Resumo:
Este artigo analisa o problema de determinar o sujeito político do feminismo, uma vez que a categoria “mulher” passa a ser questionada e interpretada de diferentes formas, na teoria feminista contemporânea. Após apresentar brevemente as críticas ao essencialismo, por parte de autoras bastante influentes do Norte global, investigam-se os argumentos de pensadoras que defendem um viés descolonial. Sustenta-se que a perspectiva descolonial precisa ser levada em consideração, no momento de buscar categorias de análise adequadas ao movimento feminista, no contexto do Sul global, respeitando-se suas particularidades históricas e sociopolíticas.
Palavras-chave: Filosofia feminista; Feminismo descolonial; Essencialismo; Sujeito político
Abstract:
This paper analyses the problem of determining who constitutes the feminist political subject, since the contemporary feminist theory inquires the existence of “woman” as a category and interprets it in different ways. First, I briefly introduce the critiques to essentialism by influential authors from the Global North, then I investigate the arguments from thinkers who advocate a decolonial point of view. I sustain that we must take the decolonial perspective into consideration, which is crucial to find categories of analysis apropriate to the feminist movement in the context of the Global South, in order to respect its historical and socio-political particularities.
Keywords: Feminist Philosophy; Decolonial Feminism; Essentialism; Political Subject
Introdução
Quem acompanha a militância e a produção acadêmica feminista brasileira, nos últimos anos, está ciente de um de seus mais frequentes debates: o problema de determinar quem constitui o sujeito político do feminismo. A resposta mais imediata, aparentemente simples - “as mulheres” -, gera uma série de dificuldades no momento de determinar tal conceito, tanto em relação ao que significa ser mulher como no sentido de quem pode assim se denominar. Tal desafio, não apenas teórico, mas também resultante de diferentes práticas no interior da militância, se configura atualmente como uma questão bastante debatida, nas revistas acadêmicas dedicadas aos estudos feministas, mas raramente é abordada com um olhar especificamente filosófico, menos ainda a partir de uma análise que leve em conta a produção teórica das filosofias produzidas no Sul global.
A importância da pergunta pelo sujeito político do feminismo, além do resultado gerado nas pautas e ações dentro do movimento, envolve o resgate de uma série de questões tão fundamentais quanto difíceis para o debate de gênero: a discussão em torno do essencialismo, as consequências políticas da suposta diluição da categoria “mulher”, a busca por conciliar as demandas de um movimento, o qual, de forma geral, sustenta a necessidade de ser pautado pela interseccionalidade, porém, que se organiza majoritariamente em torno de uma pauta identitária interpretada de forma diversa no interior do ativismo.2
A contenda por trás de tal disputa e os argumentos centrais se manifestam, por exemplo, a partir das concepções antiessencialistas, de um lado, e do chamado “essencialismo estratégico”, de outro. Pretendo apresentar, ainda que brevemente, as principais objeções ao essencialismo, a postura antiessencialista e as considerações críticas a versões radicais de antiessencialismo. Como horizonte mais específico de análise, procurarei exemplificar como os argumentos dessas diferentes respostas ao problema do sujeito político do feminismo poderiam ser apropriados no contexto de uma produção feminista brasileira.
Um dos meus argumentos centrais, conforme desenvolverei adiante, enfatiza a importância de que os movimentos sociais do Sul global sejam, preferencialmente, informados a partir de teorias produzidas nessa região, as quais levem em consideração sua história e particularidade. Há razões para crer, como será exemplificado, na sequência, que algumas das disputas e dificuldades teóricas no interior do movimento feminista brasileiro surjam justamente devido ao espelhamento e importação de pautas e teorias oriundas de outros contextos sociopolíticos (geralmente do Norte global), os quais nem sempre coincidem com nossa conjuntura específica e demandas mais urgentes.
De forma semelhante, grande parte da base teórica de grupos de militância e pesquisas acadêmicas na área se concentra em textos produzidos por autoras(es) oriundas(os) dos Estados Unidos e Europa, nem sempre questionando suficientemente a aplicabilidade e a pertinência de seus fundamentos filosóficos para o contexto brasileiro e latino-americano. Embora não negue de maneira alguma a importância do diálogo com a teoria feminista produzida no Norte global - a qual também cito, ao longo do presente estudo -, defendo que essa seja avaliada e apropriada de forma crítica, sempre à luz das condições próprias da situação local.
1 O debate feminista contemporâneo em torno do essencialismo da categoria mulher
Dada sua grande amplitude e complexidade, não caberia aqui um detalhamento do debate em torno do essencialismo e do antiessencialismo, no que concerne ao sujeito do feminismo, porém, gostaria de apresentar a questão, dando atenção especial a autoras bastante influentes para a produção feminista brasileira. A seguir, farei a exposição de considerações a partir de um viés descolonial, chamando a atenção para aquilo que considero uma teoria mais apropriada para servir de base para a organização da luta de mulheres, no contexto do Sul global.
