Resumos
A partir dos personagens infantis: Píppi Meialonga, Momo, Eloíse e Grimble, pretende-se discutir aspectos presentes na apresentação de tais personagens e suas infâncias narradas de forma literária. Uma característica comum a essas personagens é a ausência da convivência com seus pais, embora em seus grupos de socialização e convivência existam adultos. Isso leva à ideia de que sejam personagens-crianças vivendo seu mundo infantil sem a tutela adulta, talvez um sonho ou um desejo de muitas crianças reais. Será mostrado como os seus autores os inserem em paisagens e cenários e lhes atribuem pensamentos e ações baseados em seus próprios projetos ou concepções de infância, muitas vezes nostálgica, romantizada ou sentimental. Algumas proposições serão feitas para ajudar a pensar se é possível tratar da infância com ausência de tutela adulta.
Personagens infantis; Literatura infantil; Infância sem tutela
This article aims to discuss, from childlike characters: Píppi Longstocking, Mime, Eloíse and Grimble, some aspects in the presentation of such characters and their childhood narrated in literary way. A common characteristic to these characters is the absence of familiarity with their parents, though in their groups of socialization and familiarity there are some adults. Which leads to an initial idea of them as children-characters surviving in their childlike world without the adult protection, a dream or a wish of many real children? It will be shown how the authors insert them into landscapes and sceneries attributing to them thoughts and actions based on their owns projects or conceptions of childhood, very often nostalgic, romanticized or sentimental. Some propositions will be done to help thinking if it is possible to treat childhood without adult protection.
Child like characters; Child like literature; Childhood without protection
ARTIGOS
Píppi, Momo, Eloíse e Grimble: apoios para se pensar a infância com ou sem tutela
Píppi, Momo and Eloíse, Grimble: toeholds to think the childhood with or without adult support
Renata Sieiro Fernandes
Doutora em Educação e docente do Programa de Mestrado em Educação do Centro Universitário Salesiano (Unisal), de Americana (SP). E-mail: rsieirof@hotmail.com
RESUMO
A partir dos personagens infantis: Píppi Meialonga, Momo, Eloíse e Grimble, pretende-se discutir aspectos presentes na apresentação de tais personagens e suas infâncias narradas de forma literária. Uma característica comum a essas personagens é a ausência da convivência com seus pais, embora em seus grupos de socialização e convivência existam adultos. Isso leva à ideia de que sejam personagens-crianças vivendo seu mundo infantil sem a tutela adulta, talvez um sonho ou um desejo de muitas crianças reais. Será mostrado como os seus autores os inserem em paisagens e cenários e lhes atribuem pensamentos e ações baseados em seus próprios projetos ou concepções de infância, muitas vezes nostálgica, romantizada ou sentimental. Algumas proposições serão feitas para ajudar a pensar se é possível tratar da infância com ausência de tutela adulta.
Palavras-chave: Personagens infantis. Literatura infantil. Infância sem tutela.
ABSTRACT
This article aims to discuss, from childlike characters: Píppi Longstocking, Mime, Eloíse and Grimble, some aspects in the presentation of such characters and their childhood narrated in literary way. A common characteristic to these characters is the absence of familiarity with their parents, though in their groups of socialization and familiarity there are some adults. Which leads to an initial idea of them as children-characters surviving in their childlike world without the adult protection, a dream or a wish of many real children? It will be shown how the authors insert them into landscapes and sceneries attributing to them thoughts and actions based on their owns projects or conceptions of childhood, very often nostalgic, romanticized or sentimental. Some propositions will be done to help thinking if it is possible to treat childhood without adult protection.
Key words: Child like characters. Child like literature. Childhood without protection.
O encontro com as personagens
Ao procurar livros com histórias infantis para serem lidas e contadas, encontrei quatro personagens interessantes por configurarem-se em protagonistas de suas histórias, por terem personalidades marcantes, por provocarem identificações diretas com as crianças - e adultos - e por fazerem parte de uma cultura de produção e consumo para o público infantil, juvenil e, também, para o adulto. Esta cultura ora é resultado de, ora resulta em produtos provenientes de outras mídias - por exemplo: filmes e desenhos para cinema e para tevê -, dando, inclusive, motes para continuidades de suas histórias em outros volumes e suportes. Dessa forma, provocam em seus leitores a busca por acompanhar as personagens em novas histórias, consumindo os diversos produtos postos à disposição pelo mercado editorial, cinematográfico e televisivo ao longo de muitos anos.
As personagens que escolhi para tratar são quatro crianças entre 6 e 12 anos, aproximadamente, sendo três delas meninas e um menino: Píppi Meialonga, Momo, Eloíse e Grimble, respectivamente.
Além disso que os aproxima, outra característica fortemente aparente é a ausência da convivência com seus pais, embora em seus grupos de socialização e convivência, entre muitas crianças, também estejam alguns adultos. Este fato leva a uma ideia inicial de que elas sejam personagens-crianças vivendo seu mundo infantil sem a tutela adulta, talvez um sonho ou um desejo de muitas crianças reais.
