pois ele, assim como qualquer outro, não está livre das necessidades religiosas e, principalmente, quando se trata de pessoas que necessitam da religião, ele precisa lutar consigo para não ser subjugado nem dominado por elas e, dessa forma, perder seu distanciamento crítico.
[8] Evidentemente, Nietzsche nem sempre "quer", como ele enfatiza, conseguir o que ele quer40. Com suas expressões "Nãoquero 'crentes'" e "Eu não quero ser um santo" que parecem levar sua presunção ao tom extremo em provocar Nietzsche rejeita necessidades religiosas, as quais ele mesmo mal pode evitar.41 Para isso, ele remete a fatos de sua personalidade e aos seus escritos, sobre os quais, por sua vez, ele não está seguro: "penso ser demasiado malicioso para crer em mim mesmo". "Malicioso" não é "mau". Mau é quem faz mal a outros, quem, na perspectiva deles, fere seus olhos. Malicioso, em contraposição, é quem lembra a outros o que de mau está contido neles, que eles próprios não reconhecem: ele as esclarece sobre elas próprias. Como Nietzsche pôde aprender, sobretudo a partir de Voltaire42, a malícia é um meio de esclarecimento e, quando se consegue ser malicioso contra si próprio, ela também é um meio de esclarecimento sobre si próprio43. Contudo, Nietzsche lança previamente um "penso", o que é de grande significado.
Por sua vez, pode-se compreender isso como "eu creio". "Penso" pode significar em alemão simplesmente "eu creio", de sorte que a frase significaria: "eu creio ser demasiado malicioso para crer em mim mesmo". É patente que a crença se torna paradoxal, pois, se por um lado ela se afirma por si mesma, por outro se torna incerta. Entrementes, a expressão "eu penso" foi o símbolo do esclarecimento moderno, introduzida por Descartes com o objetivo de não deixar restar nenhuma crença sem comprovação. Se alguém lê o "penso" de Nietzsche desse modo, o "ser demasiado malicioso para crer em mim mesmo" torna-se uma explicação do "penso": e, assim, esse pensamento filosófico do esclarecimento consistiria em ser malicioso demais para crer em si mesmo, para dar-se por satisfeito com as certezas que o consenso das massas o tornam seguro. Em resumo: não pensar com as massas, mas por si próprio ("nunca me dirijo às massas").
Todavia, ambas as possibilidades de leitura não se excluem. Mesmo a expressão "eu penso esclarecidamente", "eu penso por mim mesmo", pode ainda ser apenas um "eu creio que, por mim mesmo, posso pensar esclarecidamente". Para um esclarecido, não há certeza sobre essa crença, e a formulação de Nietzsche é particularmente maliciosa a ponto de permitir ambas as leituras, sendo que ambas ainda deixam reconhecer aquilo que ele "quer": crer na própria força de esclarecimento, sem jamais poder estar seguro sobre ela.
[9] Em um rascunho desse aforismo, Nietzsche anota logo a seguir: "e com tudo isso nada há em mim de um <faná>tico; quem me conhece me toma por um simples intelectual, talvez um pouco malicioso, <que> sabe ser jovial com todo o mundo. Este livro oferece, como eu espero, uma imagem bem diferente <da> de um profeta (...)." Logo adiante, no mesmo rascunho: "Fatídico Deus ou bufão isto é o involuntário em mim, isso sou eu."44 No texto publicado, o "fanático" e o "profeta" são condensados no "fundador de religião", e "santo" ocupa o lugar de "Deus": Nietzsche também aprimora o "fanático" em "fundador de religião" e novamente coloca "santo" no lugar de "Deus". Nos textos especificamente preparados para publicação, a presunção desemboca em uma modéstia a modéstia de uma presunção ainda mais forte. "Santo" é aquilo que é intocável e que vale como intocável. Aqueles que professam uma religião chamam de santo aquele que cria ou fortalece uma religião.
