Chegamos ao final de mais um ano de publicações da Trans/Form/Ação. Foi outro ciclo complicado, com perdas humanas e humanitárias, por conta da pandemia, crise econômica, dificuldades de muitos gêneros. Ainda assim, alcançamos grandes conquistas em nosso periódico: aproveitamos este espaço para socializar algumas delas, enquanto outras podem ser conferidas em nossa página, no Portal de Periódicos da FFC.
Um dos grandes resultados foi a redução do período entre o envio para avaliação das submissões e a decisão editorial. Fizemos um esforço para diminuir esse tempo - que era de aproximadamente um ano - para, em média, 90 dias. Faz parte das boas práticas uma avaliação rápida, principalmente em respeito aos autores dos manuscritos. Entretanto, a agilidade nem sempre é possível, dada a dificuldade, por vezes, de encontrar pareceristas, de receber os pareceres no tempo solicitado ou mesmo da necessidade de novos pareceres, quando da existência de número igual de pareceres favoráveis e contrários à publicação ou ainda da falta de convicção de uma decisão amadurecida, a partir dos pareceres já emitidos.
Também reduzimos o tempo entre a aprovação final do artigo e sua publicação. Esse período, porém, não tem como ser muito menor do que seis ou sete meses, tendo em vista o processo qualitativo pelo qual passam os artigos. Depois de aprovados, eles são submetidos à correçao gramatical e normalização, com posterior revisão, por parte dos autores. Feito isso, vai para edição, diagramação e conversão XML. Apenas após esse processo se inicia o trabalho de publicação, no portal de periódocos da FFC e no SciELO. Apesar de estarmos buscando maximizar elementos referentes à agilidade no serviço, a revista prioriza a qualidade da publicação, seja do conteúdo propriamente dito, seja da apresentação do material publicado.
Outro fator que também impacta no tempo para a publicação é o financeiro, considerando os custos com a contratação de profissionais em cada parte do processo. Com a crise financeira que nos assola, tal questão se agrava ainda mais, mesmo podendo contar com a solicitude e contribuição de nossos parceiros.
Em outra frente de trabalho, reconfiguramos a Equipe Editorial da revista. No caso da Comissão Executiva, a representatividade agora está dividida igualmente entre as áreas de pesquisa do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unesp, aos quais a revista está vinculada, bem como buscamos uma divisão mais equânime de gênero. A comissão é responsável, principalmente, pelas questões administrativas e referentes à política da revista.
Nesse mesmo sentido, ainda reformulamos o Conselho Editorial, procurando uma distribuição mais igualitária de gênero, geográfica e de linhas temáticas. Atualmente, a representação feminina no conselho é de 45 por cento. Intensificamos a participação de conselheiros estabelecidos no Hemisfério Sul, bem como integrantes de todas as regiões do Brasil. O critério adotado para a escolha dos integrantes nacionais é sua atividade comprovada em seu currículo Lattes, considerando especialmente como requisito pesquisadores com bolsa de produtividade em pesquisa CNPq/Categoria PQ-1. Para os estrangeiros, a escolha é feita a partir de seu currículo, tendo em vista sua produção, fator de impacto e referência internacional. O conselho editorial tem função consultiva e pode ser chamado para sugerir decisão sobre pareceres em material submetido, em situações específicas, dar sugestões na linha editorial da revista, bem como sugerir ou organizar números temáticos. Também ampliamos sobremaneira a quantidade de pareceristas. Atualmente, contamos com quase três mil pesquisadores, em nosso banco de dados.
Reformulamos as regras para avaliação, constituindo um formuário de avaliação, que pode ser acessado em seu site, tanto nas instruções aos autores quanto no momento da submissão de um artigo. Embora tenhamos estabelecido algumas diretrizes, a fim de tornar o processo avaliativo mais democrático, objetivo, seguro e confiável, os pareceristas têm liberdade para construir suas avaliações, tratando de itens de seu interesse ou que acharem pertinentes, ainda que não estejam explicitados no formulário.
