Open-access Contribuições do legado freireano para o currículo da Educação Física1

Freire´s legacy of contributions to the Physical Education curriculum

Contribuiciones del legado de Paulo Freire para el curriculum de la Educación Física

Resumos

O presente artigo incita o debate em torno do campo curricular da Educação Física a partir de algumas das categorias centrais da obra de Paulo Freire, quais sejam: educação problematizadora, diálogo, conscientização, invasão cultural, rigorosidade metódica e cultura popular. Para tanto, extrai dos seus escritos elementos que possam inspirar uma reflexão sobre a organização da tarefa educacional, articulando-os a estratégias para a construção de uma prática político-pedagógica engajada nos pressupostos críticos. Procurando situar o legado freireano no emaranhado das relações que envolvem a cultura corporal, defende uma pedagogia culturalmente orientada que se caracteriza pelo respeito e valorização dos saberes e experiências dos estudantes, direcionando seus esforços na desconstrução das narrativas dominantes que justificam qualquer forma de discriminação social.

Paulo Freire; currículo; Educação Física; cultura


This article aims to encourage the debate around the field of Physical Education curriculum, from some of the central categories of Paulo Freire's work. These are: problem-based education, dialogue, awareness, cultural invasion, methodical rigor and popular culture. To this end, elements from the author's writings were extracted, which can inspire a reflection on the organization of the educational task, linking them to strategies for building a political-pedagogical practice engaged in the critical assumptions. Looking forward to placing Freire's legacy in the tangle of relationships involving physical culture, it supports a culturally oriented pedagogy which is characterized by respect and appreciation of knowledge and experiences of students, directing their efforts to deconstruct the dominant narratives that justify any form of social discrimination.

Paulo Freire; Curriculum; Physical Education; Culture


En este artículo se fomenta el debate en torno al campo del curriculum de educación física, de algunas de las categorías centrales de la obra de Paulo Freire, son ellas: educación problematizada, el diálogo, la conciencia, la invasión cultural, rigor metodológico y la cultura popular. Para tal fin, retiramos de sus escritos los elementos que pueden inspirar una reflexión sobre la organización de la tarea educativa y su vinculación a las estrategias para la construcción de una práctica político-pedagógica dedicada a los supuestos críticos. Buscando situar el legado de Freire en las relaciones que implican la cultura física, caracterizado por el respeto y la valoración de conocimientos y experiencias de los estudiantes, orientando sus esfuerzos para deconstruir las narrativas dominantes que justifican cualquier forma de discriminación social.

Paulo Freire; curriculum; Educación Física; cultura


INTRODUÇÃO

No campo do currículo,2 o pensamento do educador brasileiro Paulo Freire apresenta inúmeras contribuições para a discussão de propostas nas diferentes áreas de conhecimento. Referência da pedagogia libertadora na América Latina, seu trabalho segue inspirando educadores a assumirem uma postura mais ativa e crítica frente às injustiças provocadas pelo sistema capitalista, cada vez mais cruel e impiedoso, que nas suas palavras, desumaniza os homens e mulheres.

Reconhecendo a importância do trabalho de Freire, o presente artigo identifica e explicita elementos de sua obra que possam contribuir com a construção e desenvolvimento do currículo cultural da Educação Física, subsidiando educadores que pretendem contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e democrática.

A EDUCAÇÃO PROBLEMATIZADORA E A CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO FÍSICA

As décadas de 1960 e 1970 assistiram a eclosão de críticas à escola. As concepções tradicionais de currículos marcados pela racionalidade técnica e por uma suposta neutralidade foram denunciadas por Bourdieu e Passeron (1975), Althusser (1983), Baudelot e Establet (1980) e Bowles e Gintis (1980), influenciando as análises sobre os currículos em vigor. Seguindo esse rastro, o currículo da Educação Física3 transformou-se em alvo de questionamentos.

Medina (1983, p. 35) abordou a questão da seguinte maneira:

A Educação Física precisa entrar em crise urgentemente. Precisa questionar criticamente seus valores. Precisa ser capaz de justificar-se a si mesma. Precisa procurar sua identidade. É preciso que seus profissionais distingam o educativo do alienante, o fundamental do supérfluo de suas tarefas.

A dicotomia corpo-mente dominante no currículo ginástico e esportivo4 transformou-se no foco principal das críticas. Inspirando-se no pensamento freireano, Medina defendeu o processo de humanização e propôs a redefinição da área visando superar a preocupação exclusiva com o "físico" e os modismos do corpo condicionados pelos interesses da sociedade de consumo. O professor de Educação Física deveria adquirir uma consciência crítica de seu papel na sociedade.