Nietzsche, que no Anticristo quer elucidar o valor do cristianismo e, com isso, superá-lo, devia temer, caso o conseguisse, que ele próprio acabasse sendo chamado de santo por aqueles que poderiam abdicar da velha crença em favor de uma nova ("Tenho um medo pavoroso de que um dia me declarem santo: perceberão porque publico este livro antes, ele deve evitar que se cometam abusos comigo"). O temor não foi descabido. O medo de Nietzsche procede: até o final do terceiro Reich, não foram poucos os novos "cultos de Nietzsche" que afloraram.45
[10]Em sua obra, Nietzsche frequentemente fala do medo, sobretudo do medo religioso. Mas apenas aqui ele fala do seu próprio medo. Ele confronta-se com esse sentimento, sobrepondo o "bufão" ao "santo": "Eu não quero ser um santo, seria antes um bufão... Talvez eu seja um bufão..." Um bufão é malicioso, sem ser levado a sério. Sua malícia não machuca. A gente pode deleitar-se com ela. Nietzsche não diz que é um bufão, mas sim que "talvez" seja um bufão e que, caso haja a necessidade de atribuir-lhe um determinado papel, ele prefere ser um bufão a ser um santo. Ele coloca o leitor diante da alternativa de decidir e o previne contra uma crença apressada.
O santo e o bufão situam-se em margens opostas do pensamento. O santo está lá onde o pensamento se torna intocável e passa a ser crença. O bufão, onde ele passa a ser descrença, onde o pensamento perde toda a seriedade e torna-se implausível, despropositado. O santo constrange a um ou-ou: é preciso que se creia nele ou se tem que negar sua santidade. Contrariamente, diante do bufão, permanecemos livres; pode-se ora acreditar nele, ora rir dele. Do ponto de vista da seriedade do "destino", da "tarefa" que Nietzsche toma para si como seu destino, o que lhe importa aqui é essa liberdade.
[11] Apesar disso, Nietzsche, à maneira de um santo, fala da verdade. Porém, fala como um santo precavido contra todos os outros santos: "E apesar disso, ou melhor, não apesar disso pois até o momento nada houve mais mendaz do que os santos , a verdade fala em mim." Ele joga o seu jogo de que os crentes se mantenham longe dele e que ele deve se manter livre deles, acima de tudo. A tensão do texto aquilo de mais patético na obra do filósofo é então levada ao extremo, é testemunho da paixão, da excitação e da raiva de um grande profeta, que com isso coloca ainda em questão toda a objetividade.
Nietzsche agora escreve e fala sem fôlego: usando reticências ("..."), como se o tempo não fosse suficiente para se expressar; usando intercalações (parênteses), como se ele próprio se interrompesse; com separações sinalizadas por travessões (""), como se não houvesse espaço para associações consequentes.46 Aquilo que se expressa é alcançado a partir daquilo que visivelmente não está expresso. Involuntariamente e por sua própria responsabilidade, o próprio leitor completa as elipses e as associações omitidas. O leitor lê o texto e, sem querer, passa a assumi-lo como se fosse seu autor.47
[12] Que verdade pode falar a partir do crítico mais mordaz da verdade, que prefere ser um bufão a ser um santo? Certamente não a verdade metafísica, que precisa estar adequada a um ser fora dela _ e com certeza também nenhuma que possa ser objeto de crença religiosa. Nietzsche fala da sua verdade, que ele criou ("minha verdade"). Ela deve ser a verdade daquelas verdades, ser o "descobrimento" daquilo que até então valia de "forma mentirosa" como verdade. Ele não a expressa por travessões (""), mas deixa que também ela seja deduzida pelo leitor, sob sua própria responsabilidade:averdade como liberdade de decisão sobre a verdade ou a verdade como liberdade.48 Contudo, a liberdade da decisão sobre a verdade é "terrível", pois ela não se apoia em nada, podendo acarretar dificuldades extremas e ainda conduzir a decisões erradas e a uma desorientação total, que precisará ser enfrentada sem religião e sem crenças.
Segundo o evangelho de João, Cristo disse acerca de si: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" (João, 14:6). Nietzsche não disse "eu sou a verdade", mas sim "a verdade fala em mim": quando a verdade fala, ela também fala em diferenciações, e em cada diferenciação sempre está presente também o outro lado da diferença, a outra alternativa possível. Na verdade está o erro indesejado ou a mentira desejada. A "mendacidade" desejada ou indesejada de um santo ou daquele de quem se acredita que seja santo, que pode inclusive ser um filósofo reside na desqualificação da alternativa sempre possível. E, desse modo, a verdade significa a decidibilidade da verdade pela afirmação de uma verdade única, que simultaneamente exclui a possibilidade de que ela possa ser a mentira ou o erro: "pois até agora chamou-se à mentira verdade."
