RESUMO
O artigo propõe uma análise indiciária para identificar e problematizar as leituras que inspiraram Catharina Moura na produção do texto “Os direitos da mulher”, inicialmente apresentado em conferência no ano de 1913 na cidade da Parahyba do Norte (PB) e, posteriormente, com modificações, submetido à banca de congregação da Faculdade de Direito do Recife em 1921, referente ao prêmio de 1912, intitulado “Documentos relativos ao prêmio escolar de 1912”.
Palavras-chave Produção intelectual feminina; Documento; História da educação
ABSTRACT
The article proposes an indicative analysis to identify and problematize the readings that inspired Catharina Moura in the production of the text “Women’s rights”. Initially, it was presented at a congress in 1913 in the city of Parahyba do Norte (PB), Brazil, and, later, with modifications, submitted to the board of Congregation of Law School of Recife in 1921, referring to the 1912 award, entitled “Documents related to the school award of 1912”.
Keywords Female intellectual production; Document; History of education
Introdução
A proposta deste artigo é identificar e problematizar leituras que inspiraram Catharina Moura na produção do texto “Os direitos da mulher”, apresentado inicialmente em conferência no ano de 1913 no Teatro Santa Rosa, na capital da Parahyba1, em uma série de debates sob a égide da Universidade Popular organizada pelo então presidente da Província João Pereira de Castro Pinto2 (Machado; Nunes; Vasconcelos, 2015). Posteriormente, o texto foi submetido com alterações à banca de congregação da Faculdade de Direito do Recife em 1921 e compôs a documentação referente ao prêmio de 1912, intitulada “Documentos relativos ao prêmio escolar de 1912”, assinada pela comissão examinadora do prêmio e pela própria Catharina Moura Amstein. O referido texto versa primordialmente sobre o debate intelectual acerca dos direitos da mulher, destacando questões educacionais, sociais e políticas, em adesão às teses propagadas pelos movimentos sufragistas a partir do fim do século XIX.
A fonte principal de pesquisa, disponível no Arquivo da Faculdade de Direito do Recife, organizada em documentação supracitada, é composta de 28 páginas manuscritas na seguinte ordem: capa, contendo na parte superior e central o título “Documentos relativos ao prêmio escolar da turma de 1912”; e o texto propriamente dito, manuscrito em tinta preta por Catharina Moura, papel amarelado com marcas do tempo, em sua maior parte legível, com alguns sublinhados, e dividido em quatro partes – introdução, em que a autora situa sua posição quanto ao tema e contexto da época; desenvolvimento da argumentação sobre o assunto direitos políticos, mesclando-o com direitos civis e sociais, fazendo uso de exemplos de diversos países e de citações de autores e autoras que abordaram a temática; conclusão; e a quarta parte, que é um pedido de desculpas à banca examinadora (formada apenas por homens) pelo uso de palavras “ásperas” dirigidas ao sexo “reconhecidamente mais forte” por uma representante do sexo “reconhecidamente mais fraco”.
No texto produzido por Catharina Moura é possível perceber os artifícios que o(a) autor(a) utiliza para sugerir ao(à) leitor(a)/ouvinte como gostaria de ser lido(a)/ouvido(a). Do mesmo modo, a Faculdade de Direito do Recife, ao organizar a exposição do documento, imprimiu uma maneira de lê-lo, mas ao final cabe ao(à) leitor(a), considerando essas indicações, fazer a leitura do texto, produzir uma ordem de apresentação que pode contemplar, em parte, o que foi pensado por aqueles(as) que idealizaram um(a) destinatário(a), mas lançará mãos de estratégias e conhecimentos próprios. Pois, como alerta Roger Chartier (2001, p. 20): “Com efeito, todo autor, todo escritor impõe uma ordem, uma postura, uma atitude de leitura”.
Lança-se um olhar indiciário para identificar as pistas de leitura registradas no texto e que provavelmente serviram de base teórica à elaboração argumentativa desenvolvida pela bacharela.