A conscientização, conceito-chave da pedagogia freireana, implica fundamentalmente no desvelamento da realidade com o propósito de transformá-la. Consiste no "olhar mais crítico possível da realidade, que a 'dês-vela' para conhecê-la e para conhecer os mitos que enganam e que ajudam a manter a realidade da estrutura dominante" (FREIRE, 1980, p. 29).

À época dos escritos de Medina, diversas atribuições se sobrepunham ao papel da Educação Física no âmbito escolar: melhorar a performance motora dos alunos, formar a base da pirâmide esportiva, forjar a moral e o caráter da população, fornecer os instrumentos para o bom uso do tempo de lazer, cultivar hábitos de higiene e saúde, entre outros. A análise que Nunes e Rúbio (2008) fizeram dos currículos da área denuncia a confusão de identidades projetadas. Simultaneamente, os currículos propuseram a formação de cidadãos saudáveis, vencedores e competentes. Tal polissemia pode ser compreendida com base na reflexão de Freire, para quem, diante de um "universo de temas" em contradição dialética, os homens e mulheres tomam posições contraditórias: alguns trabalham na manutenção das estruturas, enquanto outros buscam a mudança.

A finalidade da Educação Física na Educação Básica é, ainda hoje, um terreno de disputas, no qual diferentes grupos defendem seus interesses, buscando argumentos em princípios alheios ao campo educacional (NEIRA, 2011). O confronto se estabelece já na formação inicial. A pesquisa desenvolvida por Nunes (2011) chama a atenção para a confusão instalada nos cursos que formam professores. Na maioria dos casos, o absoluto predomínio de disciplinas de cunho biológico contribui para desvirtuar a forma com que os futuros docentes elaboram suas representações acerca do ensino da Educação Física na escola.

Góis Junior e Lovisolo (2003) elucidam o fato ao defenderem a tese de que o movimento higienista5 iniciado no século XIX no Brasil prossegue com seus ideais heterogêneos até o fim do século XX. Considerando a submissão às leis do mercado, que requer indivíduos saudáveis, competentes e, de preferência, obedientes, é compreensível a propagação do estilo de vida fisicamente ativo, no qual a responsabilidade pelos cuidados com a saúde recai sobre o indivíduo. Consubstanciados no currículo da Educação Física, tais princípios, na verdade, concretizam uma biopolítica (FOUCAULT, 2008).

Para Freire (1980), a conscientização não pode existir fora da "práxis", sem o ato ação-reflexão. No âmbito da Educação Física, trata-se de um compromisso histórico baseado na formação de pessoas que saibam se defender das armadilhas ideológicas que cercam os discursos sobre as práticas corporais. A conscientização demanda a organização de atividades pedagógicas que proporcionem uma reflexão crítica sobre a realidade. As aulas, portanto, não podem restringir-se à execução mecânica de movimentos. A práxis da Educação Física exige a vivência das manifestações corporais, o debate e o estudo dos diferentes aspectos que as cercam e a proposição de novas vivências, sempre tematizadas e modificadas de acordo com as reflexões do grupo.

Freire (2005) compara o pensar ingênuo e o pensar crítico. Para o pensar ingênuo, o importante é a acomodação. Já o pensar crítico, incita a transformação permanente da realidade para a permanente humanização dos homens e mulheres. Ingenuidade é acreditar que a prática da atividade física, por si só, resultará na melhoria da qualidade de vida do povo. Organizar atividades que estimulem os alunos a pensar criticamente implica fornecer elementos para lutar por melhores condições de vida, além de contestar discursos falaciosos.

É, portanto, fundamental substituir a "educação bancária" pela "educação problematizadora". Na visão "bancária" da educação, o "saber" é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber, é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos. A "educação problematizadora" rompe com os esquemas verticais característicos da educação bancária, superando a contradição entre o educador e os educandos.

Freire é enfático: na "educação problematizadora", o docente toma o partido das classes desfavorecidas. Seu método de ensino é dialógico. Promove discussões com os alunos e, consequentemente, tem consciência de seu inacabamento. Evita a todo custo a reprodução dos interesses dominantes veiculados nos conteúdos comumente apresentados como legítimos e universais. Shor e Freire (1986) invocam os professores a resistirem às pretensões "apolíticas" embutidas nos currículos que levam ao acatamento passivo dos conteúdos ditos neutros ou imprescindíveis.

