RESUMO
Este artigo discute a autenticidade do princípio de auto-organização e dos planos individuais de trabalho na perspectiva da pedagogia Freinet. Em razão da inatividade dos alunos, quando inseridos em contextos tradicionais de ensino, o plano individual de trabalho pode mudar a relação deles com o conhecimento e com o desejo de aprender e de investigar o mundo. Na perspectiva da pesquisa bibliográfica e documental, apresentamos alguns aportes teóricos e práticos tratados por Freinet acerca do desenvolvimento da auto-organização da criança e problematizamos três modelos de planos individuais de trabalho – um deles utilizado pelo próprio Freinet e outros dois atuais, um aberto e um fechado, construídos por professores franceses. Nossas conclusões consideram o plano individual de trabalho uma ferramenta que proporciona a auto-organização dos alunos e de elevada importância na pedagogia Freinet para a construção de respostas efetivas que visem à educação libertadora.
Palavras-chave Pedagogia Freinet; Auto-organização; Plano individual de trabalho
ABSTRACT
This article discusses the authenticity of the principle of self-organization and individual work plans, due to students’ inactivity, when inserted in traditional teaching contexts, in their relationship with knowledge and with the desire to learn and investigate the world. In the perspective of bibliographic and documentary research, we present some theoretical and practical contributions treated by Freinet about the development of the child’s self-organization and problematize three models of individual work plans: one of them used by Freinet himself, and other two current, one open and the other one closed, built by French teachers. Our conclusions consider the individual work plan is a tool that provides students with self-organization and of high importance in Freinet Pedagogy for the construction of effective responses aimed at a libertarian education.
Keywords Freinet pedagogy; Self-organization; Individual work plan
Introdução
Para início de conversa, partimos do pressuposto de que a homogeneidade na sala de aula é uma falácia, um sonho proposto pela escolástica. Entre os seres humanos, adultos ou crianças, o que temos é uma heterogeneidade completa, associada às diferenças individuais existentes entre os homens no que se refere ao desenvolvimento psíquico das funções superiores, da linguagem, da motivação, das habilidades, no contexto familiar, nos conhecimentos empiricamente construídos na vivência entre os homens. Esses fatores, entre tantos outros que poderíamos citar, constituem a heterogeneidade e a singularidade do homem. Daqui tiramos a primeira premissa-alicerce deste artigo: uma proposta didática de ensino tem de considerar a individualidade e a singularidade de cada aluno em situação de educação humanizadora. Veremos também a importância, nesse caso, de um contexto cooperativo.
A segunda falácia a que nos opomos é a ideia de que a autonomia é uma capacidade a ser conquistada com a chegada da maturidade cognitiva, derivada do desenvolvimento natural e biológico com o passar dos anos, da infância para a vida adulta. Por autonomia, entendemos a capacidade de um indivíduo, adulto ou criança, de agir sozinho, assumir responsabilidades e gerir suas próprias escolhas nas relações humanas em um contexto econômico, cultural e social. Defendemos que, para conquistar tal estado de autonomia, não basta a espera pelo desenvolvimento biológico. Faz-se necessário, dia a dia, dar um passo em sua direção. É aprendendo a organizar seu próprio trabalho, a definir sua própria meta e a avaliar seus próprios resultados de acordo com um projeto coletivo que a criança caminha na construção da autonomia em suas ações na vida.
Para Freinet (1962), o plano individual de trabalho, entre inúmeras ferramentas e técnicas presentes em suas aulas, tinha como objetivo o desenvolvimento da auto-organização e, em consequência, da autonomia do aluno, a possibilidade de um trabalho individualizado que respeitasse a singularidade de cada criança em uma proposta de trabalho educativo, coletivo e vital.
Pesquisar a pedagogia Freinet remete-nos necessariamente a pensar no homem Célestin Freinet (1896-1966), pelo seu itinerário de vida, pela formação cultural, pelo seu engajamento político, pelo enfrentamento das adversidades pedagógicas. Essas foram, entre outras, as circunstâncias que o levaram a propor uma educação na perspectiva dos interesses do povo. Nesse sentido, Freinet foi um homem que se aventurou para além das condições materiais e simbólicas da primeira metade do século XX. Ele foi e é um grande pensador e inspirador de uma docência comprometida com uma educação humanizadora, sólida e centrada na criança, na cooperação e no trabalho, motor da vida. Tomando suas próprias palavras, podemos dizer que já “não estamos sós” no ideário da escola popular. São 100 anos de uma história que começou em 1920, em Bar-sur-Loup, com esse professor de escola primária e se espalhou por inúmeros países em todos os continentes:
É, por isso que não deixaremos de lutar ao mesmo tempo no plano das ideias, dos princípios, do espírito da educação. Não importa que não saibam nosso nome, que desterritorizem e plagiem nossos escritos [...]. O principal é que mantenhamos intacto o sentido do nosso trabalho, que preservemos na nossa pedagogia os seus valores essenciais de livre de expressão, liberdade das crianças e preparação lógica e humana para o papel eminente do homem na sociedade de amanhã
(FREINET, 1969b, p. 2).
Temos consciência de que nossa tentativa de dialogar com as ideias de Freinet não é definitiva. Pettini (1979) alerta que todo estudo freinetiano deve ser considerado como um movimento ininterrupto de investigação, porque seu legado é imenso, pois Freinet fundou uma cooperativa cujo objetivo é desenvolver um patrimônio nunca definitivamente concluído. As reflexões apresentadas neste artigo devem ser tomadas nesse fluxo de desenvolvimento permanente de investigação.
Por isso mesmo é necessário destacar, o que não é comum para um professor primário, a importância de sua obra, que constitui um corpus teórico e prático muito rico e amplo, lapidado ao longo de mais de 40 anos de sala de aula com crianças, pesquisas, congressos, viagens pedagógicas, publicações (livros, jornais, boletins, revistas), cooperativas educacionais e de tateio em relação à vida. Durante esse processo de pesquisas e aprimoramento de seu trabalho, conseguiu Freinet (2001, p. 49-50)
[...] uma conjunção talvez única na história pedagógica: a da técnica escolar com a teoria pedagógica, uma justificando a outra. [...] Realizamos, pela ação no âmbito da escola, os sonhos generosos dos psicólogos e dos pedagogos [...]. Eis o nosso pedigree pedagógico. O processo de sua evolução é perfeitamente conforme às verdadeiras regras da pesquisa científica, tal como Claude Bernard a definiu: partimos da vida, das experiências no nível da vida, sem nada ignorar das teorias e dos princípios capazes de influenciar e auxiliar nosso tateamento.