O indiciarismo (Ginzburg, 1989) sugere um modo de o/a pesquisador/a portar-se diante das fontes, principalmente quando estas são escassas ou inexistentes. Nortear-se por esse paradigma exige um olhar atento aos minúsculos sinais explícitos ou não, pouco perceptíveis, opacos, mas que podem apontar pistas, sugerir itinerários, induzir conclusões. Assim, uma palavra, uma citação, um sublinhado de uma palavra, uma negação que se afirmar mais adiante, ou até mesmo uma ausência de referência naturalmente esperada considerando o conteúdo abordado, as relações estabelecidas entre obras, entre sujeitos, entre lugares, a quem se remete em um texto, literalmente ou não, o menor indício devem ser levados em conta na análise da fonte.
No caso desta pesquisa, a paisagem é o discurso de Catharina Moura, composto de palavras organizadas com base no interesse de defender um argumento para o qual houve um ordenamento, a fim de receber determinado bônus. Catharina Moura diz ter sido ordenada a escrever a respeito dos direitos da mulher. Entre eles, optou pelos direitos políticos, a propósito dos quais declara não ter nenhum interesse pessoal. Insiste em não colocar-se como feminista, alegando não ter habilidade para tal, apesar de admirar e considerar em alto grau as mulheres que o são. Todavia, tece uma defesa bem elaborada realçando a participação da mulher no campo político, dialogando com intelectuais da época.
Assim, pensando no tempo e no espaço nos quais o texto de Catharina Moura foi elaborado, podemos entendê-lo como uma importante fonte histórica na medida em que dele despontam outros discursos, se podem perceber seleções e se instauram leituras diversas.
Quem foi Catharina Moura Amstein?
Filha de Misael Augusto do Rego Moura e Francisca Rodrigues Moura, Catharina Moura nasceu em 20 de dezembro de 1882, na capital da Província da Parahyba. Cursou os estudos primários e secundários na Escola Normal Oficial, diplomando-se professora normalista em 1902. Após o curso preparatório no Liceu Paraibano, matriculou-se em 1908 na Faculdade de Direito do Recife, onde, como única mulher entre os 48 bacharéis3 de sua turma, foi aprovada com distinção em todas as cadeiras cursadas, sem nenhuma interrupção dos estudos, fato que lhe rendeu o direito de concorrer ao prêmio de viagem à Europa ou à América, como relatado em notícia do Jornal Pequeno de 29 de novembro de 1912, que a homenageou ressaltando suas conquistas e felicitando-a pelo sucesso durante o curso de Direito na referida faculdade.
Meses antes de sua formatura, Catharina Moura ganhou notabilidade ao estrear na tribuna jurídica em defesa de um réu na cidade de Pau D’alho. Como noticiado no Jornal Pequeno (1912a), eram grandes a expectativa e a animação pelo julgamento de um senhor chamado Raul Milton de Mello, acusado do assassinato de um homem naquela cidade do interior de Pernambuco, no ano de 1906. Destacou ainda o jornal que para o referido júri compareceriam acadêmicos de direito e cavalheiros da cidade do Recife, bem como de cidades vizinhas a Pau D’alho.
Por sua afamada carreira acadêmica, Catharina Moura esteve presente no noticiário recifense, e imagina-se a repercussão que a premiação causou não só no Recife, mas também em terras paraibanas. O convite para participar de um evento como a Universidade Popular, em que a presença era majoritariamente masculina, possivelmente decorreu de sua evidência como aluna do curso de Direito.
Formada, Catharina Moura retornou à capital paraibana, onde atuaria como professora na Escola Normal, nas cadeiras de Português, Desenho, Francês e História da Civilização, sendo nomeada em 1917 professora efetiva da cadeira de Português. Em 1928 foi reconhecida sua vitaliciedade na cadeira de Desenho Linear e Caligrafia na citada instituição.
Catharina Moura faleceu no Rio de Janeiro, em 6 de abril de 1955, conforme noticiado pelo jornal O Norte: “Faleceu ontem no Rio de Janeiro a dra. Catharina de Moura, advogada e escritora, filha da saudosa professora Francisca Moura” (O Norte, 1955, p. 7).