[13] O "descobrimento" da verdade aparentemente sem alternativa do valor mais alto da metafísica, da moral e da religião ocidentais, que serve de fundamento a todos os valores restantes como sendo nada mais que uma mentira é a "transvaloração de todos os valores". Ela não pode mais ser uma verdade no antigo sentido, mas apenas uma "fórmula". Ela é a "fórmula"nietzscheana"para um ato de suprema autognose da humanidade", pelo qual todos serão afetados na medida em que todos, nas necessidades de suas vidas, acreditam em valores nos quais possam se apoiar. Pelo fato de que todos precisam partilhar da crença na verdade, ela se tornou algo óbvio e evidente, e justamente por isso é difícil romper com ela. Quem possui a liberdade para tal deve, por sua vez, assim como Nietzsche, ter passado por necessidades severas da vida que tornem esse rompimento possível.
Em Ecce Homo,Nietzsche expõe as condições de sua liberdade ("Por que sou tão sábio", "Por que sou tão inteligente..."), para descobrir por que justamente ele deveria ser capaz de uma transvaloração de todos os valores (nesse aspecto, Ecce Homo não é uma autobiografia, mas uma genealogia do seu pensamento49).
[14] Desde o século XVIII, o conceito usual para se referir às pessoas que, por motivos desconhecidos, criam novos padrões para todos, é o de gênio ("que em mim se fez gênio e carne"). Nietzsche deu ênfase durante toda sua vida à palavra "gênio" o termo está presente centenas de vezes, em sua obra e, contudo, aparece simultaneamente de maneira mordaz na "crença no próprio gênio" (Aurora, §542) e na "superstição relativa ao gênio" (Humano, demasiado humano I, §164) como sendo a "superstição do nosso século" (Fragmento do outono de 1887, KSA 12, 9[170] p. 435). Ele despiu a fala do gênio de todo "ressaibo mitológico ou religioso" (Humano, demasiado humano I, §231) e tomou para si próprio o mito da originalidade.
Um gênio é meramente alguém que, por força de suas próprias necessidades, encontra mais ou menos casualmente novas possibilidades para outras pessoas (Cf. Humano, demasiado humano I, §231). Por fim, ele traz a metáfora da dinamite também para o conceito do gênio: "Os grandes homens, como as grandes épocas, são materiais explosivos em que se acha acumulada uma tremenda energia; seu pressuposto é sempre, histórica e fisiologicamente, que por um longo período se tenha juntado, poupado, reunido, preservado com vistas a eles que por um longo período não tenha havido explosão." (Cf. Crepúsculo dos Ídolos, Incursões de um extemporâneo, §44). O gênio, por seu turno, é, pois, mais um destino do que mérito. Ele nem ao menos tem o poder de acionar as suas forças acumuladas. São muito mais as circunstâncias e o tempo que possibilitam sua ação. Do mesmo modo, a presunção com a qual Nietzsche fala de si próprio como um gênio afunda em modéstia.
[15] O que está nas mãos do gênio é apenas tornar-se "decente": "Minha sina quer que eu seja o primeiro homem decente, que eu me veja em oposição à mendacidade de milênios..." Da mesma forma que em "destino", "plebe" e "medo", a utilização por Nietzsche do conceito "decente" realiza uma transvaloração assombrosa, que eu não tenho condições de abordar aqui. Ela converge novamente sobre ele próprio, naquilo que ele chama de "honestidade intelectual" e que não encontra dimensão semelhante em mais ninguém.
[16] A mera decência intelectual (ou probidade, ou honestidade) é o parâmetro moral do seu pensamento, com o qual ele se vê "em oposição à mendacidade de milênios..." Nietzsche não possui nada além dessa oposição sua oposição pessoal contra o antagonismo moral entre verdade e mentira, que dominou o pensamento europeu durante milênios.