A concepção de diálogo, enquanto processo dialético-problematizador apresentado por Freire (2005), permite olhar o mundo e a nossa existência em sociedade como processo, algo em construção, como realidade inacabada e em constante transformação. O diálogo é a força que impulsiona o pensar crítico-problematizador em relação à condição humana no mundo. "Enquanto a concepção 'bancária' dá ênfase à permanência, a concepção problematizadora reforça a mudança" (p. 84). E não é possível desenvolver uma educação problematizadora fora do diálogo. "Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo se faz uma relação horizontal, em que a confiança de um polo no outro é consequência óbvia" (p. 94).

Muito embora, no âmbito da Educação Física, a problematização seja um dos traços característicos da denominada concepção de aulas abertas às experiências, defendida pelo Grupo de Trabalho Pedagógico UFPe-UFSM (1991), e tenha sido destacada no estudo de Hirai e Cardoso (2009), uma incorporação mais rigorosa das categorias freireanas pelo currículo implica na adoção da cultura corporal como objeto de estudo, o que implica em uma modificação epistemológica. Taborda de Oliveira (1998/1999) está entre os autores que destacam a importância de compreender as manifestações como construções históricas, sociais e culturais.

[...] a Educação Física tem um papel fundamental no quadro da organização da cultura, desde que se disponha a compreendê-la em toda a sua amplitude [...] o que proponho é que mantidos os conteúdos clássicos da Educação Física e contemplados os seus conteúdos emergentes, ambos expressão objetivada da consciência histórica, frutos da própria dinâmica da produção cultural, os programas escolares de Educação Física sejam desenvolvidos a partir da corporalidade do homem na sua dimensão mais ampla. (TABORDA DE OLIVEIRA, 1998/1999, p. 10).

Cultura, para Freire (1981), é a atividade que transforma. É trabalho produzido por diferentes movimentos e grupos que constituem o povo. É todo o resultado da práxis humana que produz acréscimos ao mundo natural. Em outras palavras, é a aquisição sistemática da experiência humana. Nas próprias palavras do educador, estamos diante de uma concepção antropológica do conceito.

Na segunda metade do século XX a noção de cultura sofreu uma reconceituação. Com o surgimento dos Estudos Culturais (EC)6 o aspecto universal propagado pela antropologia foi questionado e o termo cultura passou a ser compreendido como um território contestado e atravessado por relações de poder, ou seja, um campo de disputa pela definição dos significados (HALL, 1997). Por essa razão, Silva (2007) afirma que a teorização curricular incorporou elementos como formação social, poder, regulação, dominação, subordinação, resistência e luta.

Conceber as práticas corporais no plano da cultura é o que permitirá ao currículo da Educação Física inspirar-se no legado freireano. Seu antigo enfoque no saber-fazer, na busca da performance motora ou no praticar para melhorar a saúde, é deslocado para a análise das relações de poder que envolvem as brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas, bem como sua produção e invenção.

Nessa perspectiva curricular denominada "cultural", a experiência escolar é um campo aberto ao debate, ao entrecruzamento de culturas e à confluência da diversidade de manifestações corporais dos variados grupos sociais. O currículo cultural da Educação Física é uma arena de disseminação de sentidos, de polissemia, de produção de identidades voltadas para a análise, interpretação, questionamento e diálogo entre e a partir das culturas (NEIRA, 2011).

Afinal, se a escola for concebida como ambiente adequado para análise, discussão, vivência, ressignificação e ampliação dos saberes relativos às manifestações corporais, ela poderá almejar a formação de cidadãos capazes de desconstruir as relações de poder que historicamente impediram o diálogo entre os diferentes representantes das práticas corporais. O que se tem como pressuposto é que em uma educação democrática não existem brincadeiras, danças, lutas, esportes ou ginásticas melhores ou piores. Por essa razão, o currículo cultural da Educação Física tem condições de borrar as fronteiras e estabelecer relações entre as variadas manifestações da gestualidade sistematizada, de forma a viabilizar a análise e o compartilhamento de um amplo leque de sentidos e significados.

A DEFINIÇÃO DOS TEMAS DO CURRÍCULO

Os debates em torno da definição dos conhecimentos que devem compor o currículo da Educação Física, ou seja, o que ensinar, vive um momento de grande ebulição. Nesse embate, diferentes grupos divergem sobre os conteúdos que são legítimos e dignos de constituírem a formação dos sujeitos da educação. Decidir quais conteúdos ensinar, explica Gimeno Sacristán (2000, p. 150), implica em abordar, discutir e refletir a respeito de todas as determinações que recaem sobre a instituição educativa em geral e o currículo em específico, lembrando que existem diferenças entre intenções e "conteúdos reais implícitos nos resultados que os alunos obtêm".