A construção de um discurso feminista: Leituras, ideias, inspirações
A temática destacada por Catharina Moura em seu discurso não era nova, conquanto ainda causasse grande rebuliço quando posto em palavras publicamente por mulheres, ou por homens. A recepção, porém, era diferente se viesse da pena ou da voz masculina. Mesmo considerando que uma ínfima parcela da população masculina era alfabetizada e exercia sua cidadania, aos homens eram dados direitos civis e políticos, como o direito à educação e ao voto (votar e ser votado).
Se a nova Constituição Federal não se manifestava em prol da mulher, tampouco deixava explícita a sua exclusão, porque sequer a nomeava ou a citava. Essa omissão causou ambiguidade e interpretações distintas em relação ao direito ao voto, por exemplo. No artigo 70, são considerados eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistassem na forma da lei. Em parágrafos posteriores, elencam-se os mendigos, os analfabetos, os praças, como aqueles a quem estava vedado o direito de alistamento (Brasil, 1891). Catharina Moura, conhecedora da lei, traz à tona essa questão:
Nossa legislação não concede à mulher, capacidade para votar, não a considera hábil para eleger ou ser eleita. [...] Nossa lei básica, a Constituição de 24 de fevereiro, estatuindo no seu Tit, IV, Secção I, artigos 69 e 70, as qualidades necessárias para ser cidadão brasileiro e eleitor, não se refere ao sexo como provando que este não pode ser absolutamente considerado motivo justo de capacidade ou incapacidade física ou moral para o livre exercício do direito de voto
(Amstein4, 1921, p. 3).
As ideias que Catharina Moura defende se inseriam no contexto do nascimento da República, entretanto há exemplos da luta de mulheres por maior participação feminina na história desde séculos passados. À época da Revolução Francesa, por exemplo, a francesa Olympe de Gouges (1748–1793) e a inglesa Mary Wollstonecraft (1759–1797), provocadas pela cultura iluminista, enfrentaram o discurso dominante de que a subordinação da mulher ao homem era um dado natural, cada uma em seu país, manifestando-se pelas causas abolicionistas e feministas. Ambas encontraram em homens influentes o apoio e a defesa de suas ideias: a abolição da escravatura e os direitos das mulheres como elementos propulsores da emancipação da humanidade (Moraes, 2016, p. 10).
No texto de Catharina Moura não há evidências de que tenha lido Mary Wollstonecraft, e Olympe de Gouges é citada sem realce ao lado de outras mulheres destacadas em áreas diversas, mas que têm seus nomes associados à história das lutas pelos direitos femininos, por seu ativismo e seus escritos:
Lamento não poder encher-vos, como desejaria fazê-lo, de imenso ardor pelo levantamento do meu sexo, sinto muito não encontrar em mim própria, para vos comunicar o entusiasmo, a coragem de uma [nome ilegível], uma Fanny Lewald, uma Olympia de Gouges, uma Carmem Dolores e tantas outras mulheres admiráveis que tudo sacrificam na defesa da causa que as anima
(Amstein, 1921, p. 23).
Ao listar, em mais de um momento, essas mulheres, Catharina Moura demonstra conhecer suas histórias, mesmo que não as cite diretamente ou comente suas obras, nem mesmo a brasileira Nísia Floresta, reconhecida por elaborar uma tradução livre do texto de Mary Wollstonecraft5, A vindication of the rights of woman, publicada em 1832 no Recife.
Embora se localize no texto de Catharina Moura uma postura apaziguadora semelhante à de Nísia Floresta e dos positivistas em relação à posição da mulher na família, a paraibana não faz referência à potiguar e busca apoio no discurso do médico Tito Lívio de Castro6 para defender a necessidade da educação da mulher em benefício do desenvolvimento e da “evolução da sociedade”:
Assim diz Tito Lívio de Castro, “Se a educação da mulher dissolve a família (essa dissolução é uma das mais fortes objeções) é que uma das condições dessa instituição é a ignorância da mulher” [...]. E adiante a propósito da inconsciência feminina em relação ao seu elevadíssimo papel na sociedade, inconsciência resultante da fútil, da insignificantíssima educação ministrada à mulher: “As futilidades da educação materna que fazem a mãe tão criança como os organismos a que deu o ser, são mais que bastantes para mostrar quanto Ela está longe de saber o quê é, o que vale e o que deve valer”
(Amstein, 1921, p. 20).
