Open-access “QUEM CONTA UM CONTO...”: A ATIVIDADE CRIADORA INFANTIL NO (RE)CONTO DE HISTÓRIAS

“WHO TELLS A TALE...”: THE CHILDREN’S CREATIVE ACTIVITY IN STORYTELLING

RESUMO

Este estudo descreve e analisa a atividade criadora da criança pré-escolar no (re)conto de histórias. Para isso, foi realizada uma pesquisa qualitativa com o estudo de caso de uma criança de 5 anos, denominada Carol. A construção dos dados ocorreu por meio de uma oficina de conto e (re)conto de história, realizada em um encontro virtual, que foi submetido à análise microgenética. Concluímos que, em um contexto no qual as crianças conheçam, apreciem esteticamente e se apropriem de histórias e narrativas, as estratégias de reprodução e criação se entrelaçam em um processo de produção autoral.

Palavras-chave Atividade criadora; Imaginação; Contação de histórias; Estética

ABSTRACT

This study describes and analyzes the creative activity of preschool children in storytelling. Qualitative research was conducted with the case study of a 5-year-old child named Carol. Data were collected through a storytelling and re-storytelling workshop held in a virtual meeting subjected to micro-genetic analysis. We conclude that reproduction and creation strategies intertwine in authorial production in a context in which children know, aesthetically appreciate, and appropriate stories and narratives.

Keywords Creative activity; Imagination; Storytelling; Aesthetics

Introdução

Este estudo visa descrever e analisar a atividade criadora da criança pré-escolar1, por meio de um episódio de (re)conto de história; e, em um desdobramento, contribuir na compreensão da díade reprodução-criação no funcionamento imaginativo. Para tanto, nos fundamentamos nos pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, que compreende a ação humana a partir de dois tipos principais: reprodutora, que está relacionada à memória e consiste em repetir formas de conduta ou impressões do que já existe; e atividade criadora, que se refere à formulação do novo mediante a combinação e reelaboração dos elementos da experiência, tendo por base os processos imaginativos (Vigotski, 2018).

Desde muito novas, as crianças entram em contato com as histórias por intermédio dos contos informais e das narrativas ficcionais provenientes da literatura infantil, que lhes são contadas pelos adultos e/ou acessadas por meio de produções audiovisuais no formato de desenhos, filmes e séries. Com o desenvolvimento da linguagem e da função imaginativa, a criança pré-escolar torna-se criadora de suas próprias histórias, com a produção de enredos e personagens. Esse processo de produção criadora é constituído pela reprodução complexificada do que a criança conhece de seu universo circundante, ou seja, uma reelaboração criadora de suas experiências com o real. Sendo assim, na atividade de ouvir ou de contar histórias, são postos em movimento funções psicológicas complexas como memória e imaginação, revelando o potencial que a vivência estética com essas narrativas exerce sobre o desenvolvimento da criança (Vieira, 2020).

Os contos são uma forma de experiência estética natural para as crianças, em face do seu interesse pelas narrativas ficcionais (Vigotski, 2010, 2018). Ao ouvir um conto literário ou informal, as crianças se apropriam da cultura, por meio da transmissão dos significados sociais que são compartilhados nessa atividade. Ao mesmo tempo, novos sentidos também são criados por elas e são expressos em suas narrativas (Jovchelovitch; Priego-Hernandes; Glãveanu, 2018). Compreendemos que o significado é um sistema social de generalizações, que é expresso nas palavras de modo relativamente estável. Todavia, o processo de significação da experiência implica na atribuição de sentido, que provém da interpretação individual do sujeito sobre a realidade (Luria, 1986).

No movimento de contar ou recontar uma história, as crianças dão ênfase aos aspectos considerados por elas como centrais e importantes ao enredo, ao tempo que realizam modificações, atribuindo novos sentidos aos acontecimentos, personagens e suas relações (Vieira, 2022). Isso ocorre porque a criança “percebe e interpreta o mundo de modo muito original e absolutamente à sua maneira” (Vigotski, 2010, p. 341).

Assim, neste estudo, destacamos o modo pelo qual a criança (re)conta uma história ficcional, a partir de sua visão original e singular. Nesse ínterim, buscamos contribuir com a compreensão dessa importante atividade para a experiência estética de crianças, nos questionando: é possível distinguir as estratégias de reprodução das de criação na contação de histórias por crianças em idade pré-escolar? Em um desdobramento, o que essa atividade nos revela sobre a díade reprodução-criação no funcionamento imaginativo?

