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ENTRE TELAS E TECLAS: PESQUISA-INTERVENÇÃO COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA PANDEMIA

BETWEEN SCREENS AND KEYS: INTERVENTION RESEARCH WITH CHILDREN AND ADOLESCENTS IN PANDEMIC

RESUMO

O artigo objetiva compreender os desafios e apostas que surgem para a pesquisa-intervenção à distância com crianças e adolescentes a partir do uso de dispositivos digitais na pandemia da Covid-19. O método consistiu em entrevistas por meio de celulares e computadores com 18 crianças e adolescentes durante os meses de março a setembro de 2020. Os resultados indicam que a relacionalidade estabelecida entre pesquisador(a) e criança é afetada, sobretudo, pelas limitações devidas ao contato presencial. Por outro lado, verificou-se uma aposta no vínculo de confiança entre os envolvidos. Como conclusão, destaca-se a expansão do uso dos dispositivos digitais e, sobretudo, das chamadas de vídeo e de voz.

Palavras-chave
Infância; Pandemia; Metodologia; Relacionalidade

ABSTRACT

The article aims at understanding the challenges and risks that arise for remote research-intervention with children and adolescents as digital devices during the Covid-19 pandemic are used. The method consisted of interviews by means of cell phones and computers with 18 children and adolescents during the months of March to September 2020. The results indicate that the relationship established between the researcher and the child is affected, above all, by the limitations due to face-to-face contact. On the other hand, it was noted that both researcher and child were highly committed to develop a relationship of trust. As conclusion, it is highlighted the expansion of the use of two digital devices, above all, of video and voice calls.

Keywords
Childhood; Pandemic; Methodology; Relationality

Introdução

O surto do novo coronavírus trouxe novos cenários na vida social da maioria das crianças e adolescentes, como também nas pesquisas realizadas com esses sujeitos. Tais pesquisas eram normalmente empreendidas de forma presencial e passaram a ser realizadas de forma remota. Levando em consideração que essa conjuntura impôs uma novidade no campo das pesquisas dos estudos da infância e da adolescência, este trabalho buscou iniciar um entendimento sobre os desafios e apostas que surgem para a pesquisa-intervenção realizada à distância com crianças a partir do uso de dispositivos digitais. A pesquisa-intervenção é discutida neste trabalho apoiada na ideia de relacionalidade entre sujeitos pesquisador(a) e pesquisado(a). Dessa forma, com base em uma experiência de investigação realizada por meio de plataformas digitais, que teve como objetivo escutar 18 crianças e adolescentes, de 6 a 14 anos, acerca de suas vivências durante a pandemia de Covid-19, procurou-se compreender como a relacionalidade na pesquisa é afetada e produzida pelo uso de dispositivos digitais e qual o seu impacto para a construção de conhecimento com as crianças.

Para as crianças e adolescentes do Brasil, a pandemia de Covid-19 acentuou desigualdades sociais em vários aspectos da vida cotidiana, dentre eles o uso de dispositivos digitais (MINUJÍN; PAZ, 2021MINUJÍN, A.; PAZ, J. Desigualdad socioeconómica y acceso diferencial a las tecnologías digitales de niñas y niños en la Argentina. Sociedad e Infancias. Madri, v. 5, n. 2, p. 15-30, 2021. https://doi.org/10.5209/soci.79045
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; PONTE; NEVES, 2020PONTE, V.; NEVES, F. Vírus, telas e crianças: Entrelaçamentos em época de pandemia. Simbiótica. Revista Eletrônica, Vitória, v. 7, n. 1, p. 87-106, 2020. https://doi.org/10.47456/simbitica.v7i1.30984
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). Com a irrupção da pandemia, 99,3% das escolas brasileiras suspenderam suas atividades presenciais (INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA, 2020INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA. Resultados do Questionário Resposta Educacional à Pandemia de Covid-19 no Brasil. Censo Escolar 2020. Disponível em: https://download.inep.gov.br/censo_escolar/resultados/2020/apresentacao_pesquisa_covid19_censo_escolar_2020.pdf. Acesso em 07 set. 2021.
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) e, em novembro de 2020, mais de 5 milhões de meninas e meninos de 6 a 17 anos não tinham acesso às atividades escolares no Brasil, o que corresponde a 13,9% dessa parcela da população em todo o território nacional. A dificuldade do acesso de estudantes à internet foi registrada por 48,7% das redes municipais que participaram de pesquisa realizada pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (2021)UNIÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES MUNICIPAIS DE EDUCAÇÃO. Pesquisa Undime sobre Volta às Aulas 2021. 2021. Disponível em: http://undime.org.br/uploads/documentos/phpb9nCNP_6048f0cf083f8.pdf. Acesso em: 07 set. 2021.
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. A referida pesquisa também constatou que a maioria das redes municipais participantes (74,1%) informou, como estratégia prioritária, o uso de materiais impressos e orientações via WhatsApp para manutenção e tentativa dos vínculos dos estudantes com as escolas durante o ano de 2020. Além dos dados relativos à escolarização, as questões referentes à saúde das crianças e adolescentes, sua segurança alimentar e a proteção contra violência também são temas que se tornaram alarmantes e acentuaram as desigualdades nesse cenário de pandemia para essa população (BRASIL, 2021BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. 81% dos casos de violência contra crianças e adolescentes ocorrem dentro de casa. 14/07/2021. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2021/julho/81-dos-casos-de-violencia-contra-criancas-e-adolescentes-ocorrem-dentro-de-casa. Acesso em 07 set. 2021.
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; OLIVEIRA et al., 2021OLIVEIRA, E. A. et al. Clinical characteristics and risk factors for death among hospitalised children and adolescents with Covid-19 in Brazil: an analysis of a nationwide database. The Lancet Child & Adolescent Health, v. 5, n. 8, p. 559-568, 2021. https://doi.org/10.1016/s2352-4642(21)00134-6
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; UNICEF, 2020FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA (UNICEF). Impactos Primários e Secundários da Covid-19 em crianças e adolescentes. Relatório de análise - 1ª Rodada 2020. UNICEF Brasil, IBOPE Inteligência. 2020. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/media/9966/file/impactos-covid-criancas-adolescentes-ibope-unicef-2020.pdf. Acesso em 07 set. 2021.
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). Com relação ao tema da segurança alimentar, pesquisa realizada pelo IBOPE Inteligência com apoio da UNICEF durante julho de 2020, através de 1516 entrevistas com famílias de todos as regiões do País, constatou que as mudanças nos hábitos alimentares de famílias que residem com crianças e adolescentes foi maior do que aquelas que não residem com esses sujeitos. Segundo a pesquisa, 27% daquelas famílias que residem com crianças ou adolescentes passou por algum momento em que os alimentos acabaram e não havia dinheiro para comprar mais, sendo um percentual maior do que aquelas que não residem com a população mais jovem (17%).