Em poucas palavras, a posição essencialista sustenta que há alguma essência feminina ou que há, em sentido amplo, elementos e características femininas comuns que permitam fixar um grupo de pessoas como sendo mulheres. O antiessencialismo, por outro lado, entende que tal concepção de feminilidade é um recurso artificial, que não encontra nenhum correspondente concreto, mas apenas impõe uma série de estereótipos a um conjunto de pessoas, sendo uma consequência, embora implícita, da metafísica essencialista acerca do sujeito, típica da tradição filosófica ocidental.
Cressida Heyes (2000, p. 37) distingue quatro modos pelos quais o essencialismo se manifesta, no pensamento feminista: i) essencialismo metafísico, que sustenta haver essências femininas e masculinas, as quais existiriam além das construções sociais de gênero; ii) essencialismo biológico, que situa supostas características essenciais de homens e mulheres em seus aspectos biológicos; iii) essencialismo linguístico, o qual conecta um sentido particular estático para o termo “mulher” e iv) essencialismo metodológico, que mantém alguma noção geral e abstrata de gênero como categoria de análise social fixa.
Em uma análise histórica, é possível identificar diferentes momentos e influências para o estabelecimento das críticas ao essencialismo, tanto no plano teórico-filosófico como na teoria que surge diretamente da prática feminista e dos debates oriundos dos espaços de militância.3 É importante demarcar que a base para tal disputa nasce a partir do fim dos anos 1960, com o fortalecimento do movimento feminista, sobretudo nos Estados Unidos. Nesse contexto, a organização de mulheres de diferentes origens e situações socioeconômicas faz surgir no interior do ativismo feminista a crítica sobre os limites da noção de “mulher” como representativa enquanto categoria política.
Mulheres negras, latinas, lésbicas, periféricas e com diferentes especificidades questionam em que medida são contempladas nas pautas do movimento e o quanto a noção abstrata, generalista e vaga de “mulher” não acaba por encobrir diferentes vivências e violências estruturais próprias a certas condições que ultrapassam a mera feminilidade: o racismo sofrido pelas mulheres não brancas4, a lesbofobia sofrida pelas lésbicas, e assim por diante. Tais reflexões, mais do que questionar apenas a noção de “mulher” enquanto categoria política, abalavam também algumas das bases da organização feminista, quer no plano teórico, quer no prático: até que ponto a noção “mulher” dá conta da vivência e da identidade de tais pessoas, a ponto de justificar a organização coletiva em um movimento de mulheres? Se mulheres brancas e ricas têm privilégios de raça e classe, podendo mesmo oprimir outras companheiras, como se organizar politicamente nessa pluralidade e conciliar agendas e pautas?
A partir desse contexto, mudanças fundamentais se consolidaram no feminismo. Trabalhos importantes desenvolveram tais temas, através dos esforços de diferentes autoras e ativistas que criticam a teoria feminista hegemônica, como bell hooks (1981), Audre Lorde (1997), Cherríe Moraga (1988), Gloria Anzaldúa (2015), entre outras. O problema de tentar homogeneizar a luta feminista, com base, apenas, na categoria “mulher”, e a necessidade de discutir e tornar explícitas as diversas opressões paralelas são pontos perfeitamente expostos por Audre Lorde, que aponta ainda para a possibilidade de opressões e preconceitos serem mantidos e reproduzidos mesmo internamente a grupos marginalizados, exigindo a constante autocrítica por parte das militantes:
Ignorar as diferenças de raça entre as mulheres e as implicações dessas diferenças representa o mais sério risco para a mobilização de forças conjuntas de mulheres. Quando mulheres brancas ignoram seus privilégios brancos incorporados e definem mulher em termos apenas de sua própria experiência, então mulheres de cor (women of Color) se tornam o “outro”, o estranho cuja experiência e tradição são muito “alienígenas” para serem compreendidas. [...] As diferenças entre nós enquanto mulheres negras também têm sido ignoradas e usadas para nos separar umas das outras. [...] O medo de lésbicas, ou de serem acusadas de ser lésbicas, têm levado muitas mulheres negras a depor contra si mesmas. (LORDE, 2012, p. 110-112).