Efetuamos a tradução ou revisão do conteúdo da página da revista para as outras quatro línguas aceitas para publicação: inglês, espanhol, francês e italiano, buscando, através da comunicação com autores e leitores estrangeiros, a internacionalização da revista. Renovamos e atualizamos a página no portal de periódicos no qual a revista está alocada, deixando-a mais leve, clara e informativa.
Além do Portal de Periódicos da FFC, a revista está atualmente indexada em diversas bases, portais e indexadores, tais como SciELO, Web of Science, Scopus, Redib, Diadorim, Ebsco, Google Scholar, Latinrev, Latindex, DOAJ, Philpapers, Clase, Academia.edu, ANPOF, CAPES. A revista também está nas redes sociais Facebook e Instagram, facilitando a comunicação com a comunidade.
Em 2021, celebramos uma série de parcerias para publicação de Dossiês. Em convênio com o Centro de Filosofia, Política e Cultura, sediado na Universidade de Évora, Portugal, publicamos o “Dossier Filosofia da Técnica e da Tecnologia”. Em parceria com a UFBA, publicamos o “Dossier Ernest Sosa”, com um artigo do próprio homenageado. A maioria dos artigos desses dossiês foram publicados por pesquisadores estrangeiros, sem desconsiderar a participação de brasileiros, nos fascículos. Ainda em 2021, foram publicados, em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unesp, uma série de livros de egressos e integrantes do PPGFil, avaliados por meio de Edital Interno.
Em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco, via Instituto de Estudos de África da UFPE, estamos em fase de finalização de Dossiê sobre o pensamento do e no Hemisfério Sul. Denominado “Filosofias do Sul: entre a África e a América Latina”, o Dossiê recebe contribuições de pesquisadores dos continentes africano e latino-americano, retratando o pensamento deste hemisfério, com base em pensadores também desta região do planeta. Também está em andamento a avaliação de artigos submetidos a partir de chamada pública para o “Chinese Dossier”.
Estabelecemos parceria com o Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de São João Del-Rey, para publicação, em 2022, de um Dossiê sobre filosofia autoral brasileira. Foram convidados reconhecidos pesquisadores nacionais, para escrever em primeira pessoa sobre temas de suas pesquisas. Com isso, visamos a contribuir para a construção e fortalecimento de uma filosofia brasileira. Esse Dossiê contém, em seu cronograma, a publicação de pre-prints, uma experiência inovadora na revista e na área das humanidades, buscando considerar as boas práticas estabelecidas pelo programa Ciência Aberta.
Em todas as parcerias celebradas, é explicitado o compromisso com a qualidade dos textos, seguindo todos os critérios de avaliação da revista, em caráter de avaliação por pares duplo-cega, mesmo para os autores convidados.
Seguindo o costume do periódico, buscamos considerar todas as metodologias, bem como as diferentes áreas de pesquisa da filosofia e também de áreas de interesse filosófico. Em 2019, para ilustrar essa questão, já havíamos publicado uma edição especial da revista exclusivamente sobre o pensamento de autores do Hemisfério Norte. Ressalte-se, no entanto, que trabalhos desse hemisfério são comuns e predominantes, na filosofia, especialmente ocidental de origem grega. Estamos tentando voltar o olhar e oferecer oportunidade também a pesquisas especializadas que não possuem tanto contato e facilidade para publicação, democratizando o acesso, a produção e a socialização do conhecimento.
Com um dos resultados das ações realizadas pela revista, nos últimos tempos, podemos indicar a quantidade de busca dos artigos publicados e de suas citações. O elevado índice de citações pode ser conferido, por exemplo, no Google Scholar. Conforme essa referência, em todos os tempos, foram qualse seis mil citações. Desde 2016, foram mais de três mil citações. O índice atual h da revista é 29, enquanto o valor desse índice, desde 2016, é 20. Já o índice i10 atual de todos os tempos é 156, e, desde 2016, é 69.