Tito Lívio de Castro, apesar de considerar a inferioridade intelectual feminina, defendia que por meio da educação a mulher poderia chegar ao mesmo estágio de evolução do homem. Argumentava ainda que a situação de atraso em que se encontrava o Brasil se devia à precariedade do sistema educacional brasileiro no então século XIX tanto para o homem quanto sobretudo para a mulher, que sem estudo poderia permanecer nesse nível de estagnação ou até regredir em seu estado de evolução. Diferentemente da maioria dos pensadores de sua época, condenava a ideia de que a educação feminina era nociva à família. Via a família como uma instituição muito próxima à escravidão, um contrato de exploração em que uma das partes explorava a outra (Almeida, 2008).
Catharina Moura fundamentou-se em mais de um trecho da fala de Tito Lívio de Castro e segue a inspiração evolucionista ao acrescentar:
A civilização, o progresso exigem dia a dia maior preparo da mulher como educadora. A evolução da mentalidade feminina é condição necessária à vida da mulher na atualidade e por uma consequência lógica tornar-se-á cada vez mais necessária, até imprescindível essa evolução
(Amstein, 1921, p. 20).
Para Tito Lívio, a educação oferecida à mulher era um empecilho ao desenvolvimento do seu espírito – distanciando-a do espírito do homem –, para pôr em relevo a necessidade de que fosse oferecida educação àquela a fim de que se elevasse espiritual e moralmente, tornando-se cada vez mais útil à sociedade. Nesse sentido, Catharina corrobora as ideias do médico ao considerar que a mulher,
[..] seja convenientemente educada, submetida a influências mesológicas capazes de aumentar-lhe o funcionamento cerebral e ela elevar-se-á forçosamente. Sua elevação intelectual e moral pela instrução e pela educação, num futuro, talvez não mui remoto, há de trazer-nos a prova de que essa inferioridade do cérebro feminino, se é que existe, não é uma qualidade inerente ao sexo, mas uma consequência necessária das condições do meio
(Amstein, 1921, p. 15).
Catharina Moura tem consciência do impacto que as ideias de Tito Lívio trouxeram para o debate sobre a inferioridade da mulher, e percebe-se claramente o recurso a essa autoridade sobre o assunto:
O que cientificamente ninguém ousará sustentar é que submetida a influências de meio capazes de ativar o funcionalismo cerebral, dotada em consequência do novo funcionalismo de um cérebro “determinado e determinante” de uma poderosa cerebração, a mulher seja “incapaz” de elevar-se a um nível superior ao que ocupa
(Castro, 1893, p. 292-293).
Catharina Moura, mesmo com um discurso precavido, aponta para a possibilidade de a mulher exercer “qualquer profissão honesta”, num período em que havia claras delimitações entre profissões para homens e para mulheres.
Como dito anteriormente, Catharina Moura faz referência direta a Tito Lívio de Castro, mas não cita a obra de Nísia Floresta, embora seu discurso corrobore em muitos momentos as palavras da professora potiguar, refletindo, assim, mesmo que implicitamente, o conjunto de ideias circulantes no século XIX, em que positivismo, darwinismo, evolucionismo e cientificismo ditaram uma nova maneira de pensar e explicar a sociedade. Uma das possibilidades que podem ajudar a compreender a ausência de Nísia Floresta no texto de Catharina Moura se fundaria na possibilidade de que a potiguar, ao assumir um papel transgressor para a época, se tornou discriminada nos círculos da cultura letrada do Brasil tanto no século XIX como no início do século XX (Gusmão, 2012).
No que tange à Faculdade de Direito do Recife, a postura de seus estudantes, à época da publicação das obras de Nísia Floresta, não era favorável à expansão dos escritos da professora, pois, como destaca Glaucio Veiga (1997, p. 292), Opúsculo Humanitário não teve boa aceitação entre os acadêmicos recifenses. Além disso, Tobias Barreto, cujas ideias marcaram a história da faculdade, insurgia-se sobre a ideia nisiniana e positivista da vocação natural da mulher para ser mãe de família. O desinteresse de Tobias Barreto pela obra de Nísia Floresta se dava “por conta do seu germanismo, sempre procurando as ideias e soluções nos autores alemães” (Veiga, 1997, p. 292). Nessa perspectiva, Catharina Moura teria seguido a posição da própria faculdade no período da publicação e circulação de Opúsculo Humanitário.