Outro fator que contribuiu para a questão em torno do essencialismo na noção de sujeito do feminismo, e que surge como um elemento paralelo, o qual se relaciona e influencia a teoria feminista, é constituído pelas diversas transformações na filosofia contemporânea, sobretudo o pós-estruturalismo e muitas das suas repercussões e desenvolvimentos, por vezes denominados “pós-modernos”. Embora possamos certamente apontar Simone de Beauvoir como uma antecessora dessas questões, na filosofia contemporânea5, uma radicalização da posição antiessencialista surge sobretudo a partir da influência dos filósofos Lacan, Derrida, Deleuze e Foucault, entre outros. Nessa linha, podemos destacar certas autoras feministas, como Joan Scott, Luce Irigaray, Julia Kristeva e Judith Butler. A filósofa estadunidense Butler, em particular, é extremamente influente nos estudos de gênero, no Brasil. Quando se trata do debate sobre a categoria política “mulher”, seja na academia, seja no interior do movimento feminista, a filósofa é citada com frequência.
A influência do pós-estruturalismo na teoria feminista e o efeito da diluição da categoria “mulher” podem ser exemplificados pelas concepções de Joan Scott e Judith Butler acerca da não neutralidade da concepção “corpo”. A evidência da radicalidade da desconstrução a que tais autoras chegaram está em suas críticas a concepções que apenas diferenciam gênero e sexo, mas mantêm o último enquanto mero fato a-histórico. Ou seja: para elas, mesmo sexo e corpo são constructos linguísticos, históricos e sociais.6
Scott argumenta sobre o gênero em seus usos descritivos e dos limites de uma definição que parte da dicotomia entre sexo e gênero. Segundo a autora, “[...] uma teoria que se baseia na variável única da diferença física impõe problemas [...]: pressupõe um sentido fixo ou inerente para o corpo humano - alheio à construção social ou cultural - e, portanto, a não historicidade do gênero em si.” (SCOTT, 1986, p. 1059). Desse modo, segundo Scott, é preciso romper com a teoria de gênero-padrão, a qual entende sexo como um elemento a-histórico e “natural”, a partir do qual a noção de gênero é construída.7
De forma semelhante, Butler argumenta:
É minha sugestão que a suposta universalidade e unidade do sujeito do feminismo são de fato minadas pelas restrições do discurso representacional em que funcionam. Com efeito, a insistência prematura num sujeito estável do feminismo, compreendido como uma categoria una das mulheres gera, inevitavelmente, múltiplas recusas a aceitar essa categoria. (BUTLER, 2003, 21-22).
Quando a “cultura” relevante que “constrói” o gênero é compreendida nos termos dessa lei ou conjunto de leis, tem-se a impressão de que o gênero é tão determinado e tão fixo quanto na formulação de que a biologia é o destino. Nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna o destino. [...] No entanto [...] o “corpo” é em si mesmo uma construção [...] Não se pode dizer que os corpos tenham uma existência significável anterior à marca do seu gênero.8 (BUTLER, 2003, 26-27).
Butler chama a atenção, portanto, para o fato de que muitas teorias feministas acabam por atribuir à categoria de gênero um entendimento rígido de como a socialização se dá: mulheres educadas para se comportar de determinado modo (presas a estereótipos específicos de feminilidade), homens de outro modo (outro conjunto de estereótipos, esses associados à masculinidade-padrão). Embora essas feministas critiquem a imposição de tais padrões e os reconheçam como um fenômeno cultural alterável, esse tipo de esquema por elas defendido permanece insuficiente, devido sobretudo à simplificação em torno da vivência concreta das identidades de gênero. Apresenta-se uma estrutura binária e pré-estabelecida, a qual não dá conta de explicar sujeitos que subvertem tais identidades, como mulheres lidas socialmente como “masculinas”, homens tachados de “afeminados”, pessoas que não se identificam com o gênero a elas atribuído ao nascimento (pessoas trans) etc.
Butler aponta ainda que “corpo” não pode ser entendido como uma realidade fixa e imutável, alheia às significações - inclusive simbólicas - a ele atribuídas. Nesse sentido, ao opor, de um lado, sexo/corpo/biologia, e, de outro, gênero/cultura/socialização, a teoria feminista permaneceria vinculada à estrutura binária típica da tradição filosófica ocidental. Isso seria particularmente nocivo, devido à insuficiência tanto conceitual como prática de tal tradição, a qual seria incapaz de tematizar sujeitos considerados fora das normas-padrão.
A tendência antiessencialista de desconstrução desse tipo de entendimento de gênero, no entanto, também gerou uma série de reações internas ao movimento e à teoria feminista, as quais identificam um desmantelamento da própria categoria política “mulher”, que seria necessária à militância. Como Claudia de Lima Costa mostra muito bem, algumas teóricas passam a realçar os limites do antiessencialismo, quer no que concerne aos pressupostos filosóficos escusos por trás da aparente abertura que a diluição do sujeito do feminismo propunha, quer no que diz respeito às consequências nocivas para a prática política. Esse primeiro aspecto fica bastante evidente nas críticas de algumas autoras, como Alice Jardine (1988) e Teresa de Lauretis (1987). Jardine (1988, p. 183) mostra, por exemplo, que, para Derrida, a mulher é sempre “[...] o que desafia o homem, o que o questiona.” Com esse tipo de referência, conforme constata Lauretis (1987, p. 23-24), acaba-se “[...] novamente situando a subjetividade feminina no sujeito masculino.”