A medida temporal com a qual ele avalia filosoficamente a sucessão dos acontecimentos são os milênios: ele tem diante dos olhos, sobretudo, os dois milênios transcorridos desde a fundação da filosofia e do cristianismo, e também que a Europa precisasse "se propor metas por milênios"; isto estaria sob a "compulsão à grande política." (Além de Bem e Mal, §208). Esta é a medida temporal da sua transvaloração.
[17] Nietzsche não mais se expressa como se ele "se visse em oposição" contra os velhos valores e contra a ausência de outras alternativas. Duas frases adiante ele diz que é um oposto. "Oposto" não é aqui nenhuma oposição conceitual como verdade e mentira, mas antes uma oposição existencial justamente contra tais oposições conceituais tidas como naturais e evidentes. Entrementes, não se faz mais nenhum esforço para refutá-las,50 chega-se a isso simplesmente pelo antagonismo de, agora, se viver, sentir e pensar diferentemente. Nietzsche confronta as oposições metafísicas a partir daquilo que o culto milenar delas rejeitou mais resolutamente: as sensações. E, dentre as sensações, ele ainda parte daquelas que são as mais dificilmente conceitualizáveis e que, por isso, são consideradas as mais inconsistentes e menos delineáveis: as sensações gustativas e olfativas: ele "sente cheira..." a mentira.
[18] Uma razão fundamentada sobre oposições metafísicas não pode ser refutada por meio dela própria. Ao invés disso, é preciso um faro para conceitos e para as necessidades vitais às quais esses conceitos respondem: "Meu gênio está nas narinas..." No uso de conceitos, Nietzsche creditou "felizes narinas" a Zaratustra e "narinas sutis" a si próprio51. As narinas são os órgãos olfativos dos cavalos Nietzsche brinca com o mito platônico da alma como um carro conduzido por uma parelha de cavalos (Fedro, 246 a-b), segundo o qual a razão simultaneamente guia os cavalos, mas também é puxada por eles.52
[19] No último terço do aforismo, Nietzsche traz mais uma vez e com mais força expressões anteriores ("sina" transforma-se em "fatalidade"; "crise sobre a Terra" em "comoções" e "terremotos"; "colisão" em "guerra dos espíritos"; "dinamite" em "explodido pelos ares"). Ele formula a oposição que ele é na forma de um enigma: "Eu contradigo como nunca foi contradito, e sou contudo o oposto de um espírito negador."
Em uma oposição existencial, uma dupla negação não se torna simplesmente uma afirmação. Um "espírito negador" típico seria um "espírito do ressentimento" (Para a Genealogia da Moral, II, §11), e um "espírito afirmador" precisa, por isso, ser livre de ressentimentos. Nietzsche tem a coragem de atribuir-se a si próprio "estar livre do ressentimento", porque em grande medida o filósofo foi compelido para isso: o esforço de simplesmente sobreviver à sua longa "enfermidade" que já é "uma forma de ressentimento" e que poderia tê-lo compelido a um ressentimento profundo contra sua vida e contra toda a vida em geral o coagiu para o "esclarecimento sobre o ressentimento" (Ecce Homo, Por que sou tão sábio, §6).
No entanto, é difícil diferenciar entre o dizer-não ao ressentimento e o dizer-não do ressentimento, e, assim, o "contradizer como nunca foi contradito" é um ser-diferente e um pensar-diferente daquilo que os ressentimentos em geral querem. Nietzsche denominou essa postura como um "fazer não", que não pode ser novamente reduzido a conceitos gerais ou oposições conceituais, mas que apenas pode ser mostrado. Nietzsche mostrou isso na figura de Zaratustra53.