Há quem detenha o poder de selecionar o que será ensinado (órgãos centrais do sistema educacional, agentes externos, especialistas da universidade ou professores, conforme o caso) e determine o que se espera que os alunos aprendam. Via de regra, os conteúdos de ensino são concebidos como conhecimentos retirados da cultura acadêmica e transpostos de modo didático para a assimilação dos estudantes. Numa perspectiva crítica, os conteúdos de ensino oriundos da cultura acadêmica comumente divulgam aspectos preconceituosos acerca das minorias silenciadas ou ausentes do currículo e contribuem para a manutenção da hegemonia dos grupos empoderados (APPLE, 1999).

Um currículo inspirado na teoria freireana não relaciona previamente os conteúdos. Organiza-se através de temas. No caso da Educação Física, Soares et al. (1992) recuperaram o conceito, passando a entendê-lo como a prática social de uma determinada manifestação corporal. Nascimento e Dantas (2009, p. 155) também buscaram apoio em Paulo Freire para definir o tema "como sendo uma situação social que envolve uma atividade da cultura corporal [...] significa a organização de uma realidade relacionada à cultura corporal", organização que permite ao aluno tomar parte/se apropriar dessa realidade.

Para a seleção dos temas que serão trabalhados nas aulas é preciso investigar a realidade concreta e as situações vividas pelos estudantes e pela comunidade local. A investigação do tema, se realizada por uma metodologia dialética, além de possibilitar sua apreensão, insere ou começa a inserir os homens e mulheres numa forma crítica de pensamento (FREIRE, 2005).

O olhar atento às culturas que orbitam no universo escolar é a característica mais marcante desse processo. O diálogo com os alunos possibilita ao professor identificar os temas significativos para o trabalho pedagógico. O docente também pode utilizar estratégias que possibilitem conhecer as práticas corporais que fazem parte do universo cultural dos estudantes e de seus familiares, observar quais espaços podem ser aproveitados para o desenvolvimento das aulas e os locais no bairro onde as práticas corporais acontecem.

Retomando os ensinamentos da Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 2005), é pertinente recordar que não se trata de permanecer na cultura dos alunos, mas sim reconhecer os saberes dela provenientes, favorecendo sua ampliação mediante o entrecruzamento com o repertório disponível em outras culturas. Através do diálogo é possível desocultar as "situações-limite" que atravessam os temas. Para Freire, essas "situações-limite" apresentam-se às pessoas como se fossem determinantes históricas, esmagadoras, em face das quais não lhes cabe alternativa senão adaptar-se.

A dialogicidade começa na investigação temática. Na ação dialógica, o educador pode identificar possíveis situações de opressão presentes nos diferentes discursos dos estudantes acerca das manifestações da cultura corporal (FRANÇOSO, 2011). Os discursos que ajudam a perpetuar as diferenças sociais precisam ser problematizados, desde que o professor leve em consideração as experiências que os estudantes carregam consigo. Para tanto, é necessário que os educadores saibam o que se passa no mundo dos educandos com que trabalham (FREIRE, 1993). Sob esse prisma, as representações que os alunos possuem acerca das práticas da cultura corporal, alimentadas pelos discursos produzidos pelos veículos de comunicação, constituem-se em alvo de debate e contestação.

É importante, porém, tomar o devido cuidado para aquilo que Paulo Freire denomina de "invasão cultural". Conforme advertiu Françoso (2011), se o professor desconsiderar as experiências prévias e as representações dos estudantes, e numa ação antidialógica tentar conquistá-los impondo sua visão de mundo, padecerá do mesmo mal da elite dominante.

Na abordagem de assuntos polêmicos como o conteúdo das letras do funk, o racismo no esporte ou os esteroides anabolizantes, por exemplo, o docente deve precaver-se ao emitir suas opiniões pessoais para não invadir a cultura experiencial dos estudantes. É por isso que a ação dialógica que caracteriza o currículo cultural não é autoritária. Ao professor cabe incentivar a participação e a criticidade. O autoritarismo provoca justamente o efeito contrário: incentiva a obediência e a passividade. Qual a atitude do professor autoritário quando um de seus alunos se recusa a participar das vivências corporais? E quando no jogo de futebol, dois alunos resolvem trocar xingamentos e agressões? O que o professor faz quando, em meio às vivências corporais, os meninos insistem em proibir a participação das meninas? Enquanto o professor autoritário impõe as regras, proibições e castigos, Freire recomenda que se utilize a autoridade para problematizar a situação, levando o grupo a discutir e refletir sobre a situação-limite que se apresenta. Uma educação progressista jamais, "em nome da ordem e da disciplina, poderá castrar a altivez do educando, sua capacidade de opor-se e impor-lhe um quietismo negador do seu ser" (FREIRE, 2000, p. 33).