Em face desse reconhecimento, dialogar com Freinet assume possibilidades múltiplas de aproximações com sua obra, exige rigor e limites no que tange ao objeto e ao objetivo do estudo, que, no nosso caso, se encaminham para a discussão do plano individual de trabalho na sua relação com o processo de construção da auto-organização da criança e nos pressupostos de A educação do trabalho (FREINET, 1996).
Outra ressalva que fazemos é no tocante ao termo auto-organização. Por considerar as diversas abordagens teóricas que empregam o termo autonomia, os apontamentos de Freinet acerca do uso de categorias impregnadas pelo ideário burguês liberal e a observação de Pavlova e Freitas, tradutores da obra A construção da pedagogia socialista, de Krupskaya (2017), acerca da palavra russa цамоыппаблеhие, cuja tradução pode ser autogestão, autodireção, organização própria ou local, autonomia e auto-organização, optamos, para este estudo, pela expressão auto-organização em virtude de sua pertinência ideológica e dialógica com a pedagogia Freinet. Nos limites de nossa compreensão, os termos autonomia e autogestão serão também empregados tendo em vista a sua pertinência e sua significação textual.
A exposição de nossa reflexão está organizada em quatro tópicos. No primeiro, apresentamos o nosso olhar acerca da educação do trabalho proposta por Freinet, tomando o trabalho como o princípio, o motor e a filosofia da pedagogia do povo. Desse processo educativo, decorrerão todas as potencialidades humanas e sociais, com destaque para a cooperação e a auto-organização. No segundo tópico, fazemos alguns apontamentos sobre a construção do plano individual de trabalho. Em seguida, empreendemos uma análise descritiva de três modelos de plano individual de trabalho e as possibilidades do desenvolvimento da auto-organização das crianças por meio deles. Por fim, traçamos algumas considerações sobre a construção da auto-organização provocada pelo plano individual de trabalho e trazemos as contribuições da pedagogia Freinet para o enfrentamento dos desafios atuais das escolas públicas, com suas determinações sociais, econômicas e humanas.
Freinet: educação do trabalho, cooperação e auto-organização
Corroboramos os apontamentos de Imbernón (2012) sobre a atualidade de Freinet, em razão de sua ampla e fecunda fundamentação teórica totalmente imbrincada na defesa e no trabalho incansável da prática educativa. Esses apontamentos permitem aos pesquisadores afirmar, sem correr riscos, que todo recorte teórico empreendido traz em si a totalidade do pensamento e do poder da pedagogia de Freinet, visto que escrever sobre o autor é
[...] falar sobre a escola e a educação a partir da criança, levar em conta todas suas potencialidades e sua evolução natural e tentar educá-la para a vida. Significa falar, sobretudo, daquilo que acontece dentro de uma instituição educativa em cujas aulas os professores e alunos elaboram atividades para tentar entender, interpretar e modificar o mundo que os rodeia
(IMBERNÓN, 2012, p. 16).
A centralidade da criança na escola é um dos princípios de A educação do trabalho (FREINET, 1996), porque parte das necessidades reais das crianças em função do contexto social em que estão inseridas para realizar atividades construtivas por meio das técnicas e do uso das ferramentas pedagógicas postas a serviço do coletivo e da vida. O objetivo final é a transformação social haja vista a transformação escolar.
As atividades produtivas, isto é, o trabalho, tornam-se “o grande princípio, o motor e a filosofia da pedagogia popular, a atividade de que decorrerão todas as aquisições” (FREINET, 2001, p. 11). Logo, o trabalho bem estruturado, organizado e inscrito a partir dos desejos, dos interesses e das possibilidades das crianças não separa a escola da vida pessoal e comunitária, nem, portanto, a cultura da natureza, não arranca a criança de sua realidade vital, e sim integra-a e impulsiona-a para um mundo melhor.
Assim, o trabalho é a transformação das condições concretas de vida, resultantes dos tateios experimentais que os homens empreendem para produzir algo não dado ou disponível na natureza, mas que atenderá a suas necessidades mais profundas. A concepção de trabalho de Freinet é profundamente marxista. Ele lutou para
[...] transformar as circunstâncias, modificar materialmente a educação para que dela surjam homens modificados, ou melhor, em modificação. Freinet não pretende (o que seria uma atitude idealista) transformar primeiro a consciência dos alunos, fazer deles revolucionários, para que depois atuem na escola e na sociedade. Pretende, ao contrário, dentro dos limites concretos existentes (mas esses limites têm que ser criticamente explorados) mudar as condições materiais nas quais se dá o ato educativo. Só a partir desta mudança – intencionalmente dirigida – é que poderá surgir uma nova práxis, e dessa práxis uma nova consciência, transformadora (OLIVEIRA, 1995, p. 145).
A organização material, técnica e pedagógica do trabalho é a condição essencial para a vida da comunidade escolar. Por conseguinte, todas as técnicas têm como princípio responder às necessidades das crianças e mudar concretamente o meio material em que se realiza o ensino.
Para Freinet (1998, p. 363), essa organização material contém “uma importância decisiva. Sem ela, não poderá haver reorganização escolar verdadeira e fundamental. Na medida em que ela corresponder às nossas necessidades educacionais, o empenho escolar bem compreendido será mais eficaz”. O trabalho, na perspectiva do materialismo escolar, não deve ser uma caricatura precária, reprodutora do trabalho alienado da sociedade, mas uma atividade geradora de uma organização escolar verdadeira, “com fundamentos ao mesmo tempo individuais, escolares e sociais” (FREINET, 1998, p. 369). São esses fundamentos que garantem, de fato, uma educação cooperativa por meio de ferramentas e técnicas de trabalho, contemplando o campo manual, intelectual e cultural dentro do canteiro de obras – a escola. Em outras palavras, é pelo materialismo escolar, com as condições e usos concretos dos recursos disponíveis, que as crianças se educam no trabalho coletivo e cooperativo e produzem conhecimento.