Conforme as métricas do SciELO, são 89 fascículos, com 1151 documentos, com 20.048 referências, com quase 6 milhões de acessos. Em 2018, a quantidade de acessos foi de 545.020, em 2019, foi de 698.952 e, em 2020, foi de 1.271.033. No primeiro semestre de 2021, foram 394.509 acessos. Em 2021, alcançamos, pela primeira vez, a classificação no ranking de revistas na área de filosofia cadastradas no indexador Redib, obtendo a décima sétima posição, com tendência de crescimento.
Os números acima mostram um crescimento na busca pelas publicações da revista e de seu fator de impacto. Expressam o seu valor, através do trabalho de seus editores, corpos editoriais, pareceristas, autores/as e, principalmente de nossos/as leitores/as, que a valorizam e a brindam com suas citações, o que manifesta o respeito e estima pelos textos publicados e por seus autores.
Por fim, destacamos o que talvez tenha sido uma das maiores inovações da revista, neste último biênio: a nova modalidade de textos denominada “comentários”. Conforme lembra Alves (2020, p. 10), a Trans/Form/Ação “[...] tem como objetivo a socialização do conhecimento, buscando promover o debate e a interlocução de ideias.” Em vista disso, inauguramos uma nova modalidade de textos, a qual consiste em comentários de artigos aprovados no processo avaliativo, consentidos previamente pelos seus autores. Eles são produzidos pelos pareceristas do manuscrito submetido e anexados ao artigo original, mas com independência editorial, possuindo DOI próprio.
Trata-se de uma crítica construtiva, não mais da qualidade do artigo, uma vez que o processo avaliativo já foi ultrapassado. O comentador pode expor possíveis discordâncias de ideias, comparação de conceitos entre autores, perspectivas ou sistemas filosóficos, diferenças hermenêuticas, metodológicas, epistemológicas. É possível também construir uma ampliação, explicitação ou mesmo a inserção de algum conceito importante para a compreensão da linha argumentativa do artigo comentado, notas explicativas relevantes ou a posição do comentador a respeito da tese exposta. Nesse sentido, procuramos promover um diálogo entre ambos os textos, almejando o aprimoramento e a ampliação do conhecimento.
Os comentários também são uma forma de valorizar formalmente o trabalho dos avaliadores do periódico. Oferece-lhes oportunidade de publicação de material original e inédito, o qual pode, inclusive, ter tido origem a partir da análise do manuscrito avaliado. Ao abrir a identificação dos avaliadores dos textos aprovados para publicação, tal modalidade de textos vai ao encontro de boas práticas do programa Ciência Aberta. Ademais, o comprometimento com a avaliação acaba sendo ainda maior, uma vez que, de uma forma ou de outra, os avaliadores também passam a assinar, indiretamente, a publicação dos artigos.
No fascílculo que ora apresentamos, publicamos 16 comentários para os treze artigos. Sete desses artigos são escritos em português, três em espanhol, dois em inglês e um em francês, além de uma tradução.
A primeira publicação está na língua inglesa: “Some contributions of Habermas to the study of public communication of science”. Escrito em parceria por Ana Eliza Ferreira Alvim-Silva, José Roberto Pereira e Cibele Maria Garcia de Aguiar, é comentado por Juliano Cordeiro da Costa Oliveira. O texto explora três publicações de Jürgen Habermas da década de 1960, nas quais o pensador trata da crítica da ciência, da produção do conhecimento e da democratização das universidades. Os autores procuram extrair delas recortes de reflexões capazes de contribuir para os estudos da comunicação pública da ciência. As reflexões são consolidadas em uma representação gráfica que resume os fatores a serem considerados, ao pensarmos a prática de comunicação da ciência, na sociedade: a importância de levar em conta os três interesses que movem a produção do conhecimento - técnico, prático e emancipatório, de promover a autorreflexão das ciências em universidades politizadas e democratizadas, e de haver a mediação da sociedade na interação entre ciência e política, de forma a subsidiar a tomada de decisões, com base em interesses sociais. Os autores argumentam que as bases para uma ideia de comunicação pública da ciência dialógica, atualmente amplamente defendida no meio acadêmico, despontaram no pensamento do filósofo alemão, em livros publicados há mais de 50 anos, embora essa não fosse sua motivação central, naquele momento.