O cuidado que Catharina Moura demonstra ao amparar seu discurso em textos autorizados como a Constituição Federal, ou de uma área respeitada como a medicina (Tito Lívio de Castro), ou ainda em obras literárias consagradas como a de Garcia Redondo, assim como em nomes da área jurídica, ou ao evitar polêmicas não citando Nísia Floresta reflete uma situação histórica que a mulher sempre enfrentou quando ousou entrar, mesmo que por meio da palavra, em campos naturalizados de domínio masculino, como são o da política, o do direito, o da medicina, por exemplo. Michelle Perrot (1998), analisando essa particularidade na França, afirma terem sido as mulheres que encararam o desafio de ingressar numa área como a do direito, predominantemente masculina, as primeiras a se manifestarem pelo feminismo.
O discurso de Catharina Moura para conclusão de curso na Faculdade de Direito do Recife, em 1912, digno da premiação atribuída por uma congregação de mestres, constante como manuscrito da documentação referente ao prêmio em relatório datado de 1921, se configura como exceção permitida a uma mulher por sua competência intelectual em um meio em que os homens dominavam. Catharina Moura conseguiu essa permissão por destacar-se entre os homens. Assim, foi facultada a fala sobre política, sobre a importância para o desenvolvimento da sociedade se à mulher fossem dados os direitos de estudar e de votar.
Ao mesmo tempo que fala sobre direitos da mulher, conquistas, competências e capacidades, Catharina Moura nega que tenha a força e a coragem das mulheres por ela citadas; nega seu interesse em desenvolver atividades que possam tirá-la do recôndito do lar, que possam ameaçar as naturais atribuições de mãe, esposa e dona de casa. Pede desculpas por estar naquele lugar, fazendo aquele discurso.
Dizer-vos que não sou infelizmente uma feminista; que, apesar de não ter tido eu em nenhuma época da existência o apoio de um braço masculino e ter, portanto, conhecido por experiência o quanto é útil, o quanto é necessária a elevação feminina pelo trabalho de qualquer natureza, não sou uma dessas mulheres sublimes que denodadamente se batem pela elevação, pela emancipação do seu sexo. [...] não sou dessas mulheres admiráveis que afrontam impávidas os risos de escárnio, as pesadas ironias, os malévolos dichotes com que as mimoseam os ferozes inimigos do progresso feminino
(Moura, 1913, p. 1)7.
A atitude de negação era comum no período em que a luta pelos direitos das mulheres, muitas vezes, tomava o caráter de atividade individual ou de pequenos grupos. Sobre essa postura, Michelle Perrot (2007, p. 153-154) reflete: “O feminismo nem sempre goza de boa reputação. Muitas mulheres se defendem como se esse fosse uma ruga no rosto: ‘Eu não sou feminista, mas...’ dizem algumas conscientes, apesar de tudo, do que elas devem a esse movimento”.
Catharina Moura tinha consciência de que estava entrando em terreno de muito difícil acesso às mulheres, que era o dos direitos políticos de eleger-se e de concorrer a um cargo político. Por outro lado, participar da política era um modo de obter poder, de definir regras para serem cumpridas, de interferir diretamente no destino da sociedade, pois historicamente os homens fizeram de tudo para afastar as mulheres da seara política. O discurso proferido por Catharina Moura encontra respaldo em outras vozes femininas que se destacavam na imprensa entre fins do século XIX e começo do XX, como é o caso de Carmen Dolores, igualmente citada em seu texto como uma das mulheres admiráveis a que Catharina Moura diz não se comparar em ousadia nem coragem.