Entre muitas outras características, veremos ao longo do texto como os seus criadores os inserem em paisagens e cenários e lhes atribuem pensamentos e ações baseados em seus próprios projetos ou concepções de infância, muitas vezes nostálgica, romantizada ou sentimental. Em quais territórios de infância essas personagens-crianças habitam e vivem? Algumas proposições serão feitas aos poucos e retomadas ao final para ajudar a pensar se é possível tratar da infância com ausência de tutela.
A infância para os criadores e suas projeções
Todas essas personagens-crianças têm pais ausentes ou desconhecidos, embora apenas para Grimble essa situação seja momentânea.1 Os pais dessas crianças parecem não querer se dedicar ao trabalho da maternidade e da paternidade, ou seja, recusam a filiação. É como se negassem ou se recusassem a exercer esse papel que, a seguir ao momento da geração e de trazer as crianças à luz do mundo, precisa de um longo tempo de investimento no seu cuidado, desenvolvimento, socialização e educação, de modo geral.
Também há que se considerar que a ausência deles pode advir da necessidade de dedicação ao mundo do trabalho e das corporações que lhes tomam muito tempo e dedicação em horas e em mão de obra.
A outra possibilidade para essa ausência é em decorrência da morte de um dos pais ou de ambos ou da separação do casal, o que pode significar o não conhecimento ou o não estabelecimento do vínculo com a paternidade.
Por essa razão, tanto Píppi quanto Momo, Eloise e Grimble estão sozinhos na empreitada de sua colocação no mundo, na sua apresentação a ele e nas tentativas de entendê-lo, administrá-lo e significá-lo, produzindo e construindo conhecimento de si, do outro e do que está ao redor.
Entretanto, se pensarmos que as personagens saíram do exercício de imaginação e fantasia de seus criadores, ou seja, foram eles que os talharam e os apresentaram ao mundo, são esses os seus pais primeiros. São personagens transmutadas em crianças imaginárias. Logo, esses pais (autores) não estão ausentes, mas distantes, assim como os pais-personagens. De longe eles exercem seu poder e suas influências naquilo que fica presentificado na ausência. As referências das crianças em relação a eles se dão por contraste e/ou por associação ao que recebem do mundo social ao redor.
Os pais-criadores envelhecem fisicamente, mas mantêm suas ideias de infância e de maternidade e de paternidade prolongadas e propagadas na literatura. Nela, as personagens vivem uma infância eterna e duradoura que atravessa os tempos, assim como seus pais - personagens-ausentes - mantêm comportamentos regulares e contínuos.
É dessa situação dada e do fato de todas essas personagens faze-rem parte de histórias que se tornaram best-sellers, ou que se desdobraram em outros produtos mercadológicos, que seus leitores produzirão significados acerca de ser criança e filho, adulto e pai ou mãe.
Os autores partem de uma concepção de infância e do que é - ou deve - ser criança e tomam como referências suas próprias experiências passadas, vividas ou sentidas como importantes e necessárias ou como desejo de ter vivido. Todos eles são otimistas com relação ao ser criança, embora para tanto não seja possível passar sem máculas por situações de felicidade, angústia, melancolia, tristeza, realização, dor. Viver a infância, para alguns desses autores, é experimentar um pouco do que é ser adulto; para outros, é vivenciar um estado de suspensão e de ilusão.
De qualquer forma, são sempre projeções de "aspirações e repulsas" (Charlot, 1983, p. 16) dos adultos sobre o espelho que o outro representa e que é anunciado como diferente. Escreve Charlot (op. cit., p. 108) sobre a mistificação da infância:
Elaborar uma imagem da criança é tomar partido sobre o que somos e o que não somos, sobre o que queremos ser e sobre o que não queremos ser, sobre o que nos devemos tornar e sobre o que devemos evitar. O adulto, por exemplo, projeta na criança suas aspirações, mas também todas essas pulsões contra as quais ele resiste de certa maneira; combatendo-as na criança, indiretamente ele as repele de si..
Calligaris (1994, p. 4) é mais incisivo, mas tanto quanto assertivo:
As amamos como ectoplasmas de uma perfeição que os avatares da vida na nos recusaram. Delas esperamos que nos ofereçam a imagem de uma plenitude e de uma felicidade que não é, e nunca foi a nossa, mas graças à qual podemos amar a nós mesmos. Olhamos para elas como para uma foto de nossa infância onde queremos parecer felizes.
Com isso, os autores das personagens são pais em excesso, zelando pelo bem-estar de suas crianças-personagens, estando em lugar que lhes confere autoridade e direcionamento. É olhar e escuta de fora, mas totalmente imiscuído em uma projeção que se apresenta na narrativa como o lugar possível - em todo o caso, ilusório - para um ser viver a infância sem a perseguição dos adultos e seus deveres, e onde é possível se viver livremente a sua vida de criança.