Em um cenário de tamanha instabilidade e incerteza quanto ao contágio do novo vírus, pesquisas que vinham sendo realizadas com crianças e adolescentes de forma presencial tiveram que ser repensadas. Questões sobre o dano que pesquisadores, enquanto vetores do vírus, pudessem causar para os participantes da pesquisa e vice-versa foram levantadas (FLEISCHER; TORRES; GARCIA, 2021FLEISCHER, S.; TORRES, T.; GARCIA, J. Entrevista: Como fazer pesquisa antropológica durante uma pandemia? Vivência: Revista de Antropologia, Natal, v. 1, n. 58, 2021. https://doi.org/10.21680/2238-6009.2021v1n58ID27607
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), assim como a própria questão de como fazer investigação com crianças em tempos de pandemia foi trabalhada (HARTMANN, 2020HARTMANN, L. Como fazer pesquisa com crianças em tempos de pandemia? Perguntemos a elas. Revista NUPEART, Florianópolis, v. 24, n. 2, p. 29-52, 2020. https://doi.org/10.5965/23580925242020029
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). O grupo de pesquisa no qual as autoras deste artigo fazem parte costumava realizar as pesquisas com crianças e jovens em escolas, espaços públicos urbanos e/ou se aproximavam da vida cotidiana desses sujeitos dentro de suas casas. Isto é, a formação de pesquisa desse grupo sempre contou com o encontro presencial com crianças e adolescentes para a realização de suas investigações. No entanto, no cenário pandêmico, as escolas da rede pública do País estavam com as atividades presenciais suspensas, parques públicos com o seu funcionamento alterado e as recomendações dos órgãos responsáveis de saúde eram que a população adotasse medidas de isolamento e distanciamento social como métodos eficazes na prevenção à contaminação do novo vírus. Se antes o(a) pesquisador(a) podia, se autorizado, adentrar uma instituição como a escola pública e ficar frente a frente a crianças e adolescentes, no contexto pandêmico, esse tipo de atividade ficou impedida de ocorrer e formas de contato à distância com esses sujeitos tiveram que ser experimentadas na realização das pesquisas.

Partimos do entendimento de que o conhecimento produzido em uma investigação é correlato ao vínculo estabelecido entre pesquisador(a) e os sujeitos pesquisados (CASTRO; BESSET, 2008CASTRO, L. R.; BESSET, V. L. (Orgs.). Pesquisa-intervenção na infância e juventude. Rio de Janeiro: NAU/FAPERJ, 2008.). Nesse sentido, buscamos compreender como o uso de dispositivos digitais, mediando a pesquisa-intervenção com crianças e adolescentes, interfere e constitui a relação entre pesquisador(a) e crianças/adolescentes pesquisados produzindo efeitos para o conhecimento construído a partir desse tipo de investigação.

A Pesquisa-intervenção, a Relacionalidade e os Dispositivos Digitais

A pesquisa-intervenção é entendida de maneiras diversas pela literatura acadêmica. A própria palavra “intervenção” possui uma significação deslizante que vai desde seu sentido autoritário e impeditivo, como nos advertem Szymanski e Cury (2004)SZYMANSKI, H.; CURY, V. E. A pesquisa intervenção em psicologia da educação e clínica: Pesquisa e prática psicológica. Estudos de Psicologia, Natal, v. 9, n. 2, p. 355-364, 2004. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2004000200018
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, até aquele que a sua origem latina nos remete a pensar, como “estar entre”, “entre vir” (OLIVEIRA; CASTRO, 2009OLIVEIRA, S. B. C.; CASTRO, L. R. Pesquisa-intervenção: Nas malhas do desconhecido-Uma experiência de transicionalidade no espaço escolar. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 451-470, 2009., p. 453). Neste trabalho, aproximamo-nos da compreensão da etimologia da palavra, pois ela nos abre um campo de significações próximo ao entendimento da pesquisa-intervenção a partir da relacionalidade. O presente texto decorre da visão de que “não há uma extemporaneidade do pesquisador em relação ao ato de pesquisar” (CASTRO, 2008CASTRO, L. R. Conhecer, transformar(-se) e aprender: Pesquisando com crianças e jovens. In: CASTRO, L. R; BESSET, V. L. (Orgs.). Pesquisa-intervenção na infância e juventude, Rio de Janeiro, NAU/FAPERJ, 2008. p. 21-42., p. 29), uma vez que não há pesquisador(a) ou sujeito pesquisado que garanta o estar entre isoladamente ou antecipadamente. Conforme sinaliza Ferrari (2008)FERRARI, I. F. A ignorância fecunda inerente à pesquisa-intervenção. In: CASTRO, L. R; BESSET, V. L. (Orgs.). Pesquisa-intervenção na infância e juventude. Rio de Janeiro: NAU/FAPERJ, 2008. p. 87-93., há uma falta de segurança, uma ignorância fecunda que se apresenta por parte do(a) pesquisador(a) como uma das características da pesquisa-intervenção. Dessa forma, partimos da compreensão de que as contingências do encontro entre pesquisador(a) e pesquisado(a) produzem efeitos na pesquisa-intervenção, seus processos transformadores e o conhecimento produzido.

No caso das entrevistas, formular perguntas e convidar à reflexão são formas de intervenção (SATO, 2008SATO, L. Pesquisar e intervir: Encontrando o caminho do meio. In: CASTRO, L. R; BESSET, V. L. (Orgs.). Pesquisa-intervenção na infância e juventude. Rio de Janeiro: NAU/FAPERJ, 2008. p. 171-178.). A pesquisa-intervenção pode remeter à intencionalidade de transformar a realidade sociopolítica de um determinado grupo social (ROCHA; AGUIAR, 2003ROCHA, M, L.; AGUIAR, K.F. Pesquisa-intervenção e a produção de novas análises. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 23, n. 4, p. 64-73, 2003. https://doi.org/10.1590/S1414-98932003000400010
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), mas também destinar a sua intervenção a modificação subjetiva e social do sujeito participante. Um sujeito, após se deparar com perguntas e com as respostas obtidas, pode ser convidado a se apropriar do conhecimento que produziu e se modificar como um sujeito social que pode intervir na realidade. Nas entrevistas, a intervenção pode proporcionar aos sujeitos, que se sentem interpelados pelas perguntas e suas respostas, a possibilidade de realizarem uma leitura da realidade a que pertencem (SATO, 2008SATO, L. Pesquisar e intervir: Encontrando o caminho do meio. In: CASTRO, L. R; BESSET, V. L. (Orgs.). Pesquisa-intervenção na infância e juventude. Rio de Janeiro: NAU/FAPERJ, 2008. p. 171-178.). Além disso, como discute Moreira (2008, p. 413)MOREIRA, M. I. C. Pesquisa-intervenção: especificidades e aspectos da interação entre pesquisadores e sujeitos da pesquisa. In: CASTRO, L. R; BESSET, V. L. (Orgs.). Pesquisa-intervenção na infância e juventude. Rio de Janeiro: NAU/FAPERJ, 2008. p. 409-432., “a pesquisa-intervenção objetiva a transformação; no entanto, a mudança não pode ser vista apenas como um produto final a ser alcançado, mas como um processo contínuo de construção”.

A relacionalidade como um conceito chave na pesquisa-intervenção desafia as teorias tradicionais da pesquisa baseada na distância entre pesquisador(a) e pesquisado(a) e no controle do processo de pesquisa a partir da centralidade do(a) pesquisador(a) (CASTRO; BESSET, 2008CASTRO, L. R.; BESSET, V. L. (Orgs.). Pesquisa-intervenção na infância e juventude. Rio de Janeiro: NAU/FAPERJ, 2008.). A abordagem mais tradicional, e ainda muito comum, é ver a criança/adolescente como objeto, isto é, como uma pessoa sob a qual os outros agem, e não como um sujeito agindo no mundo. Por essa abordagem tradicional, suas vidas são investigadas a partir da perspectiva do adulto, exemplificada nas pesquisas em que os investigadores suspeitam do que dizem as crianças e adolescentes, e têm dúvidas quanto à sua capacidade de dizer de dados factuais (CHRISTENSEN; PROUT, 2002CHRISTENSEN, P.; PROUT, A. Working with ethical symmetry in social research with children. Childhood, v. 9, n. 4, p. 477-497, 2002. https://doi.org/10.1177/0907568202009004007
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).