São as crianças, pela cooperação escolar, que organizam o trabalho, a vida da escola. Cada criança, no exercício da sua livre expressão, escolhe, define, pesquisa, executa, avalia, registra suas produções. Ou seja, ela realiza a autogestão do tempo, do uso do espaço e das ferramentas no princípio de ajuda mútua, condição do trabalho escolar cooperativo. Para Freinet (1969b), o ser humano aprende a ser responsável pela sua própria vida ao respeitar a do seu semelhante, à medida que propiciamos na escola:
Uma pedagogia que permita que a criança escolha quase sempre a direcção por onde deve ir e onde o adulto utilize o menos possível a autoridade [...]. É o que pretende a nossa pedagogia, passando no máximo a palavra à criança, proporcionando-lhe, individual e cooperativamente, uma iniciativa máxima no âmbito da comunidade, esforçando-se mais em prepará-la que em dirigi-la
(FREINET, 1969b, p. 9).
Nessa perspectiva, a cooperação na escola transforma as condições de trabalho da sala de aula, provoca e instaura novas estruturas e outras formas de organização das relações que, por meio do princípio da responsabilidade, materializam uma educação do trabalho repleta de vida, sentido, curiosidade, organização, planejamento, disciplina, ordem, respeito. Estabelecem-se, assim, simetria, igualdade e importância entre todas as crianças no cotidiano da sala de aula e da escola.
O princípio da cooperação como um dos eixos da educação do trabalho implica a auto-organização, que tem como base o desenvolvimento do coletivo infantil forjado nas práticas cooperativas, na escolha, na divisão e na realização do trabalho, na resolução dos problemas e dos conflitos, na escuta do professor e dos colegas, na disciplina, na ordem, na participação, na observação dos acontecimentos. Ou seja, a auto-organização resulta da vida cooperativa escolar.
A auto-organização, portanto, consiste num processo. Não é algo dado, mas um princípio em movimento mediante o qual, paulatinamente, as crianças desenvolvem um modo de estar no ambiente social, de se sentir corresponsáveis pelo todo, de assumir os próprios atos e pensamentos e de perceberem a imbricada relação entre o individual e o coletivo. Ela está estreitamente interligada ao cumprimento das invariantes pedagógicas (FREINET, 1969a) no que diz respeito à natureza e às reações das crianças e às técnicas educativas, ou seja, à construção da autonomia, autorregulação, autocontrole e autogestão diante da vida e dos desafios no coletivo escolar. Isso requer um trabalho pedagógico que ofereça as diversas ferramentas e técnicas propostas por Freinet.
Nos limites deste estudo, tomamos o plano individual de trabalho como ferramenta e motor da auto-organização da criança e do trabalho docente. Apresentamos o movimento de elaboração dessa ferramenta de trabalho conforme idealizado por Freinet.
A construção de uma ferramenta: o plano individual de trabalho
Entre os defensores da escolástica, há aqueles que entendem a pedagogia Freinet como uma pedagogia alternativa, concebendo-a e incluindo-a no rol daquelas que postulam a plena liberdade, livre de qualquer autoritarismo. Entre eles, o termo alternativa passou a ter conotação negativa, que pode até mesmo levar ao erro de vincular a pedagogia Freinet a bases epistemológicas aparentemente equivalentes, como as da escola nova, mas que são completamente distintas. A pedagogia Freinet é uma pedagogia popular, como Freinet a nomeava e a concebia. Os filhos dos trabalhadores carregam a força do trabalho cotidiano de seus pais para dentro das escolas. Por isso, é uma escola essencialmente do trabalho, e nela as crianças trabalham, produzem, no sentido humano e mais profundo da palavra.
Freinet construiu pouco a pouco, no seu fazer cotidiano com as crianças, a sua proposta de pedagogia popular. No princípio um pulmão ferido o levou a aderir à aula passeio. A condição material de seu corpo provocada por essa ferida, que inutilizou um dos seus pulmões, minou suas capacidades físicas e o obrigou, como ele mesmo disse, a “dar aula de outra forma”. Ao aderir à visão marxista de sociedade, podemos acrescentar que as condições materiais forjaram o pedagogo, o tornaram sedento de novas possibilidades, o impulsionaram a uma busca pela leitura e pela participação em eventos sobre educação. Sua vida foi radicalmente transformada.
Em maio de 1927, Freinet publicou na revista Les Humbles um relatório de viagem intitulado Um mês com crianças russas. Nessa publicação, buscamos os princípios do plano de trabalho individual por ele elaborado. Motivado pelos feitos da Revolução Russa, de 1917, Freinet fez uma viagem de estudos à antiga União Soviética em agosto de 1925. Naquele território, integrado a uma comitiva sindical de professores de diversos países, verificou uma organização de escolas diferente daquela que conhecia. Entre muitos temas que poderiam ser levantados com base na leitura desse relatório, fazemos referência apenas ao plano de trabalho individual. Enveredemos pelas palavras de Freinet (1927, p. 32, tradução nossa):
Nove da manhã: a aula começou! Mas o que é? Meninos e meninas circulam pelos corredores, todos ocupados em suas discussões. Por uma porta entreaberta, vemos os alunos de uma classe entrando, saindo, lendo, escrevendo; a professora, sentada perto de um aluno, dá conselhos em voz baixa. Seria essa a terrível disciplina bolchevique? Vamos ver!
É, no entanto, uma aula em curso no “Laboratório de Matemática”. No entanto os alunos trabalham lá livremente, de acordo com o “Plano Dalton”. Nas paredes, um programa elaborado pelos educadores indica o trabalho do mês; cada aluno faz como deseja, com a única condição de ter concluído a tarefa no fim do mês. Eles trabalham sozinhos, ou em dois ou três; “copiam” tudo à vontade; buscam livros na biblioteca ou recebem informações do mestre.
E à tarde, de vez em quando, um professor revê, em aula comum, o trabalho realizado.
Trabalho! Pois é exatamente isso! Não é mais suficiente memorizar uma lição ou copiar apressadamente uma tarefa muito difícil para o vizinho. É preciso trabalhar duro para possuir totalmente a matéria estudada.