“Em busca do(s) deus(es) ausente(s): o modo de vida populista em Laclau e em Chaui”, o segundo artigo, assinado por Benito Eduardo Araujo Maeso, possui dois comentários. Um deles é produzido pela própria pensadora retratada no artigo, Marilena de Souza Chaui, e o outro é de Homero Santiago. Entender a política latino-americana, diz o autor, pressupõe precisar suas peculiaridades em relação às formas políticas erroneamente consideradas mais desenvolvidas, em países hegemônicos. Um conceito-chave nesse processo é o de populismo, definido por Ernesto Laclau como uma técnica política na qual demandas sociais diversas se cristalizam provisoriamente em uma delas ou na figura de um líder, não dependendo de alinhamentos ideológicos. Por sua vez, Marilena Chaui observa afinidades concretas entre práticas populistas e questões culturais numa sociedade, tendo foco no chamado “mito fundador” brasileiro e sua presença no imaginário coletivo. Maeso propõe articulações entre as análises da política latino-americana, pelos autores retratados, para, a partir disso, ensejar respostas a certas questões, como: por que o populismo parece se ajustar tão bem à realidade do Hemisfério Sul? Seria ele mais do que sistema de práticas de governo, mas modo de vida expresso nas instituições políticas, econômicas, sociais e culturais das comunidades latino-americanas? Até que ponto a busca de alternativas político-intelectuais ao falso Messias, o governante populista, não recai na lógica messiânica que julga combater?
Escrito em francês por Cristobal Balbontin-Gallo, publicamos em seguida “Levinas et le socialisme libertaire”, comentado por Etienne Alfred Higuet. Conforme o autor, em Autrement qu’être, Levinas introduz a noção de “an-archia”. Ele o faz, não só para se referir a uma ordem imemorial de sentido no traço do outro em si mesmo, mas também em um sentido político, o qual reivindica uma desordem ou mesmo um poder de revolta decorrente da sociabilidade ética que a experiência do rosto desperta. A partir de então, o estabelecimento da ordem do sentido político não permite mais abarcar ou esgotar a sociabilidade resultante dessa experiência intersubjetiva. Nessa demanda anárquica pela sociabilidade do humano, Levinas junta-se a alguns pressupostos do socialismo e do judaísmo libertário, na Europa. Balbontin-Gallo busca identificar possíveis pontos de aproximação e interseções que surgirão, de uma forma muitas vezes inesperada, para certa ortodoxia levinassiana.
O quarto artigo é escrito em espanhol, denominado “Sí mismo como pueblo: comunidad en el pensamiento de M. Heidegger”, de autoria de Daniel Michelow Briones, comentado por Maurício Fernando Pitta. O autor realiza uma descrição do fenômeno da alteridade, no pensamento de M. Heidegger. Aborda primeiro o duplo tratamento que lhe é dado em Ser e Tempo, como alteridade e comunidade, bem como o posterior desenvolvimento e aprofundamento que vivencia, na década de 1930, em consonância com o conceito de povo. Duas questões centrais norteiam o texto: a primeira refere-se à necessidade metódica que determina ao povo a forma mais ampla possível da comunidade humana. A segunda diz respeito à determinação do grau em que o Volk é uma comunidade caracterizada por uma verdadeira abertura ao Outro.
Na sequência, temos outra publicação em espanhol: “‘Nichts zu sagen. nur zu zeigen’: En torno al método de ‘mostración’ del pensamiento benjaminiano a partir del fragmento ‘N 1 a 8’ del Libro de los pasajes”. Escrito por Diego Fernández H, é comentado por Márcio Jarek. Mesmo que jamais possamos conhecer a forma definitiva da obra Passagens (Libro de los passajes), Benjamin dedicou várias anotações metodológicas do “Convoluto N”, para discutir seu desenho ou “dispositivo crítico”. Nesse artigo, Fernández H presta atenção especial à anotação N 1 a 8, na qual se confrontam duas formas de compreender a tarefa do historiador. Por um lado, aquela em que o historiador “diz” (sagen), específica do “historicismo”, e aquela em que o historiador “mostra” (zeigen), próprio do “historiador materialista”, a qual Benjamin procura tornar sua. O autor argumenta que esse confronto contém uma especificação fundamental sobre a forma ou “dispositivo crítico” da obra Passagens, em virtude do qual os materiais de trabalho (“trapos” e “desejos”) poderiam vir a “falar por si próprios”. O esclarecimento desse procedimento torna necessário rever os conceitos de “apresentação” e “objetividade” linguísticas e permite esclarecer o problema do método, no pensamento de Benjamin.