Quando coloca em ação o currículo cultural, o professor reconhece que, muitas vezes, a origem do desinteresse e resistência dos alunos é o ensino e não a aprendizagem. Os problemas do cotidiano escolar devem ser discutidos democraticamente, constituindo-se em ponto de partida para a prática pedagógica. O educador culturalmente orientado não é autoritário, já que constrói sua autoridade perante os alunos com respeito, lutando sempre pela liberdade do estudante. Porém, liberdade não pode ser confundida com licenciosidade (FREIRE, 1996). O professor precisa impor limites para que a liberdade não se perverta em licença e a autoridade em autoritarismo.

A liberdade sem limite é tão negada quanto a liberdade asfixiada ou castrada. O grande problema que se coloca ao educador ou à educadora de opção democrática é como trabalhar no sentido de fazer possível que a necessidade do limite seja assumida eticamente pela liberdade. Quanto mais criticamente a liberdade assuma o limite necessário, tanto mais autoridade tem ela, eticamente falando, para continuar lutando em seu nome (FREIRE, 1996, p. 118).

Promover uma educação libertadora não significa transferir a responsabilidade das temáticas que serão abordadas nas aulas para os alunos. É o professor quem as define por meio do mapeamento (NEIRA, 2011). Ele é o profissional encarregado pelo ensino. Ser democrático nesse caso não significa realizar uma votação para saber se os alunos e alunas querem estudar a ginástica ou a dança, muito menos perguntar-lhes o que desejam fazer nas aulas.

Freire (1996) alerta que o diálogo deve vir sempre acompanhado pela humildade. Se levada a cabo, a investigação temática fará emergir um sem número de práticas corporais que o professor ignora, sendo difícil iniciar o trabalho. Isso não dá a autoridade de quem conhece, mas dá a alegria de, assumindo a ignorância, não mentir. E não ter mentido abre, perante os alunos, um crédito que se deve preservar. Nenhum professor de Educação Física detém todo o conhecimento a respeito das práticas corporais, mas ao adotar uma postura humilde de reconhecer sua limitação, estará ensinando aos estudantes que ele também pode aprender. Os educadores arrogantes, que perderam a humildade, acabam por afastar-se dos educandos.

A pedagogia freireana também nos ensina que os professores não podem se tornar reféns dos materiais didáticos ou guias curriculares disponibilizados por editoras ou sistemas de ensino. É preciso desconfiar de materiais vindos de "cima para baixo", que geralmente constituem-se em mecanismos de controle sobre a prática docente, sequestrando a autonomia dos educadores.

Na área da Educação Física é bastante comum a produção de obras contendo jogos, brincadeiras e outras recomendações. Como se a escola fosse uma fábrica, onde educar não passasse de uma atividade meramente técnica. O professor, enquanto autor de sua prática, portanto, responsável pela elaboração das atividades de ensino, não pode jamais aceitar passivamente os dispositivos que restringem e limitam sua autoria e poder de decisão no cotidiano escolar.

Outra categoria central da obra de Paulo Freire é a rigorosidade metódica. Não a confundamos com o cumprimento de todo o programa de estudos previsto para o ano letivo. Vista desse modo, a quantidade de informações que o aluno deve receber é valorizada e enaltecida pelos docentes. Quanto mais, melhor. Para os educadores que relacionam rigor com o alcance dessas metas, os melhores alunos são aqueles que aprendem mais rapidamente.

É comum, na área de Educação Física, ligar a rigorosidade à quantidade de práticas corporais trabalhadas no ano. Sob o manto do discurso de que as aulas devem ampliar o repertório motor dos estudantes, muitos professores tentam justificar sua competência profissional pelo número de modalidades esportivas, brincadeiras, danças, lutas ou ginásticas ensinadas. Contrariamente, a rigorosidade metódica significa ensinar a ler criticamente. Não importa a quantidade de manifestações vivenciadas, mas se as atividades realizadas permitiram uma compreensão crítica da sua ocorrência na sociedade.