Destaquemos dessa bela descrição de trabalho escolar aquilo que vem a ser o germe da ferramenta instituída nas classes Freinet, o plano individual de trabalho. Helen Parkhurst (1887-1973), educadora americana, em 1922 publicou o livro Educação no plano Dalton, tendo como base as experiências educativas desenvolvidas nas escolas da cidade de Dalton. A obra em pouco tempo ficou conhecida amplamente, e muitos países passaram a empregar o plano Dalton em algumas escolas.
Em seu relato, Freinet (1927) registra que a Rússia pós-revolução, ainda no esforço de construir uma pedagogia social, também fazia uso do plano Dalton. Nesse mesmo trecho, ele também dá indícios de que conhecia o referido plano, já que o reconhece de imediato nas paredes da escola. Podemos confirmar essa hipótese ao ler o texto A disciplina entre os alunos, publicado um ano depois do supracitado relato nas atas da Internacional dos Trabalhadores do Ensino: Jornadas Pedagógicas de Leipzig, em 1928, pois nele evoca experiências por Freinet conhecidas até aquele momento que poderiam contribuir para a reorganização do espaço escolar:
A auto-organização das crianças e o trabalho comunitário para fins sociais são a base da nova disciplina.
Um certo número de novos métodos permite este trabalho mais particularmente. Introduzi-los em nossas escolas públicas é caminhar em direção à nova disciplina. Contentamo-nos em apontá-los, pois seu aprofundamento não pode estar no escopo deste trabalho:
- Método do centro de interesse (Dr. Decroly).
- Plano Dalton.
- Método Winetka.
- Impressão escolar e intercâmbio entre escolas.
- Método Cousinet de trabalho livre em grupo.
- Escola Russa de Trabalho
(FREINET, 1928, p. 116, tradução nossa).
Esse pequeno trecho tem também a função, aqui neste artigo, de evidenciar sua dedicação em busca de tudo o que se referia a uma nova proposta para o ensino da sua época. Foi sua base ideológica de uma educação do trabalho com vistas à criação de uma pedagogia popular que o distanciou do movimento da escola nova, emergente no início do século XX. Freinet não estava alheio a esse movimento. Ele viveu intensamente esse contexto histórico, mas seu encantamento pelos ideais da Revolução Russa o influenciaria até o fim de sua carreira como um pedagogo socialista. Sua pedagogia inspira-se no movimento pioneiro de base popular e democrática da Rússia. “O princípio não é a preparação de uma elite para o governo das massas, mas a preparação das massas para a vida política e o controle ativo de todos os atos da comunidade” (FREINET, 1928, p. 117).
Parkhurst foi influenciada por John Dewey (1859-1952), trabalhou com Maria Montessori (1870-1952) e seguiu premissas apontadas por Jean Piaget (1896-1980). Sua proposta pedagógica localiza-se no contexto da escola nova, que por sua vez não se harmoniza com a proposta russa de uma pedagogia social. A jovem União Soviética inspirou-se nas criações do movimento da escola nova, porém reelaborou-as na perspectiva de uma pedagogia socialista.
Para entendermos melhor o uso do plano Dalton nas escolas russas, recorremos a Moisey Pistrak (1888-1937), educador socialista lido por Freinet que influenciou as ideias pedagógicas do período pós-Revolução Russa, de 1917. Na ocasião, os educadores russos também encontravam os mesmos obstáculos impeditivos para a construção da pedagogia social que tantos escolanovistas destacavam: o velho programa, os velhos manuais escolares e o sistema de deveres escolares. Pistrak (2011) analisa a forma como a proposta do plano Dalton entrou no contexto russo como uma possibilidade de reorganização do trabalho escolar:
O plano Dalton é, sem dúvida, o assunto que está mais na moda, atualmente. Qual o segredo do charme que ele exerce em nossos professores? Por que tantas referências a ele?
A causa essencial, a nosso ver, é que o plano Dalton elimina o sistema dos deveres escolares que desagrada a todo o mundo, substituindo-o por outro sistema que não exige muito tempo do professor. E. Parkhurst, comentando o plano Dalton, afirma: “O método de laboratório de Dalton destrói sem piedade a organização do tempo. A organização do tempo é uma verdadeira maldição para a criança. A abolição da organização do tempo é, na realidade, o primeiro passo no sentido da libertação do aluno”
(PISTRAK, 2011, p. 131).
Embora o plano Dalton ofereça uma nova forma de organização dos trabalhos escolares, Pistrak (2011) coloca de início em dúvida a adequação dessa proposta aos objetivos da nova escola soviética, analisando as razões pelas quais não seria possível introduzir, sem restrições, as novidades e os produtos vindos de escolas burguesas. Numa concepção dialética, a proposta deveria ser superada:
Tudo isso não quer dizer que consideramos o plano Dalton inaceitável para a escola soviética. Não, alguns elementos do plano Dalton têm grande valor e devemos utilizá-los. Reconhecemos nele três aspectos positivos: a independência do trabalho (mas atenção ao empanturramento livresco!); o resultado (mas que não seja apenas pura formalidade) e a possibilidade de passar ao método experimental (não somente ao método de laboratório). [...] É preciso apenas adaptar o plano Dalton e não o contrário, aceitar o plano Dalton e adaptar o resto a esse plano.
(PISTRAK, 2011, p. 136).
Na pedagogia social o trabalho coletivo ocupa lugar de destaque. Não há lugar para o egocentrismo. Esse desvio de foco destrói a possibilidade de usar o plano Dalton na pedagogia soviética tal como fora concebido. Posteriormente, vemos isso também acontecer na pedagogia Freinet. Para Pistrak (2011, p. 132-133, grifos do autor):
Um dos aspectos incontestavelmente negativos do plano Dalton (segundo os documentos de que dispomos e segundo nossa experiência, insignificante até o momento) é o egocentrismo do ensino e não sua individualização (isso é uma necessidade e um bem), mas exatamente seu egocentrismo. [...] O plano Dalton destrói o trabalho de classe, destrói a classe como fenômeno de trabalho coletivo, e esta destruição é feita não com o objetivo de criar um tipo mais elevado de trabalho coletivo, mas com o objetivo de libertar o aluno de sua relação com a classe, ou porque esta exige muito dele ou porque está bastante atrasada em relação a ele. Cada aluno responde apenas por si e pelo seu trabalho.