Quem sabe renunciássemos investi-las do trabalho de nos inventarem um futuro sem conflitos e resolvêssemos nos afirmar responsáveis pelo nosso presente! Mas, então, teríamos de renunciar à nossa própria infância, fazendo o luto dos "nós e laços" inconscientes dos quais temos de nos livrar e devemos nos distanciar. (Fernandes, 1997, p. 71)
As personagens e suas identidades
Píppi Meialonga
Píppi Meialonga é a personagem criada em 1945 pela sueca Astrid Lindgren (1907-2002), uma escritora de literatura infantil. A autora cresceu em uma fazenda na Suécia e muito da inspiração para seus escritos provêm dessa experiência e de suas memórias de infância. Píppi foi criada para entreter sua filha Karin, que estava acamada.2 No site pesquisado sobre a autora, Astrid via Píppi como uma personagem extravagante por ser muito forte e que tinha um estilo de vida anarquista, por ser livre e não sofrer opressões.
No livro Píppi Meialonga (vol. 1),3 a personagem é descrita com as seguintes características físicas e seus adereços típicos:
(...) tinha cabelo cor de cenoura e usava duas tranças bem apertadas, que ficavam espichadas para os lados. Seu nariz parecia uma batatinha bem pequena, e era todo pintado de sardas. Debaixo de seu nariz havia uma boca realmente bem larga, com dentes brancos e fortes. (Lindgren, 2001, p. 13)
Além de seu visual exótico, composto por roupas assimétricas feitas artesanalmente, com numeração maior que a sua, coloridas, seu comportamento também segue esse padrão. A roupa muito maior do que suas medidas faz com que Píppi seja um ideal de criança, como se fosse um adulto que diminuísse para poder voltar a um tempo passado - idílico - ou para poder viver algo desejado.
Ela tem como animais de estimação um cavalo, que dorme na varanda de sua casa, e um macaquinho, que usa roupa de marinheiro. Eles vivem e moram com a Píppi, juntamente com duas outras personagens-crianças, vizinhas suas, e irmãos, Tom e Aninha, e constituem seu grupo de socialização. Ao conviverem com Píppi, Tom e Aninha se descobrirão, alargarão suas possibilidades de conhecimento e construirão sua autonomia.
Sua lógica de raciocínio é bastante particular e reflete um modo de lidar e entender a vida com criatividade e inventividade, seguindo seus parâmetros a partir do que tem como referência do que é cuidar de outra pessoa - um modelo adulto que ela reinventa -, por exemplo: "eu mesma me aviso (quando é hora de dormir). Primeiro falo calmamente; se não obedeço, falo um pouco mais alto; se continuo não obedecendo, aí tenho de me dar umas palmadas, vocês entendem?" (p. 18).
Os lugares principais em que as brincadeiras e jogos vão ocorrer são o espaço da rua e o jardim da casa. Também se brinca dentro de casa, mas apenas eventualmente. Ao ar livre é onde se está livre para inventar e criar, aproveitando materiais e situações que se encontram a disposição.
Outra particularidade de Píppi é sua extrema força, que lhe per-mite levantar dois ladrões no ar ao mesmo tempo, enfrentar um grupo de meninos briguentos e ganhar do famoso lutador de luta livre, o Portentoso Adolfo, que trabalha em um circo. Com essa habilidade, ela está preparada para enfrentar qualquer situação de violência ou opressão que possa vir a ocorrer com ela ou outrem. Ninguém será vítima de algo assim - e o seu criador lhe poupa disso.
O cenário e a paisagem que lhe servem de ambientação é uma cidade muito pequenina, e sua casa se localiza ao final da cidade, quando já começa a surgir um bairro mais rural e bucólico. A casa fica em um jardim abandonado e está em ruínas, já que não há um adulto para fazer reformas e consertá-las. Seus pais estão desaparecidos;4 a mãe morreu quando ela era pequena e o pai é um capitão de navio que desapareceu em uma tempestade.
A casa é a que seus pais escolheram e lhes deixaram. É a casa passível de ser herdada e, nesse caso, necessita ou exige que a própria criança tome conta dela e seja responsável por administrá-la o melhor possível. A casa de Píppi é um imóvel em estado precário, sendo algo com o que ela não se preocupa ou não consegue, de fato, administrar e conservar.
Como está sozinha e bem com essa situação, pode desfrutar de viver com mais intensidade o que lhe acontece e de inventar muitas oportunidades e alargar o tempo para brincar e se divertir.
Seu pai lhe entregou um baú de moedas de ouro e pode recorrer a elas no caso de alguma necessidade sentida.
Píppi, decididamente, opta por não frequentar o espaço da escola, embora até a experimente durante algumas horas, mas não vê utilidade no que se aprende lá para o que realmente precisa e pressente o ar de artificialidade que ali predomina. O que precisa é aprendido no dia a dia e o conhecimento se dá na relação com os outros e na interação com as coisas e a cultura.
Como Píppi é uma personagem-criança desamparada por seus pais e familiares, os vizinhos se preocupam com essa ausência de referência de controle e modelo e, então, sugerem que ela vá para um orfanato:
Todas as crianças precisam de adultos para tomar conta delas, e todas as crianças precisam ir à escola para aprender a tabuada. E, por isso, declaravam todas as tias e todos os tios da cidade, aquela meninazinha que estava morando na Vila Vilekula tinha de ser imediatamente internada num lar de crianças. (p. 36)
Em suma, Píppi é uma personagem que vive sua infância de modo feliz e intensamente, na forma como é narrada por sua criadora.
