RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo, analisar os movimentos pela regulamentação da profissão de Educação Física nos anos de 1940 e nos anos de 1980/1990. Debruçados no método materialista histórico dialético, buscamos demonstrar ao leitor as diferenças em ambos os movimentos e exprimir o processo histórico de cada uma das épocas, possibilitando-nos comprovar nossa hipótese de que o primeiro movimento buscava a regulamentação do trabalho, enquanto o segundo a regulamentação da profissão. Por fim, apesar da literatura utilizar-se da mesma categoria para ambos os movimentos, os processos históricos e as determinações, de cada período, nos ajudam a compreender suas diferenças.
Palavras-chave: Movimento; Regulamentação; Profissão; Processo histórico
ABSTRACT
The present work aims to analyze the movements for the regulation of the profession of Physical Education in the 1940s and in the 1980s/1990s. Focusing on the dialectical historical materialist method, we seek to demonstrate to the reader the differences in both movements and to express the historical process of each of the epochs, enabling us to prove our hypothesis that the first movement sought the regulation of work, while the second the regulation of the profession. Finally, although the literature uses the same category for both movements, the historical processes and determinations of each period help us to understand their differences.
Keywords: Movement; Regulation; Profession; Historical process
RESUMEN
El presente trabajo tiene como objetivo analizar los movimientos por la regulación de la profesión de la Educación Física en la década de 1940 y en las décadas de 1980/1990. Centrándonos en el método materialista histórico dialéctico, buscamos demostrar al lector las diferencias de ambos movimientos y expresar el proceso histórico de cada una de las épocas, lo que nos permite probar nuestra hipótesis de que el primer movimiento buscaba la regulación del trabajo, mientras que el segundo la regulación de la profesión. Finalmente, aunque la literatura utiliza la misma categoría para ambos movimientos, los procesos y determinaciones históricas de cada período nos ayudan a entender sus diferencias.
Palabras clave: Movimiento; Regulación; Profesión; Proceso histórico
INTRODUÇÃO
Este artigo surge de uma inquietação levantada no trabalho de dissertação de mestrado. A bibliografia do sistema CONFEF/CREFs1 e alguns intelectuais orgânicos do capital se utilizam da mesma categoria, movimento pela regulamentação da profissão, para designar dois momentos históricos distintos da luta dos trabalhadores de Educação Física. Essa interpretação reducionista, ao nosso ver, não dá conta da realidade social em ambos os períodos e não analisa os acontecimentos históricos e as condições materiais a época.
Assim como em Marx (2011), enxergamos que as categorias mais simples, como o trabalho, podem pertencer a diferentes épocas do movimento histórico, mas seu desenvolvimento pode depender de uma determina forma de sociedade combinada. Portanto, para analisarmos uma categoria de um determinado momento histórico é preciso compreender a realidade concreta do período estudado.
Esse exemplo do trabalho mostra com clareza como as próprias categorias mais abstratas, apesar de sua validade para todas as épocas - justamente por causa de sua abstração -, na determinabilidade dessa própria abstração, são igualmente produto de relações históricas e têm sua plena validade só para essas relações e no interior delas (Marx, 2011, p. 58).
As relações históricas entre o primeiro movimento pela regulamentação da profissão de Educação Física em 1940 e o segundo movimento em 1980/1990, como veremos adiante, partem de abstrações, modelos de exploração capitalista, completamente diferentes - ainda que não houvesse um modelo de bem-estar social no Brasil, na década de 1940 observamos um Estado mais assistencialista em contraposição a adoção do Estado neoliberal nos anos de 1980/1990. Ademais, as condições materiais da sociedade e dos trabalhadores se diferem em ambas as épocas.
Dessa forma, Thompson (1981) nos ajuda a compreender que os fatos apesar de estarem inscritos como registro histórico, não implicam necessariamente como um fato revelador independente dos procedimentos teóricos. Os fatos por si só não explicam a realidade e não atingem a concretude do objeto, mas fazem parte de um processo histórico real que pode ser alcançado através de uma leitura crítica de uma determinada realidade social.
A análise epistemológica que parte da aparência dos fatos sem compreender criticamente o processo histórico, tende ao “[...] auto aprisionamento em categorias não examinadas” (Thompson, 1981, p. 46). Essas categorias não examinadas subsumem a prática histórica, impedindo o diálogo entre os conceitos e evidências que permitem a elaboração de novas hipóteses.