Todavia, segundo Rachel Soihet e Flávia Esteves (2008), Carmen Dolores por vezes expressava contradições, quando, por exemplo, destilava críticas aos comportamentos dos novos tempos: as moças que gostavam de sair; a futilidade dos novos hábitos femininos em sua preocupação com a moda; o relaxamento da dona de casa quanto às suas obrigações domésticas; a pouca moralidade das moças que flertavam. Paradoxalmente à defesa que fazia do divórcio, defendia ferozmente a família e o casamento, a ponto de justificar o reforço da autoridade masculina para a manutenção de tal instituição.
Catharina Moura era uma mulher de seu tempo, e seu discurso, também marcado em alguns momentos por contradições, refletia o pensamento e a postura de outras mulheres suas contemporâneas, como Carmen Dolores, que tinha opinião convergente a da paraibana sobre o acesso da mulher à educação:
Segundo ela, bastaria uma transformação na educação feminina para que as mulheres se tornassem sujeitos mais ativos na construção de sua autonomia. “Eduquem-na convenientemente e verão que a inútil boneca se transforma em creatura de eleição, sabendo sentir, querer, agir, pensar...”
(Soihet; Esteves, 2008, p. 149).
Provavelmente, Catharina Moura lembrou Tobias Barreto, nome que ficou gravado na história da Faculdade de Direito do Recife (Veiga, 1997), cuja obra deve ter sido leitura sua, quando no início de seu discurso destacou que, “felizmente”, já havia homens que tinham se despido dessa roupagem anacrônica que considerava a mulher um ser inferior.
Felizmente, porém, há entre os mais brilhantes cérebros masculinos, espíritos emancipados de preconceitos arcaicos que sem um vislumbre de egoísmo, sem a mais leve sombra de despeito defendem os direitos do sexo apelidado fraco, proclamando bem alto o seu valor intelectual e moral, destruindo com a lógica da prática e prudente observação, os argumentos daqueles que procuram amesquinhá-lo [...] num estreito círculo de eterna incompetência
(Amstein, 1921, p. 2).
Ainda em sua fala, Tobias Barreto afirma que a questão da emancipação da mulher é assunto muito sério e oferece três pontos de vista distintos: político, civil e social. Deixa clara sua posição contrária à emancipação política da mulher, e sua fala incide na questão social, principalmente com relação ao acesso da mulher à educação e às diversas profissões.
Catharina Moura tampouco se coloca pessoalmente favorável à emancipação política feminina; diz, em mais de um momento, ter sido “ordenada” a abordar os direitos da mulher e considerou apropriado “especializar os direitos políticos da mulher” (Amstein, 1921, p. 1). Parece contraditório que a causa pela qual diz não ter interesse pessoal seja a que resolve desenvolver.
Embora contemple em seu texto aspectos referentes à questão civil, quando problematiza a completa subserviência da mulher ao marido na relação matrimonial, definida pela legislação – que permite até mesmo àquele dissipar todos os bens adquiridos por ocasião do casamento –, também é possível perceber que a questão do acesso à educação e do direito de exercer qualquer profissão, ou seja, o aspecto social da emancipação feminina de que fala Tobias Barreto, percorre todo o texto de Catharina Moura. Isso reforça a ideia de uma consciência sobre a pauta histórica das mulheres: a educação em primeira ordem na busca por direitos para o sexo feminino.
Tanto quanto Tobias Barreto, Catharina Moura lista mulheres que vêm destacando-se nas várias áreas do conhecimento, embora se perceba que a paraibana, talvez por estar se pronunciando sobre o mesmo tema algumas décadas depois, promove atualização nessa lista. Um excerto do discurso de Catharina Moura é literalmente igual ao que está no de Tobias Barreto (1926, p. 61):
A mulher tem as mesmas disposições naturaes para os estudos superiores; o que há mister é que se lhe franqueie o templo da sciencia. Dizia há pouco uma escriptora alllemã, a Sra Hedwig Dohn, em um livro intitulado A emancipação scientifica da mulher: “Nós não queremos bater à porta dos parlamentos, queremos bater á porta da sciencia, á porta das universidades; é esta somente que nós pedimos que se abra”.