Momo
Momo é a personagem criada em 1973 pelo escritor alemão Michael Ende (1929-1995), um famoso escritor de literatura infantojuvenil e para adultos. Ende foi filho único e passou a infância e a juventude envolto no clima de guerra e se associando a instituições antinazistas quando adulto.5 No livro intitulado Momo e o senhor do tempo,6 a personagem é descrita assim:
De fato, a aparência de Momo era meio estranha e poderia escandalizar alguém que fizesse muita questão de ordem e limpeza. Ela era baixinha e magrinha, de modo que era impossível dizer ao certo se tinha apenas oito anos ou já estava com doze. Seu cabelo preto, de cachos desgrenhados, parecia nunca ter visto tesoura ou pente. Tinha olhos grandes e muito bonitos, pretos como piche, e seus pés eram quase da mesma cor, pois elaandava descalça. Às vezes, no inverno, calçava sapatos, mas eram grandes demais e um pé diferente do outro. Isso acontecia porque nada do que Momo tinha era comprado ou feito especialmente para ela; eram coisas usadas que achava ou que alguém lhe dava. (Ende, 1995, p. 5-6)
Seu visual assemelha-se ao de uma criança que vive ou mora nas ruas de uma grande cidade. As roupas são costuradas ou compostas com o que se tem à mão e isso dá um tom de exótico também a essa personagem.
Momo também veste roupas muito maiores do que suas medidas, como se fosse um adulto que voltasse a um tempo passado, para poder (re)ver e (re)viver o que passou com outra sensibilidade e outros modos de sentir; um adulto experiente, porém sem as amarras da lógica de viver do adulto.
Ela tem como particularidade maior saber ouvir as narrações ficcionais ou queixas dos outros. É um excelente "ouvido", que estabelece relações terapêuticas com os narradores. É assim, sendo ouvidos, que ela lhes dá alívio e tranquilidade. É a ela que procuram em situações de desarmonia ou intranquilidade.
As regras que Momo segue são dadas pelas circunstâncias da vida, ou pela ausência de pais que tomem conta dela, ou por morar em um espaço público da cidade.
O cenário e a paisagem que lhe servem de ambientação são as ruínas de um antigo anfiteatro grego, localizado em uma grande cidade italiana não nomeada. Sua casa são as galerias que ficam embaixo de uma arena central do anfiteatro.
Momo mora em um espaço adaptado para ser casa, sua morada. Os vizinhos se incumbem de prepará-la e arrumá-la de um modo que seja agradável e cômodo. Todos os detalhes serão fornecidos pelas ideias e mão de obra capacitada e bem intencionada desses vizinhos. Sua família são seus amigos, que vão encontrá-la nas ruínas do lugar em que vive.
A garantia de sua sobrevivência se dá com a contribuição de pessoas da vizinhança, que lhe improvisam os móveis, montam a casa para morar nas galerias em ruínas do anfiteatro e lhe oferecem comida.
Entretanto, por sua situação específica de estar desamparada por seus pais e familiares que não estão presentes, de não haver ninguém esperando por ela, há um esforço da comunidade para que aceite se sub-meter à ordem adulta, ao espaço institucionalizado e a tutela de seus tempos e espaços:
- Você se incomodaria se avisássemos à polícia que você está aqui? Poderiam colocá-la num orfanato, onde você teria boa comida, aprenderia a ler, escrever, fazer contas, e uma porção de outras coisas. Que tal a ideia?
- Não. Eu não quero. Já estive no orfanato. Havia outras crianças também. Tinha grade nas janelas. Todos os dias uma de nós levava uma surra, sem razão nenhuma. Então, uma noite, eu pulei o muro e fugi. Não quero voltar para lá.
- Muito bem - disse uma mulher -, mas você ainda é pequena. Alguém precisa cuidar de você.
- É. Eu vou cuidar de mim - respondeu Momo, aliviada.
- Mas, você é capaz? - perguntou a mulher.
- Eu não preciso de muita coisa... (...).
- Sabe, Momo, achamos que podíamos dar um jeito de você morar na casa de um de nós. É verdade que ninguém tem muito espaço e quase todos têm muitos filhos para alimentar. Mas, afinal..., um a mais ou a menos não faz grande diferença. O que você acha?
- Muito obrigada. - Muitíssimo obrigada. Mas vocês não podiam me deixar ficar morando aqui?
As pessoas cochicharam, discutiram e por fim concordaram. Afinal de contas, a menina estaria tão bem ali quanto na casa de algum deles. E lá todos poderiam cuidar de Momo. Seria mais fácil do que se um só ficasse incumbido disso. (p. 8-9)
Momo, assim como Píppi, sabe o que não quer: o espaço institucionalizado educativo - o orfanato ou a escola. Ambas têm opinião formada sobre muitas coisas da vida e servem como mestres para outras pessoas, personagens infantis ou adultos em situação semelhante a que vivem.
