RESUMO
Oferecer uma educação emancipatória e que reconheça a importância da expressão livre por parte dos estudantes é tarefa desafiadora, mas possível. Como objetivo deste artigo, apresentamos experiências vivenciadas na escola pública, nos anos iniciais do ensino fundamental, pautadas na perspectiva freinetiana, com destaque à organização em rodas: de conversa, de jornal de parede e de textos livres. Tal organização apresenta-se como possibilidade de ouvir a voz dos estudantes e viabilizar a participação efetiva no ambiente escolar e em seu processo de desenvolvimento e aprendizagem.
Palavras-chave Pedagogia Freinet; Práticas pedagógicas; Livre expressão; Rodas de conversa; Escola pública
ABSTRACT
Enabling emancipatory education, which recognizes the importance of the students’ free expression, is a challenge, but possible task. As an objective of this article, we present experiences lived in the public school, in the first years of elementary school, guided by the Freinetian perspective, emphasizing the organization in circles: conversation, mural journal and free texts. Such organization presents itself as a possibility to hear the students’ voice and to make possible the effective participation in the school environment and in its development and learning process.
Keywords Freinet pedagogy; Pedagogical practices; Free expression; Conversation circles; Public school
Introdução
“Praticar a livre expressão e a convivência cooperativa significa inverter a metodologia”
Elias.
Neste artigo, pretendemos abordar possibilidades de trabalho na escola pública, com base na teoria freinetiana, sobretudo no tocante à livre expressão, nos anos iniciais do ensino fundamental, referencial que tem norteado nossas práticas pedagógicas, bem como os nossos projetos individuais de pesquisa na área de educação. Para dar conta de nosso objetivo, de início, entendemos ser importante situar Freinet e sua pedagogia. O pedagogo francês Célestin Freinet (1896-1966) elaborou uma proposta pedagógica pautada na cooperação, na livre expressão, no trabalho e na autonomia (FERREIRA, 2003) e formulou também instrumentos e técnicas que (re)organizam os tempos e espaços escolares de modo que esses princípios fossem contemplados, respondendo ao anseio de escutar a criança, legitimar sua voz e produzir meios e espaços concretos para que ela possa participar ativa e conscientemente de seu processo de aprendizagem e dos espaços de tomada de decisão e construção da/na vida escolar.
Essa é a perspectiva que orientou nosso encontro e nossas práticas enquanto professoras. Fomos aos poucos, e por diferentes caminhos, conhecendo e encantando-nos com as ideias de Freinet, e foi no chão da escola pública que nosso encontro aconteceu. Somos professoras dos anos iniciais do ensino fundamental de uma escola que, nos últimos anos, tem fundamentado seu projeto político-pedagógico nos princípios dessa pedagogia e que conta com um coletivo de professoras que estuda a pedagogia Freinet e lança mão de seus instrumentos na rotina escolar.
Destacamos neste artigo três práticas: as rodas de conversa, como instrumento potencializador de diálogos que inserem a vida das crianças na escola; as rodas de leitura do jornal de parede, momento privilegiado para, identificados os problemas, propostas e/ou outras questões pelas crianças, discutirmos e encaminharmos resoluções; e, por fim, as rodas de texto livre, espaço em que cada estudante compartilha textos produzidos em uma proposta de liberdade de escrita.
Ao explicitar essas três possibilidades de trabalho com rodas, entre tantas outras possíveis, pretendemos evidenciar a importância dessa forma de organização pedagógica, que corrobora trocas significativas. Dado que as instituições escolares, de maneira geral, ainda estão focadas no ensino “bancário”, como já há muito denunciado por Paulo Freire (2005), em que o professor “deposita” o saber e o aluno, por conseguinte, não participa desse processo dialogicamente, esperamos, por meio dessa discussão, contribuir para o debate acerca do legado de Freinet e de um trabalho pedagógico pautado no princípio da livre expressão para a formação humana integral.