Todavia, a bacharela, ao fazer uso desse mesmo fragmento, dá um encaminhamento diferente à discussão:
Para isso a mulher que ontem querendo desenvolver-se intelectualmente dizia com Edwig Dohn na “Emancipação scientifica da mulher’” “Nós não queremos bater á porta dos parlamentos, queremos bater á porta da sciencia, queremos bater á porta das universidades [...] é esta somente que queremos que nos abram”, obteve em quase toda parte essa conquista e bate hoje à porta dos parlamentos, organiza congressos universais, tem em muitas partes o voto municipal, em algumas o voto político
(Amstein, 1921, p. 22, grifo nosso).
Assim como Tobias Barreto em seu discurso toma para si os argumentos utilizados pelo seu antagonista, torcendo-os ao seu bel-prazer, a fim de que as palavras se voltem ao seu favor, Catharina Moura dá mostras de criatividade ao usar o mesmo fragmento citado por Tobias Barreto fazendo outra afirmação e para mostrar que, embora lentamente, a situação da mulher avançou, tanto que em alguns países o voto já era uma conquista dada.
Conforme vem se tentando demonstrar aqui, o texto de Tobias Barreto deve ter sido lido por Catharina Moura, e percebe-se uma inspiração no próprio modo de construir os argumentos. Mas, além disso, é possível localizar divergências, e a mais notável delas é o lugar atribuído à religião, especialmente a católica. Tobias Barreto foi um crítico declarado da Igreja. Em sua opinião, o argumento moral que imputava submissão à mulher advinha da religião e estimulava a relação de dominação desta pelo homem, fazendo com que a família fosse uma instituição injusta, de opressão de um membro por outro. Por sua vez, Catharina Moura era católica declarada e atribuía à Igreja, sem mais explicações, a libertação da mulher:
Assim, parece mais aceitável a opinião dos que admitem como certa a escravidão da mulher primitiva; escravidão física e escravidão moral. Da primeira libertaram-na diversos fatores, cabendo à salutar religião cristã, à santa doutrina do meigo Nazareno o primeiro lugar dentre esses fatores. Da segunda, no futuro, lenta mais heroicamente, libertar-se-á, estou certa, por completo
(Amstein, 1921, p. 16-17).
Como se vê, Tobias Barreto e Catharina Moura discordam completamente quanto à influência da Igreja Católica na questão da emancipação feminina no aspecto moral, que segundo o sergipano tem interferência direta na legislação. Enquanto Tobias Barreto faz uma argumentação mais longa sobre o assunto, Catharina Moura não volta a falar a respeito disso diretamente, porém nota-se sua concepção de família, de casamento, de atribuições da mulher, totalmente orientada pela visão católica.
Como se afirmou, um texto para ser elaborado exige escolhas. As várias (re)leituras do discurso produzido por Catharina Moura permitem assinalar as leituras declaradas, mas também as não citadas, as indicadas por via indireta e as ausências. Considerando o assunto posto e o seu contexto, buscou-se encontrar certos nomes de mulheres, como Nísia Floresta, por exemplo8. Não há! Tampouco há referência à primeira advogada formada pela Faculdade de Direito do Recife, Maria Fragoso, que teria produzido o opúsculo A questão da mulher (Veiga, 1997). A paraibana optou, entre outros, por nomes conceituados já naquele momento em duas grandes áreas de conhecimento: direito e medicina. Destarte, o texto de Catharina Moura, mesmo quando não cita tais nomes, faz eco às vozes de tantas outras mulheres que lhe antecederam.
Considerações finais
A análise da fonte e a leitura dos textos afins permitiram constatar uma postura intelectual de Catharina Moura Amstein que buscou subsídios atualizados e de credibilidade no período vigente, explicitando fundamentação nos discursos médico, jurista e literário, citando diretamente, ou por meio de outras fontes, nomes de homens e mulheres que se lançaram na luta pelos direitos da mulher, ou mulheres que se destacaram ocupando os mais diversos cargos, mesmo em profissões antes só admitidas ao sexo masculino.
Catharina Moura realça, além da leitura de livros sobre o assunto, a leitura de jornais e as conversas com pessoas que viajaram para outros países e lhe deram notícias do nível de desenvolvimento dos direitos das mulheres, numa indicação dos modos de circulação dos conhecimentos e das informações naqueles idos do século XX. Percebe-se a forte influência das ideias de Tito Lívio de Castro, que problematiza em seu livro A mulher e a sociogenia a tão propalada inferioridade feminina, e das do jurista Tobias Barreto, que em 22 de março de 1879 desenvolveu um debate na Assembleia Legislativa de Pernambuco em que veementemente defendia que as mulheres deveriam ter direito à educação.