De modo diferente, na pesquisa-intervenção que preza pelo vínculo, é a relação entre os sujeitos que possibilita o empreendimento da pesquisa, uma vez que as assimetrias entre as posições, as diferenças de linguagem e compreensão, os modos de estar e agir no mundo tanto do(a) pesquisador(a) adulto(a) quanto da(o) criança/adolescente pesquisado(a) são consideradas relevantes e produzem um campo comum desconhecido entre os sujeitos (OLIVEIRA; CASTRO, 2009OLIVEIRA, S. B. C.; CASTRO, L. R. Pesquisa-intervenção: Nas malhas do desconhecido-Uma experiência de transicionalidade no espaço escolar. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 451-470, 2009.). Por essa compreensão, o(a) pesquisador(a) não é entendido como um agente que vai exclusivamente e soberanamente traduzir o que estes têm a dizer para outros adultos. Aqui, o(a) pesquisador(a) é considerado(a) um sujeito ator, colaborador e parceiro (WYNESS, 2013WYNESS, M. G. Children’s participation and intergenerational dialogue: Bringing adults back into the analysis. Childhood, v. 20, n. 4, p. 429-442, 2013. https://doi.org/10.1177/0907568212459775
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) do processo de pesquisa, com interesses próprios de investigação, e que vai ao encontro de crianças e adolescentes ensejando estabelecer relações que favoreçam a produção de conhecimento a partir do que esses sujeitos dizem e agem.

Uma relacionalidade favorável à produção de conhecimento não está garantida a priori. Ela envolve um pacto de confiança entre pesquisador(a) e pesquisado(a) que requer um deslocamento subjetivo por parte do(a) pesquisador(a), a partir do qual ele ou ela pode flexibilizar o seu interesse ao que a criança gosta, diz ou faz alusão, a fim de acolher, aproximar-se e convocar a criança com a sua presença interessada a participar da pesquisa. Além disso, para a formação de tal pacto, cita-se a produção de uma “escuta hospitaleira” (DUNKER; THEBAS, 2019DUNKER, C.; THEBAS, C. O palhaço e o psicanalista: Como escutar os outros pode transformar vidas. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019., p. 57), em que assumir a perspectiva de crianças e adolescentes, segundo suas próprias razões e língua, não antecipar as significações do que dizem, deixá-los(las) o mais livres que puderem na sua relação com as palavras e descentrar de si a exigência do cumprimento do papel de um(a) “bom(boa) pesquisador(a)” podem favorecer a construção de uma relação de confiança entre os participantes da pesquisa.

Uma relacionalidade favorável à pesquisa envolve, também, a corporeidade e a dimensão afetiva dos sujeitos na pesquisa-intervenção. Panelli (2010)PANELLI, R. Commentary: Performing bodies and contestation. In: HÖRSCHELMANN, K.; COLLS, R. (Orgs.) Contested bodies of childhood and youth. Londres: Palgrave Macmillan, 2010. p. 247-253. destaca que a materialidade dos corpos das crianças e dos(as) adolescentes e suas performances na pesquisa nos remetem à pluralidade de formas não textuais e não representacionais da vida infantil, cuja diversidade apresenta uma forma menos colonizada de se estar e agir no mundo. Ao admitir a importância dos aspectos não textuais, como sons, ruídos, afetos e posições corporais nas investigações com crianças, Castro et al. (2018)CASTRO, L. R. et al. Falas, afetos, sons e ruídos: As crianças e suas formas de habitar e participar do espaço escolar. Revista Eletrônica de Educação, São Carlos, v. 12, n. 1, p. 151-168, 2018. https://doi.org/10.14244/198271992019
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ressaltam dinâmicas sociais e intergeracionais que criam condições de fala e de escuta para além daquelas compreendidas apenas pelo âmbito da discursividade e da racionalidade.

Ainda, como terceiro elemento, a construção de uma relacionalidade favorável na investigação supõe reconhecer a situacionalidade específica do processo de pesquisa e o conhecimento acerca do território no qual os sujeitos estão inseridos. Muitas vezes esses aspectos são tomados como atribuições naturalizadas ou evidentes, não causando nenhum deslocamento por parte da proposta investigativa para se ajustar às realidades específicas pesquisadas. No caso das pesquisas com crianças e adolescentes, a aproximação ao território no qual esses sujeitos estão inseridos tem sido uma forma de se aproximar de suas realidades e conhecer os aspectos sociais que fazem parte de suas vidas. Cita-se a caminhada guiada com crianças realizada por Souza (2020)SOUZA, A. R. Batalhas de rima de crianças da Favela da Maré: improviso, duelo e autoafirmação. DESIDADES - Revista Científica da Infância, Adolescência e Juventude, Rio de Janeiro, n. 26, p. 11-24, abr. 2020. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2318-92822020000100002&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 01 maio 2022.
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em uma favela do Rio de Janeiro, a convivência de Solis (2020)SOLIS, N. P. A. El espectáculo de los niños ludar “gitanos” de México. ¿Una cuestión de patrimonio? DESIDADES - Revista Científica da Infância, Adolescência e Juventude, Rio de Janeiro, n. 28, p. 84-94, dez. 2020. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2318-92822020000300007&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 01 maio 2022.
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com crianças ciganas no México e os trajetos de Lara e Castro (2016)LARA, J.; CASTRO, L.R. A responsabilidade no encontro com o outro: Uma aposta ética a partir da infância. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. com crianças pela comunidade carioca onde brincam, correm e se sentem em casa.

Tal visão sobre a relacionalidade desejável no encontro entre pesquisador(a) e criança se origina, sobretudo, de pesquisas feitas em condições presenciais. No entanto, como dissemos anteriormente, ao longo da pandemia, essas condições foram radicalmente alteradas. Como, então, produzir confiança, acolher a intensidade afetiva dos corpos e reconhecer a situacionalidade dos territórios pelo contato que se faz à distância por meio de dispositivos digitais?

A discussão acerca do uso dos dispositivos digitais tem ganhado muita força nos debates atuais. Miller e Horst (2015)MILLER, D.; HORST, A. O digital e o humano: Prospecto para uma antropologia digital. Parágrafo, v. 3, n. 2, p. 91-112, 2015. Disponível em: https://revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi/article/view/334. Acesso em: 12 jul 2021.
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sinalizam para o uso continuado do termo virtual em um contraste com o termo real. Os autores discutem que mundos online são apenas outra arena, concomitantemente aos mundos offline, para dar sentido a práticas, e não há motivo para privilegiar um em detrimento do outro. Eles defendem que “somos igualmente humanos em cada uma das diferentes e diversas arenas de quadros comportamentais dentro dos quais vivemos” (p. 98) e tal separação entre tais mundos enfraquece o próprio aprofundamento de estudos na arena mediada por dispositivos digitais.