Momo se envolve em uma situação provocadora que exige dela uma ação aventuresca. Entretanto, os meandros da aventura são como parte de um jogo, com regras às vezes explícitas, às vezes construídas ao longo da sua ocorrência. E ela precisa usar de táticas e estratégias para poder tirar proveito e chegar ao fim da aventura resolvendo a situação problemática.
Como é uma criança só, quem administra o tempo e o espaço é ela própria.
Eloise
Eloise7 é a personagem criada em 1955 pela multiartista norte-americana Kay Thompson (1908-1998), a segunda de quatro filhos, em parceria com o ilustrador Hilary Knight, que dá visualidade à personagem que não é descrita em parte alguma.8
Nos traços do ilustrador, Eloise é uma garota com cara astuta e arteira, muito bem vestida em saia preta plissada com suspensórios, camisa com mangas bufantes e rendas, meias três quartos, sapatos pretos envernizados, cabelos lisos e compridos, porém despenteados e decorados com um laço de fita no alto da cabeça.
Eloise veste roupas ajustadas a suas medidas, porém, elas são visivelmente copiadas de modelos adultos - saia plissê -, como costumam ser os uniformes escolares de um determinado tipo de escola.
É, claramente, uma criança rica que vive no 15º andar, o último, de um hotel na cidade de Nova Iorque, Hotel de Plaza, que lhe dá todas as garantias necessárias para que possa aproveitar de sua infância. Há sempre alguém para cuidar da segurança de quem entra e sai, há a babá que arruma o quarto e demais dependências, nos horários de comer há sempre alguém a providenciar e levar as comidas, há alguém que lava e passa as roupas, entre outras necessidades. Do mesmo modo, é um lugar que está sempre abarrotado de gente de um certo tipo social, que agita os dias e as noites com reuniões de trabalho ou sessões de música. Não há marasmo, mas sim novidades trazidas por essas pessoas.
Sua mãe está sempre ausente, viajando, e elas só se correspondem por ligações telefônicas. O pai, Eloise desconhece.
Os adultos a sua volta se dão conta de sua presença por causa das travessuras e bagunças que faz, do falatório sem parar, da inquietude e de sua intensa movimentação pelos espaços do hotel, mas poucos interagem com ela e por breve período de tempo.
Ela é uma criança de aparentes 6 anos que explora cada lugar do enorme hotel em que mora/se hospeda, pois não tem casa própria. Para ela não há tédio. A cada dia há novas coisas, pessoas e situações a serem descobertas e experimentadas. Ela provoca as pessoas com suas repentinas aparições e transgressões.
Tem dois bichinhos de estimação, "um cachorro que parece um gato" e uma tartaruga chamada Doroti, que come uva passa e usa abrigo. Sua família são seus animais de estimação e sua babá, pois eles é que convivem e estão perto uns dos outros todos os dias.
Suas bonecas são quebradas e remontadas, seu quarto tem as paredes rabiscadas e os objetos estão fora dos lugares definidos para serem guardados. Eloise brinca sozinha; tem a si mesma como companhia.
Ela brinca e fantasia quase a totalidade de seu tempo, em todos os espaços disponíveis que frequenta no hotel. Ela não sai à rua. Está restrita ao espaço arquitetônico do hotel e lá ela cria seu mundo imaginário e simbólico.
Eloise não frequenta escola, "porque a detesta" (Thompson, 2002, p. 54), mas tem um tutor particular que é contratado para ensiná-la. Entretanto, ela o considera um chato, não presta atenção nele, o provoca repetindo suas frases, esconde-se dele, o provoca até que ele se cansa e vai embora. Logo, ele não consegue cumprir aquilo para o qual foi contratado.
Sua infância é garantida pelo bem-estar fornecido pelo hotel e pela administração da babá, que lhes dão subsídios para poder ser criança.
Grimble
Grimble9 é a personagem masculina desta seleção, criado em 1968 por Clement Freud (1924), neto do psicanalista Freud, de origem alemã, porém crescido em Londres.
Grimble é descrito apenas pela incerta idade, de "mais ou menos 10 anos", porque seus pais, que saíram em viagem sem avisá-lo, eram estranhos e "desligados" e não sabiam nada ao certo.
Pelas ilustrações de Frank Francis e Roberto Ricardo, a personagem é caracterizada com o uso de óculos de grau, sardas nas bochechas, cabelos lisos e ajeitados. Veste-se com short, camisa, paletó e gravata comprida e calça sapatos com meias. É como se estivesse com o uniforme de algum colégio londrino para meninos - elementos retirados, talvez, da infância do criador.
Enquanto seus pais viajam, Grimble tenta levar sua vida normalmente sem o auxílio dos adultos - que, no caso dos pais, não eram assim tão atentos a ele. Ele mora em uma casa, em uma cidade e tem a ajuda dos vizinhos para se manter durante os cinco dias de viagem dos pais, embora não os encontre também. Seus pais já providenciaram tudo de que ele precisa: comida, conselhos, lembretes quanto aos hábitos higiênicos e escolares, entre outros, que lhe são informados por bilhetes de papel colocados pela casa. Quando houver outra necessidade, que não possa ser satisfeita por não ter sido antecipada por seus pais, o conselho por escrito sugere que o menino peça auxílio dos vizinhos conhecidos ou de parentes próximos.