A opção pela pedagogia Freinet
Esse referencial pedagógico nasceu da necessidade de se pensar uma escola do povo e da crítica aos modelos escolásticos, excessivamente centrados no professor (FREINET, 2001). Freinet foi professor primário de escola rural multisseriada, militante do Partido Comunista por anos, debilitado pela guerra, e essa biografia tem um peso importante na elaboração de uma pedagogia antiautoritária, conforme classifica Gadotti (1999). Compartilhada por outros pares, ela está na origem de um movimento de professores que perdura até os dias de hoje, presente em mais de 30 países pelo mundo1.
As raízes políticas e sociais dessa proposta pedagógica são detalhadas e profundamente abordadas por Oliveira (1995). Já sua evolução histórica e atualidade são tratadas na obra de Sampaio (1989). Além dessas obras brasileiras, muitas são as que se referem à pedagogia Freinet, constituindo marcos significativos sobre sua relevância para a educação em nosso país ainda hoje.
Oliveira (1998), em obra resultante do centenário de seu nascimento, resgata:
Como muitos ex-combatentes, jovens pertencentes a uma geração sacrificada, [...] [Freinet] voltou profundamente imbuído de princípios pacifistas e também com o desejo de questionar radicalmente um sistema econômico cujos interesses constituíram a verdadeira raiz do conflito. Este ideário constitui, sem dúvida, o substrato da sua proposta pedagógica
(OLIVEIRA, 1998, p. 47).
Do seu lugar de professor, Freinet percebia a importância de viver uma sociedade outra no ambiente escolar, de fazer da escola um lugar potente de convivência com as diferenças, de desenvolvimento de saberes em cooperação, de trabalho significativo e desalienado.
Esse novo jeito de pensar e de fazer escola permite (assim como permitiu em sua época) que as crianças da classe trabalhadora encontrem (e busquem) seus lugares de fala em uma sociedade que se fortalece na desigualdade, às custas da exploração do homem pelo homem, em que os mais pobres são ensinados a obedecer e se calar. Devem aprender desde cedo a se adequar, enquanto marginalizados, ao sistema vigente e às suas mazelas. Contrário a esse modelo opressor, Freinet ensinou a importância de aprender a expressar-se livremente, estabelecer debates respeitosos, ouvir e ser ouvido. Ensinou também o valor do trabalho em cooperação, objetivando o bem comum, do desenvolver-se respeitando e valorizando as diferenças. São, entre outras, lições preciosas para a sociedade atual.
Para que tais objetivos pudessem ser aplicados na escola, o pedagogo cunhou instrumentos de trabalho que favorecessem a autonomia e a autogestão dos alunos e que propiciassem aos docentes “rever a própria postura em relação ao ensino e à educação, abrindo todos os caminhos possíveis para que alunos e professores pudessem refletir sobre a realidade e expressarem-se livremente sobre ela” (ELIAS, 1997, p. 15).
A livre expressão como eixo articulador dos trabalhos: as rodas
Freinet defendia as práticas da leitura e da escrita a serviço da vida. Mobilizar forças nessa direção não é tarefa fácil, mas é o que temos nos proposto a fazer. Faz-se importante ressaltar que defendemos que não há receitas nessa proposta, e o que apresentamos aqui é no sentido de indicar os caminhos que temos trilhado: caminhos possíveis, mas não únicos. De igual modo, vale dizer que estamos focando na livre expressão conforme o pensamento freinetiano para pôr em relevo esse aspecto dos trabalhos aqui apresentados, os quais vêm sendo realizados na medida do aprofundamento teórico e prático que alcançamos, articulados com os demais princípios dessa pedagogia.
Dito isso, faz-se necessário discutir o que temos compreendido por livre expressão no seio dessa pedagogia. Tal questão é tão cara que Elise Freinet, companheira e também colaboradora nessa proposta pedagógica, a traz no título de sua obra O itinerário de Célestin Freinet: a livre expressão na pedagogia Freinet. Nesta, Elise afirma que a “livre expressão facilita a criatividade da criança no desenho, na música, no teatro, extensões naturais da atividade infantil, progressivamente responsável por seus comportamentos afetivos, intelectuais e culturais” (FREINET, 1979, p. 31). Ela aponta que os instrumentos pedagógicos freinetianos criam condições para a livre expressão da criança, e, ao relatar os caminhos percorridos por Freinet, fica claro que o texto livre é um instrumento privilegiado para que a livre expressão da criança aconteça. Tal é o sentido dos periódicos progressivamente criados para que esses textos circulassem: “Freinet defende que o texto livre libera o pensamento da criança, facilita sua expressão, está na origem de uma literatura infantil autêntica, das quais La Gerbe e Enfantine (estórias de crianças reais ou imaginárias) são uma demonstração já positiva” (FREINET, 1979, p. 31).
