Ironicamente, o que você está lendo é um comentário sobre um artigo que critica a fixação da filosofia acadêmica brasileira pela reprodução da fórmula “comentário acerca de... (insira aqui conceitos e autores)”. E alguém poderia alegar que, para realizar tal crítica, mesmo com o nome de ensaio, o texto de Diogo Bogéa (2024) está repleto de referências. Isso é verdade, mas não faz com que o autor incorra em contradição. Em vez disso, evidencia que o problema não está precisamente no recurso à citação e ao comentário, todavia, em deixar questões existenciais de lado, para se ater a esses expedientes.
Se nem todo comentário acadêmico precisa estar deslocado de uma experiência filosófica e se podemos discutir sobre aquilo que nos diz respeito - embora, infelizmente, muitos estejam completamente despreocupados com isso -, comentarei nos próximos parágrafos sobre um ponto desse ensaio que me afeta: a importância de formar professores e pesquisadores para a prática filosófica.
O ensaio de Bogéa investiga o que seria o fazer filosófico e, mais especificamente, um fazer filosófico “desde o Brasil”. O texto começa com a colocação do seguinte problema: não necessariamente o pesquisador em filosofia “faz” filosofia. Isto porque, segundo o autor, o fazer filosófico teria como pressuposto três características: reconhecer a existência e o desejo de lidar com as próprias questões existenciais (mesmo que compartilhada com filósofos da tradição); usar o rigor do pensamento e da escrita, não para explicitar detalhes técnicos de um texto filosófico, mas para encarar com sinceridade e seriedade as questões existenciais experimentadas - o que requer uma abertura para o deslocamento de si, uma abertura para afetos, sensações e pensamentos experimentados; e, em terceiro lugar, tal deslocamento requerido coincidiria com a experimentação da própria singularidade - explicada, dentre outras coisas, como um processo de reconquista de si -, em vez do apego a uma construção fechada de “filósofo” a ser performada. De acordo com o que ele propõe, reconquistar essa singularidade requer “[...] desconstrução e des-identificação em relação aos padrões de identificação, comportamento e definição que de-limitam nossa existência cotidiana e de mobilização e concerto das múltiplas e diversas dimensões circunstanciais que nos compõem” (Bogéa, 2024, p. 11)
Existe uma prática catequética entre estudantes e professores da área de filosofia, no Brasil, a qual consiste em oferecer de antemão assuntos e autores considerados canônicos, além de jeitos definidos como certos para pensá-los. Essa prática estaria fundamentada na reprodução de teorias consolidadas e não na teorização que parte das próprias questões (Hooks, 2017). O problema de tal reprodução, muitas vezes eurorreferenciada, é que ela reduz ou impede o encontro com outras experiências de pensamento.
Como professor e pesquisador em filosofia, acredito que tal provocação é importante e que devemos questionar o papel da filosofia acadêmica, para a formação de filósofos e de professores de filosofia - afinal, é importante lembrar, boa parte dos graduados em filosofia atua na docência. Na vida acadêmica, a formação em filosofia pode ser experimentada como mera reprodução de formulações teóricas que não nos dizem respeito. E, muitas vezes, isso é exatamente o esperado. Quando, por exemplo, um estudante entrega uma atividade ou assume uma bolsa de pesquisa, o que se espera, prioritariamente? Que seja capaz de dominar uma bibliografia específica e de reproduzi-la com o maior esmero técnico e estético possível ou que tente realizar uma experiência filosófica, a partir do encontro com autores? Nós sabemos a resposta.
Em vez de enfatizar um modelo pronto de filósofo e um conjunto de saberes supostamente universal para a formação acadêmica em filosofia, a superação do subdesenvolvimento do fazer filosófico que Bogéa denuncia, no texto, dependeria da ruptura com a fixação que esse modelo reproduz. Assim, a admissão da multiplicidade de vivências e de campos de saber colaboraria com a construção de currículos e práticas acadêmicas menos obsessivas com a performatividade de um (suposto) ideal de filósofo e mais comprometidas com a valorização das vivências mais ou menos compartilhadas, mas sempre únicas, que cada ser experimenta em razão da sua unicidade. Privilegiar essa unicidade colaboraria para a atividade filosófica, ao permitir que as nossas questões - mesmo as que tratamos a partir de autores tidos como tradicionais - sejam articuladas à nossa maneira (Oliveira, 2022).
Apesar das dificuldades para superar uma prática de formação colonizada e colonizadora, a filosofia acadêmica também pode promover uma formação que conduza à atividade de reflexão sobre questões que nos afetam, que dizem respeito ao nosso desejo e às alegrias e tristezas que experimentamos (Spinoza, 2008). E isto não é incompatível com a conversação filosófica que a leitura e o domínio técnico das obras podem nos proporcionar. Entretanto, o risco do deslocamento e da ruptura com o que está consolidado deve vir junto.
Para apoiar a produção filosófica autoral, institutos de filosofia e associações acadêmicas espalhadas pelo país - como grupos de trabalho da ANPOF - teriam o desafio de descortinar e de encarar as próprias questões, tendo em vista a diversidade de vivências da nossa sociedade e do corpo docente e discente que a constituem. A formação e o trabalho de historiadores da filosofia estão consolidados, no Brasil. Podemos, ainda, valorizar a criação filosófica como objetivo prioritário da formação acadêmica. Isto requer apoiar a formação de estudantes e pesquisadores em filosofia para a autoformação, a fim de que as questões filosóficas tratadas incluam as circunstâncias que constituem a si próprios e as relações que estabelecem com os demais seres da natureza. Evidentemente, não há como garantir que essa criação seja sempre realizada. Todavia, podemos pensar na criação filosófica como uma tentativa de lidar com as próprias questões.
Se nossas práticas acadêmicas tiverem um compromisso maior com a criação do que com a reprodução, o comentário se tornará uma ferramenta de ampliação do debate das questões que nos dizem respeito e poderá colaborar ainda mais para a formação de professores e pesquisadores em filosofia, no Brasil. Refletir sobre aquilo que nos interessa será uma forma de cuidado das nossas questões e de nosso tempo. Nesse sentido, como prática de reflexão, a filosofia será sempre uma tentativa de curadoria de si e das questões que percebemos como constitutivas de nossa existência.
Ousemos tentar.
Referências
- BOGÉA, Diogo. Sobre a filosofia como investigação de questões existenciais. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 1, e0240012, 2024.
- HOOKS, b. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes. 2017.
- OLIVEIRA, M. Espinosa e a formação humana. 2022. Tese (Doutorado em Filosofia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.
- SPINOZA, B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
30 Out 2023 -
Aceito
06 Nov 2023 -
Publicado
22 Nov 2023