Isto posto, analisaremos o processo histórico do movimento pela regulamentação da profissão em Educação Física, em suas duas fases - 1940 e 1980/1990 -, as determinações que colaboraram com seu desenvolvimento e suas contradições. Ao longo do artigo, procuramos demonstrar ao leitor que existe um erro epistemológico ao denominar o primeiro momento de “movimento pela regulamentação da profissão”, o que será evidenciado pelas lentes marxianas.
Por fim, partindo da hipótese inicial - que o movimento de 1940 é pela regulamentação do trabalho e o movimento de 1980/1990 é pela regulamentação da profissão -, debruçados no método de Marx, para nos ajudar na análise crítica da totalidade social e as determinações que atravessam ambos os movimentos. Este trabalho se justifica pela necessidade de compreender o que foram esses dois movimentos dentro da Educação Física e a urgência de não os taxar como semelhantes, para não incorrer a um erro epistemológico.
REGULAMENTAÇÃO DO TRABALHO × DA PROFISSÃO
Iniciar a análise deste trabalho partindo do movimento pela regulamentação da profissão de Educação Física, seria representar a totalidade de modo caótico sem interpretar corretamente a concretude do objeto. Assim como em Marx (2011), concebemos o concreto como síntese de múltiplas determinações, unidade do diverso, que aparece no pensamento como resultado e não como ponto de partida. Dessa forma, observando as determinações mais precisas “[...] chegaria analiticamente a conceitos abstratos cada vez mais finos, até que tivesse chegado às determinações mais simples” (Marx, 2011, p. 54). Ao traçar o caminho de volta, apreende-se a concretude e suas múltiplas determinações.
O movimento pela regulamentação da profissão de Educação Física é uma representação caótica de um todo, que alguns pesquisadores tentaram interpretar sem atingir as suas mais simples determinações. Enquanto objeto de estudo deste trabalho, o movimento pela regulamentação representa uma determinada totalidade. Porém, ao analisarmos a Educação Física e sua relação com a sociedade capitalista, aquele se torna uma abstração de uma totalidade. Portanto ao mesmo tempo que nosso objeto é uma representação caótica de um todo ele também é uma abstração. A fim de captarmos a essência de nosso objeto, precisamos analisar a relação entre capital e trabalho, Educação Física e trabalho, capital e Educação Física, dialogando a todo momento com os processos históricos que nos ajudam apreender as relações sociais de uma determinada época.
Para Marx (2017) e Lukács (2013), o trabalho é uma condição da existência humana onde se cria valor de uso para reprodução da vida. O trabalho é inerente ao ser social que medeia a relação entre o ser humano e a natureza para satisfazer as necessidades humanas, revelando seu caráter ontológico (Lukács, 2013). Observa-se então que o trabalho enquanto categoria abstrata “[...] são igualmente produto de relações históricas e tem sua plena validade só para essas relações e no interior delas” (Marx, 2011, p.58). Assim, por ser ontológico e inerente as relações humanas, o trabalho perpassa por vários estágios da história, mas com traços diferentes que respeitam as relações sociais de determinadas sociedades.
Na sociedade capitalista, o trabalho é tomado como um fim e não como meio de existência do ser humano. Seu caráter ontológico mediador das relações entre o ser e a natureza é perdido ao separar o produto do sujeito que o produziu. Dessa forma, o produto do trabalho causa um estranhamento aos trabalhadores, transformando-o em uma atividade não livre que “[...] se relaciona com ela como atividade a serviço de, sob o domínio, a violência e o julgo de um outro homem” (Marx, 2010, p. 87). O trabalho estranhado produz as relações capitalistas que separa o trabalhador do produto de seu trabalho, transformando o ser humano em objeto e não sujeitos da ação.
O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder de extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadoria cria. Com a valorização do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens (Menschenwelt). O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral (Marx, 2010, p. 80).
Enquanto produto das relações capitalistas, o trabalho estranhado aliena os sujeitos que já não mais são donos de sua produção, obrigando-os a vender sua força de trabalho para reproduzir sua existência. Se no século XVIII houve a substituição dos homens pelas máquinas, a atual fase da produção capitalista ameaça o trabalho humano com a inteligência artificial. Os avanços tecnológicos são primordiais para a melhora das condições materiais de reprodução da vida, mas da forma que são usados pela classe dominante, esses avanços significam um retrocesso e/ou o fim da humanidade.