A experiência estética da criança em suas produções imaginativas na contação de histórias

Consideramos a experiência estética como um processo que envolve a percepção sensorial de estímulos, que são correlacionados pelo indivíduo em um processo de elaboração e interpretação de acordo com seu repertório cultural e suas motivações internas (Vigotski, 2010). Portanto, ao contemplar uma obra, de qualquer tipo, o indivíduo também realiza uma elaboração criadora sobre ela, pois “ao percebermos uma obra de arte, nós sempre a recriamos de uma forma nova” (Vigotski, 2010, p. 337).

Em se tratando da experiência estética da criança pré-escolar, quando ela ouve uma história, são postos em operação seus processos imaginativos, que criam imagens mentais correspondentes (Girardello, 2011). Essa formação de imagens só é possível com a emergência da linguagem, que liberta a criança de sua percepção imediata sobre o objeto, para que ela se relacione com ele a partir de seu significado (Luria, 1979). Nesse sentido, abre-se um mundo de possibilidades para a criança, no qual ela pode exceder o mundo concreto e realizar recombinações imaginativas, recriando a realidade a partir da forma como ela sente, pensa e interpreta o universo circundante.

A fim de compreender como a atividade criadora e a experiência estética da criança, na contação de histórias, são abordadas na literatura, decidimos realizar um levantamento bibliográfico selecionando investigações empíricas que dialogassem com a temática em análise. Esse levantamento foi realizado no Portal dos Periódicos Capes, utilizando as palavras-chaves “estética”, “criança” e “histórias”, em um recorte temporal entre os anos 2011 e 2023 dos estudos produzidos no Brasil. Por meio da leitura dos títulos e resumos, selecionamos os artigos que discutiam a experiência estética da criança em seus processos imaginativos e criadores na contação de histórias.

Ao estudar as performances narrativas de crianças pequenas, Vieira (2022) discute que, no narrar, elas empregam diferentes recursos performativos. As suas histórias detêm um aspecto sincrético, sendo compostas por elementos e situações fantásticas, mas também provenientes de situações vividas. Nos (re)contos de histórias da literatura infantil, as narrativas se fundamentam em produções culturais provenientes da indústria audiovisual, mas as crianças reelaboram os enredos e personagens em uma ação criadora. Nas narrativas das histórias autobiográficas, as crianças materializam suas lembranças e reelaboram suas experiências, mediante a articulação entre memória, emoção e imaginação. Por fim, independentemente de as narrativas serem histórias inventadas, recontadas ou vividas, a ação de ouvir e contar histórias proporciona uma experiência estética para as crianças, que acessam diversas realidades, culturas e diversos contextos.

Na análise dos processos imaginativos de crianças pequenas presentes em performances narrativas de criação/recriação de histórias, Vieira e Madeira-Coelho (2022) afirmam que, na contação de histórias, as crianças realizam uma reprodução performática, assumindo a postura de um contador, com o emprego de recursos estilísticos e da expressão corporal. No contato com livros de imagens, as crianças constroem histórias autorais, conferindo outros sentidos estéticos para as ilustrações. Além do aspecto ficcional, suas histórias também incluem elementos do contexto imediato e cultural, demonstrando a concretude do sujeito em seus processos de desenvolvimento. Por fim, o estudo apresenta um amálgama complexo de dimensões do desenvolvimento humano quando as crianças criam/recriam histórias, principalmente emoção, memória e imaginação, associadas ao caráter intelectivo e corporal.

Ao investigar as narrativas infantis como fruidoras de processos criativos, imagéticos e autorais, Pillotto et al. (2021) salientam que as crianças expressam seus processos imaginativos e criativos por narrativas orais e corporais, desenhos e pinturas. Nesse contexto de produção imaginativa, a atividade de contação de histórias é discutida como possibilidade de experiência estética para a criança, uma vez que pode se constituir como um processo formativo de si e do outro, no movimento de leitura e interpretação literária. Dessa forma, a contação de histórias deve ser um momento de interação, em que haja espaço para a afetação emocional e produção de sentidos compartilhados, promovendo a imaginação criadora e a produção autoral das crianças.