Em 1927, no congresso que reuniu professores, estes puderam demonstrar que a “livre expressão da criança encontrava-se na origem de uma inversão do conceito de educação, fenômeno generalizado, que superava a mera prática escolar dos programas e da aquisição de saber” (FREINET, 1979, p. 30). Isso foi um marco histórico para a pedagogia Freinet. Santos (1991) afirma:
O ponto de partida para o trabalho educativo é sempre a expressão livre do aluno, nas mais diferentes formas. Entre estas, as atividades de linguagem oral e de desenho acabam assumindo um papel de especial importância, principalmente no que se refere ao aprendizado da leitura e da escrita
(SANTOS, 1991, p. 220).
Elias (2003) reforça a ideia de inversão em relação ao ensino dito tradicional:
A inversão começa quando a escola passa a ver a criança não mais como um ser que não tem conhecimento e ao qual o professor tudo precisa ensinar. Na Escola Moderna, o professor parte da tendência natural da criança para a ação, criação, a vida; permite que ela se expresse, exteriorize seus conhecimentos
(ELIAS, 2003, p. 116).
Essa inversão relaciona-se a uma proposta libertadora de homem. Oliveira (1995) enfatiza que Freinet não denuncia apenas o caráter artificial da escola, mas também:
Esta escola [...], além do papel ideológico que desempenha ao incutir, pelos valores veiculados, valores estranhos à classe proletária, educa subliminarmente esta para a passividade e a autodepreciação, mediante toda uma gama de práticas
(OLIVEIRA, 1995, p. 144, grifos nossos).
Em nossa prática, portanto, procuramos dar a ver possibilidades outras de uma escola que, em vez de educar para a passividade, busque o caminho da emancipação, da autoria e do protagonismo, de uma pedagogia que, em vez da autodepreciação, (re)afirme o valor humano de todos. Inspirada nas pesquisas narrativas que dão a ver os saberes da experiência profissional, essa escola valoriza a autoria do professor, além de ter forte caráter autoformativo (LIMA; GERALDI; GERALDI, 2015). É assim que recorremos aos nossos registros e memórias pessoais para destacar práticas em/nas rodas de conversa, nas quais há encontro de olhares e vozes que, entrelaçados, produzem conhecimentos.
Rodas de conversa
Rodas de conversa são práticas frequentes nas escolas de educação infantil, mas ainda pouco presentes no ensino fundamental, o que revela certa ruptura entre esses dois níveis de ensino e nos faz pensar na concepção de infância que sustenta nossas práticas. Partimos do pressuposto de que cada criança é um sujeito integral que, desde o seu nascimento, participa de diversas práticas sociais. Disso decorre que a escola de ensino fundamental deve também ser lugar para a expressão da sua vida. Entendemos que as técnicas pedagógicas criadas por Freinet nos ajudam a garantir isso.
A roda de conversa, na perspectiva aqui assumida, apresenta-se como um instrumento impulsionador de diálogos com grande potencial de garantir a livre expressão das crianças, além de atender ao nosso desejo e à necessidade de conhecê-las.
Temos realizado a roda de conversa diariamente no início da aula, enquanto fazemos a acolhida das crianças. Crianças e professora sentam-se em círculo para conversar sobre a vida e tomar algumas decisões a respeito do trabalho coletivo. As crianças contam suas histórias, suas experiências vividas dentro ou fora da escola, expressam seus medos, preconceitos, desejos, sonhos... Assim, contextos sociais diversos revelam-se e, não raro, surgem histórias que evidenciam as condições de grande vulnerabilidade em que vivem algumas crianças, como notamos na fala de uma delas quando, ao ouvir o amigo dizer que favela são casas de tábua onde moram os bandidos, responde com firmeza: “Eu moro numa favela e não sou bandida” (apud professora Viviani, 2018, registro de arquivo pessoal).