Para finalizar esse breve percurso pelas veredas de Pistrak (2011), ressaltamos a concepção de trabalho coletivo presente no ideário russo que influenciaria Freinet (2001) na construção de uma escola para o povo:
Entendemos por trabalho coletivo não somente o trabalho comum das crianças na mesma classe, na mesma sala; isso existe e sempre existiu em todas as escolas. E mais: não é uma condição indispensável para nossa perspectiva.
Por trabalho coletivo de grupo compreendemos em primeiro lugar: tarefa coletiva do grupo considerado como sendo uma unidade. Cada tarefa pode ser desmembrada, dividida entre vários subgrupos; cada subgrupo faz então seu trabalho, mas tem consciência de que é uma parte do trabalho comum. Esse tipo de trabalho merece mais o nome de trabalho coletivo do que o de trabalho de campo, em que cada criança faz a mesma coisa, mas a responsabilidade é individual, cada um trabalhando como uma personalidade independente. Em segundo lugar, a unificação do trabalho dos diferentes subgrupos é garantida pela revisão comum, a globalização do trabalho, o balanço. Uma organização do trabalho desse tipo revela às crianças o sentido da divisão do trabalho; torna-se evidente para eles que diferentes esforços vindos de vários lados, podem servir para realizar uma tarefa comum
(PISTRAK, 2011, p. 129-130).
Vale ressaltar que a intenção da escola soviética era a construção de uma escola do trabalho coletivo, e foi inspirado por esse ideal que Freinet retornou para a França, com novas ideias e possibilidades. Em seu relato, dirigido diretamente aos jovens, ele aponta as amarras da educação francesa:
Os alunos russos nunca se cansam de nos perguntar sobre a sua situação, sobre o modo como você trabalha. Infelizmente, quando nos perguntaram:
– As crianças têm autogoverno em sua casa?
– Eles trabalham de acordo com o “Plano Dalton”?
– Eles trabalharão nas fábricas várias horas por dia para se familiarizarem com o sofrimento dos homens?...
– Eles têm jornal, clube?...
A todas essas perguntas, nós, professores dos países “civilizados” da Europa, respondemos vergonhosamente:
– Não, nossos alunos não têm nada disso... Eles vão à escola não para aprender a viver com liberdade, mas apenas para estudar nos livros e se acostumar a obedecer
(FREINET, 1927, p. 32-34, tradução nossa).
Assim como na época de Freinet, ainda hoje o Ministério da Educação Nacional da França dita os conteúdos, o programa de cada série que toda escola deve ensinar para os alunos. Há um plano nacional de educação, e, além isso, o governo envia para as escolas um inspetor que verifica, de tempos em tempos, se o programa anual de ensino está sendo cumprido no prazo ou não e coloca uma nota avaliando o trabalho do professor! Portanto, Freinet tinha um plano anual de ensino no horizonte de seu magistério que deveria ser cumprido. Caso contrário, o inspetor o notificaria. Embora se vivesse em um regime republicano, as ideias pedagógicas eram retrógradas e tradicionalistas e os professores subjugados a elas. Nesse contexto, Freinet lutou por uma pedagogia popular, por uma pedagogia que se inscrevesse no coração do povo, das relações humanas, uma pedagogia que promovesse a emancipação social da classe proletária e o desenvolvimento criativo da criança.
Na proposta pedagógica freinetiana nenhum instrumento pode ser isolado de sua concepção teórico-política, nem mesmo apartado do conjunto de outros, que, bem orquestrados, fazem nascer a pedagogia popular. É necessário ressaltar que o plano individual de trabalho somente terá lugar e cumprirá seu papel se a noção de grupo-classe já estiver sendo instalada na sala de aula e se esse grupo, com o apoio do professor, já tiver começado a elaborar uma boa oferta de atividades a serem desenvolvidas.
O conceito de classe como agrupamento de crianças sem nenhuma relação entre si com os únicos objetivos de escutar e de aprender a lição dada pelo professor será aqui neste artigo substituído por outro, o de grupo-classe, mais adequado para o contexto do trabalho desenvolvido nas classes Freinet.
As crianças encontram-se no início do ano em uma sala, mas não se conhecem, não há vínculos entre elas. Antes que se inicie qualquer proposta de trabalho cooperativo, há por parte do professor o trabalho primeiro de transformar o agrupamento de crianças em um grupo-classe e que nele ocorram interações com afetividade.
A título de ilustrar como isso poderia acontecer, pensemos em uma excursão, com alunos e professor, para uma fazenda produtora de queijos, comum na França. Antes da pequena viagem, a sala vai trabalhar muito. Com a ajuda do professor a turma se organiza em grupos de trabalho responsáveis por diferentes serviços: preparar as refeições, organizar o dormitório, planejar atividades para o momento de recreação, fazer os registros fotográficos de todas as etapas da produção do queijo, redigir as explicações dadas pelo técnico, entre outras tantas. Para que cada grupo possa desenvolver essas atividades no local, é preciso planejamento, coleta de materiais e reuniões entre os integrantes de cada grupo e também entre os grupos. O objetivo é que tudo isso seja construído aos poucos e coletivamente. Portanto, trata-se de um processo. O papel do professor, como salienta Freinet, é essencial nessa construção. O professor e seus alunos estarão inseridos em atividades reais para que o passeio seja proveitoso e que todos possam voltar para a classe e publicar em um jornal essa experiência. Por trás de tudo isso, constrói-se a amizade entre os alunos, descobrem-se a camaradagem de alguns, os trejeitos, as dificuldades, os medos, as habilidades de outros. Cria-se o sentimento de pertencimento ao grupo.
Retornamos assim à ideia da coletividade que existe nas bases da pedagogia popular. No trabalho cooperado, o grupo-classe pode se subdividir em subgrupos do grupo-classe, e até mesmo em trabalhos individuais, mas todas as atividades desenvolvidas estão articuladas com uma proposta mais ampla, de todos. É pelo trabalho que o grupo-classe se constitui.
Todas as ferramentas elaboradas por Freinet e seus seguidores permitem o desenvolvimento de atividades diversificadas em função dos projetos pedagógicos integrados numa organização cooperativa. Segundo Freinet (2001, p. 44), “enquanto a criança não tiver a opção entre uma gama variada de atividades, as noções de plano de trabalho não se impõem”. Disso, decorre a necessidade de oferecer ao grupo-classe todos os instrumentos técnicos que estiverem disponíveis: a prensa, a rádio, a máquina de escrever, o texto livre, a correspondência, o jornal, os ateliês de bricolagem, as fichas autocorretivas, as conferências, as enquetes, as pesquisas e, atualmente, o computador, a internet. Freinet sempre foi um curioso que experimentou as novas tecnologias do seu tempo.