Seus pais previamente arrumaram bilhetes que ficam dispostos por vários lugares, servindo como única forma de conversa entre eles.
Para Grimble, tanto o jardim da casa como a escola são os lugares para as brincadeiras e jogos acontecerem. A escola aparece como o lugar mais propício, pois ele estuda em tempo integral. Então, ora a escola inclui horários livres para recreação e diversão, ora as personagens-crianças criam brechas para que isso aconteça.
Ele adora a escola, "tudo nela agradava a ele, porque era arrumado e organizado, e ele sempre sabia o que ia acontecer depois, o que era bem diferente de sua casa" (Freud, 1968, p. 37). Lá ele se encontra com seus amigos, participa ou observa as "aprontações" dos alunos, brinca e joga. Ele continua indo à escola mesmo que seus pais não o mandem, por hábito incorporado; entretanto, em uma ocasião, decide falsificar a assinatura de seus pais em um documento que o autoriza a faltar por motivo de doença. Chegando à escola para entregar a autorização, fica sabendo que a professora que ministraria a aula seguinte havia faltado e todos teriam tempo vago para jogar futebol. "Grimble achava que o melhor lugar pra jogar futebol era o pátio da escola, porque dali podia ver os outros meninos sentados nas salas de aula fazendo as lições e olhando pra fora com inveja, enquanto ele marcava os pênaltis de esquerda" (p. 64).
Grimble é bastante comportado e bem menos excêntrico ou ousado que as outras personagens e isso talvez seja decorrente do fato de ter pais que agem com certa displicência para com ele, tendo um comportamento não esperado por adultos responsáveis por crianças. O desejo dele é que sua vida fosse "certinha" e arrumada.
Os lugares da infância e sua ocupação
Nessa vida literária atribuída às personagens-crianças escolhidas e que se desenrola em cenários e paisagens do meio urbano, os territórios pensados para abrigá-las costumam ser coincidentes, embora o agir sobre a realidade tenha as particularidades de cada personagem e seja proveniente de um suposto consenso coletivo sobre quais são - ou devem ser - os lugares da infância.
Os seus criadores preparam os lugares-territórios observando a sua ocupação ou não. São eles que dão especificidade à infância e marcam a diferença para com a adultez. Dessa forma, os lugares e espaços estão presentes - aceitos, negados ou relativizados.
A infância é um período marcado pela presença de tutela - maior ou menor - de adultos para com as crianças, sujeitos de pouca idade, seja uma tutela que acontece no espaço particular e privado da casa e dos demais espaços institucionalizados que se orientam para a educação e socialização, seja uma tutela que acontece no espaço da vivência pública, estabelecida e garantida pelo poder governamental. Ambos são entidades imbuídas de autoridade e poder que se encarregam de administrar, encaminhar, proteger, amparar, cuidar, defender a pessoa que não se encontra em condições de garantir tais posições para si.
No caso das personagens, embora os pais-personagens não estejam presentes, eles criam ou montam o ambiente em que elas vão circular, garantindo-lhes certas seguranças para a sobrevivência em um mundo capitalista e, de muitas formas, perverso.
Em todos esses casos, os autores arrumam situações para que suas personagens-crianças estejam livres de determinadas preocupações - tidas como de adultos - para que possam desfrutar e vivenciar de suas infâncias.
Se outro lugar da infância é a família, em todos os casos o que as personagens têm são pais ausentes e/ou desconhecidos, e vão participar da constituição familiar outros personagens como: animais de estimação que vivem bem perto, fisicamente, das personagens-crianças, amigos de mesma idade ou mais velhos, funcionários ou empregados. De qualquer forma, as personagens vivenciam uma espécie de solidão familiar, no sentido de que estão sozinhos, porém não abandonados, e o carinho e atenção que desejam são recebidos por quem não os gerou ou os trouxe à vida. Todos eles são filhos únicos ou são o centro das relações.
O pertencimento aos grupos de convívio, sociabilidade e socialização é uma outra característica de lugar da infância. É pelas relações e interações aí estabelecidas e mantidas que o aprendizado informal e o conhecimento vão acontecer. É nesse grupo que as regras serão construídas e testadas. É nesse grupo que acontecerão muitas das experiências, tendo a anuência de outros personagens mais velhos, num encontro de gerações, ou descobrindo junto com personagens de mesma idade ou mais novos. O aprender com o outro e com o mundo se dá de forma intensa pelos grupos de socialização, os quais, ao mesmo tempo em que dão a segurança para experimentar, dão o espaço para as trocas, conflitos e confrontos, e a autonomia para o exercício de se aventurar.
A casa para morar é o lugar de proteção, segurança, refúgio e aconchego. Entretanto, ela não precisa ter o aspecto tradicional de uma casa para que se consigam tais sensações. Um lugar para morar é não estar à mercê do espaço público. É ter um lugar para se resguardar e ter intimidade e privacidade.