Pesquisas realizadas à distância por meio de dispositivos digitais têm sido objeto de estudos desde antes do período pandêmico (AMARAL; NATAL; VIANA, 2008AMARAL, A.; NATAL, G.; VIANA, L. Netnografia como aporte metodológico da pesquisa em comunicação digital. Sessões do Imaginário, Porto Alegre, ano 13, n. 20, p. 34-40, 2008.; HINE, 1998HINE, C. Virtual ethnography. Londres: SAGE, 1998.; MERCADO, 2012MERCADO, L. P. Pesquisa qualitativa online utilizando a etnografia virtual. Revista Teias, Rio de Janeiro, v. 13, n. 30, p. 15 2012. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistateias/article/view/24276. Acesso em 27 abr. 2022.
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), tendo se expandido ao longo da pandemia (DESLANDES; COUTINHO, 2020DESLANDES, S.; COUTINHO, T. Pesquisa social em ambientes digitais em tempos de Covid-19: Notas teórico-metodológicas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 11, 2020. https://doi.org/10.1590/0102-311X00223120
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), quando se destacam as análises de pesquisas com crianças e adolescentes (ALVARO et al., 2021ALVARO, M. et al. “A máscara salva”: Representações sociais da pandemia de covid-19 por meio dos desenhos de crianças cariocas. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 4, e210328, 2021. https://doi.org/10.1590/S0104-12902021210328
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; DUTRA; CARVALHO; SARAIVA, 2020DUTRA, J. L. C.; CARVALHO, N. C. C.; SARAIVA, T. A. R. Os efeitos da pandemia de Covid-19 na saúde mental das crianças. Pedagogia em Ação, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 293-310, 2020. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/pedagogiacao/article/view/23772/16788. Acesso em: 14 jul 2021.
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; FOLINO et al., 2021FOLINO, C. H. et al. A percepção de crianças cariocas sobre a pandemia de Covid-19, SARS-CoV-2 e os vírus em geral. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 37, n. 4, e00304320, 2021. https://doi.org/10.1590/0102-311X00304320
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; PONTE; NEVES, 2020PONTE, V.; NEVES, F. Vírus, telas e crianças: Entrelaçamentos em época de pandemia. Simbiótica. Revista Eletrônica, Vitória, v. 7, n. 1, p. 87-106, 2020. https://doi.org/10.47456/simbitica.v7i1.30984
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; SIMÕES; PENHA, 2020SIMÕES, P. M. U; PENHA, R. F. A pandemia do covid-19 e as crianças: Estudo das vivências e representações em época de isolamento social. In: XXV EPEN – Reunião Científica Regional Nordeste da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação, Salvador, 2020.). Na presente discussão, interessa-nos como o uso dos dispositivos digitais constituem a relacionalidade do(a) pesquisador(a)-pesquisado(a) e como seu uso interfere na produção de conhecimento com crianças e adolescentes. Dessa forma, a pergunta que nos orientou neste trabalho é a de saber quais os desafios e apostas que o uso dos dispositivos digitais à distância produz na pesquisa-intervenção com crianças e adolescentes no contexto da pandemia e o seu impacto na produção de conhecimento com tais sujeitos.

Metodologia

A metodologia deste estudo consistiu em entrevistas realizadas à distância por meio de dispositivos digitais com 18 crianças e adolescentes, de 6 a 14 anos, durante os meses de março a setembro de 2020. Embora a motivação original do contato com as crianças fosse a de se aproximar e compreender como esses sujeitos estavam vivenciando o contexto da pandemia, o foco de análise do presente artigo foi o de compreender como a relacionalidade na pesquisa é afetada e produzida pelo uso de dispositivos digitais e qual o seu impacto para a construção de conhecimento com as crianças e adolescentes.

As crianças e adolescentes participantes foram, em sua maioria, conhecidas de integrantes de um dos grupos de pesquisa vinculado ao Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parentes, filhos(as) de pessoas próximas, crianças e adolescentes pertencentes a instituições de convívio, ou em que os pesquisadores já haviam investigado em momentos anteriores. Os(as) participantes são residentes majoritariamente do estado do Rio de Janeiro (17 crianças), moradores(as) de bairros variados da capital, com exceção de uma criança, que reside em uma cidade do interior de Minas Gerais. Do total de participantes, 10 deles(as) declararam durante as entrevistas serem estudantes de escolas privadas, 5 de escolas públicas e 3 não informaram esse dado durante as conversas. A idade dos(as) participantes variou entre 6 e 14 anos (5 crianças com 12 anos; 4 com 10 anos; 3 com 13 anos; 2 com 14 anos; 1 com 9 anos; 1 com 7 anos e 1 com 6 anos).

Dentro do processo de pesquisa-intervenção com crianças e adolescentes, o primeiro contato e o estabelecimento de um pacto de confiança com eles são fundamentais. Com a maioria das crianças dentro de casa, o acesso a elas no momento da pandemia se deu primeiramente via responsáveis. Foram mães, pais ou avós que, além de tudo, portavam a maioria dos dispositivos que seriam utilizados para que as entrevistas ocorressem, como os celulares, em sua maioria, ou computadores. Após a autorização dos responsáveis, era solicitada a autorização das crianças para elas próprias. Os(as) pesquisadores(as) apresentaram o tema da pesquisa e perguntaram se as crianças desejavam participar e se autorizavam a gravação do áudio da conversa. Notou-se que a autorização das crianças não se tratava somente de uma autorização burocrática, cercada pela obrigatoriedade dos conselhos de ética em pesquisa, mas de uma convocação à criança em se autorizar enquanto sujeito responsável pela sua participação e pelo que diz no desenrolar da pesquisa.

Em seguida, os(as) pesquisadores(as) deixaram em aberto o formato no qual as entrevistas seriam feitas, visando que as crianças escolhessem o dispositivo mais confortável para elas, se por vídeo, por ligação de voz, por áudio ou até por mensagem. Deixar que as crianças escolhessem por qual dispositivo queriam conversar com os(as) pesquisadores(as) se justifica na medida em que, na pesquisa-intervenção, a negociação e participação dos sujeitos envolvidos na pesquisa é fundamental. Para Fernandes e Marchi (2020)FERNANDES, N.; MARCHI, R. C. A participação das crianças nas pesquisas: Nuances a partir da etnografia e na investigação participativa. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 25, e250024, 2020. https://doi.org/10.1590/S1413-24782020250024
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e Sato (2008)SATO, L. Pesquisar e intervir: Encontrando o caminho do meio. In: CASTRO, L. R; BESSET, V. L. (Orgs.). Pesquisa-intervenção na infância e juventude. Rio de Janeiro: NAU/FAPERJ, 2008. p. 171-178., quando se defende a participação das crianças em pesquisas, deve-se levar em consideração a necessidade de abrir possibilidades de elas construírem um papel influente no processo. Por outro lado, como iremos ver, a variedade de dispositivos ampliou as formas de relacionalidade online e trouxe uma maior complexidade para a análise dos efeitos dos dispositivos digitais sobre o conhecimento produzido com as crianças.

As entrevistas e conversas foram realizadas por meio dos aplicativos WhatsApp, Google Meet e Facebook, sendo 7 realizadas através de chamadas de vídeo com as câmeras dos pesquisadores e das crianças/adolescentes ligadas, 5 por chamadas de voz, 4 por trocas de áudios e 2 por mensagens de texto. Observou-se que a maioria dos(as) entrevistados(as) que quiseram fazer a entrevista por vídeo eram aqueles(as) com quem os(as) pesquisadores(as) já possuíam algum contato prévio. Nesses casos, verificou-se que o início das conversas era cercado de maior informalidade, como falas elogiando as crianças/adolescentes ou o quanto o(a) pesquisador(a) estava feliz em vê-los. Também se notou que as conversas por vídeo abriram mais espaços para brincadeiras. Em contrapartida, as entrevistas em que as crianças escolheram realizar por mensagem de texto trouxeram maior dificuldade para os pesquisadores terem acesso e se aproximarem de como as crianças se mobilizaram no decorrer da conversa, como em casos, por exemplo, em que as crianças demoravam mais tempo para responder, ou respondiam com poucas palavras escritas.