Embora em alguns momentos de seu discurso se dirija ao seu público com pedidos de desculpas, se acaso tenha feito uso de palavras ásperas, Catharina Moura tece uma argumentação consistente, incisiva e crítica ao modelo social, educacional e político, ainda sob a égide das tradições patriarcais mais arraigadas, que dificultavam e desfavoreciam a presença da mulher na vida pública. Assim, também é possível rastrear as diversas vozes, femininas ou masculinas, que antes e naquela época se levantaram para exigir que as mulheres tivessem os mesmos direitos que os homens, caracterizando o seu discurso como um texto histórico, construído conscientemente em uma série de camadas, nas quais se identificam outras leituras, outros discursos.
Notas
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1
Versão publicada nas páginas do jornal A União, nos dois primeiros dias de abril de 1913, após ser apresentada como conferência no Teatro Santa Rosa, no dia 30 de março desse mesmo ano.
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2
João Pereira de Castro Pinto (1863–1944), paraibano formado em Direito, ainda no período imperial ingressou na política, colocando-se favorável à causa abolicionista. Foi deputado, senador e presidente pela Paraíba, este último cargo no período de 1912 até 24 de julho de 1914, quando renunciou ao mandato.
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3
Entre os anos de 1827 e 1927, 100 anos de institucionalização da Faculdade de Direito do Recife, apenas nove mulheres obtiveram o título de bacharéis na prestigiada faculdade, tendo sido a primeira Delmira Secundina da Costa (1988). Catharina Moura foi a sexta mulher nessa condição histórica e a primeira bacharela do século XX.
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4
Quando Catharina concluiu o curso ainda era solteira e assinava apenas o sobrenome Moura. Em 1921, quando assinou o relatório do prêmio, adicionou o Amstein, sobrenome de casada.
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5
Há divergência a esse respeito. Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke afirma que “Nísia ‘traduziu literalmente e na sua totalidade um livreto de 1739, intitulado Woman not inferior to man, cujo autor ou autora desconhecida se escondia, e ainda se esconde, sob o pseudônimo de Sophia, a Person of Quality’” (apud Frehse, 1997, p. 241).
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6
A obra de Tito Lívio de Castro (1864–1890) alimentou discussões em torno da capacidade intelectual feminina caso fosse exposta a condições educacionais.
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7
Esse excerto não está presente no relatório de 1921.
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8
Também Tobias Barreto ignorou Nísia Floresta, o que se percebe pela leitura de seu texto e foi destacado por Veiga (1997, p. 292).
Agradecimentos
Não se aplica.
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Número temático organizado por: Lia Machado Fiuza Fialho https://orcid.org/0000-0003-0393-9892, Hugo Heredia Ponce https://orcid.org/0000-0003-3657-1369, Manuel Francisco Romero Oliva https://orcid.org/0000-0002-6854-0682.
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Financiamento
Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e TecnológicoPS1-0186-00218.01.00/21
Disponibilidade de dados da pesquisa
Todos os dados foram gerados/analisados no presente artigo.
Referências
- ALMEIDA, A. M. A. Um “mestiço irrecusável”: Tito Lívio de Castro e o pensamento cientificista do século XIX Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.
- AMSTEIN, C. M. Relatório: Documentos relativos ao prêmio escolar da turma de 1912. Recife: Faculdade de Direito do Recife, 1921.
-
BARRETO, T. Discursos Sergipe: Edições do Estado de Sergipe, 1926. (Obras Completas, v. 4). Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ub000029.pdf Acesso em: 10 jul. 2019.
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Editoras Associadas:
Elizabeth dos Santos Braga https://orcid.org/0000-0002-8115-249X e Rita de Cassia Gallego https://orcid.org/0000-0003-4465-8173
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Fev 2024 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2024
Histórico
-
Recebido
04 Mar 2023 -
Aceito
15 Set 2023