O que tais autoras indicam é que a base filosófica que mais influencia as ideias de Butler envolveria pressupostos conservadores implícitos. Subjacente à revolução desse processo “pós-moderno” de diluição, fragmentação ou subversão da categoria mulher, o que os filósofos pós-estruturalistas estariam fazendo é apenas substituir o conceito fixo e essencialista de feminilidade por uma noção que louva a mulher como um fluir e um campo de possibilidades, em contraste com a rigidez do masculino - ou seja, subverte-se o conceito de “mulher”, todavia, não o hábito de desenvolvê-lo sempre tendo por referência o masculino. Nesse sentido, pouco importa o aparente “elogio” à feminilidade desenvolvido por muitos desses autores. Enquanto a mulher é mantida como mero contraste para entender o homem, ela segue como subjetividade mutilada, independentemente de qual noção de sujeito - fixa ou não - esteja guiando essa teoria.
Uma segunda reação à “radicalização” da posição antiessencialista. a partir dessas influências “pós-modernas”. surge com o questionamento, extremamente importante, de quais seriam as consequências políticas da total desconstrução da categoria mulher.9 O argumento central de tal crítica é que todas as demandas do movimento feminista e todas as políticas públicas voltadas para combater as desigualdades de gênero partem justamente do conceito “mulher”. Sem um meio para identificar o grupo de pessoas a se organizar politicamente, seria impossível construir uma agenda de lutas e garantir direitos.
Além disso, não somente as consequências práticas da postura antiessencialista é questionada, porém, igualmente muitos de seus fundamentos teóricos: embora a defesa de que há uma “essência” feminina que tenha sido usada historicamente como meio de controle das mulheres, a total descaracterização da noção de “mulher” parece apagar aspectos materiais da vivência feminina, como aqueles ligados ao corpo. Segundo argumenta essa linha crítica, o fato de que grande parte das pessoas identificadas na sociedade como mulheres tenha sofrido algum tipo de violência sexual, ainda na infância ou juventude, evidenciaria que há questões bem concretas a serem analisadas antes de diluir completamente a categoria política que une tais pessoas.
Esse conjunto de argumentos é o que podemos identificar como uma nova frente para o debate em torno do essencialismo do sujeito do feminismo, por vezes chamada de posição “antiantiessencialista”. Surgida principalmente desde os anos 1990, suas críticas têm forte repercussão nos debates feministas atuais. Ligadas a essa corrente de contestação das consequências políticas da posição antiessencialista, podemos incluir autoras que passam a questionar os fundamentos da Teoria Queer e de algumas práticas do feminismo dominante, concebidos como pejorativamente liberais e pós-modernos, pois centrados mais na autoidentificação de indivíduos singulares do que em estruturas materiais de opressão.
Um dos argumentos que vai nessa direção defende, como antídoto intermediário para o problema filosófico que permeia a discussão, o chamado “essencialismo estratégico” - proposto pela teórica indiana Gayatri Chakravorty Spivak -, o qual teria como tese central a ideia de que, mesmo que reconheçamos que as vivências das pessoas identificadas como mulheres são múltiplas, mesmo que aceitemos os argumentos de que não há nenhuma essência, em função da qual possamos fixar a ideia de “mulher”, ainda assim seria necessário manter essa categoria, justamente a partir do reconhecimento de experiências comuns de opressão e para preservar a possibilidade prática de reivindicar direitos. Trata-se, portanto, de um “[...] uso estratégico do essencialismo”, porém, com “[...] um interesse político cuidadosamente manifesto.” (SPIVAK, 1996, p. 214).
Nessa mesma linha, argumenta a filósofa panamenha Linda Martín Alcoff (1988, p. 420):
O que podemos exigir em nome das mulheres se “mulheres” não existem e se demandas em seus nomes apenas reforçam o mito de que existem? De que maneira podemos falar abertamente contra o machismo como sendo prejudicial aos interesses das mulheres se tal categoria é uma ficção? Como podemos demandar por abortos legais, creches adequadas, ou salários baseados em valores compatíveis, sem invocar o conceito de “mulher”?