Professores de Educação Física inspirados na pedagogia freireana substituem a crença do "quanto mais, melhor" pela necessidade do aprofundamento de conhecimentos, mesmo que um só tema seja trabalhado durante meses. Suponhamos que o professor culturalmente orientado, após o mapeamento do universo cultural corporal dos alunos, decida organizar atividades que permitam uma apropriação crítica de alguns dos conhecimentos relacionados à capoeira. É impossível ser rigoroso estabelecendo a priori a duração do trabalho. Enquanto o estudo das diferentes temáticas que envolvem a manifestação estiver contribuindo para uma maior compreensão da capoeira, não há motivo para o professor interromper o trabalho. Paulo Freire (1980) denominou esse processo de tematização.

Tematizar significa abordar algumas das infinitas possibilidades que podem emergir a partir das leituras e interpretações da prática social de uma dada manifestação. Tematizar implica em procurar o maior compromisso possível do objeto de estudo numa realidade de fato, social, cultural e política. O que se pretende com a tematização é uma compreensão profunda da realidade em foco e o desenvolvimento da capacidade crítica dos alunos enquanto sujeitos de conhecimento, desafiados pelo objeto a ser conhecido.

O currículo de Educação Física inspirado nas ideias de Paulo Freire reconhece a cultura popular como um terreno fértil para extração dos temas a serem estudados. Neira e Nunes (2011) adotaram o mesmo princípio quando apontaram as contribuições dos EC para o currículo do componente. Quando os saberes dos grupos oprimidos são validados pelo currículo e as manifestações da cultura corporal que lhes são próprias recebem o mesmo tratamento dos esportes, danças, lutas, ginásticas ou brincadeiras tradicionalmente privilegiadas, a escola valida diversas identidades culturais que coabitam a sociedade. Incluindo no currículo a análise sócio-histórica da gestualidade que caracteriza o skate, hip-hop, frevo, catira, bola de gude, pipa etc., os docentes reconhecerão "como as experiências produzidas nos vários domínios da vida cotidiana produzem, por sua vez, as diferentes vozes que os alunos empregam para dar sentido aos seus mundos e, consequentemente, à sua existência na sociedade em geral" (McLAREN, 1997, p. 249).

Quando tematizam uma manifestação da cultura corporal popular, os professores tomam as experiências e vozes dos estudantes como ponto de partida, legitimando no currículo, as práticas culturais que caracterizam suas identidades. Os produtos culturais próprios das culturas popular, midiática, infantil e juvenil são interpretados e reconhecidos como formas de conhecimento tão importantes como os derivados da classe dominante. Os estudantes são estimulados a combater os discursos hegemônicos, questionando o fato das produções culturais oriundas das classes populares permanecerem silenciadas ou distorcidas pelos diferentes veículos de comunicação.

Paulo Freire ensina a desafiar os discursos fatalistas alimentados pela ideologia dominante, que de forma enganosa e coercitiva, tentam mascarar as injustiças sociais, principalmente aquelas produzidas pela exploração capitalista. A esperança exerce um papel fundamental na obra do autor, que por acreditar no ser humano como sujeito histórico, durante sua vida, sempre incentivou a luta pela mudança da realidade concreta, por meio da práxis. Os educadores comprometidos com a transformação do mundo vislumbram o futuro como uma possibilidade concreta de mudança.

Tenho o direito de ter raiva, de manifestá-la, de tê-la como motivação para minha briga tal qual tenho o direito de amar, de expressar meu amor ao mundo, de tê-lo como motivação de minha briga porque, histórico, vivo a História como tempo de possibilidade não de determinação. Se a realidade fosse assim porque estivesse dito que assim teria de ser não haveria sequer porque ter raiva. Meu direito à raiva pressupõe que, na experiência histórica da qual participo, o amanhã não é algo "pré-dado", mas um desafio, um problema. A minha raiva, minha justa ira, se funda na minha revolta em face da negação do direito de "ser mais" inscrito na natureza dos seres humanos. Não posso, por isso, cruzar os braços fatalistamente diante da miséria, esvaziando, desta maneira, minha responsabilidade no discurso cínico e "morno", que fala da impossibilidade de mudar porque a realidade é mesmo assim. O discurso da acomodação ou de sua defesa, o discurso da exaltação do silêncio imposto de que resulta a imobilidade dos silenciados, o discurso do elogio da adaptação tomada como fado ou sina é um discurso negador da humanização de cuja responsabilidade não podemos nos eximir (FREIRE, 1996, p. 30).