Aos poucos a produção do conhecimento começa a ser substituída pela inteligência artificial, como no caso do ChatGPT2, os trabalhadores manuais substituídos por máquinas, como as caixas de supermercados, as relações interpessoais sendo substituídas por realidades virtuais e no caso específico da Educação Física, os professores sendo substituídos por aplicativos que montam séries de exercício físico para seus usuários/assinantes.
Junto aos avanços tecnológicos, testemunhamos o retrocesso no campo do trabalho com retirada de direitos básicos dos trabalhadores - pela reforma trabalhista que flexibiliza a relação trabalhador e patrão e possibilita o aumento da jornada de trabalho -, com o aumento do desemprego e a precarização do trabalho - jogando inúmeros trabalhadores a informalidade. Esse conjunto de medidas fazem parte das políticas neoliberais adotadas, ainda na década de 1970/1980, pela ditadura empresarial-militar, que permanecem até os dias hoje, no regime presidencialista.
Na América Latina, o receituário neoliberal se materializou no Consenso de Washington, embora o neoliberalismo já se manifestasse notavelmente no Chile de Augusto Pinochet. A possibilidade de uma maior participação da economia mundial, o aumento do investimento privado das transnacionais e a garantia de um maior crescimento colaboraram na adoção do receituário neoliberal pelo Brasil resultando, consequentemente, na sua subordinação aos organismos supranacionais (Machado, 2022, p. 21).
Há de se ressaltar, que assim como em Silveira (2020), enxergamos uma continuidade, desde Fernando Collor, nas políticas macroeconômicas entre os diferentes mandatos, independente do partido no poder, diferenciando-se apenas na execução das políticas microeconômicas.
Não descurada da realidade social, a Educação Física também vem sofrendo intensos ataques das políticas neoliberais dos diferentes governos, sejam eles conservadores ou sociais-democratas. Contrarreformas como a do Ensino Médio - primeiro retirando a Educação Física do currículo depois a repondo com a possibilitando de ser lecionada por um professor de outra disciplina -, as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Física - dividindo o currículo em Licenciatura e Bacharelado, e amoldando a formação ao neoliberalismo, através da pedagogia das competências - e a regulamentação da profissão - criando os sistema CONFEF/CREFs - são algumas das políticas neoliberais direcionadas especialmente para adequar a Educação Física a nova fase de exploração do capital.
Apesar de não ser mais objeto de controle direto da população por parte do Estado, a Educação Física ainda é parte integrante da conformação dos sujeitos e seus corpos para a formação do trabalhador de novo tipo. Diferente das fases higienistas, eugenistas, militaristas e esportivistas, a nova fase da Educação Física - datada de meados dos anos de 1980 com o avanço das políticas neoliberais - inicia um processo de desvalorização no interior das instituições escolares, mas, em contrapartida, uma hipervalorização no campo do treinamento esportivo.
Essa desvalorização da Educação Física Escolar - também experimentada por disciplinas como filosofia, Sociologia, Artes, etc. -, faz parte do projeto dominante de formação fragmentada e precarizada dos sujeitos, voltada inteiramente para o mercado de trabalho explorado. Por isso, mesmo secundarizada nas escolas, a Educação Física integra o projeto político dominante. Ademais, distante do campo formal escolar, existe uma valorização por parte das academias e de grandes empresas nacionais e internacionais com a venda de produtos - treinos, esportes, roupas, calçados, suplementos, etc.
Na relação trabalho e Educação Física, encontramos dois tipos de mercado para a atuação do trabalhador: campo escolar; campo não-escolar. Essa separação no mundo do trabalho na Educação Física está imbricada intimamente com as políticas neoliberais, mais especificamente com as Diretrizes Curriculares Nacionais da área. São essas diretrizes que fragmentam o currículo de formação dos trabalhadores em licenciatura - campo escolar - e bacharelado - campo não escolar -, criando a distinção entre as áreas de atuação.
Esta fragmentação na formação em Educação Física nega aos sujeitos o acesso ao conhecimento erudito produzido historicamente em sua completude. Sem esse conhecimento, a formação omnilateral, ou seja, a formação do “homem total” (Marx e Engels, 2011), é impossibilitada de ser alcançada, formando trabalhadores alienados, acríticos e reprodutores das relações capitalistas.