Levando em conta a perspectiva descolonial10 que gostaria de enfatizar, chamo a atenção para a pertinência de muitos dos argumentos de teóricas oriundas do Sul global para o debate aqui apresentado. Tanto a proposta do “essencialismo estratégico”, da pensadora indiana Gayatri Spivak, como apontamentos sobre os perigos de não levar suficientemente em conta uma visão política mais ampla - inclusive geopolítica - acabam por limitar as políticas identitárias e, inclusive, trazer o risco em uma escolha equivocada de pautas e prioridades.
Concepções especificamente liberais de empoderamento - frequentemente manifesto no destaque de uma pessoa específica da militância, por vezes tratada enquanto “porta-voz” inquestionável -, bem como a apropriação da pauta feminista em campanhas publicitárias de produtos, alguns inclusive considerados nocivos ao meio ambiente, são apenas alguns exemplos de dificuldades. É possível questionar, por exemplo, se a especificidade dos movimentos políticos organizados majoritariamente, de forma on-line, com o crescimento de práticas militantes controversas, não poderia ser identificada como fonte de divisão interna11, contribuindo para a diluição de uma organização em torno de bandeiras potencialmente comuns, como a luta anti-imperialista12, a conquista de direitos da classe trabalhadora e a manutenção de serviços públicos de qualidade.
Por “perspectiva descolonial” entendo, com base no pensador peruano Aníbal Quijano (1991) e na filósofa argentina María Lugones (2014), a reação ao projeto de poder do colonialismo, o qual envolve não apenas a exploração da terra e do trabalho das populações que sofreram processos de colonização, mas também a imposição de ideologias específicas sobre como viver e se organizar em sociedade. Dentre esses elementos: a classificação das populações em termos raciais e o trabalho dividido a partir de critérios raciais; a organização do trabalho, em razão da hegemonia do capital; eurocentrismo e valores eurocêntricos como base para o controle da subjetividade (desvalorizando a cultura local como “primitiva” e tomando os valores do Norte global como universais).
2 Corporeidade geograficamente situada e perspectiva materialista: caminhos do pensamento descolonial
É à luz, em particular, das contribuições das teóricas do pensamento descolonial que gostaria de avaliar filosoficamente o problema do sujeito político do feminismo e das dificuldades teóricas em torno da relação entre os conceitos sexo e gênero. Embora menos lidas e citadas13 do que autoras do Norte global, como Butler, e, portanto, possivelmente menos influentes, acredito que suas contribuições dialogam de maneira muito mais produtiva e direta com o movimento de mulheres, no Brasil, país também profundamente marcado pelo histórico de violência colonial e imperialista.
Em seu seminal artigo “Rumo a um feminismo descolonial”, María Lugones argumenta como a imposição de uma identidade de gênero para as populações vítimas da violência colonial se deu por intermédio de uma concepção de sexo na qual os colonizadores associavam a diferença sexual da população colonizada de forma análoga à de animais, a partir das categorias “machos” e “fêmeas”, e não enquanto “homens” e “mulheres”, como aplicado aos próprios colonizadores. Tratava-se, portanto, de uma divisão sexual que partia de distinções identificadas na materialidade de corpos, associadas a um processo de desumanização: diferenças anatômicas visualmente identificáveis e categorizadas como análogas mais a de outros animais do que a de outros seres humanos.14 Nesse sentido, contrapondo teorias de gênero abstratamente totalizantes - com pretensões de explicar o complexo conceito de gênero, sem levar em conta diferenças históricas e contextuais -, Lugones (2014, p. 937-938) argumenta:
É importante observar que, frequentemente, quando cientistas sociais pesquisam sociedades colonizadas, a busca pela distinção sexual e logo a construção da distinção de gênero resultam de observações das tarefas realizadas por cada sexo. Ao fazê-lo, eles/elas afirmam a inseparabilidade de sexo e gênero, característica que desponta principalmente das primeiras análises feministas. Análises mais contemporâneas têm introduzido argumentos pela reivindicação de que gênero constrói sexo. Mas, na versão anterior, sexo fundamentava gênero. Geralmente se confundiam: onde você vê sexo, verá gênero e vice-versa. Porém, se estou certa sobre a colonialidade do gênero, na distinção entre humano e não humano, sexo tinha que ser isolado. Gênero e sexo não podiam ser ao mesmo tempo vinculados inseparavelmente e racializados. O dimorfismo sexual converteu-se na base para a compreensão dicotômica do gênero, a característica humana. Alguém bem poderia ter interesse em argumentar que o sexo, que permanecia isolado na bestialização dos/as colonizados/as, era, afinal, gendrado. O que é importante para mim aqui é que se percebia o sexo existindo isoladamente na caracterização de colonizados/as. Isso me parece como um bom ponto de entrada para pesquisas que levem a colonialidade a sério e pretendem estudar a historicidade e o significado da relação entre sexo e gênero.