A acessibilidade a algum tipo de aparelho móvel e à internet, condição para a viabilidade da pesquisa, foi possível por todas as crianças do estudo, cuja amostra enquadra as crianças em famílias que possuem condições materiais e de acessibilidade a esses dispositivos. As interações foram transcritas e a apresentação e discussão dos resultados segue abaixo dividida em três eixos de análise.

Análise e Discussão dos Resultados

A corporeidade e a dimensão afetiva na pesquisa: Enquadres, emoticon e um sentir-se especial

O primeiro grande impacto percebido nas entrevistas com as crianças é o de que a distância física restringe o acesso ao contato corporal entre pesquisador(a) e entrevistado(a) e vice-versa. Essa ausência ou restrição da cenestesia intercorpórea acaba por desorientar o(a) pesquisador(a) em um primeiro momento, pois este(a) sempre usou tais informações ao longo do trabalho com crianças e adolescentes como um dado importante da pesquisa, tais como: a vestimenta que a criança escolhe usar, a disposição e os movimentos corporais, o modo de andar, entre outros. Todos esses elementos são constitutivos da maneira como as dinâmicas dos afetos e do corpo marcam o encontro presencial. Nos encontros online, muito se perdeu no que tange a cenestesia intercorpórea que pôde ser parcialmente acessada por meio de telas e teclas: a entrevista realizada por mensagem escrita foi a que menos nos deu informações sobre a corporeidade dos entrevistados. As entrevistas realizadas por chamadas de vídeo contemplaram algum acesso à corporeidade das crianças e adolescentes.

Nas entrevistas por videochamada os corpos se apresentavam dentro do enquadre da imagem bidimensional recortada pelo limite da câmera. Logo, o que se tinha acesso, tanto para a criança como para a pesquisadora, era a visão de seus corpos, sorrisos, expressões e modos de se vestir da cintura pra cima. Ainda, era possível, em algumas ocasiões, ver o entorno do(a) entrevistado(a), como o cômodo em que estava e os outros sujeitos que, eventualmente, apareciam ao fundo. Nas conversas por chamada de voz ou trocas de áudios, a cenestesia intercorpórea ficou reduzida à voz, aos risos, ruídos e à imagem escolhida para o perfil do usuário caso tenham sido realizadas pelo aplicativo WhatsApp. Já nas entrevistas que foram feitas através de trocas de mensagens escritas, a cenestesia intercorpórea pôde ser apreendida apenas na forma da escrita de cada sujeito, incluindo o uso das pontuações para enfatizar uma fala ou para a pausa. Foi percebido também que, nesses casos, o uso de emoticons tornou-se mais recorrente na conversa, os quais serviram para ajudar o(a) pesquisador(a) a se aproximar de como a criança está se sentindo a depender do emoticon utilizado pela criança ou adolescente, como uma carinha feliz ou triste, ou uma florzinha, ou uma nuvem, por exemplo.

Notamos, ainda, que a associação entre o interesse do(a) pesquisador(a) em escutar as crianças e o uso dos dispositivos de mídia parece proporcionar novos sentidos e emoções para os sujeitos pesquisados. Vários deles sinalizaram um sentimento de sentir-se especial, uma vez que foram escolhidos para a pesquisa. Um lugar de destaque, de quem fala e é escutado por um outro de fora do seu meio, como nos exemplos a seguir, sendo o primeiro o de uma menina que diz, ao final de uma entrevista: “Obrigada você que, que me escolheu né, e também que mudou o horário pra mais cedo, obrigada. Eu amei participar, gosto muito de falar então, e não atrapalhou nada na minha rotina, porque eu amei e é isso”. O segundo é o de um menino que, após ser perguntado ao final da entrevista se queria dizer algo mais, diz: “Eu queria falar que foi muito legal!” E quando perguntado se gostou de ser entrevistado, diz em tom de animação: “Sim!! Eu nunca fui entrevistado. Meu irmão tava com vergonha, mas eu acho que ele ia gostar”. Nas entrevistas realizadas exclusivamente por mensagens de texto ou áudio, a dimensão afetiva entre os interlocutores, como demonstração de tristeza ou felicidade, mostrou-se menos evidente, mas, em alguns casos, foi possível recolher o sentido de divertimento que as entrevistas proporcionaram às crianças. Como escreveu uma criança: “Gostei muito de conversar com vc1 1 “Vc” é a abreviatura de “você” e, como se trata de um extrato da troca de mensagens escrita pela própria criança, mantivemos a sua literalidade. porque pude ficar entretida conversando com vc”.

Nas entrevistas feitas exclusivamente por vídeo notamos que aparecer na tela para alguém, no caso a pesquisadora, agrega o aspecto do prazer de ser visto, mostrar ao outro sua intimidade, algo que é cada vez mais popular nas redes sociais digitais. Houve o caso de uma criança de 12 anos que falou que a pesquisadora parecia muito com uma youtuber que ela assiste e gosta muito. Quando a pesquisadora pediu para a menina sugerir um vídeo dessa produtora de conteúdo, o vídeo sugerido foi um que se chama “Arrumando o quarto”. O curioso dessa situação é que o diálogo aconteceu justamente após a criança ter arrumado o quarto sob o olhar da entrevistadora enquanto conversavam. Sobre esse aspecto, Tomaz e Antunes (2017)TOMAZ, R.; ANTUNES, A. A sociabilidade automatizada das crianças brasileiras nas redes sociais. DESIDADES - Revista Científica da Infância, Adolescência e Juventude, Rio de Janeiro, n. 17, 2017. https://doi.org/10.54948/desidades.v0i17.15309
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já alertavam, antes da pandemia, para um novo modo de brincar a partir do uso das tecnologias com imagem, um brincar que agora consiste em ser visto, como se estivéssemos diante de uma tela. Com a chegada da pandemia, o uso dos dispositivos digitais que permitem a reprodução da imagem se tornou ainda mais popular (SANTOS MOURA, 2021SANTOS MOURA, V. Direito de família em tempos de pandemia: O impacto do novo coronavírus (Sars-CoV-2) no cotidiano das crianças e adolescentes e dos casais parentais que exercem a guarda compartilhada. Oikos: Família e Sociedade em Debate, Viçosa, v. 32, n. 1, p.74-89, 2021. https://doi.org/10.31423/oikos.v32i1.10828
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), permitindo que crianças e adolescentes se comunicassem mais frequentemente por vídeo com progenitores que vivem em casas separadas, outros parentes, como avós, e amigos, por exemplo. Além disso, verificou-se um volume significativo de vídeos nas plataformas YouTube e Instagram protagonizados por crianças expressando seus pontos de vista sobre a pandemia (PONTE; NEVES, 2020PONTE, V.; NEVES, F. Vírus, telas e crianças: Entrelaçamentos em época de pandemia. Simbiótica. Revista Eletrônica, Vitória, v. 7, n. 1, p. 87-106, 2020. https://doi.org/10.47456/simbitica.v7i1.30984
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), bem como um debate intenso sobre o recurso audiovisual no ensino e na aprendizagem de crianças e adolescentes no contexto pandêmico (ANJOS; FRANCISCO, 2021ANJOS, C. I.; FRANCISCO, D. J. Educação infantil e tecnologias digitais: Reflexões em tempos de pandemia. Zero-a-Seis, Florianópolis, v. 23, p. 125-146, 2021. https://doi.org/10.5007/1980-4512.2021.e79007
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; MOGUILLANSKY; DUEK, 2021MOGUILLANSKY, M.; DUEK, C. Niñez, educación y pandemia. La experiencia de las familias en Buenos Aires (Argentina). DESIDADES - Revista Científica da Infância, Adolescência e Juventude, Rio de Janeiro, n. 31, p. 120-135. https://doi.org/10.54948/desidades.v0i31.42299
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).