Tendo em vista a mediação de uma professora com seus alunos em rodas de leitura, Nascimento, Brandão e Magalhães (2021) afirmam que as mediações contribuíram pouco para a construção de sentidos e formação ética das crianças no contato com histórias. A mediação assumiu o formato de perguntas e respostas, ao invés de se estruturar como um diálogo entre os interlocutores. Em muitos episódios, as histórias eram utilizadas em prol de ensinamentos morais, com cerceamento das opiniões das crianças, que buscavam adequar suas respostas ao que acreditavam ser esperado pela professora. Logo, coloca-se a necessidade de que a literatura seja utilizada na Educação Infantil para a apreciação estética, com uma mediação que promova o conhecimento e pensamento crítico da criança e cultive sua liberdade de pensar, sentir e imaginar, em sua livre expressão.

Na análise da experiência estética de crianças em estratégias de (re)conto oral com conto de fadas, Vieira (2020) discute a relação existente entre a atividade do (re)conto de histórias e seu potencial para proporcionar experiências imaginativas, e favorecer a produção simbólico-emocional das crianças. Segundo a autora, no processo de produção da narrativa, as crianças realizam a articulação intertextual entre diferentes versões de uma história, criando uma única narrativa. Para isso, lançam mão de recursos prosódicos e corporais, unindo a ação performática à enunciação narrativa. Desse modo, as crianças assumem a autoria de suas narrativas, criando suas próprias versões para as histórias, em um processo de articulação entre emoção, memória e imaginação no contato com a obra literária.

Método

Este estudo2 constitui um desdobramento de uma pesquisa mais ampla, em que a construção dos dados ocorreu durante a pandemia da Covid-19, com o distanciamento social em vigor. Diante da dificuldade para a entrada em campo pelos pesquisadores da infância, elaboramos estratégias que tornassem possível a investigação qualitativa com crianças nesse período. Decidimos realizar encontros virtuais com crianças, em um formato que permitisse conservar os fundamentos teórico-metodológicos da Teoria Histórico-Cultural. Como método de investigação, optamos pelo estudo de caso, por possibilitar estudar profundamente um processo à medida que ele se revela (Creswell, 2010), a fim de observarmos os processos imaginativos das crianças, ao invés de nos determos ao produto da criação.

Contribuíram com a pesquisa quatro crianças, com idades entre 5 e 7 anos, sendo 2 meninas e 2 meninos, escolhidos aleatoriamente3. Neste estudo, decidimos discutir o caso de Carol (5 anos), com ênfase nas estratégias de reprodução e criação mobilizadas por ela em seu (re)conto: “A Chapeuzinho Azul e seu amigo Lobo”. Carol, uma criança de classe média, estava matriculada no Grupo 5 da Educação Infantil de uma escola particular em Salvador-BA. De acordo com sua cuidadora principal, Carol possui o hábito de contar histórias ouvidas anteriormente ou criadas por ela, geralmente baseadas em seu cotidiano. A criança possui livros de histórias ilustrados e demonstra interesse por eles; embora ainda não consiga ler sistematicamente, conta com a colaboração dos adultos de seu convívio. Segundo sua cuidadora principal, o ambiente escolar incentiva a contação de histórias.

O procedimento utilizado na construção dos dados discutidos, neste estudo, trata-se de uma oficina de conto e (re)conto da história “Chapeuzinho Vermelho”4, realizada em 1 encontro virtual na plataforma Zoom, com duração de 26 minutos, utilizando notebooks conectados à internet. Para a análise dos dados, implementamos a análise microgenética, que visa a uma análise detalhada de episódios interativos, com foco no funcionamento dos sujeitos e de suas relações intersubjetivas em determinado contexto (Góes, 2000). Esse procedimento permitiu observar os processos imaginativos e criadores da criança em uma situação artificial, mas comum da educação estética de pré-escolares. A análise resultou na construção de dois núcleos, que foram discutidos de forma articulada ao longo do episódio: estratégias de reprodução e estratégias de criação no (re)conto de uma história.