Assim, de fato, as influentes teorias de gênero do Norte global analisam de formas diversas a relação entre as categorias sexo e gênero - seja, por exemplo, entendendo que sexo é a base para a construção social de gênero (como em Rubin), seja sustentando que sexo já é de antemão determinado por concepções de gênero (como em Butler). Porém, quando tais conceitos são avaliados à luz da historicidade, verificam-se diferenças significativas na construção de identidades de gênero e a necessidade de buscar bases teóricas que deem conta da multiplicidade de vivências. É nesse sentido que não se poderia, conforme sustenta Lugones, desconsiderar o processo de desumanização que permeou a violência de gênero colonial.
É importante notar, nesse contexto, que a diferença sexual serviu também de critério para a imposição de uma divisão sexual do trabalho específica, a qual não seria mera reprodução da divisão do trabalho-padrão para as classes colonizadoras dominantes. Isso se manifesta de maneira evidente no fato de mulheres escravizadas participarem constantemente do pesado trabalho braçal que era imposto.15 Ou seja, não é como se o estereótipo europeu de feminilidade aplicado às suas classes dominantes - envolvendo determinados elementos, como fragilidade e necessidade de proteção - fosse transposto para a construção de gênero que colonizadores e escravocratas tentavam impôr.
É nesse sentido também que destaco a base materialista de muitos dos argumentos do feminismo descolonial, em contraste significativo com a desconstrução das categorias (invocada por parte da Teoria Queer). A socióloga argentina Vanesa Vazquez Laba (2008) chama a atenção para esse aspecto, enfatizando a importância de centrar as análises no corpo e na vivência corporificada ou encarnada. Não se trata de buscar um essencialismo estático ou simplista, em função do conceito de corpo, mas de apontar para o fato de que muitas das bandeiras que motivam a luta feminista passam por uma concretização de experiências e violências sofridas por corpos específicos. Evidentemente, tais vivências corporificadas estão permeadas por questões simbólicas, linguísticas, culturais, filosóficas, sociais etc. O ponto central é, apenas, que não se reduzem a elas: são também experiências sentidas na carne:
O sujeito não é uma entidade abstrata, mas sim material, encarnada ou corporificada. O corpo não é uma coisa natural, pelo contrário, é uma entidade socializada, codificada culturalmente; longe de ser uma noção essencialista, constitui o lugar de interação do biológico, do social, e do linguístico, isto é, da linguagem entendida como o sistema simbólico fundamental de uma cultura. As teorias feministas da diferença sexual assimilaram a perspectiva crítica das teorias dominantes da subjetividade a fim de desenvolver uma nova forma de ‘materialismo corporal’ [...]. Nessa linha, Spivak considera, em relação ao corpo encarnado, que não deve ser tomado como uma essência nem como um destino biológico, mas sim como a própria localização primária no mundo, a própria situação na realidade. A ênfase posta na corporeidade, ou seja, na natureza situada da subjetividade, permite às feministas elaborar estratégias para subverter os códigos culturais. (LABA, 2008, p. 4-5).
É possível questionar, obviamente, até que ponto a própria tendência a contrastar e dividir as categorias empregadas em “materiais”, de um lado, e “linguísticas” ou “simbólicas”, de outro (o que se reflete no debate feminista da relação entre sexo e gênero), não seria uma reprodução do dualismo da tradição filosófica europeia. Esse, aliás, parece-me ser o diagnóstico, acertado, da própria Butler (2003, p. 24-27). O problema, no entanto, é que entendo que a solução, encontrada por ela e outras “filósofas da desconstrução” do Norte global, para ir além da dicotomia, enfatiza a superação dos conceitos enquanto materialmente entendidos. É o que aparece, por exemplo, em certas afirmações, tais como: “[...] o ‘corpo’ é em si mesmo uma construção, assim como o é a miríade de ‘corpos’ que constitui o domínio dos sujeitos com marcas de gênero.” (BUTLER, 2003, p. 27). Eu as contrasto, no entanto, com as reflexões das teóricas do Sul global, as quais, igualmente cientes da base dualista da filosofia europeia, constroem um pensamento que enfatiza a materialidade da vivência corporal: corpos famintos - tanto humanos como não humanos - não apenas existem para além de suas construções discursivas, como morrem sem carecer de filosofias que questionem seus elementos linguísticos.16
Nessa mesma direção, ressaltam-se as considerações da filósofa brasileira Sueli Carneiro, que aponta para a necessidade de “enegrecer o feminismo”:
No Brasil e na América Latina, a violação colonial perpetrada pelos senhores brancos contra as mulheres negras e indígenas e a miscigenação daí resultante está na origem de todas as construções de nossa identidade nacional, estruturando o decantado mito da democracia racial latino-americana [...] (CARNEIRO, 2003, p. 1).