Planos individuais de trabalho: as interações entre as crianças e o processo de desenvolvimento da auto-organização
Freinet (1928) considerava a disciplina da escola tradicional essencialmente opressora, porque ia contra as necessidades físicas, emocionais e sociais das crianças. Ele preconizava uma nova disciplina, uma nova organização do trabalho escolar que fosse individualizada, sem, contudo, ser individualista, como expôs o pedagogo russo Pistrak (2011), com uma inserção precoce, ainda que progressiva, na realidade do trabalho humano.
A organização da vida escolar deve estar planejada de forma que as crianças sintam necessidade de participar dela, tenham o desejo de realizar trabalhos educativos e sociais, mas ao mesmo tempo é preciso dar a elas a garantia material de que as ações poderão se concretizar. Para além disso, o mais importante é que todas as atividades escolares tenham objetivos reais: organizar a comunidade escolar e considerá-la verdadeiramente como parte da sociedade e, com isso, construir o acesso ao conhecimento.
O meio educativo na pedagogia Freinet é, portanto, complexo e organizado por princípios cooperativos que preveem a autogestão do trabalho. Nenhum instrumento criado por ele é uma cópia de propostas da escola nova. No que se refere à nossa discussão sobre o plano individual de trabalho, Freinet conheceu o plano Dalton, inspirou-se nele e em outros, como vimos, mas superou-o ao dar ao referido plano os contornos de uma ferramenta usada por uma pedagogia popular. Na sua visão de mundo, em movimento e em constante transformação, sabia que os instrumentos poderiam mudar, ser substituídos, mas os princípios para sua escolha não poderiam variar, sob o risco de perderem sua essência primeira de pedagogia popular. Prova disso são a elaboração e publicação das 30 invariantes – tudo aquilo que não muda, não varia, não importa a classe ou o país, nem o momento histórico – apresentadas por Freinet (1969a). Aqui destacamos três delas:
Invariante nº 6: Ninguém gosta de se ver constrangido a fazer um determinado trabalho, mesmo no caso de este trabalho não lhe desagradar particularmente. E este constrangimento é paralisante.
Invariante nº 7: Cada um gosta de escolher o seu trabalho, mesmo que essa escolha não seja a mais vantajosa.
[...]
Invariante nº 21: A criança não gosta do trabalho em rebanho a que o indivíduo tem de sujeitar-se. Gosta do trabalho individual ou trabalho de equipa no seio de uma comunidade cooperativa
(FREINET, 1969a, p. 12-30).
Para levar em consideração essas três invariantes, de modo específico, era preciso construir um dispositivo pedagógico que estivesse a serviço das necessidades e dos anseios das crianças, por meio do qual o professor poderia estabelecer planos de trabalho com a colaboração delas e que elas desenvolvessem, solidariamente, autonomia, porque esta não se decreta, mas é construída graças às ferramentas que permitem o desenvolvimento das capacidades humanas para a auto-organização. O plano individual de trabalho é uma maneira de responder aos desafios impostos por essas invariantes, porque dá liberdade ao aluno para escolher o conteúdo e a forma de organização de suas atividades. Freinet (2001, p. 45, grifos do autor) propõe:
1. Um plano de trabalho geral, estabelecido para uma semana, levando em conta as necessidades impostas pelo ambiente, os regulamentos, assim como um mínimo de disciplina coletiva [...]. Também na escola há limitações que se impõe: trabalhos obrigatórios em horas fixas, saídas ao quintal em certas horas do dia, determinadas em função do tempo, da estação, do horário geral, preparação do texto cotidiano, tiragem dos impressos, etc.
2. Um plano de trabalho individual para uma semana, no qual a criança inscreve as tarefas que quer e deve realizar e por cuja execução ela mesma zela. [...] Com o plano de trabalho, a criança torna-se, por assim dizer, livre, no âmbito de certas barreiras que ela mediu e aceitou previamente. Nos limites desse contexto, ela pode ir no seu ritmo, medir a progressão de sua tarefa, apressar-se para descansar em seguida ou dedicar-se a outras atividades mais interessantes. Nessa prática, ela adquire, mesmo bem pequena, a noção de ordem, controle de si, confiança, amor pela conclusão do trabalho, que evoluirá em consciência profissional, equilíbrio e paz, conquistados em virtude do trabalho.
Esse dispositivo reelaborado por Freinet foi considerado por ele o eixo de uma nova disciplina, que não está associada à individualização, como prevê o plano Dalton, nem mesmo à decisão autoritária do professor. A nova disciplina é “resultante de uma organização metódica da atividade individual no âmbito da vida complexa da classe”. (FREINET, 2001, p. 46). Desse modo, o aluno também se responsabiliza por seu processo de aprendizagem, porque participa da definição de seus objetivos, autoavalia seu trabalho e, gradativamente, consegue perceber não apenas seu nível de conhecimento ou aquisição de habilidades, mas também onde concentrar seus esforços.
Para Ducournau e Bouvart (2017), com o uso dessa ferramenta, os alunos são incentivados a ser mais independentes, tanto em termos comportamentais como na tomada de iniciativa, na relação de interação com os colegas, no respeito às regras, e ainda são levados a uma independência intelectual no que se refere à organização do trabalho, ao engajamento da atividade cognitiva, à autoavaliação de sua produção. Tratando-se da pedagogia Freinet, não é possível isolar o desenvolvimento moral do pensamento crítico nem da autodeterminação. As crianças devem ser capazes de se expressar sobre suas práticas para revisar seu aprendizado. Elas também devem ser capazes de controlar seus horários, planejar suas atividades e avaliá-las sem a intervenção direta do professor, graças a um conjunto de ferramentas à sua disposição.