[20] Mas o "oposto de um espírito negador" foi como Nietzsche reconheceu, n'O Anticristo, o "mensageiro alegre" Cristo , de quem ele falou como o "tipo Jesus": da mesma forma, ele também foi identificado como "a liberdade, a superioridade sobre todo sentimento de ressentimento" (O Anticristo, 40), sua "prática evangélica" (O Anticristo, §33) seria, no entanto, dogmatizada por uma recente "ironia histórico-universal" (O Anticristo, §36) em uma verdadeira religião do ressentimento (O Anticristo, 43). Nietzsche responde a isso com um novo "quinto evangelho", que ele chamou de Assim falou Zaratustra",54 e, por fim, fala ainda de si próprio: "Eu sou um mensageiro alegre, como nunca houve", um mensageiro alegre que quer novamente libertar a boa nova do pensamento ressentido que se depôs sobre ela, durante milênios. Isso pode inicialmente somente significar "tarefas" e "esperanças", mas também "comoções" e, como Nietzsche complementa no aforismo seguinte, igualmente "destruições".55 A afirmação existencial de uma orientação radicalmente nova torna necessária a dissolução da antiga.
[21] Para isso, Nietzsche precisa ser também o "homem da fatalidade." Anteriormente, ele ainda imputou à figura do Zaratustra ser o "portador do mais pesado destino, de uma fatalidade de tarefa." Ele, que "tem a mais dura e terrível percepção da realidade, que pensou o "mais abismal pensamento," o pensamento do eterno retorno do mesmo, "não encontra nisso, entretanto, objeção alguma ao existir, sequer ao seu eterno retorno antes uma razão a mais para ser ele mesmo o eterno Sim a todas as coisas, "o imenso ilimitado Sim e Amém"..." (Ecce Homo, Assim falou Zaratustra, §6).
[22] Por fim, Nietzsche volta-se para a "crise", com a qual ele iniciou. Com a intensificação da dinamite (deliberadamente acionada) para causar o (inevitável) terremoto, ele mesmo detona a metáfora explosiva:56 "quando a verdade sair em luta contra a mentira de milênios, teremos comoções, um espasmo de terremotos, um descolamento de montes e vales como jamais foi sonhado." Por último, ele inclui ainda as fórmulas "como nunca foi contradito", "como jamais houve", "como jamais foi sonhado."57
O evento da "transvaloração de todos os valores" irá ultrapassar tudo aquilo que existiu, a luta e o espasmo na filosofia, ciência, moral e religião irão ultrapassar seus âmbitos e sacudir radicalmente os fundamentos da orientação corriqueira. A moral greco-cristã dogmatizada irá, em sua crise, mostrar o seu profundo enraizamento no pensamento dos europeus e, dessa maneira, também determinar a política, cujo instrumento mais extremo é a guerra. Guerras em torno de valores não serão mais meras lutas pelo poder, que poderão ser facilmente encerradas por dinastias ou por nações, da mesma forma que foram instigadas, mas sim "guerra[s] dos espíritos", com e por verdades, morais, religiões ou, dito simplesmente: ideologias58 que se espalham sorrateiramente e que, de repente, mostram consequências explosivas. Elas são, como o século XX suficientemente evidenciou, a dinamite mais perigosa, da qual o terrorismo no século XXI continua fazendo uso, literalmente.59
Nietzsche utilizou a expressão "grande política" bem cedo e primeiramente de maneira irônica, referindo-se ao novo Reich alemão.60 Em sua obra tardia, o filósofo denomina "grande" não aquilo que predomina sobre outros, mas aquilo que não é negado por sua contradição, que não é destruído por ela, que, por meio dela, torna-se ainda mais fecundo, que pode crescer com a ajuda dela. Assim, a "grande razão do corpo" faz da "pequena razão" da "razão pura" seu instrumento e brinquedo (Assim falou Zaratustra, I, Dos desprezadores do corpo); uma "grande saúde" pode se "abandonar" a doenças graves e, com isso, tornar-se ainda mais robusta (A Gaia Ciência, §382); "a grande vida" vive-se a partir da guerra (Crepúsculo dos Ídolos, Moral como antinatureza, §3); a "grande tolerância" pode tolerar a intolerância com "magnânimo autocontrole" e ainda crescer nela (O Anticristo, §38) e o "grande estilo" pode unir o pathos mais elevado com sobriedade e jovialidade (Ecce Homo, Por que escrevo livros tão bons, §4). Nesse sentido, "grande política" é a política que encerra em si aquilo que comumente lhe é contrário, espírito na forma de moral, religião, ciência, filosofia ou simplesmente "guerra dos espíritos". Ainda nas suas anotações temerárias sobre a "grande política", que o filósofo rascunhou na virada para o ano de 1889, interessa a ele abordar uma política de guerras "não entre povo e povo" e "não entre classes", porém, contra "todos os absurdos acasos de povo, estado, raça, profissão, educação, formação: uma guerra como entre ascensão e declínio, entre vontade de vida e desejo de vingança contra a vida, entre honestidade e mentiras traiçoeiras..."61
3 A decidibilidade da verdade como destino da humanidade
Façamos um resumo: o aforismo tira as conclusões do "descobrimento" nietzscheano da moral cristã, a qual se articula com os mecanismos da filosofia grega e impregnou a Europa, durante milênios. Sua revelação, seu esclarecimento, tornou-se possível por meio da inquietação da consciência que ela própria cultivou. Na época de Nietzsche, o valor de uma verdade absoluta dissociada da vida e dos seus destinos a qual deveria dar sentido a todos os sofrimentos da vida e ser adequadamente reconhecida62 tornou-se visivelmente implausível.