[...] é possível afirmar que o feminismo negro, construído no contexto de sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas - como são as sociedades latino-americanas - tem como principal eixo articulador o racismo e seu impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria hierarquia de gênero em nossas sociedades. (CARNEIRO, 2003, p. 3).
Não é possível, portanto, compreender a construção de gênero, no Brasil, sem analisar o histórico de colonização que marca a identidade nacional. Tal história é, como sabemos, caracterizada de forma profunda pela violência colonial e escravocrata. Mais do que fatos trágicos superados, as marcas desse passado estão bastante presentes e demonstram a insuficiência das categorias de gênero simplificadoras. Quando se fala, por exemplo, em desigualdade salarial entre homens e mulheres, fica evidente a necessidade do marcador racial: no caso do Brasil, é verdade que homens brancos têm uma média salarial maior do que a de mulheres brancas, mas elas têm, em média, salários maiores do que homens negros. As mais baixas remunerações estão com as mulheres negras, as quais ganham menos do que mulheres brancas e menos do que homens negros.17
É nesse sentido que penso, partindo das teóricas descoloniais, que o conceito de “corporeidade situada” - influente, desde Beauvoir, nas teorias de gênero do Norte global18, e cada vez mais presente em nossas produções de filosofia feminista19 - precisa ser apropriado, mas também transformado nos termos próprios ao nosso contexto, levando em consideração elementos históricos e culturais. Tal noção só nos poderá ser útil, na medida em que se transmutar em corporeidade geograficamente situada, sempre demarcando as condições materiais concretas de tal vivência corporal, profundamente assinalada por fatores diversos e complexos, como raça, classe, orientação sexual, bem como outros marcadores sociais.
Não basta, por conseguinte, seguir a crítica de Beauvoir à filosofia que ignora a diferença sexual, universalizando a subjetividade (e escondendo, por trás da falsa universalidade, a masculinidade do sujeito). É preciso, partindo de nossa própria vivência e história, ir além de Beauvoir e situar ainda mais a subjetividade: se queremos uma fenomenologia justa às nossas necessidades, o corpo vivido precisará, além de gênero, ter raça, classe, orientação sexual e origem geográfica.
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Um exemplo disso é a disputa entre as feministas radicais e as(os) transfeministas, que possuem conceitos diferentes do que é ser mulher, o que traz consequências para a prática política de cada grupo. Para mais detalhes sobre essa questão, ver os estudos de Ribeiro, O’Dwyer e Heilborn (2018), Souza (2017) e Bagagli (2019).
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Embora a produção acadêmica e não acadêmica do feminismo mantenha um diálogo, nem sempre tal interlocução ocorre de maneira tão imediata e horizontal, conforme argumenta Maluf (2004). Devido a isso, procuro fazer essa diferenciação.
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Nesse contexto, normalmente chamadas de “women of color”, o que englobava, com suas especificidades, a violência racial contra mulheres negras, latinas e indígenas.
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Especiamente, é claro, pela fundamental obra O segundo sexo, publicada pela primeira vez em 1949.
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Para um aprofundamento dessa questão específica, ver os trabalhos de Silvana Aparecida Mariano (2005a, 2005b), de quem, em grande parte, sigo o percurso argumentativo.
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Um exemplo paradigmático do tipo de teoria ao qual Scott se refere seria o modo como Gayle Rubin analisa o chamado “sistema sexo/gênero”, em seu clássico artigo de 1975.
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Meu interesse, neste momento, é apenas o de fazer um apanhado das ideias - a maior parte oriunda do Norte global -, que têm grande influência no debate brasileiro sobre o sujeito do feminismo. Devido a isso, não pretendo aprofundar questões atinentes a interpretações. Pelo mesmo motivo, cito preferencialmente somente as obras mais populares de cada autora.
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Isso, é claro, no caso de entender que a desconstrução da categoria mulher é, de fato, o que Butler defende em alguns de seus trabalhos. Embora não caiba aqui um aprofundamento da questão, há, certamente, passagens que podem levar a tal interpretação. Salienta Silvana Aparecida Mariano (2005b, p.1-2): “Seguindo as elaborações de Foucault, Butler entende que esse sujeito que o feminismo pretende representar é, na verdade, constituído discursivamente pelo próprio feminismo, portanto, esse sujeito não existe pré-discursivamente. Assim, aquilo que é alegadamente representado é realmente ‘produzido’. Esta noção retira a base estável de gênero.” Nas palavras de Butler (2003, p. 9): “Explicar as categorias fundacionais de sexo, gênero e desejo como efeitos de uma formação específica de poder supõe uma forma de investigação crítica, a qual Foucault, reformulando Nietzsche, chamou de ‘genealogia’. [...] A genealogia toma como foco o gênero e a análise relacional por ele sugerida precisamente porque o ‘feminino’ já não parece mais uma noção estável, sendo seu significado tão problemático e errático quanto o de ‘mulher’, e porque ambos os termos ganham seu significado problemático apenas como termos relacionais.”