Castro (2020), ao escrever sobre a roda de conversa, traz a fala de uma criança de 5º ano em que observamos tal vulnerabilidade: “Tenho medo de contar. Vocês não falem pra ninguém. Meu pai já estuprou cinco meninas” (CASTRO, 2020, p. 73). Relatos como esses só são feitos na escola quando há confiança de que a palavra dita será ouvida e acolhida, de que o outro, professora e demais crianças, não serão indiferentes ao que ali está sendo dito. Ao deparar com a dureza das histórias relatadas por seus alunos, Freinet escreve: “É através de seus trabalhos – que em nossas classes têm uma importância tão primordial – de suas brincadeiras, de seus sonhos, que nós, adultos, sentimos a bárbara injustiça que pesa sobre elas e que nos revolta” (FREINET, 1933 apud FREINET, 1979, p. 81).
Existem inúmeras formas de organizar as rodas de conversa, e nós mesmas já as fizemos de diferentes maneiras. Em razão do constante exercício de compartilhamento de nossas práticas e estudos, nossa reflexão afirma alguns modos de fazer e abandonar outros.
Mais recentemente, nas turmas de 1º ano do ensino fundamental, temos organizado a roda de conversa da seguinte maneira: as crianças interessadas em contar alguma coisa fazem sua inscrição para falar e têm espaço e tempo de fala garantidos. Após a fala de cada um dos inscritos, uma grande conversa acontece e todos que ouviram a história podem tecer comentários, emitir opiniões, fazer perguntas sobre o que ali foi compartilhado. Essa conversa costuma ser muito dinâmica e envolvente, pois as histórias contadas se desdobram em muitas outras. O momento exige da professora atenção para garantir o tempo e o espaço de fala de todos, sensibilidade para não fazer julgamentos e cuidado para não cair na cilada de, mesmo sentando-se em roda, monopolizar a palavra, como no modelo tradicional.
Na roda temos um contrato estabelecido. É um espaço delimitado onde as vozes circulam. Naquele espaço, não sou a professora mediadora e, sim, mais um sujeito mediando e sendo mediado. Pela linguagem, as histórias contadas na roda nos provocam e muitas vezes queremos falar. Outras vezes as histórias nos emudecem. Professora e crianças num intenso movimento dialógico
(CASTRO, 2020, p. 73).
Procuramos identificar, na roda de conversa, que histórias geraram maior envolvimento e interlocução entre as crianças da turma e, assim, começamos o trabalho com o texto livre. Quando esse interesse não está evidente, por meio de votação, escolhemos uma das histórias para virar texto escrito. Na pedagogia Freinet, o “ponto de partida para a ação pedagógica é a expressão livre da criança e a sua produção oral, transcrita inicialmente pelo professor” (SANTOS, 1991, p. 212). Portanto, assumimos o papel de escriba, com o devido cuidado de não alterar a história contada pela criança, transformando seu relato oral em texto escrito.
O texto escrito é digitado, impresso e lido para a turma. A autora deve sinalizar se está correta a forma escrita de suas palavras ditas na roda. Feito isso, as crianças recebem uma cópia desse texto para ilustrá-la e colocá-la em seu caderno. Já a versão da autora é publicada num painel na parede da sala, onde ficará exposta, e a publicamos também no jornal escolar sempre que possível, ampliando o acesso a leitores para além da turma e da escola. O texto publicado costuma ser motivo de orgulho para as crianças e gera envolvimento muito especial na turma toda, até mesmo nas crianças que ainda não viram muito sentido na aprendizagem da leitura e da escrita. Os desenhos que acompanham esses textos costumam ser bem elaborados pelas crianças, sobretudo pela criança autora. “Pelo desenho cada criança revive a narrativa elaborada em comum; e, coisa maravilhosa, ela a completa, a adapta a sua personalidade, apropria-se dela intimamente” (FREINET, 1979, p. 46).