Em sexto lugar está “A interdisciplinaridade da retórica e sua influência na música colonial brasileira”, construído a quatro mãos por Eliel Almeida Soares e Rubens Russomanno Ricciardi. Conforme lembram os autores, em determinadas músicas do final do século XVI ao começo do século XIX, a retórica se revelou como componente indispensável à tarefa de compreender e clarificar o discurso musical, haja vista a sua utilização, relacionada à gramática, bem como sua adequação nas estruturas musicais. Tal processo ocorreu por meio de uma sistematização e teorização aprimorada por diversos tratadistas da retórica musical, cujo postulado se embasava nos mestres da Retórica Clássica, Aristóteles, Cícero e Quintiliano, estabelecendo, assim, uma nomenclatura conhecida como Musica Poetica. Resultantes dessa metodização, vários tratados destacavam os meios pelos quais a música pudesse ser elaborada num discurso organizado e ordenado por elementos retóricos, de modo a mover os afetos do ouvinte. Nesse sentido, nos últimos 50 anos, a área da Música, através da musicologia, da performance e da teoria-análise, vem demonstrando interesse sobre o tema, desenvolvendo inúmeras pesquisas mediante análise retórico-musical, objetivadas em esclarecer a relação entre música e afeto. Por esse motivo, os autores desse artigo apresentam o diálogo da retórica com as outras áreas do conhecimento humano, a saber, Música, Filosofia e Hermenêutica, além da sua influência e emprego na música colonial brasileira por alguns compositores.
“Outros Inconscientes: Desconstruindo a Translucidez da Consciência Sartriana”, de Fernanda Alt, possui três comentários, escritos por Alberto Marcos Onate, Gustavo Fujiwara e Luciano Donizetti da Silva. O artigo problematiza o conceito de transparência da consciência, em Sartre, mostrando ao mesmo tempo outras possibilidades de se pensar modos “inconscientes”, que não o freudiano, em sua filosofia. Ao rejeitar o inconsciente psicanalítico, ao mesmo tempo que propõe uma filosofia da consciência transparente, diz a autora, Sartre é frequentemente interpretado como aquele que assume e potencializa os problemas levantados pela herança do sujeito cartesiano, no século XX. Assim, é preciso, em primeiro lugar, apontar quais são esses problemas para, em seguida, interrogar o sentido da consciência transparente em Sartre, no intuito de verificar se, de fato, este acarreta as consequências mais clássicas de tal característica. Nesse movimento, ocorre que a própria consciência revela elementos desconstrutivos, graças a seu caráter “espectral”, traço implícito, porém presente no texto de Sartre. Além disso, a investigação torna possível vislumbrar outras formas inconscientes, nesse caso, aspectos que indicam desconhecimento e opacidade na relação a si, colocando finalmente em questão tal herança e suas consequências.
Escrito em inglês, o oitavo artigo é “Nietzsche’s early concept of culture”, de autoria de Jihun Jeong, comentado por Adriana Delbó Lopes, Alexander Gonçalves e Leonardo Maia. O objetivo desse trabalho é analisar e elucidar a definição inicial de Nietzsche sobre cultura, em Considerações Extemporâneas. Nos trabalhos iniciais do filósofo alemão, o conceito de cultura se refere a um mundo compartilhado, e a sua ideia de cultura é relacionada com a questão de como o mundo compartilhado é formado. Jeong busca argumentar que, em suas ideias iniciais em relação a essa questão, Nietzsche acredita que a linguagem e a arte são significativas como a base para um mundo compartilhado. Isso está refletido na sua definição de cultura como unidade de estilo artístico em todas as expressões da vida de um povo. Conforme busca enfatizar Jeong, esse é o seu argumento de que a linguagem é a base comum para um mundo compartilhado de um povo. A arte é o que molda o mundo compartilhado, dando-lhe forma ou estilo, tornando-o mais rico.