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Para a escolha do termo “descolonial” em lugar de “decolonial”, sigo o argumento do filósofo Paulo Margutti (2018, p. 235-236).
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Nesse contexto, são mencionadas práticas conhecidas nas redes como “lacração” e “cancelamento”. Sobre esse tema, ver o trabalho de Facchini, Carmo e Lima (2020). Gostaria ainda de destacar que tais práticas também me parecem ser, ao menos em parte, “importadas” da militância do Norte global, em particular dos Estados Unidos.
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Sobre o conceito de imperialismo contemporâneo, a partir da influência de interesses do capital estrangeiro, no Brasil, e a condição subalterna brasileira frente à imposição de pautas neoliberais, ver Fontes (2013).
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É digno de nota, para exemplificar, que María Lugones e Sueli Carneiro, as quais estão entre as mais importantes filósofas e teóricas do feminismo, na América Latina, tenham em torno de apenas, respectivamente, 770 e 2720 citações em textos acadêmicos redigidos em português, em uma consulta via Google Scholar (último acesso: 25 ago. 2020), enquanto Butler já foi citada (de acordo com a amostragem da mesma plataforma de pesquisa) em mais de 15900 trabalhos, em nosso idioma. De modo algum quero minimizar a importância da obra de Butler, mas apenas fazer um questionamento de por que nos lemos e citamos tão pouco, mesmo quando se trata de assuntos diretamente relacionados com temas políticos, sociais e históricos, como o feminismo.
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É evidente que a filosofia europeia, marcadamente antropocêntrica e dualista, também servia de base sustentadora para tais concepções racistas, todavia, não caberia aqui um aprofundamento dessa questão.
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Acerca dessa questão, vale mencionar o importantíssimo discurso de Sojourner Truth, proferido em 1851: “Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim. Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem - desde que eu tivesse oportunidade para isso - e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?” E não sou uma mulher? Portal Geledés, 2014. Disponível em: https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/. Acesso em: 22 ago. 2020.
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Gostaria de ressaltar, no entanto, que considero Bodies that matter: on the discursive limits of sex (1993), uma obra muito mais sofisticada em relação a tais questões do que Gender trouble (1990). Contudo, como o livro de 1993 recebeu uma tradução em português apenas no ano passado, sendo ainda muito menos influente do que Problemas de gênero, foco meus argumentos principalmente nesta última. Ainda assim, por razões que aqui não teria espaço de detalhar, tampouco encontro em Bodies that matter uma filosofia feminista que dê conta das peculiaridades do Sul global, o que, aliás, tampouco creio ser a intenção de Butler, que fala, naturalmente, com base em sua perspectiva situada. O que chamo a atenção aqui é, justamente, ao questionarmos se temos feito o mesmo. O diálogo de diferente pontos de vista, inclusive oriundos do Norte global, é sempre bem-vindo, como foi aliás a intenção da obra de Butler e Spivak, Who sings the nation-state?: Language, politics, belonging, de 2007. Porém, diálogo pressupõe que ambos os lados falem, e minha crítica é que não temos falado suficientemente - ao menos, não com nossas próprias vozes.
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Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Pesquisa por Amostra de Domicílios 2015 - PNAD. Disponível em: https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2015/default_brasil.shtm. Acesso em: 25 ago. 2020.
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Sobre a importância de tal noção na obra de Beauvoir, ver o clássico artigo de Linnell Secomb (1999, especialmente p. 97-98).
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Demarco essa questão, porque, tratando-se de trabalhos de teoria feminista escritos por pesquisadoras(es) de Filosofia, é comum que Beauvoir seja o ponto de partida. Recentemente, muitas revistas brasileiras da área lançaram edições na temática de filosofia feminista - como os periódicos Etic@ (v. 12, n 2), Ekstasis (v. 8, n. 2) e Peri (v. 10, n. 2) - o que representa, sem dúvida, iniciativas louváveis para o incentivo à diversidade, e diversificação, das nossas pesquisas acadêmicas. Entretanto, se não formos atentas(os) aos alertas do filósofo Margutti (2018) e da filósofa Susana de Castro (2019) sobre a necessidade de descolonizar a filosofia, acabaremos por reproduzir, também nas filosofias ditas “marginalizadas”, a lógica colonial e intelectualmente cômoda de meros(as) comentaristas acríticos(as) da filosofia oriunda do Norte global.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Fev 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
31 Ago 2020 -
Aceito
11 Jan 2021