Em seus espaços privados - eternos ou momentâneos - as personagens-crianças gerenciam e escolhem - com maior ou menor poder - a organização e o funcionamento do ambiente. Tornam-se donos de suas casas, as ocupam, imprimindo suas características estéticas e de personalidade e circulam à vontade e com autonomia.
Os espaços de abrigo servem como moradia ou casas para as crianças órfãs ou sem família; são espaços institucionalizados, criados e mantidos por adultos na intenção de assegurar o bem-estar e a segurança das crianças menores. É outro espaço de tutela.
Para a sociedade, uma criança sem um adulto para cuidá-la é algo perigoso, tanto no sentido de correr algum perigo contra a sua vida, quanto no de provocar insegurança na sociedade com relação às ações que pode vir a praticar. Portanto, a criança ficar sozinha é algo que se constitui como uma ameaça.
Por mais que tentem convencer as personagens-crianças da necessidade de estarem sob a vigia, olhar e escuta de algum adulto, acabam por ceder à situação vigente e, dessa forma, as personagens podem deliberar sobre o que escolhem e preferem para si. Elas estão sozinhas, mas não abandonadas totalmente pelos adultos-personagens que, a distância, mantêm seus olhares e escutas atentos a qualquer necessidade de intervenção tanto sob a forma de uma ajuda comunitária, como de uma ação de algum órgão institucional autorizado.
A instituição escola ou o papel de tutoria aparece em todas as histórias, evidenciando a função de ambos como formadores de pessoas. É nesse espaço construído, regrado e regulado por adultos que as crianças serão introduzidas no que se convenciona com importante e essencial para sua vivência, assim como o ajustamento social e uma inserção na cultura organizada e planejada, intencionalmente, sob a forma de estratégias e exercícios de experimentação.
A escola constituiu-se com o objetivo de inscrever na subjetividade infantil três elementos da moralidade, com o intuito de "frear as paixões que habitam o homem", nas palavras de Fernandes (1997, p. 65):
(...) o espírito de disciplina (graças ao qual a criança adquire o gosto da vida regular, repetitiva, e o gosto da obediência à autoridade); o espírito de abnegação (adquirindo o gosto de sacrificar-se aos ideais coletivos) e a autonomia da vontade (sinônimo de submissão esclarecida).
Por outro lado, valorizando justamente esses impulsos e paixões próprias do ser humano, respeitando os ritmos e os interesses de cada um em particular, seguiram-se proposições educativas - românticas - que questionavam o objetivo anterior e atribuíam à natureza, o mundo natural em oposição ao mundo artificial, o local educativo - ou em uma instituição escolar alternativa aos modelos padrões. Essa proposição defende "uma educação contra a dureza e a arbitrariedade da sociedade adulta" (Gagnebin, 1997, p. 94).
A escola é outro espaço de tutela adulta, que dita e controla os tempos e os espaços de seu público. O chamariz da escola é muito mais o lúdico e os amigos do que aquilo para o que se convencionou que ela serve. Há os que a negam totalmente, correndo o risco da censura adulta, e há os que buscam localizar brechas e tentam ampliá-las.
O não exercício do trabalho pode ser apresentado como outro lugar da infância. Em nenhum dos casos das personagens escolhidas elas se voltam para essa atividade. Ou porque já as proveram financeiramente, ou porque se vive na rua. No caso delas, há sempre um adulto que se incumbe disso. Logo, o trabalho como meio de remuneração e preocupação não faz parte da infância para essas personagens. No lugar disso, irá aparecer o tempo para a brincadeira.
Em nenhum dos casos, também, faz-se menção à sexualidade, mostrando que os autores entendem que, nesse período da infância - imaginária -, o que prevalece é a assexualidade. Suas personagens têm gênero e educam seus leitores nisso e para isso, através de seus pensamentos e comportamentos. O sexo não está à espreita. Todas as persona-gens encontram-se livres dessa condição ou dessa possível ameaça.
A brincadeira e o tempo livre são pontos fortes, como outro lugar que os autores garantem as suas personagens-crianças. O te mpo da infância é o tempo da brincadeira sem tempo regulado e sem adultos por perto. É o momento em que o faz de conta e os jogos regrados estão presentes e são elaborados e desenvolvidos.
Não existe tevê concorrendo com as brincadeiras ou ocupando o tempo dessas personagens-crianças.
Por fim, assim como o lúdico se associa à brincadeira, também a imaginação, a criação e a fantasia poderiam ser campos da infância, no sentido de territórios ocupados. Faz parte da "vida" dessas personagens a animação pela via dessas capacidades simbólicas em grande parte de seus tempos. Em muitos momentos é isso que prevalece à razão. Entretanto, nenhum autor coloca suas personagens totalmente absorvidas pela imaginação entendida com fuga ao real. O que há é uma perspectiva de olhar e de escuta que se diferencia da do adulto e que, no caso das histórias contadas, é tida como qualidade altamente positiva. Talvez seja isso que dê um alívio e uma forma inventiva para lidar com um cotidiano em que os parâmetros são os modos do adulto. Nas histórias em que são protagonistas, o que prevalece são os modos de se fazer e viver a infância idealizada por seus criadores.