Durante o ano letivo, buscamos garantir que todas as crianças tenham, pelo menos, um texto publicado nesse painel. Entendemos que, com esse trabalho, “a vida da criança é colocada em palavras”2.
Por último, vale ressaltar a forma como as crianças interagem com esses textos, no painel ou no caderno: enquanto estão na etapa inicial da alfabetização, elas recorrem a eles quando vão escrever uma palavra que já foi assunto compartilhado na roda e sabem que ficou registrada no texto. Esses textos acabam funcionando como um importante material de apoio em outras situações de leitura e escrita, um referencial de palavras e de histórias conhecidas por todos, repletas de sentidos compartilhados.
Roda de leitura do jornal de parede (ou jornal mural)
Rodas de leitura do jornal de parede (ou jornal mural) também são momentos privilegiados de trabalho pautado na livre expressão. As crianças escrevem livremente conforme suas necessidades, durante a semana, em bilhetes que vão para um mural dividido em envelopes, para separar críticas, elogios e propostas/perguntas. Num dia combinado da semana, num momento organizado como uma assembleia, os alunos leem os bilhetes, que são sempre assinados, a fim de buscarmos transparência nas conversas, os discutem e (re)elaboram combinados com base neles. Essa reunião é registrada no livro da vida (uma espécie de diário de bordo da turma), ou em caderno próprio para isso.
Esse tipo de atividade pode ser realizado já na educação infantil. Em Portugal, a técnica chamada diário de turma, que tem o jornal de parede freinetiano como antecedente histórico, aparece como importante para o desenvolvimento pessoal e social (GARCIA, 2010).
Em nossas salas, temos podido, ao longo do tempo, observar diversas situações que demonstram a importância desse trabalho; para este artigo, elencamos em primeiro lugar a confiança que percebemos nas crianças com relação a esse momento, confiança que vai se evidenciando de formas diversas, como, por exemplo, na quantidade de bilhetes escritos, que tende a ir aumentando no decorrer do ano, e na participação de todos nas discussões, fato que faz com que, algumas vezes, uma hora por semana para tal atividade seja insuficiente. Esse tipo de questão deve ser refletido com as próprias crianças, analisando se tudo o que foi posto era de fato necessário de ser discutido naquela instância, situação também relatada por Garcia (2010), que aponta que algumas “queixinhas” podem ser resolvidas de/em outras(os) formas/espaços, aprendizado que precisa de tempo para ser consolidado, como muitos outros.
Outra questão importante que logo aparece ao nos propormos pensar esse trabalho é a questão da (in)disciplina: sem oferecer solução milagrosa, as rodas de jornal de parede constituem espaço privilegiado e seguro em que todos e cada um podem (re)ver suas atitudes e, com a ajuda do grupo/classe, refletir sobre as consequências delas e buscar melhorar. Nesse sentido, é interessante a fala de um de nossos alunos: “Sem o jornal de parede, iria aumentar a fofoca” (registro de arquivo pessoal), argumentação que foi apoiada por outros colegas, inclusive por aqueles que tinham atitudes muito criticadas no jornal de parede. Novamente, aqui encontramos outra evidência da confiança nesse instrumento/espaço.
Como na maioria dos casos não lidamos com alunos que tenham vivenciado tais práticas na educação infantil, algumas vezes, antes de iniciar o uso formal desse instrumento, valemo-nos de outras formas para organizar e avaliar o trabalho com a turma, conforme o relato da professora Viviani (2019, registro de arquivo pessoal):
Como professora de 1.º ano do ensino fundamental, eu não costumava fazer jornal de parede, acreditava que as crianças de 1.º ano necessitavam de respostas mais imediatas para tudo aquilo que acontecia no seu cotidiano e também por ter aprendido dessa forma com outras professoras freinetianas. Então, diariamente eu fazia com as crianças a roda inicial, em que, além de ser uma roda de conversa, era também um momento de planejamento do dia, e a reunião final ou roda final, como passei a chamar mais recentemente. Era um momento de sentar para conversar sobre como foi o dia, fazer uma autoavaliação e resolver possíveis conflitos que aconteceram no decorrer daquele dia.