“La máquina de guerra nómada del covid-19: paisajes estéticos del epidemiocapitalismo”, escrito em espanhol por José Manuel Romero Tenorio e William Andres Alvarez, é comentado por Alexandre Filordi de Carvalho. Conforme os autores, o coronavírus surgiu em um espaço onde tanto o poder que oprime quanto o oprimido coincidem, no desejo de ver e de ser vigiado, devido à ação das redes sociais, as quais geram seres supérfluos que trocam sua privacidade por um semelhante. Assim, chegamos a um capitalismo no qual a epidemiologia precede a demografia (capitalismo epidêmico): a população se organiza segundo a lógica ultraindividual do controle pandêmico (passaportes imunológicos, monitoramento de infecções). Com o conceito de máquina de guerra nômade, de Deleuze e Guattari, a Covid-19 é analisada, nesse texto, como uma paisagem estética em que as territorialidades são definidas a partir das bordas poluentes e não a partir de coordenadas delimitadoras. Os autores concluem que esse totalitarismo perfeito, denominado net-f(l)asci(x)smo, tendo o lazer como incentivo, pode caminhar para formas de dissidência.
O décimo artigo é “Amor e conhecimento: Freud e Espinosa”, de Marcos Ferreira de Paula, comentado por Homero Santiago. O autor elabora uma reflexão sobre a relação entre amor e conhecimento, em Freud e Espinosa, tomando como núcleo da análise as teses de Freud, em seu famoso ensaio sobre Leonardo da Vinci. Ele busca mostrar que a oposição freudiana entre amor e conhecimento, a qual se deixa captar no conceito de sublimação, não tem lugar no pensamento de Espinosa. Na teoria espinosana dos afetos, tal oposição se desfaz, diz De Paula, procurando evidenciar que é sobretudo através do conceito de Amor Dei Intellectuallis, apresentado na Parte V de sua Ética, que Espinosa deixa ver que, em vez de oposição, há antes a realização plena do amor, enquanto ação da mente que conhece a si no seio da Natureza imanente.
Em seguida, publicamos “Reminiscência e alma remêmora no Fédon de Platão”, de Rodolfo José Rocha Rachid, comentado por Guilherme Domingues da Motta e por Izabela Aquino Bocayuva. Rachid analisa o estatuto ontológico e epistemológico da alma cognitiva, no Fédon de Platão, a fim de evidenciar sua capacidade inata concernente à memória e à reminiscência, para a constituição da teoria platônica das Formas. A fim de atingir seus objetivos, o autor argumenta que a atividade escrita de Platão ressalta a coexistência entre o discurso figurativo e o discurso racional, na qual ele desenvolve a dialética entre os gêneros sensível e inteligível. Assim, na primeira seção, o texto escrutina a expressão mathésis anámnesis, o aprendizado é recordação, atestada previamente no Mênon e no Fédon, como condição epistemológica fundamental para adquirir o conhecimento das ideias. Na seção seguinte, explica como a posse de uma sabedoria numinosa pela alma remêmora estabelece uma forma original de saber. Ela não pode ser adstrita em limites humanos, requerendo, para seu entendimento, uma nova abordagem hermenêutica, que o autor denomina hermenêutica cultual. Por fim, Rachid demonstra que o escopo fenomenológico do mito prevê uma semântica da visibilidade, pela qual Platão descreve a genuína natureza do logos filosófico, representado no encômio socrático da meléte thanátou.