Assim, a limitação imposta pela redução dos contatos afetivos-corpóreos nas pesquisas com crianças e adolescentes foi sentida, de forma mais pregnante, nas entrevistas realizadas por texto ou áudio e menos nas entrevistas realizadas por vídeo.

As imprevisibilidades na pesquisa-intervenção online à distância e a aposta no encontro

Nesta seção discutimos as imprevisibilidades que surgiram com o uso dos dispositivos de mídia, criando ressonâncias subjetivas e relacionais diferentes da pesquisa-intervenção realizada presencialmente, à qual estávamos habituados. Essa forma peculiar de fazer entrevistas através dos dispositivos digitais gerou uma série de intercorrências, dentre as quais consideramos mais marcantes: os imprevistos técnicos com os aparelhos digitais utilizados; a interferência de acontecimentos no espaço doméstico em que a criança está fisicamente; e a entrada de outros sujeitos na cena de pesquisa, para além do pesquisador e da criança entrevistada.

As imprevisibilidades técnicas relacionadas ao uso dos dispositivos, como falha de conexão da internet, volumes baixos, congelamento de imagem ou chiado no áudio enquanto as pessoas falam, provocaram muitas vezes um desentendimento na comunicação. Verificamos que as entrevistas realizadas por vídeo ou por chamada de voz foram as que mais foram atingidas pelas imprevisibilidades técnicas. Por se basearem em conversas em tempo real, as falhas técnicas prejudicam o fluxo interativo das perguntas e respostas mais do que aquelas que ficam registradas nos aplicativos de comunicação digital, como os áudios ou as mensagens escritas, que também têm uma duração mais lenta. No caso desses dois últimos dispositivos, por exemplo, caso houvesse falha na internet do participante, ele poderia ouvir e/ou ler a mensagem com certo atraso e responder a pergunta em seguida.

Tratando-se dos imprevistos ocorridos nas entrevistas via dispositivos de vídeo ou chamada de voz, cita-se o exemplo em que a pesquisadora pergunta para uma criança: “Onde você pesquisa [as suas tarefas escolares]?” e, em razão da falha da internet, a criança diz: “Han?!”, mostrando que não entendeu o que foi dito, e a pesquisadora tem que repetir a pergunta: “Onde você pesquisa? Você pesquisa no Google, no YouTube...?” Outro exemplo é quando a pesquisadora escuta a data de aniversário errada da criança em função da baixa conexão de internet, confundindo as expressões pela proximidade fonética: “Você faz aniversário no dia das mães?” e a criança corrige: “Não, dia dez de março!!” e a pesquisadora se retrata: “Ah, você disse dia dez de março (risos)!!!” Em muitas situações em que a conexão de internet ou da operadora telefônica falhava, o(a) pesquisador(a) pedia que a criança repetisse o que ela dizia, ou (o)a próprio(a) pesquisador(a) tinha que repetir o que perguntara. Em outros casos, foram a baixa transmissão da imagem e a posição do aparelho que precisaram ser ajustados: “Olá, K., só um instante que eu vou virar a minha câmera também na horizontal como você”. E, diante da intercorrência, a criança sugere uma solução para a pesquisadora: “É só você deitar o telefone, tia!”. Ou em outro exemplo em que a pesquisadora se dá conta de que a imagem do seu telefone não virou e explica o ocorrido, rindo da situação, e em seguida, a criança pôde rir junto também.

A partir de tais imprevisibilidades técnicas, verificou-se que o uso dos dispositivos digitais intermediando a pesquisa a distância pode colocar o(a) pesquisador(a) e pesquisado(a) em uma zona da confusão com potencial de gerar um terreno fértil de desentendimentos. Entretanto as imprevisibilidades técnicas não foram impeditivas para que as entrevistas acontecessem. Notou-se que tanto pesquisador(a), quanto pesquisado(a) lançaram mão da paciência para lidar com os imprevistos técnicos e até dispuseram de certo humor em alguns casos, apostando nas possibilidades positivas desse encontro.

Outro tipo de imprevisibilidade observado nas entrevistas realizadas por videochamada foi o pedido por parte de algumas crianças de verem a casa do(a) pesquisador(a). Com a possibilidade de conversar com as crianças através das videochamadas, alguns elementos da privacidade do(a) pesquisador(a) eram revelados para o(a) entrevistado(a), seja um quadro, uma parede que se mostra ao fundo ou um animal doméstico que passava na câmera. Para algumas crianças e adolescentes, tais elementos não despertavam curiosidade, mas para outras sim, que desejavam não apenas saber sobre a vida dos(as) pesquisadores(as), mas também ver as suas vidas. Em pesquisas tradicionais sobre crianças, o fato de o(a) pesquisador(a) mostrar sua casa e revelar sua intimidade poderia ser um impedimento para a produção de dados neutros e precisos sobre o(a) entrevistado(a). Entretanto, em nossa pesquisa, vimos que, ao abrir sua casa, o(a) pesquisador(a) possibilitou a criação de uma dinâmica onde a criança também pôde se sentir à vontade para mostrar os espaços onde vive e falar sobre o seu cotidiano durante a pandemia, o que acabou se tornando um aspecto importante de confiança na relação.

A entrada de outros sujeitos, normalmente familiares, durante as entrevistas de chamada de voz e vídeo se constituiu outro tipo de imprevisibilidade. Cita-se, como exemplo, a situação em que uma criança de 12 anos, após ser interrompida por um membro da família durante a entrevista de chamada de voz, diz à pesquisadora: “Tia, rapidinho...” e anda com o celular na mão levando a pesquisadora pelos cômodos de sua casa até encontrar um local mais silencioso para se falarem. Em outra ocasião, a extensão do áudio da ligação permitiu que a entrevistadora escutasse a voz da avó e de uma outra criança no mesmo momento em que estava entrevistando um menino. Nessa cena, a criança diz: “Calma aí, tia, rapidinho!” e, em seguida, a pesquisadora pergunta se o menino está podendo falar e os dois seguem conversando sobre o ocorrido do momento, que foi o fato de uma pipa ter caído na casa dele e outra criança ter ido pedir para pegar. Somente depois de a pesquisadora ter deslocado o andamento das perguntas da pesquisa para o assunto em que o menino estava entretido é que a conversa voltou a ser sobre o tema inicial proposto. Outro exemplo ocorreu durante uma conversa de vídeo de uma pesquisadora com uma adolescente que se encontrava em seu quarto sozinha. Na ocasião, passou uma pessoa atrás da menina, a pesquisadora perguntou se era o irmão dela e ela negou respondendo que era o padrasto. Em seguida, ao ser perguntada se eles se dão bem, a adolescente disse em tom de voz mais baixo: “Mais ou menos...” Logo depois, foi o irmão mais velho quem entrou no espaço mandando que a adolescente arrumasse o quarto; eles discutiram e ela olhou para a pesquisadora no vídeo, apontando para o irmão e fazendo sinal negativo com o polegar. Atenta à dinâmica que ocorria ao vivo no espaço da criança, a investigadora decidiu ir junto com ela e disse: “Aham. acho que eu estou acompanhando o que você está dizendo, F., mesmo que por sinais, por mímica”. A criança pareceu se sentir acolhida pela pesquisadora, pois em seguida responde: “É, a gente vai conversando assim...” Em momento seguinte, a menina começou a arrumar o seu quarto e as duas seguiram a conversa.