No desenrolar do trabalho dessa professora com uma turma de 1.º ano em 2018, o jornal de parede foi iniciado em meados do segundo semestre, e ela registrou: “Já nas primeiras semanas pude perceber um movimento diferente na sala de aula, tanto em relação à importância da escrita quanto em relação ao autocontrole das crianças” (registro de arquivo pessoal).
Outro relato que reforça o sentimento de confiança e importância que as crianças dão a essa prática diz: “Eu adorei o jornal de parede. [...] A parte que eu mais gostei foi na hora que a L. desabafou. [...] Eu senti em mim que quando ela desabafou ela ficou mais feliz” (2020, registro de arquivo pessoal). Isso sugere a sensibilidade da aluna em perceber o clima emocional da sala/dos colegas e valorizar a felicidade e o bem-estar da colega, não apenas seus próprios sentimentos e emoções.
Temos enfrentado a questão de conviver com o coletivo e de fortalecê-lo sempre orientando as crianças no sentido de que o objetivo não é formular sanções, mas sim “reparar o mal” que foi feito (FREINET, 2001, p. 75). Para tal, não há receitas prontas: é algo que se aprende a fazer fazendo e sempre (re)avaliando o feito. Comporta, assim, a imaginação e (re)criação de novos modos de ser e (con)viver.
Por último, destacamos o papel significativo dessas rodas como um dos espaços que concretizam e oficializam o disposto na invariante 27: “A democracia de amanhã se prepara pela democracia na escola” (SAMPAIO, 1989, p. 97).
Rodas de leitura de texto livre
As rodas de leitura de texto livre são um desdobramento da prática da escrita livre por parte das crianças. O texto livre, conforme já dito, apresenta-se como uma proposta de escrita significativa, que parte do interesse da criança, sem nenhuma sugestão de tema ou direcionamento do professor. Por meio desse instrumento, a palavra da criança é expressa sem filtros ou amarras, oportunizando a exteriorização daquilo que a criança deseja compartilhar (com o outro ou apenas com o caderno), dando sentido à escrita, que, segundo Freinet (2001), deve servir à vida, e não a modelos predeterminados. Concordamos com Oliveira (1995) quanto aponta:
O que torna um trabalho ou um texto livre para as crianças concretas da escola pública, para os filhos das classes populares, é em primeiro lugar, a possibilidade de dizer sua concepção de mundo, em oposição àquela veiculada pelo ensino oficial. É poder refletir sobre essas visões opostas e fazer desta reflexão uma arma em favor da sua libertação: texto livre, texto libertador
(OLIVEIRA, 1995, p. 147-148).
Nessa proposta, é comum que os estudantes escrevam sobre situações vividas por eles, suas famílias e amigos; expressem sentimentos, anseios, opiniões; criem histórias, poemas, músicas; ou reescrevam histórias conhecidas de memória. Esse instrumento, portanto, permite “que a criança se expresse da forma mais genuína possível, tendo a palavra e o direito à expressão, o que, muitas vezes, não acontece, pois ela é silenciada pelas práticas escolares nas quais cabe apenas reproduzir as lições do professor” (BUSCARIOLO, 2015, p. 63).
O momento da escrita também é escolhido pelas crianças e pode acontecer nos ateliês de trabalho, na escola, ou mesmo fora dela. Costumamos, em nossa prática, disponibilizar um caderno específico para tais escritas, mas elas podem acontecer em outros suportes. O uso do caderno, no entanto, ajuda a professora a organizar a correção (individual ou coletiva), a reescrita e o compartilhamento de tais textos.
Uma das formas de compartilhamento dessas produções é o momento da roda de leitura. Em um dia predeterminado, em geral semanalmente, sentamo-nos em círculo para a atividade. Em nossa escola, é comum que as rodas aconteçam entre turmas, por vezes unindo idades diferentes, possibilitando o intercâmbio de saberes nas várias fases do ensino. Como a reunião agrupa um número grande de estudantes em uma mesma sala, o leitor pode utilizar o microfone para facilitar o entendimento por parte dos colegas, bem como para ajudar a compor o clima de anúncio e escuta. Iniciamos com as inscrições: um aluno voluntaria-se para secretariar e organizar as inscrições e os comentários.