Como já foi dito, Freinet considerava a vida da classe em pleno movimento. Por esse motivo, vale ressaltar que o plano de trabalho pode ter muitas variedades de formas e ser usado de maneiras muito diferentes, desde que se conservem os princípios expressos pelas invariantes pedagógicas. Segundo Ducournau e Bouvart (2017), um plano de trabalho pode ser aberto e oferecer uma grande liberdade de escolha às crianças, no que diz respeito aos conteúdos de suas atividades e à organização e ao planejamento do trabalho. Por outro lado, um plano de trabalho pode ser direcionado e oferecer apenas uma escolha muito limitada aos alunos, por exemplo, a escolha da ordem das atividades a serem executadas em uma lista predeterminada de atividades.
Para que a verdadeira pedagogia popular seja de fato concretizada, não basta que o professor tenha construído um plano aberto. Isso é extremamente importante, mas não o suficiente. As outras ferramentas e suportes que fazem parte do cotidiano da organização do trabalho do grupo-classe são fundamentais. Ducournau e Bouvart (2017) listam tipos de atividade em relação ao conteúdo propriamente dito:
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atividades comuns a toda a classe;
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atividades específicas para cada aluno, realizadas em períodos que variam de uma a duas semanas;
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projetos pessoais realizados por um longo período de tempo (apresentações, conferências);
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atividades que permitem a avaliação de certas habilidades ou saber-fazer em conexão com os programas escolares (sistema de brevets);
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um sistema para planejamento e monitoramento de atividades ao longo do tempo (linha do tempo ou cronograma do período considerado);
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sistema de autoavaliação do aluno e avaliação do professor;
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um espaço de comunicação com os pais (DUCOURNAU; BOUVART, 2017, p. 12, tradução nossa).
Além disso, as autoras listam ferramentas e suportes que devem estar à disposição dos alunos:
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arquivos suficientemente explícitos para permitir que as crianças entrem na atividade de uma forma autônoma, sem maiores explicações do professor;
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arquivos de autocorreção (publicados por ICEM, PEMF ou Odilon);
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ferramentas de ajuda (quatro possibilidades de ajuda para solicitar: professor, tutoria, cadernos de ferramentas, postagens classe);
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organização da aula em ateliês ou espaços dedicados permitindo um acesso fácil e autônomo aos recursos disponíveis (ferramentas de informática, biblioteca, arquivos organizados por disciplina ou domínio);
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um arranjo de mesas que promovam a cooperação e a troca entre os alunos;
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um sistema de regras que limita o movimento na sala de aula e permite o gerenciamento do barulho;
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tempo dedicado ao trabalho individualizado que pode variar de algumas horas por semana a várias por dia (DUCOURNAU; BOUVART, 2017, p. 12, tradução nossa).
Deveríamos especificar com explicações alongadas e verticalizadas cada uma dessas ferramentas citadas que ajudam, no todo, a compor a pedagogia popular, mas o espaço reservado para este artigo não permite. Sigamos diretamente para um exemplo concreto de um plano individual de trabalho usado por Freinet em 1962.
Como se pode perceber, o plano de trabalho semanal da Fig. 1 oferece uma ampla variedade de atividades possíveis para o aluno: fichários de matemática, de gramática e proposta de três produções de texto (textos livres). Em consonância com o plano anual de ensino imposto pelo Ministério da Educação Nacional, o plano de trabalho prevê atividades de pesquisa e de exposição em história (desenvolvimento das estradas de ferro), em geografia (estudo da área da Côte d’Azur), ciências naturais (captura e estudo de um inseto), física e química (transmissão de energia), mas também sobre um assunto de escolha pessoal no item conferência (a mina). Há também a proposta de uma atividade manual (fabricação de vassouras de urze).
Destacamos a importância da ferramenta conferência associada ao plano individual de trabalho, pois é ela que oferece espaço para o aluno escolher o que quer estudar para além dos conteúdos impostos pelo Ministério da Educação. Se o aluno decidiu estudar sobre as minas, possivelmente as de carvão, muito comuns na época, talvez tenha sido porque alguém da família nelas trabalhava. As relações de trabalho e suas implicações sociais, mais especificamente na vida familiar, aparecem no contexto da escola.
O tema seria apresentado para alunos e membros da comunidade, pois os sábados, dia especificado por Freinet para a apresentação das conferências, era aberto a todos.
Outra evidência da presença do trabalho social nesse dispositivo está na proposta de Freinet como trabalho manual da semana a confecção de vassouras. A vassoura, na comunidade quase rural em que viviam, não era comprada, mas fabricada pelos próprios integrantes da família. Esse serviço a criança conseguiria executar e, dessa forma, poderia fazer parte efetivamente da divisão familiar do trabalho, ao mesmo tempo que poderia construir conhecimentos (físicos, matemáticos e outros) previstos de maneira mais abstrata nos programas escolares oficiais.
Em ciências naturais, destacam-se a sensibilidade e a coerência de Freinet na sua proposta pedagógica de colocar a criança em ação e em estado de dúvida para que, cheia de curiosidade, buscasse cientificamente respostas para as incertezas criadas durante o passeio à caça e à diversidade de insetos que se apresentava no âmbito do grupo-classe. Isso é o que Freinet chama de tateio experimental, mas que no mundo dos adultos se chama pesquisa.
As partes escurecidas em cinza no plano indicam o grau de realização das tarefas. Nelas, por exemplo, o aluno sinalizou que em cálculo havia finalizado 11 atividades. Já o gráfico, na parte de baixo do plano, preenchido pelo aluno, permite que este avalie o seu próprio trabalho. Pode-se notar que a avaliação não se relaciona apenas ao trabalho escolar em si, mas também ao comportamento e ao seu envolvimento na vida da turma. Por fim, há um espaço dedicado à avaliação para os pais e para o professor. Alguns comentários escritos são possíveis nesse espaço.
Em uma época em que não havia computadores, Freinet criou um formato impresso de apresentação clara e padronizada. Assim, o plano era reimpresso a cada semana e todos os alunos preenchiam os campos manualmente, personalizando seu trabalho em relação ao conteúdo e à quantidade. Os planos eram fixados nas paredes da sala para que todos pudessem ver o desenvolvimento de cada um particularmente.
Recorremos mais uma vez aos estudos de Ducournau e Bouvart (2017) agora para mostrar ao público brasileiro um exemplo de plano aberto e outro de plano direcionado.