Diante das situações expostas, vimos que as pesquisadoras foram convocadas a se abrirem aos acontecimentos das cenas domésticas em questão, permitindo-se acompanhar as crianças enquanto estas se distanciavam da demanda inicial da pesquisa sem que isso se tornasse um impedimento para o desenrolar da entrevista. Pelo contrário, essa presença interessada das pesquisadoras e a escuta hospitaleira (DUNKER; THEBAS, 2019DUNKER, C.; THEBAS, C. O palhaço e o psicanalista: Como escutar os outros pode transformar vidas. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019.) ao que prendia a atenção das crianças naqueles momentos tiveram como efeito a continuidade das entrevistas, favorecendo a produção de um vínculo entre ambas e o compartilhamento das situações por parte das crianças.

Através dos exemplos desta seção, parece-nos que o acolhimento das imprevisibilidades, flexibilizando as posições e intenções iniciais de pesquisa, podem conduzir a processos mais interdependentes entre pesquisador-criança/adolescente no fazer junto da pesquisa, além de oportunizar a criação de um vínculo entre ambos que favoreça a aposta no encontro e a produção conjunta de conhecimento acerca da vida das crianças nesse momento.

A especificidade do uso dos dispositivos digitais: Extensão e intimidade

As relações, interações e mediações que se estabelecem no espaço mediado por dispositivos digitais adquirem especificidades que devem ser levadas em consideração no momento de sua coleta e análise em pesquisas científicas (DESLANDES; COUTINHO, 2020DESLANDES, S.; COUTINHO, T. Pesquisa social em ambientes digitais em tempos de Covid-19: Notas teórico-metodológicas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 11, 2020. https://doi.org/10.1590/0102-311X00223120
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; MERCADO, 2012MERCADO, L. P. Pesquisa qualitativa online utilizando a etnografia virtual. Revista Teias, Rio de Janeiro, v. 13, n. 30, p. 15 2012. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistateias/article/view/24276. Acesso em 27 abr. 2022.
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; OLIVEIRA, 2010OLIVEIRA, C. S. Avaliação da aprendizagem na educação on-line: Aproximações e distanciamentos para uma avaliação formativa-reguladora. Recife: Edufpe, 2010.). Como exemplo, podemos citar que a pesquisa-intervenção através das mídias digitais no contexto da pandemia possibilitou que o(a) pesquisador(a) acessasse crianças localizadas em uma espacialidade distante. O recurso dessas mídias possibilitou que, mesmo estando a quilômetros de distância dos sujeitos de pesquisa, o(a) pesquisador(a) conseguiu chegar a eles sem sequer precisar se deslocar para fora de sua casa e, até mesmo entrevistar uma criança de outro estado, expandindo os lugares de acesso onde o(a) pesquisador(a) poderia chegar. Nesta seção discutimos como o uso de tais recursos implicou em uma extensão da espacialidade e exposição mútua de intimidade por parte dos envolvidos na pesquisa.

Com a extensão possibilitada pelos instrumentos digitais, notamos que o(a) pesquisador(a) pode percorrer, junto com as crianças, outros espaços por onde elas possam estar se deslocando no momento da conversa, como cômodos de sua casa ou pelas ruas onde transitam. Como exemplo, cita-se a situação em que a pesquisadora ligou por chamada de voz para a avó de um menino, que possibilitaria o contato entre pesquisadora e pesquisado, mas não o encontrou em casa, pois havia saído para o mercadinho a pedido da parente. Após um tempo de conversa com a pesquisadora, a avó da criança decidiu procurá-lo pela rua, pois já estava demorando para retornar, e o avistou dentro do estabelecimento do bairro. A pesquisadora acompanhou por telefone a procura da avó até o encontro com o menino e, em seguida, a avó deu o aparelho telefônico para ele. Nessa situação, a pesquisadora passou a percorrer o trajeto de volta para a casa, conversando com o menino, acompanhando-o por telefone pelas ruas enquanto ele falava e comentava acontecimentos que ocorriam, como o jogo de futebol no parquinho, algo que o menino dizia sentir muita falta de brincar em razão da pandemia. Cita-se, também, quando a menina K., durante a entrevista por chamada de vídeo, depois de ver alguns cômodos da casa da pesquisadora, também a leva para passear pela sua casa, mostrando os espaços da laje, descrevendo-os como o local onde ela e sua família faziam churrasco antes da pandemia, da cozinha, onde a sua tia estava cozinhando, e o da sala, onde sua avó estava e a menina não queria incomodá-la.

Além disso, estando ambos isolados em suas casas, o(a) pesquisador(a) tem a chance de acessar momentos mais íntimos da vida da criança, como entrevistá-la por vídeo logo após ter acordada e, assim, vê-la em uma situação mais à vontade. Como no caso em que a pesquisadora ligou para uma criança no horário combinado e a criança atendeu e disse: “Ai tia, eu estou toda descabelada, acabei de acordar”, com um pouco de timidez por estar assim, mas ao mesmo tempo não vendo problema em aparecer com seus cabelos bagunçados na câmera.

No que diz respeito ao acesso a espaços mais íntimos e privados da vida do(a) pesquisado(a), vimos que os recursos utilizados, além de levarem o(a) pesquisador(a) a adentrar os lares das crianças e ter acesso ao lugar onde elas se encontram no contexto de isolamento social, também contribuem para que o(a) pesquisador(a) presencie situações variadas de suas vidas domésticas. Mencionam-se algumas cenas de nossa pesquisa em que: uma obra estava ocorrendo ao lado da casa da criança e ela perguntou se a pesquisadora estava ouvindo; um irmão gritou para que uma das crianças saísse de sua cama e a pesquisadora ouviu; o sobrinho da entrevistada apareceu na imagem de vídeo deitado dormindo em uma das camas do quarto; ou, ainda, quando um padrasto disse algo que fez a criança rir e a mãe gritou para a criança avisando que sua comida estava pronta.

Por estarem se comunicando, majoritariamente, através de aparelhos celulares, a presença do(a) pesquisador(a) muitas vezes passa despercebida pelos outros membros da casa e as situações parecem correr mais à vontade e naturalmente do que se o(a) pesquisador(a) estivesse fisicamente em tais ambientes domésticos compartilhando o mesmo espaço com os familiares. Dessa forma, viu-se que o contexto da pesquisa-intervenção realizada à distância por meio de dispositivos digitais possibilitou que o(a) pesquisador(a) vivesse, junto com as crianças, dilemas e situações de sua vida cotidiana doméstica que, em geral, ele(a) não teria acesso em outros contextos de pesquisa, inclusive no presencial.

Faz-se relevante dizer que, tendo em vista o contexto social brasileiro de acentuada desigualdade econômica e social, a espacialidade da vida doméstica também se mostra desigual. Podemos apontar que essas desigualdades aparecem no que diz respeito à particularidade e privacidade dos espaços em que a criança está quando a pesquisa é realizada. Nos exemplos das situações domésticas citadas acima, nota-se que se tratam de crianças que compartilham os espaços da casa com muitos membros da família e isso ficou evidente tanto nas entrevistas por vídeo quanto em algumas entrevistas realizadas por chamada de voz.