Resultados e discussão

A seguir, apresentaremos o (re)conto da história da “Chapeuzinho Vermelho”, realizado por Carol, e que foi denominado no âmbito deste estudo como “A Chapeuzinho Azul e seu amigo Lobo”. Inicialmente, a pesquisadora leu a história para a criança, apresentando as páginas do livro por meio do recurso “Share Screen”. Durante o (re)conto da criança, as páginas do livro foram novamente apresentadas. Ao iniciar o compartilhamento da tela, Carol reconheceu a história e forneceu um pequeno resumo: “A mãe pede pra ela pegar a sacola pra levar comida pra Vovó e aí ela encontra o lobo mau e aí o lobo mau pega a vovó e se finge que é a vovó. Aí ela foge e começa a ir atrás dela.” Após, a pesquisadora deu início à leitura. Ao final, quando solicitado que a criança realizasse o (re)conto, Carol questionou: “eu tenho o direito de mudar a história?”

Antes de adentrar no episódio, é necessário refletirmos acerca da pergunta de Carol. Quando a criança se deparou com uma história popularmente conhecida no universo infantil, ela forneceu um resumo que reunia seus acontecimentos principais. Mas quando a pesquisadora solicitou que Carol recontasse a história, surgiu o questionamento: “eu tenho direito de mudar a história?” Essa frase é permeada de significados quando pensamos nas relações hierarquizadas que os adultos desenvolvem com as crianças, e que se estendem para os ambientes educacionais institucionalizados em nossa sociedade.

A contação de histórias é uma prática comum na pré-escola, sendo utilizada, geralmente, como um recurso pedagógico (Pillotto et al., 2021), em que se observa a repetição da obra, suprimindo, em muitos momentos, a atuação criadora da criança. Dessa maneira, Carol sentiu a necessidade de solicitar a autorização da pesquisadora para alterar a história. A criança busca a liberdade para criar ao contá-la do seu jeito, pois “a liberdade criativa e a imaginação configuram-se como fatores constituintes da criança como sujeito da enunciação, enquanto narrador de suas próprias histórias, sejam elas verdadeiras ou inventadas” (Vieira; Madeira-Coelho, 2022, p. 1.053).

A ausência de liberdade para a produção criadora na educação estética de crianças foi discutida anteriormente por Silva (2012). A autora identificou que o trabalho pedagógico na produção gráfica de crianças possui uma tendência normativa, que se expressa em solicitações para que os seus desenhos sejam uma cópia objetiva da realidade concreta. A autora ainda ressalta que tal padronização limita a produção criadora das crianças e restringe sua expressão autoral acerca dos modos como pensam e sentem a realidade. De modo semelhante, Vieira e Madeira-Coelho (2022) afirmam que a produção narrativa das crianças também possui pouco espaço em ambientes institucionais. Portanto, ao mesmo tempo em que o trabalho pedagógico pode favorecer experiências imaginativas e criadoras, encontra-se a expectativa de submissão da produção infantil ao controle docente (Silva, 2012).

Assim, o questionamento de Carol nos provoca: respeitamos o direito à autoria das crianças pré-escolares? O (re)conto de uma história pela criança pré-escolar significa a sua repetição? Com base nessas inquietações, refletimos acerca da díade reprodução-criação no (re)conto de Carol. Em sua fala, a criança demonstra que distingue entre o que seria a versão mais próxima da história original, como ela a conhece, e a sua própria versão, a partir da forma como a interpreta. Ou seja, o que seria a repetição da história de acordo com a expectativa adulta e o que consistiria em uma produção autoral – que, por sua vez, realiza modificações no enredo já conhecido, inserindo novos elementos e dando origem a uma história mais próxima de sua visão singular e original.

A Chapeuzinho Azul e seu amigo Lobo: O (re)contar como um processo de produção criadora da criança

Era uma vez a Chapeuzinho Azul. Um dia, a mãe dela mandou ela ir lá com a cesta, mandou ela ir lá pra casa da vovó. Ai a mãe dela foi entregou, aí ela pediu de entregar comida lá pra vovó. Aí quando ela tava indo, ela conheceu o seu amigo lobo. Aí o lobo mandou ela escolher algumas flores pra dar pra vovó dela. Aí ela depois de terminar, o lobo foi correr pra fazer uma pegadinha com ela, se vestir de vovó, fazer as coisas. Ele falou pra vovó se esconder em algum lugar. Quando chegou lá, ela notou que parecia a cara do lobo, do amigo dela. Ela perguntou, ela falou. Aí ele deu um susto nela falando que era pegadinha. Aí o caçador viu essas coisas, o grito da Chapeuzinho e foi logo lá. Só que achou, o lobo explicou pra ele que era só trollagem, que era pra fazer com ela. Aí eles comeram, comeram o que a Chapeuzinho trouxe

(Carol).