O penúltimo artigo é “Recognition of Older Adults as a Heterogeneous Social Group”, de Sanja Ivic, Goran Nikolic e Milan Igrutinovic. Os direitos humanos dos idosos ainda não foram suficientemente desenvolvidos. Os autores exploram, no artigo, como os direitos dos idosos são regulados pela legislação europeia e se a legislação europeia reconhece os idosos como um grupo social heterogêneo. A população da União Europeia está envelhecendo. De acordo com os relatórios da Comissão Europeia, a discriminação com base na idade é generalizada na Europa. Portanto, o conceito de sistema de trabalho e aposentadoria, bem como a percepção dos idosos, devem ser transformados. A discriminação contra os idosos e várias formas de desigualdade são amplificadas pela pandemia Covid-19, buscam denunciar os autores.
Fechando o conjunto de 13 artigos deste fascículo, publicamos “Opinião pública e tecnologia: os impactos do Big Data nos estudos de opinião pública, sob o olhar do pragmatismo”, de autoria de Vinícius Romanini e Pedro Caldas. Os autores investigam como o estudo da opinião pública é influenciado pelas pesquisas de opinião pública, na medida em que estas funcionam como meios para inquirição da realidade. Com o crescente movimento de datificação do mundo, transformações científicas e tecnológicas emergem e impactam o campo de estudos da opinião pública. Atualmente, temos, de um lado, as pesquisas de opinião tradicionais e, de outro lado, as pesquisas possibilitadas pelo advento do Big Data. Para além de um apanhado de protocolos metodológicos, cada um dos modelos abarca em si um significado de “opinião pública”, remontando-nos ao velho embate epistemológico entre teoria e metodologia, presente nesse campo de estudo. O artigo descreve as principais diferenças entre esses dois modelos, para, em seguida, sob o olhar do pragmatismo de Peirce, enquanto teoria de significação, analisar a transição pela qual passamos, nos dias de hoje.
Publicamos, ainda, uma tradução feita por Alessio Gava de artigo escrito por Kathleen Okruhlik: “Bas van Fraassen’s Philosophy of Science and His Epistemic Voluntarism”, traduzido como “A Filosofia da Ciência de Bas van Fraassen e o Seu Voluntarismo Epistêmico”. Conforme o tradutor, a visão antirrealista de Bas van Fraassen sobre a ciência desempenhou um papel determinante no desenvolvimento da filosofia da ciência recente. Particularmente, seu empirismo construtivo tem sido amplamente discutido e criticado nas revistas especializadas e constitui um tópico comumente abordado nos programas das disciplinas de filosofia da ciência. Outros aspectos do empirismo de van Fraassen são menos conhecidos. Entre eles, sua abordagem empirista às leis científicas; a sua reavaliação, relativamente recente, do que significa ser um empirista; e seu estruturalismo empirista. O artigo traduzido visa a oferecer uma panorâmica desses diferentes aspectos do empirismo de van Fraassen e mostrar como estão relacionados entre si. Trata, ainda, da natureza do voluntarismo epistêmico de van Fraassen e seu nexo com a sua filosofia da ciência empirista.
Assim, fechamos o rol de publicações dos fascículos regulares da revista para 2021. Com as publicações, com as atividades acima listadas e com as demais realizadas, buscamos continuar contribuindo para o desenvolvimento da filosofia e de áreas afins, da produção e socialização do conhecimento filosófico, com vistas à inserção social. Em tempos difíceis como este pelo qual estamos passando, lutamos pela sobrevivência, autonomia e independência financeira e ideológica desta revista. Nossa bandeira consiste na manutenção categórica de seu caráter de acesso aberto, bem como jamais efetuar qualquer cobrança ou taxa de publicação de autores.
Que os novos tempos sejam sempre melhores. Se eles não se apresentarem como tal, nós o faremos ser, com muito trabalho, seriedade e competência. Nossos votos de ótimo 2022 e agradecimentos a todas e todos que contribuíram para o sucesso da revista neste ano!
Referência
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Nov 2021 -
Data do Fascículo
Oct-Dec 2021
Histórico
-
Recebido
10 Set 2021 -
Aceito
30 Set 2021