Tudo organizado, começamos a sessão de leituras. Os alunos inscritos leem os textos que produziram e, posteriormente, ouvem as colocações dos colegas sobre seu texto. Nesse momento, acontecem importantes mediações vindas dos próprios colegas. Estes fazem sugestões, corrigem palavras que se repetem, elogiam, relatam a parte que mais lhes agradou ou chamou a atenção e pedem continuações de histórias e contos. É comum, após a leitura de uma história, ouvirmos comentários como: “você se esqueceu de colocar o título!”, “o que aconteceu com o personagem do início? Você não falou mais dele”, ou ainda “gostei muito da história! Escreve a parte 2?”.
Desse exercício, surgem atividades em parcerias, reescritas, escritas colaborativas e diversas reflexões sobre a vida, que deixam de ser individuais e passam a ser compartilhadas. Destacamos na Fig. 1 uma situação em que a aluna descreveu em seu texto livre um conflito que estava vivenciando com o nascimento do irmão mais novo.
A dinâmica de sentimentos era clara em sua escrita. A aluna compartilhou esse texto tão íntimo com as crianças da roda, que prontamente se puseram a contar suas próprias experiências com situações como a dela. Conforto, empatia, escuta... Vivências possíveis e necessárias no ambiente escolar. Segundo Scarpato (2017, p. 623), “a criança, em sua espontaneidade sempre é criativa e a escola precisa dar-lhe oportunidade de expor, de maneira livre, seus pensamentos, sonhos e alegrias”.
Considerações finais
A pedagogia Freinet, como movimento pedagógico, só foi possível pela cooperação entre os educadores que ao longo dos anos reafirmaram o compromisso de comunicar/compartilhar e discutir suas práticas. Portanto, por meio da cooperação o movimento se mantém vivo até os dias de hoje.
Pensamos que a verdadeira solução para ajudar alguém a fazer pedagogia Freinet é convidá-lo para a nossa classe. [...] É convidar alguém para ver sua classe Freinet e lhe mostrar que não somos um supermestre. Somos alguém que reflete sobre as crianças, sobre as condições de trabalho, que tenta progredir e que é feliz por fazer isso. O que um professor pede para outro professor é que lhe mostre as razões de sua alegria de viver ou de sua satisfação
(UEBERSCHLAG, 1987, p. 11-12).
Assim, cremos que contribuímos nós também para o movimento, bem como para todos os interessados no tema, a partir do momento em que tivemos neste artigo os objetivos de dar a ver nossas práticas relacionadas à livre expressão e de discuti-las à luz dos autores com que elas dialogam. Nesse exercício de escrita, tentamos convidar o leitor para a nossa classe.
Insistimos em dizer que o relato de nossa prática não deve servir de modelo, pois não se trata de copiar esta ou aquela ideia por melhor que seja, mas de inspirar. Toda ação pedagógica deve ser objeto de planejamento e reflexão diante da turma com a qual se está trabalhando, dos objetivos de trabalho e das condições em que este se realiza. A esse respeito, Freinet insiste e discute sobre a questão de método e técnica em diferentes publicações (FREINET, 1979). Nas palavras de Oliveira (1998, p. 49), sua proposta, “longe de ser um ‘método’ codificado ela é, sem dúvida, uma pedagogia do movimento”.
Nesse mesmo sentido, na proposta freinetiana, não se trata apenas de utilizar esta ou aquela técnica; deve-se procurar construir, em cada grupo/classe, um coletivo cooperativo em que, unidos pelo trabalho, os princípios da livre expressão se façam presentes em todos os momentos possíveis, de modo que nossas práticas favoreçam a emancipação, e não a passividade.
Feitas essas ponderações, reafirmamos nossa defesa das rodas de conversa, das rodas de jornal de parede e das rodas de leitura de textos livres como valiosas oportunidades de garantir a livre expressão das crianças, por oportunizar diálogos sobre suas vidas pessoais e a vida da turma, além de compartilhar ideias, expectativas, experiências e sonhos, elementos essenciais para o fortalecimento de uma educação democrática e participativa que, baseando-se nos interesses e nas necessidades das crianças, pode contribuir para uma educação alinhada aos interesses das classes populares.