As autoras apresentam um plano diferente (Fig. 2) em sua composição gráfica, mas muito similar ao plano construído por Freinet (1962), porque oferece uma ampla variedade de atividades:
Texto livre, ortografia e gramática (1); fichas de cálculo, geometria e atividade de criação em matemática (2); arquivos e apresentações em história, geografia, ciências (+ observação do minimuseu) (3); atividade de leitura e compreensão em inglês (4); produção em artes visuais (desenho, bricolagem etc.) (5); atividades organizacionais (arrumação do armário, preenchimento do caderno roxo, que é o caderno de acompanhamento das fichas preenchidas nas diferentes disciplinas, participação na vida da turma (tutoria) e outras atividades (projeto pessoal do aluno) (6); uma codificação (7) indica, novamente, o grau de realização das tarefas realizadas; um espaço também é dedicado à avaliação do trabalho do aluno (8), da professora (9) e dos pais (10); o comportamento do aluno durante o trabalho individualizado é, novamente, objeto de uma avaliação (11)
(DUCOURNAU; BOUVART, 2017, p. 14, tradução nossa).
Conhecemos, então, um plano individual de trabalho atual que conserva as mesmas características de um plano Freinet. Infelizmente, não está preenchido, e não podemos analisar a escolha de conteúdo nem a quantidade, tampouco a astúcia do professor ao propor diferentes atividades.
Na Fig. 3, as pesquisadoras apresentam um plano de trabalho em que a única possibilidade de escolha do aluno consiste na ordem em que ele vai executar as várias tarefas. Não há personalização do trabalho. Além disso, apenas duas áreas do saber estão contempladas nesse plano: francês e matemática. Nesse exemplo, nenhum espaço é dedicado à autoavaliação. Podemos dizer que esse não é um modelo de plano individual de trabalho como preconizado por Freinet. Ao contrário, é uma armadilha a ser evitada: um plano de trabalho meramente ocupacional.
Nas classes que utilizam a pedagogia Freinet há reuniões, trocas entre alunos e professor, porque Freinet idealizou um trabalho individual emoldurado por tempos coletivos de planejamento e de organização. As crianças conversam entre si: o que você fez facilmente? Por onde você começou? O que você vai fazer a seguir? Que dificuldades você encontrou? O que o ajudou? Como você fez? O plano é individual, mas pode-se obter ajuda, pode-se pedir socorro ao professor ou a um tutor. A tutoria entre pares coloca necessariamente as crianças em situação de solidariedade na exposição de dúvidas, na busca por fazer-se compreender e compreender o outro, descobrir soluções para resolver um problema imposto e adaptar sua resposta a seu interlocutor.
A organização do trabalho mediante o plano individual assegura ao aluno atitudes que o impulsionam para o desenvolvimento da autonomia: identificar palavras que dificultam a compreensão de um texto encontrando seu significado sem a ajuda do professor, reconhecer o que é importante numa instrução usando suas próprias palavras, fornecer informações com detalhes aos colegas, responder a perguntas feitas por alunos em dificuldade, pesquisar, selecionar, priorizar dados úteis de um enunciado, eliminar dados desnecessários, construir representações mentais por meio do desenho, do diagrama, da tabela ou da planta. Esses são poucos exemplos, entre tantos, que surgem quando a criança é livre para exercer a auto-organização, sua autonomia e a autogestão.
Conclusão
Nosso estudo procurou mostrar que a proposição dos planos individuais de trabalho abertos e direcionados, sob a responsabilidade e execução de cada criança em seu tempo e interesse, constitui uma experiência promotora da auto-organização pela criança, que, ao visualizar seu plano, gerir suas atividades, registrar e avaliar o desenvolvimento das tarefas, se torna responsável pelo seu processo de aprendizagem, consciente dos seus direitos e dos deveres que devem ser realizados em uma classe cooperativa.
O aporte teórico-prático de Freinet, direcionado para a organização de uma educação do trabalho sólida, voltada para responder às necessidades urgentes e interesses das crianças no seu ambiente e contexto social, é uma referência para modernizar a escola, contribuir para “a criação de um meio eminentemente educativo e humano” (FREINET, 1975, p. 47) e, por conseguinte, construir respostas efetivas e humanizadoras para uma educação de crianças de escolas públicas de todo o mundo: a escola como um lugar de aprendizagem para uma futura sociedade, participativa e solidária na construção do conhecimento e das condições de vida.
Os planos individuais de trabalho representam uma das materialidades escolares que promovem a auto-organização da criança, forjada na educação do trabalho, na cooperação, na comunicação e na livre expressão. Em outras palavras, a auto-organização das crianças é constituída fundamentalmente no exercício e na realização dos planos individuais de trabalho que possibilitam liberdade de escolha dos conteúdos das atividades, do planejamento do trabalho, bem como a responsabilidade para o cumprimento do programa e a autoavaliação dos seus produtos e de sua participação no conjunto do trabalho cooperativo.
Consideramos, por fim, que a pedagogia Freinet promove uma educação voltada para a plena formação e aprendizagem do conhecimento da e para a vida, propiciando o processo de emancipação intelectual, de auto-organização, respeitando as singularidades e necessidades individuais de cada aluno em diálogo com o grupo e com as contradições sociais, econômicas e políticas que nos compõem no tempo e no espaço histórico.
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Financiamento
Não se aplica.
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Declaração de disponibilidade de dados
Não se aplica.
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Número temático organizado por: Ana Flávia Valente Buscariolo e Daniela Dias dos Anjos
REFERÊNCIAS
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DUCOURNAU, A.R.; BOUVART, A.-C.M. Le plan de travail: un outil pour responsabiliser les élèves et différencier les apprentissages. Mémoire professionnel. Master 2 Métiers de l’Enseignement de l’Éducation et de la Formation (MEEF) 1er degré. Parcours Professeur des Écoles (Groupe 3). Marselha: ESPE - Aix-Marseille Université, 2017. Disponível em: https://www.icem-pedagogie-freinet.org/sites/default/files/memoire_espe_plan_de_travail.pdf Acesso em: 22 jan. 2021.
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Editado por
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Editoras Associadas:
Izabel Galvão e Maria Silvia Pinto de Moura Librandi da Rocha
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
27 Jun 2022 -
Data do Fascículo
May-Aug 2022
Histórico
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Recebido
01 Maio 2021 -
Aceito
30 Out 2021