Ao tematizar o esporte, o professor de Educação Física não pode ocultar os inúmeros casos de doping nas competições, os desvios de recursos públicos destinados à organização dos megaeventos, o superfaturamento de multinacionais que comercializam materiais esportivos, a exploração do trabalho infantil para confecção de bolas e chuteiras em países de Terceiro Mundo, o aumento exorbitante dos preços de ingressos em partidas de futebol, a máfia dos cambistas, a fixação de horários dos jogos atendendo a interesses das emissoras de televisão, os vários casos de falsificação de documentos que alteram a idade de atletas que enxergam na fraude o único meio de vencer no esporte, e tantos outros acontecimentos que rodeiam o mundo esportivo. A noção ingênua da utilização do esporte como instrumento de promoção de saúde ou a propagação do discurso da perseverança como meio para que as pessoas saiam da sua condição de desprivilegiada por meio da carreira esportiva, tampouco podem passar impunes pelos professores que buscam inspiração no pensamento freireano.

Cruzar os braços diante da realidade instaurada e acomodar-se num discurso mesquinho coberto de uma falsa neutralidade, apenas enfraquece a luta por uma educação comprometida com a formação de uma sociedade capaz de lidar com as diferenças sociais, étnicas, raciais etc. "A rebeldia enquanto denúncia precisa se alongar até uma posição mais radical e crítica, a revolucionária, fundamentalmente anunciadora" (FREIRE, 1996, p. 88). Todavia, permanecer somente na crítica de maneira passiva de nada adianta. É preciso que os docentes busquem reinventar cotidianamente sua ação didática a fim de promover práticas que ensinem os benefícios da justiça social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra de Paulo Freire evidencia a impossibilidade de separar pedagogia e política. Ensinar é antes de tudo um ato político. Enquanto sujeitos históricos, os professores carregam marcas de suas experiências de vida e exercem opções políticas. Mesmo aqueles que defendem uma suposta neutralidade da ação docente, ingenuamente adotam uma postura política.

Se não existe neutralidade na educação, a prática do professor de Educação Física exige uma definição. Uma tomada de posição. Exige-se dele a escolha entre isto e aquilo (FREIRE, 1996). As temáticas abordadas nas aulas, o modo de organizar as atividades de ensino, o tratamento que se dá à cultura dos estudantes, a omissão ou a problematização de situações que envolvem preconceitos de qualquer ordem, a formação das filas, a permissão ou proibição do direito das crianças irem ao banheiro ou beber água, as formas de avaliação utilizadas, a utilização ou não de recursos didáticos, enfim, tudo é currículo.

E currículo não é um corpo neutro, desinteressado. Currículo é poder. Currículo é seleção e definição de um projeto de homem e mulher, de um projeto de sociedade (SILVA, 2007). Cabe ao coletivo docente, na condição de responsável pela formação de pessoas, a escolha do que ensinar e como ensinar. Ao optar por essa ou aquela temática, está definindo o que é importante e o que não é, como se deve e como não se deve ser. Nesse recorte de cultura, o professor, sujeito político, portanto isento de neutralidade, pode optar em reproduzir a ideologia dominante ou desmascará-la. A não opção está fora de questão.

Não posso ser professor a favor de quem quer que seja e a favor de não importa o quê. Não posso ser professor a favor simplesmente do Homem ou da Humanidade, frase de uma vaguidade demasiado contrastante com a concretude da prática educativa (FREIRE, 1996, p. 115).

Um currículo de Educação Física inspirado pelas ideias freireanas não pode seguir privilegiando os produtos culturais euroamericanos. Não pode continuar oferecendo aos estudantes uma visão parcial da realidade, geralmente aquela divulgada pelos grupos hegemônicos e consagrada pela ciência positivista. Os objetivos pretendidos por esse currículo não podem reduzir-se ao ensino de técnicas e padrões de movimentos descontextualizados dos problemas que atingem a sociedade.

Na perspectiva aqui defendida, todas as manifestações da cultura corporal devem ser tratadas com a mesma dignidade, tanto as provenientes dos grupos dominantes, como dos grupos explorados. É um currículo que coloca no mesmo patamar os saberes legitimados pela ciência e os saberes do senso comum. Que problematiza um único modo de enxergar as coisas. Que mantém os olhos abertos e ouvidos atentos aos discursos produzidos pelos diferentes meios de comunicação.

Ora, estamos ortodoxamente seguros e crentes do poder da atividade física na manutenção da saúde? Conformamo-nos passivamente com as teorias do desenvolvimento motor, com as fórmulas para medir os índices de massa corpórea ou com as receitas milagrosas de emagrecimento amplamente divulgadas? Aceitamos acriticamente os modos corretos de sentar, correr, nadar, jogar e alongar-se?