Uma vez que, na tradição europeia, todos os valores restantes se apoiavam neste valor, deveria então surgir nesse momento uma inevitável "transvaloração de todos os valores". Segundo Nietzsche, sua "sorte" e "fatalidade" foi ver isso com olhar claro e manifestar-se sobre isso com integridade incorruptível, e, por conta disso, tornar-se o destino da humanidade europeia; e, visto que o mundo em geral está sob a influência europeia, também no destino da humanidade como um todo.
O "fenômeno" da transvaloração responde, segundo Nietzsche, a eventos histórico-universais transcorridos em milênios: à pressão socrática por uma verdade impessoal em nome do deus délfico Apolo, para a qual o ateniense, contudo, não fez valer nenhum exemplo; e ao testemunho de Jesus de uma verdade do amor, para a qual ele próprio era o único exemplo. Com suas personalidades, ambos deram autoridade a uma verdade a qual os ultrapassou e, com suas mortes, assumiram a responsabilidade por ela.63
A ambos seguiram-se outros, que tomaram a verdade deles como algo supraindividual, geral, como a verdade em geral. Paulo sustentou a verdade cristã do amor, para que ela pudesse se espalhar pelo mundo, através da verdade grega geral. Seus sucessores preservaram a verdade grega em nome da cristã e, dessa maneira, embora as origens sejam bastante distintas, ambas as verdades encontraram apoio uma na outra, durante milênios.
Quando o valor absoluto dessa verdade greco-cristã se tornou implausível, as "tarefas" de dar novos valores à humanidade e as "esperanças" que repousam sobre elas recaem novamente sobre aqueles que possuem a força para isso. Uma força que deve vir do mesmo modo como a força de Sócrates e de Jesus de Nazaré, ou ao menos ser considerada como igual.
Nietzsche tentou dar forma a essa força, no Zaratustra, novamente a figura de uma única pessoa com uma comprovada "coragem para permanecer só" e para a "solidão" também no pensar. Ele posicionou seu filosofar sob o "conceito de Dioniso", do deus que reúne em si todas as contradições sobre as quais os homens dispõem o seu mundo, e põe-nas sempre de novo em movimento contra a necessidade de consolidá-las e de conseguir, com isso, um apoio duradouro.
Desse modo, os homens que se mantêm ligados à verdade de uma generalidade atemporal, que agora se tornou igualmente "mentira", devem novamente se tornar livres: tanto para a vida, onde tudo tem seu tempo, inclusive a verdade; como para a nova verdade de uma decisão sobre a verdade de tempos em tempos. Assim, a verdade também se tornará objeto da política, "grande política" de espíritos que possuem a força para decisões sobre a verdade. E dessa forma, mesmo esse aforismo inaudito pode também ser levado filosoficamente a sério.
Stegmaier, Werner. Nietzsche como destino da filosofia e da humanidade? Interpretação contextual do § 1 do capítulo "Por que sou um destino", de Ecce Homo. Traducão João Paulo Simões Vilas Bôas. Trans/Form/Ação, (Marília); v.34, n.1, p. 173-206, 2011.
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Publicação nesta coleção
09 Maio 2011 -
Data do Fascículo
2011