Considerações: aproximações e afastamentos
Embora o que tenha me motivado a pensar sobre essas personagens-crianças seja um palpite que procurei abordar por alguns ângulos neste artigo, talvez ele não se aplique à totalidade das personagens escolhidas, embora, em parte, se encaixe como algo em comum que as aproxima. Porém, ao mesmo tempo, em muitos pontos as afasta também.
As quatro personagens têm traços físicos e estatura de criança - em contraste com os adultos - e procurei mostrar o quanto elas são projeções das idealizações - românticas - de seus criadores. Talvez, o que venha mostrar esse dado seja o vestuário delas. Em todos os casos, são corpos de criança com marcas de adulto. E isso pode revelar o quanto de imaginário incutido há nessas personagens-crianças; o quanto estas são o espelho projetado do desejo adulto.
De qualquer forma, elas dão o que pensar, mesmo que provisoriamente ou inicialmente, como apresentei até aqui.
Aprecio todas essas personagens assim como seus autores e não tive a intenção de desconstruí-las, mas, sim, me senti provocada a chegar mais perto delas com um olhar e escuta relativizados e problematizadores.
Para os leitores, essas personagens passam ideias de infância que podem ser admiradas e buscadas para si. No imaginário de crianças de verdade, os adultos estão apartados de muitos momentos de suas vivências e de suas brincadeiras, ainda que o olhar e a escuta estejam atentos de longe, supervisionando e controlando. E, assim, elas vão experimentando alargar suas experiências e suas relações com as regras e normas sociais. Vão experimentando interpretar o mundo aos seus modos, ainda que muito matizados por padrões adultos.
Valorizam, também, as personagens femininas fortes, resolvidas, decididas, ao mesmo tempo em que causam curiosidades por peculiaridades que as tiram de papéis convencionais ou totalmente ajustados. E, com isso, as crianças reais podem estabelecer identificações ou não, reelaborando seus modos de ser e estar.
A relação com a disciplina e a ordem aparece flexibilizada e valorizada, associando-se ao modo particular de ser da criança em oposição ao modo de ser adulto guiado basicamente pela razão prática e científica. Aceitar a disciplina e a ordem - implementados, especialmente, pela via da institucionalização - é introjetar, é incorporar muito do adulto em si.
A transgressão é como uma palavra de ordem; buscar brechas no que está instituído também é outra, porque ambas rompem com o inesperado e instauram o novo e o imprevisto, também inesperado, mas surpreendente.
Se não é possível fugir da tutela adulta, de algumas formas ela pode não ser buscada e percebe-se mais isso especialmente nas persona-gens de Píppi e Momo. Elas próprias são donas de seus destinos - embora vigiadas e escutadas por adultos da redondeza - e de suas decisões. São elas que administram seus tempos e espaços, suas experiências e vivências que não são planejadas intencionalmente por adultos que trabalham nas instituições. Por isso, são vistas exercitando possibilidades de liberdade de escolha e de caminhos. Não são, dessa forma, tuteladas por alguém. Eloise e Grimble também administram seus tempos e espaços, embora de forma menos ousada e dentro de limites mais estreitos. Contudo, todos agem com autonomia e independência enquanto estão fora do enquadramento ou do foco dos adultos; não lhes pedem autorização. São autores de si ao inventarem os seus destinos - escritos pelas mãos dos autores - nos cenários, paisagens e lugares que vão ocupando e transformando.
Ao mesmo tempo, tudo isso talvez seja possível porque nenhuma dessas personagens "escolhe" agir de modo que desestabilize o que está posto, a ordenação instituída do mundo adulto. De certa forma, o que escolhem fazer, de forma bizarra, excêntrica, é tolerado porque se encaixa dentro dos limites - mais alargados - do que é a infância transgressora.
Ou tudo pode ser um grande engodo de interpretação. O que pode mostrar que essas personagens não se submetem a um pressuposto olhar e escuta mais acurados que se pretendem analíticos, metódicos e didáticos, ainda que seja um exercício bastante lúdico.
Por fim, depreende-se que os autores não chegam a radicalizar a infância sem tutela (seja porque os adultos - pais, vizinhos, tutores, babá - estão presentes, seja porque não há transgressões radicais realizadas pelas personagens-crianças). Eles fornecem, pelas histórias, elementos que deixam margem para se pensar que é perfeitamente possível viver sem tutela adulta e que essa vivência é muito mais feliz.
Notas
Sites da internet
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http://en.wikipedia.org/wiki/Kay_Thompson. Consultado em: 28 dez. 2007.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Clement_Freud. Consultado em 28 dez. 2007.
Recebido em 10 de junho de 2009.
Aprovado em 20 de novembro de 2011.
Referências bibliográficas
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Dez 2012 -
Data do Fascículo
Abr 2012
Histórico
-
Recebido
10 Jun 2009 -
Aceito
20 Nov 2011