Carol inicia a sua história com uma expressão incorporada aos contos da literatura infantil e largamente utilizada na contação de histórias com crianças: “Era uma vez...” Essa expressão demarca que a história que a segue não está restrita a um tempo histórico ou localizada em uma região específica, mas trata de acontecimentos que ocorrem em outra dimensão da experiência. Para Vieira (2020), essa típica expressão do conto infantil, associado ao “viveram felizes para sempre” – utilizado como fechamento para as histórias – demarca a duração da narrativa, de modo que nada havia ocorrido antes dela e nada ocorrerá depois.

As histórias são consideradas como essenciais para o desenvolvimento da imaginação infantil, por deter o potencial de impulsionar constantemente a criação de imagens (Girardello, 2011). No contato com as histórias, o leitor ou o ouvinte é provocado a imaginar os elementos constituintes do enredo, tanto lugares quanto pessoas e objetos, que são provenientes de uma realidade distante (Vieira, 2020). Então, entendemos que ao mesmo tempo em que Carol lança mão de uma importante estratégia de reprodução na contação de histórias, ela demarca que sua narrativa provém de elaborações fantásticas, onde a criança encontra a liberdade para a criação, sem necessidade de deter-se à sua realidade concreta.

A criança segue: “Era uma vez a Chapeuzinho Azul.” Nessa frase introdutória, Carol modifica o símbolo principal da história, demarcando que a sua narrativa trata de uma história nova, diferente. Esse elemento possui grande relevância quando discutimos a díade reprodução-criação nas estratégias de (re)conto implementadas pela criança. Para esse propósito, precisamos relembrar que o conto da “Chapeuzinho Vermelho” possui esse título em decorrência do uso de uma capa vermelha pela personagem principal. Nesse sentido, quando Carol atribui o nome de Chapeuzinho Azul à sua personagem, modificando o símbolo central da história, a criança se compromete consigo e com o seu ouvinte a contar outra história, pois com a modificação simbólica, ocorre também a modificação do sentido.

De acordo com Luria (1986), o significado é um sistema de generalizações relativamente estável. Todavia, ele possui sentidos, que são construídos a partir das vivências afetivas que se desenvolvem em um contexto. Assim, além de uma dimensão social, a significação da experiência pressupõe a leitura individual do sujeito sobre a realidade, que lhe atribui um sentido particular. Em se tratando de criança, Silva (2012) considera que existe uma tensão entre o todo e o particular nas elaborações autorais da criança, em que ocorre uma espécie de ruptura entre significado e sentido. Isto posto, observamos nessa ação de Carol uma estratégia de criação que modifica o símbolo central da história, demarcando a elaboração de um novo sentido, antecipando que nos apresentará outro enredo.

Durante o processo de criação da história da “Chapeuzinho Azul”, Carol utiliza as ilustrações do livro infantil como recurso de apoio para a sua composição autoral. As imagens lhe auxiliam na criação de outros desdobramentos para a história, resultando na modificação do enredo. Chamamos atenção para o fato de a criança ter sido exposta ao conto da “Chapeuzinho Vermelho” anteriormente e ter demonstrado possuir conhecimento prévio sobre ele, ou seja, os significados das imagens lhes eram familiares. Desse modo, durante o (re)conto, Carol atribuiu novos sentidos aos acontecimentos representados pelas imagens e, com isso, compôs novos modos narrativos. Esse elemento também foi discutido por Vieira (2018), ao afirmar que as crianças fazem uso das ilustrações dos livros como base para a sua produção narrativa, ao mesmo tempo em que os processos imaginativos não são limitados por elas.

Ao analisarmos a sequência dos acontecimentos na história da “Chapeuzinho Azul”, notamos que todos eles estão representados nas ilustrações, e compõem o conto original. Esses acontecimentos são responsáveis por iniciar e finalizar o enredo, e permitem a construção transitiva da narrativa: a) pedido da mãe para que Chapeuzinho vá até a casa da vovó; b) encontro com o lobo; c) colheita das flores; d) disfarce do lobo com as roupas da vovó; e) esconderijo da vovó; f) intervenção do caçador; e) finalização com a resolutividade da situação. Portanto, Carol reproduz a estrutura e sequência do enredo da história original e conserva todos os seus personagens. No entanto, a criança altera o sentido dos acontecimentos da história – com base nas ilustrações – ao mesmo tempo em que modifica a representação do personagem do lobo.