Inspirando-nos no posicionamento político e pedagógico de Paulo Freire, afirmamos nossa desesperança na construção de uma sociedade mais democrática e menos desigual por meio de currículos tradicionais e fechados, nos quais todos os grupos que frequentam a escola não se vejam representados. Seu legado nos ensina a defender uma noção curricular aberta ao diálogo cultural. Daí ser fundamental recusar qualquer conhecimento sem debate ou crítica.

Obviamente, para viabilizar tal concepção de currículo, é preciso ressignificar a formação docente. Os cursos de licenciatura e as propostas de formação continuada no âmbito da Educação Física devem criar um espaço especial de construção do conhecimento em que a reflexão acerca do contexto escolar seja a mola propulsora do trabalho (ABRAMOWICZ, 2001). Como destaca Freire (2001, p. 58), a gente se faz educador, a gente se forma, como educador, permanentemente, na prática e na reflexão sobre a prática. Refletindo sobre a prática, os docentes podem desvelar a teoria que está por detrás dela, para melhor compreendê-la e transformá-la.

Paulo Freire certamente ficaria feliz ao deparar-se com um currículo de Educação Física que, comprometido com a função social da escola, respeitasse e valorizasse os saberes e experiências dos estudantes, direcionando seus esforços na desconstrução das narrativas dominantes que justificam qualquer forma de discriminação social. Somente uma pedagogia culturalmente orientada poderá manter acesa a chama da esperança por um mundo melhor e mais justo, tão sonhado e almejado por esse Educador.

REFERÊNCIAS

  • ABRAMOWICZ M. A importância dos grupos de formação reflexiva docente no interior dos cursos universitários. In: CASTANHO S; CASTANHO M. E. (Orgs.). Temas e textos em Metodologia do Ensino Superior. 6. ed. Campinas: Papirus, 2001.
  • ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
  • APPLE, M. W. Poder, significado e identidade: ensaio de estudos educacionais críticos. Porto: Porto Editora, 1999.
  • BAUDELOT, C.; ESTABLET, R. Escuela capitalista. México: Siglo Veintiuno, 1980.
  • BOURDIEU, P.; PASSERON, J. A reprodução. Rio de Janeiro: Francisco Alvez, 1975.
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  • 1
    O presente trabalho contou com apoio do CNPq.
  • 2
    A concepção de currículo adotada neste estudo é influenciada pelo trabalho de Freire (1993), para quem o currículo é a política, a teoria e a prática do que fazer na educação, no espaço escolar e nas ações que acontecem fora desse espaço.
  • 3
    No campo da Educação Física, tem sido frequente o uso de "tendências pedagógicas" (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1988; CASTELLANI FILHO, 1988; BRACHT, 1999) ou "abordagens" (DARIDO, 2003; CAMPOS, 2011) para definir os diferentes arranjos de situações de ensino, partindo-se do pressuposto de que a ação educativa exercida por professores agrega, implícita ou explicitamente, de forma articulada ou não, um referencial teórico que compreende conceitos de homem, mundo, sociedade, cultura, conhecimento, área etc. Sem desmerecer essas classificações, o presente artigo adota o termo "currículo" com base nos argumentos de Silva (2007), para quem, "todas as teorias pedagógicas e educacionais são também teorias do currículo" (p. 21).
  • 4
    Na elaboração deste artigo, adotou-se a teorização curricular da Educação Física proposta por Neira e Nunes (2009).
  • 5
    Vago (1999) recorda que os ideais que inspiraram a Educação Física escolar também suscitaram a criação da disciplina Hygiene como tentativa de aumentar as noções que levassem à promoção de um corpo saudável.
  • 6
    Nelson, Treichler e Grossberg (2008) explicam que os EC partilham o compromisso de examinar práticas culturais do ponto de vista de seu envolvimento com, e no interior de relações de poder. No campo da educação, Costa, Silveira e Sommer (2003) apontam como contribuições mais importantes dos EC aquelas que têm possibilitado a extensão das noções de educação, pedagogia e currículo para além dos muros da escola; a desnaturalização dos discursos de teorias e disciplinas instaladas no aparato escolar; a visibilidade de dispositivos disciplinares em ação na escola; e a ampliação e complexificação das discussões sobre identidade e diferença e sobre processos de subjetivação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2012
  • Aceito
    10 Nov 2013
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