Notas
-
1
Conhecido internacionalmente como Movimento da Escola Moderna. Mais informações disponíveis em: https://www.fimem-freinet.org/fr/node/11. Acesso em: 16 maio 2020.
-
2
Comentário em aula proferido pela professora doutora Ana L. B. Smolka, na disciplina EP854A, oferecida pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em dezembro de 2020.
-
Financiamento
Não se aplica.
-
Declaração de disponibilidade de dados
Não se aplica.
-
Número temático organizado por: Ana Flávia Valente Buscariolo e Daniela Dias dos Anjos
REFERÊNCIAS
- BUSCARIOLO, A.F.V.T. O texto livre como instrumento pedagógico na alfabetização de crianças 199f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015.
- CASTRO, V.D. Sobre-vivências na escola pública: memórias, registros e narrativas de uma professora Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2020.
- ELIAS, M.D.C. Célestin Freinet: uma pedagogia de atividade e cooperação. Petrópolis: Vozes, 1997.
- ELIAS, M.D.C. De Emílio a Emilia: a trajetória da alfabetização. São Paulo: Scipione, 2003.
- FERREIRA, G.M. Uma conversa inicial. In: FERREIRA, G.M. (org.). Palavra de professor(a): tateios e reflexões na prática da pedagogia Freinet. Campinas: Mercado de Letras, 2003. p. 13-40.
- FREINET, C. Para uma escola do povo: guia prático para a organização material, técnica e pedagógica da escola popular. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
- FREINET, É. O itinerário de Célestin Freinet: a livre expressão na pedagogia Freinet. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.
- FREIRE, P. Pedagogia do oprimido Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
- GADOTTI, M. História das ideias pedagógicas 8. ed. São Paulo: Ática, 1999.
- GARCIA, A.S.R. O diário de turma na vida de um grupo de jardim de infância. Escola Moderna, n. 36, p. 6-20, 2010.
-
LIMA, M.E.C.C.; GERALDI, C.M.G.; GERALDI, J.W. O trabalho com narrativas na investigação em educação. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 31, n. 1, p. 17-44, mar. 2015. https://doi.org/10.1590/0102-4698130280
» https://doi.org/10.1590/0102-4698130280 - OLIVEIRA, A.M.M. Célestin Freinet: raízes sociais e políticas de uma proposta pedagógica. Rio de Janeiro: Papéis e Cópias da Escola de Professores, 1995.
- OLIVEIRA, A.M.M. Freinet: teoria e prática na educação. In: SMOLKA, A.L.B. (org.). Centenário de nascimento de Piaget, Freinet, Vygotsky, Jakobson Campinas: Unicamp/FE, 1998. p. 45-56.
- SAMPAIO, R.M.W. Freinet: evolução histórica e atualidades. São Paulo: Scipione, 1989.
- SANTOS, M.L. A expressão livre no aprendizado da língua portuguesa São Paulo: Scipione, 1991.
-
SCARPATO, M. A livre expressão na pedagogia Freinet. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, v. 12, n. esp. 1, p. 620-628, 2017. https://doi.org/10.21723/riaee.v12.n.esp.1.2017.9667
» https://doi.org/10.21723/riaee.v12.n.esp.1.2017.9667 -
UEBERSCHLAG, R. Palestra de abertura. Tradução: Ruth Joffily. In: SEMINÁRIO DE PEDAGOGIA FREINET, 1987. Anais [...]. Assis: Unesp, 1987. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1HJ7lsbuSDPfzMHnDhEC1XgZjpd0zw4v-/view Acesso em: jan. 2020.
» https://drive.google.com/file/d/1HJ7lsbuSDPfzMHnDhEC1XgZjpd0zw4v-/view
Editado por
-
Editoras Associadas:
Izabel Galvão e Maria Silvia Pinto de Moura Librandi da Rocha
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
27 Jun 2022 -
Data do Fascículo
May-Aug 2022
Histórico
-
Recebido
01 Maio 2021 -
Aceito
30 Out 2021