Retomando a importância do reconhecimento da situacionalidade específica do processo de pesquisa e o conhecimento acerca do território no qual os sujeitos estão inseridos, como já apontado em seções anteriores do artigo, vemos que o uso de dispositivos digitais permite ao(à) pesquisador(a) conhecer a respeito do território em que os sujeitos estão inseridos, isto é, o(a) pesquisador(a) pode percorrer ruas do bairro ao telefone com a criança, conhecer os cômodos de sua casa, o espaço onde sua família faz churrasco, o quarto que divide com outros parentes e presenciar situações de sua vida doméstica, de forma a observar como as crianças se relacionam com esses espaços e pessoas. Vimos também que a intimidade do(a) pesquisador(a) pode se revelar, através de uma imagem de sua casa ou de um pedido concedido às crianças de verem seus cômodos, através das chamadas de vídeo. Ao que nos mostraram as crianças e adolescentes desta pesquisa, essa exposição mútua da intimidade vivenciada por pesquisador(a) e pesquisado(a) pode abrir espaço para a construção do vínculo de confiança e, dessa forma, se obter um conhecimento mais abrangente acerca de suas vivências.

Considerações Finais

A pandemia do novo coronavírus impôs questões e desafios sociais, políticos e sanitários que não haviam sido experimentados anteriormente. A pesquisa-intervenção com crianças e adolescentes foi um dos setores afetados por esse contexto em que medidas de distanciamento e isolamento social foram recomendadas pelos órgãos sanitários e científicos. Embora estudos e pesquisas realizados à distância por meio de dispositivos digitais já fossem utilizados, a pesquisa-intervenção com crianças e adolescentes esteve, em sua tradição, normalmente atrelada a pesquisas realizadas presencialmente (CASTRO; BESSET, 2008CASTRO, L. R.; BESSET, V. L. (Orgs.). Pesquisa-intervenção na infância e juventude. Rio de Janeiro: NAU/FAPERJ, 2008.). Dessa forma, a pandemia introduziu o uso dos dispositivos digitais como uma possibilidade essencial para que pesquisadores pudessem acessar e pesquisar com esses sujeitos durante o contexto pandêmico.

No presente artigo, buscamos compreender como a relacionalidade entre pesquisador(a) e pesquisado(a) é afetada e produzida pelo uso de dispositivos digitais à distância e qual seu impacto para a construção de conhecimento com crianças e adolescentes. Vimos que a perda ou a restrição da cinestesia intercorpórea foi um dos primeiros e grandes desafios impostos por esse momento, uma vez que agora o(a) pesquisador(a) se depara com a impossibilidade de estar frente a frente com crianças, em corpo presente. O tipo de dispositivo utilizado — vídeo, ligação de voz, áudio ou texto — faz diferença na apreensão que o pesquisador teve da corporeidade e afetividade de crianças e adolescentes entrevistados(as). Nas chamadas de vídeo, mais elementos dos corpos e afetos eram passíveis de serem observados, e maiores interações, como brincadeiras, puderam se produzir. Nas chamadas de voz e mensagens de áudio, a corporeidade pôde ser acessada apenas através de poucos elementos contidos nas vozes das crianças. Nas mensagens de texto, a dimensão corpórea das crianças mostrou-se bastante limitada. Mesmo que as crianças e os(as) adolescentes tenham usado recursos do próprio dispositivo digital, como emoticons, para descrever as suas emoções, e tenham escrito que estavam felizes por participar das entrevistas, esses dados tornam-se de difícil avaliação e interpretação já que não se conta com outros elementos que possam corroborá-los.

Imprevistos técnicos com os aparelhos digitais utilizados, interferências no e do espaço doméstico foram alguns dos acontecimentos não esperados na pesquisa realizada por meio dos dispositivos digitais. Nesses momentos, viu-se que uma escuta acolhedora, a paciência e o humor foram recursos que favoreceram a aposta nas possibilidades positivas desse encontro e da construção de um vínculo de confiança entre os(as) envolvidos(as).

Viu-se, também, que a entrevista online à distância adquiriu a qualidade específica de expor a intimidade, tanto do(a) pesquisado(a) quanto do(a) pesquisador(a), cuja relação de pesquisa se deu no âmbito da vida cotidiana das crianças, em ato (GOLDMAN, 2003GOLDMAN, M. Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia, antropologia e política em Ilhéus, Bahia. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 46, n. 2, p. 423-444, 2003. https://doi.org/10.1590/S0034-77012003000200012
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), e não em um ambiente neutro e separado. Nas chamadas de vídeo, especialmente, uma dimensão do íntimo é desvelada dos dois lados. Além disso, o fato de as entrevistas serem realizadas com as crianças e os(as) adolescentes dentro de suas casas abriu brechas para que eles(as), a partir da intervenção do(a) pesquisador(a), pudessem falar das dificuldades, por exemplo, de convivência com os outros membros familiares nesse momento em que muitos permaneceram dentro de casa, da rotina alterada e dos combinados que tiveram que ser refeitos em seus lares. O fato de a comunicação ter ocorrido, em sua maioria, por meio de aparelhos celulares, favoreceu que o(a) pesquisador(a) tivesse a sua presença menos percebida por outros membros familiares, que continuavam a desempenhar as atividades de sua rotina sem tanto constrangimento.

As análises deste estudo são iniciais, mas destacam algumas pistas para começarmos a compreender a expansão do uso dos dispositivos digitais e sua importância para a realização das pesquisas com crianças e adolescentes. Não nos propusemos a apresentar um conjunto de indicações e procedimentos da pesquisa-intervenção realizada à distância por meio de dispositivos digitais, mas partilhar um conjunto de complexidades e desafios que surgiram durante o processo de investigação com o grupo investigado neste estudo. Destaca-se, sobretudo, o uso das chamadas de vídeo e chamadas de voz como os recursos que possibilitam maior interação e vinculação com as crianças e adolescentes em comparação com entrevistas realizadas por mensagens de texto ou áudio. Dentre as ligações de vídeo ou voz, acredita-se que o pesquisador pode analisar e construir, junto com a criança e o(a) adolescente, a escolha do dispositivo que a deixará mais à vontade para falar de suas vivências. Por fim, o que nos parece importante destacar é que, tanto nas pesquisas online à distância como nas pesquisas presenciais, o que deve prevalecer é a função do fazer narrativa (TYSZLER et al., 2020TYSZLER, J. J. et al. Tenir le fil de la vie par la voix. In: DOUVILLE, O. Le Blog d’Olivier Douville. Paris, 2020. Disponível em: https://olivierdouville.blogspot.com/2020/04/jean-jacques-tyszler-laria-pironeequipe.html. Acesso em: 07 set. 2021.
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), isto é, a possibilidade de se criar um fio de vinculação com as crianças e os(as) adolescentes que os(as) interpelem a falar e compartilhar com o(a) pesquisador(a) o que vivem. Em nosso estudo, a construção de um vínculo que permitiu que esses sujeitos se sentissem confortáveis para falarem de suas vidas no momento difícil da pandemia destacou-se como fundamental.

Nota

  • 1
    “Vc” é a abreviatura de “você” e, como se trata de um extrato da troca de mensagens escrita pela própria criança, mantivemos a sua literalidade.

Agradecimentos

Não se aplica.

  • Número temático organizado por: Levindo Diniz Carvalho, Maria Cristina Soares de Gouvêa e Natália Fernandes
  • Disponibilidade de Dados de Pesquisa

    Todos os dados foram gerados/analisados no presente artigo.
  • Financiamento

    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
    Processo nº. 303879/2020-3.
    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
    Processo nº. 202.816/2018.

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Editado por

Editoras Associadas:

Maria Rosa Rodrigues M. Camargo e Rita de Cassia Gallego

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2022
  • Aceito
    23 Maio 2022
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