Tradicionalmente, o lobo é retratado na literatura infantil como um personagem que representa a maldade e o perigo. A atribuição dessas características faz com que esse personagem assuma o papel de anti-herói, promovendo a tradicional luta do bem contra o mal presente nos contos infantis. Nesse contexto, Maheirie et al. (2015) destacam a presença da dicotomização bom versus mau nas histórias-enredo criadas pelas crianças. A construção dessa concepção dualista é favorecida pelo contato das crianças com os contos de fadas, em que se observa essa dicotomização nos personagens, que entram em conflito, resultando na vitória do bem sobre o mal.

Todavia, na história da “Chapeuzinho Azul”, Carol transgride o sentido atrelado ao lobo, e o torna amigo da personagem, que decide fazer uma “pegadinha” com a criança. Essa modificação no personagem do lobo altera todo o enredo da história, que deixa de contar com um anti-herói, não se fazendo possíveis os confrontos sinalizados anteriormente. Diante disso, Carol precisa encontrar uma saída criativa que resolva o impasse e dê continuidade à história. Então, a criança mantém a ação realizada pelo lobo, mas a atribui um novo sentido: o lobo prega uma pegadinha em sua amiga. Compreendemos que a partir dessa ruptura e subversão realizada na história da “Chapeuzinho Vermelho”, são criadas possibilidades para que o mesmo também ocorra com outros contos tradicionais da literatura infantil.

Dando seguimento, quando o caçador percebe a movimentação na casa da vovó, os personagens lhe explicam que essa não é uma situação ameaçadora – que necessite de sua intervenção –, e que se trata apenas de uma “trollagem”5, o que faz o lobo não ser preso. Aqui observamos outra diferença estrutural entre as histórias da “Chapeuzinho Vermelho” e da “Chapeuzinho Azul”. Enquanto na primeira, a personagem criança, do gênero feminino, precisa da intervenção e do resgate de um personagem adulto masculino, na história (re)contada por Carol tal ação é desnecessária, e a presença do caçador já não tem interferência sobre o desenvolvimento dos acontecimentos.

Apesar do caráter ficcional das obras literárias, a sua composição retrata, em muitos aspectos, o tempo histórico e o contexto social (Oliveira; Girotto, 2023). No conto da “Chapeuzinho Vermelho”, a criança é caracterizada como obediente e submissa aos adultos, com uma postura inocente e ingênua, o que retrata as relações hierarquizadas que se estabeleceram entre adultos e crianças, embasadas na ideia da negatividade sobre a infância e da competência adulta (Sarmento, 2008). Além do mais, ao longo dos séculos, a literatura infantil representou homens e mulheres de maneira desigual, conferindo ao homem o papel heroico de protetor, e restando à mulher o papel de vítima que deverá ser resgatada. Em vista disso, podemos dizer que:

Essa narrativa [...] contribuiu para a constituição de muitas meninas que, ao ouvirem ou lerem a história6, compreendiam a importância de obedecer aos mais velhos e internalizavam a ideia da necessidade de uma figura masculina para protegê-las do mal

(Oliveira; Girotto, 2023, p. 441).

Todavia, podemos observar, ao longo dos anos, uma mudança nas representações de meninas e mulheres em histórias da literatura infantil e nas produções audiovisuais voltadas para esse público. Como elementos da produção cultural, as modificações presentes nessas obras se relacionam com as transformações e evoluções ocorridas na sociedade, que garantiram direito, espaço, voz e agência para mulheres e crianças. Desse modo, ao nos depararmos com a história da “Chapeuzinho Azul”, devemos considerar as dinâmicas interacionais que Carol estabelece, tanto em suas relações sociais quanto com as produções culturais da época, inclusive no emprego da linguagem virtual “trollagem”. Para Vigotski (2018), todo inventor é um fruto do seu tempo e do seu meio, na medida em que a criação provém de um processo coletivo de construção e herança histórica.

Por fim, chamamos a atenção para a substituição da palavra “lenhador” por “caçador”, realizada por Carol. Entendemos que essa substituição não é aleatória, mas guiada pela função que o personagem desempenha no conto original. Na história, esse personagem não aparece derrubando árvores, procurando lenha, vendendo madeira ou realizando qualquer outra função relacionada ao papel social de lenhador, mas torna-se responsável pelo salvamento da Chapeuzinho e da vovó, caçando e prendendo o lobo. Nesse sentido, a criança opta por utilizar o termo “caçador”, após realizar uma associação entre o significado da palavra e a ação desempenhada pelo personagem na história. Aqui, Carol se atém ao significado social generalizado, que é atribuído pela criança ao personagem a partir de sua ação no desenvolvimento do enredo.

Na elaboração do desfecho da história, a criança retoma o final do conto da “Chapeuzinho Vermelho”, em que os personagens se reúnem para comer os alimentos que a menina havia levado para a sua avó, enquanto o lobo é preso. Todavia, na história da “Chapeuzinho Azul”, todos os personagens participam do momento final, incluindo o lobo, culminando em um desfecho, no qual todos pudessem viver felizes para sempre.

Considerações finais

A criança participante utilizou estratégias no (re)conto da história em torno da manutenção de sua estrutura, conservando os personagens e a sequência dos acontecimentos provenientes do enredo original. Para tanto, as ilustrações do livro serviram como referência para o encadeamento do enredo. Ao mesmo tempo, à medida em que a criança (re)contava a história, eram realizadas alterações cruciais no enredo, que tornaram a história em outra. A criança modificou o símbolo central da história, alterou o sentido dos acontecimentos do enredo, transformando o papel desempenhado pelo anti-herói e a dinâmica relacional entre os personagens. Com isso, constatamos que em vez de reproduzir a história, a criança a recriou.

Em seu processo de produção autoral, a criança rompeu com a estrutura tradicional dos contos de fadas, elaborando um enredo mais representativo de sua visão original e singular sobre si, sobre o outro e sobre o mundo. Destacamos que toda produção individual é também uma produção coletiva, na medida em que as ideias de uma época fundamentam o processo de criação do indivíduo. Esse aspecto se apresenta na história (re)contada por Carol, na medida em que sua composição autoral se aproxima das produções contemporâneas, tanto literárias quanto audiovisuais, que compreendem a criança e a mulher diferentes do modo que eram retratadas nos contos tradicionais.

Por fim, concluímos que, em um contexto no qual as crianças conheçam, apreciem esteticamente e se apropriem de histórias e narrativas, as estratégias de reprodução e criação se entrelaçam de modo a tornar inviável sua distinção. Nesse sentido, a inter-relação entre memória e imaginação torna o (re)conto de histórias uma atividade promotora dos processos criadores da criança pré-escolar. Frente a isso, destaca-se a importância de que as pessoas adultas com quem a criança convive permitam-lhe o movimento criador, notadamente na Educação Infantil. Ao exceder os limites impostos pela reprodução, abre-se a possibilidade para a expressão e produção autoral da criança na realização de seus processos imaginativos. Afinal, “quem (re)conta um conto...”.

Agradecimentos

Agradecemos à Carol por sua colaboração na construção dos dados analisados neste artigo, e à sua família, que autorizou e favoreceu a sua participação, em meio à pandemia da Covid-19.

Notas

  • 1
    Denominamos como criança pré-escolar o indivíduo com idade entre 3 e 6 anos.
  • 2
    A pesquisa através da qual este estudo se desenvolveu foi realizada com bolsa de Mestrado concedida à primeira autora pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.
  • 3
    Foram adotados todos os procedimentos éticos na pesquisa com criança, com submissão e aprovação pelo Comitê de Ética da Universidade Federal da Bahia, parecer n.º 4.255.269. Ressaltamos que o nome utilizado para referir a criança participante é fictício.
  • 4
    A escolha da história de “Chapeuzinho Vermelho” ocorreu em decorrência de sua popularidade no universo infantil, com probabilidade de ser uma história conhecida pela participante da pesquisa. A versão utilizada neste estudo foi proveniente da coleção “Joinha Musical”, adaptada por Maria Mazzetti (1972).
  • 5
    A palavra troll começou a ser utilizada na década de 80 para designar alguém que realizava interrupções em comunidades online. Com a inserção cada vez maior e mais intensa de pessoas em espaços virtuais, a “trollagem” passou a confundir-se com o cyberbullying.
  • 6
    As autoras se referem à “Chapeuzinho Vermelho”.

Disponibilidade de dados de pesquisa

Dados estão disponíveis em https://repositorio.ufba.br/handle/ri/33802

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2024
  • Aceito
    03 Set 2024
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