É essa formação fragmentada, que abrirá, ainda na década de 1980, espaço para a introdução da categoria profissional de Educação Física. Anterior a este movimento, entre os intelectuais orgânicos - da classe trabalhadora e do capital - da área, havia um entendimento que o trabalhador era visto como professor, independente do campo de atuação. Posterior a ele, nota-se a adoção do termo profissional para os trabalhadores do campo não-escolar. Mas por que profissional e não professor?
Anterior a Resolução nº 03/87, que possibilita a criação do bacharelado, a formação em Educação Física era generalista e voltada para o grau em Licenciatura Plena. Os sujeitos saiam da graduação, reconhecidos pela sociedade civil e política, como professores, independente do espaço de atuação. Apesar de representar um projeto burguês de sociedade, esse tipo de formação possibilitava aos sujeitos compreender todo o processo de aprendizagem, ainda que o acesso ao conhecimento fosse limitado.
Porém, junto com as políticas neoliberais, em 1980 a Educação Física adentra em uma crise epistemológica profunda que estremece a relação entre trabalho e capital dentro da área. É nesse emaranhado político-epistemológico que surge, por parte de alguns intelectuais orgânicos do capital - na figura de Jorge Steinhilber e alguns congressistas -, uma corrente favorável a regulamentação da profissão de Educação Física, para adequar a área a nova fase de exploração capitalista e formar trabalhadores de novo tipo. Mas para tal, fazia-se importante modificar a nomenclatura desses trabalhadores.
Então, o eminente professor [Prof. Dr. Inezil Penna Marinho] propõe que seja modificado o nome designatório de nossa atividade profissional para “Cineantropólogo”; “Antropocinesiólogo”; Kinesiólogo” ou “Antropocineólogo”. A categoria foi consultada, e eles não concordaram com a mudança do termo. Culturalmente e tradicionalmente, a designação do profissional nas intervenções na área dos exercícios físicos e desportivos, é Professor de Educação Física. Identificado o impasse, surgiu a proposta de designarmos o interventor como “Profissional de Educação Física”. Designação aceita para vencer o impasse legal. Desta forma, passou-se a defender a regulamentação do Profissional de Educação Física. (Conselho Federal de Educação Física, 2023).
Dessa forma, a categoria profissional de Educação Física carrega consigo “[...] uma exploração exponencial para o campo do trabalho, seja sob a forma do aumento do desemprego estrutural, das precarizações das relações de trabalho e de mudanças no seu conteúdo” (Nozaki, 2004, p. 165). Nada mais do que uma adaptação da reestruturação produtiva do capital no interior da Educação Física.
Se por um lado “a regulamentação da profissão constitui uma estratégia moldada à gerência do capital, coadunante com a perspectiva neoliberal e ancorada a uma apreensão fenomênica da realidade, que tem o mercado como fulcro das ações humanas (Nozaki, 2004, p. 166), a defesa que fazemos é pela regulamentação do trabalho que “[...] consiste em uma estratégia de proteção à classe trabalhadora e acúmulo de força contra a compressão ou redução do salário abaixo do seu valor como causa contrariante à queda tendencial da taxa de lucro” (Nozaki, 2004, p. 166).
Assim sendo, a luta pela regulamentação da profissão de Educação Física trata-se da adequação da área a nova fase de exploração capitalista encabeçada por intelectuais orgânicos do capital, sociedade política e a classe dominante para a manutenção dos seus lucros e do privilégio na sociedade de classes. Já a luta pela regulamentação do trabalho, desenvolve-se no sentido da manutenção dos direitos trabalhistas - como férias e 13º salário -, na melhora das condições materiais da classe trabalhadora e numa formação ampliada dos sujeitos.
MOVIMENTO PELA REGULAMENTAÇÃO DA PROFISSÃO DE EDUCAÇÃO FÍSICA
A regulamentação da profissão - Lei nº 9696/98, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, no ano de 1998 - marca uma nova fase no mundo do trabalho na Educação Física. Pela primeira vez encontramos uma autarquia - sistema CONFEF/CREFs - regulando os diferentes campos de trabalho da área. Machado (2022), ao analisar esta instituição, aponta para o caráter classista, denominando-a de intelectual orgânico coletivo da burguesia e/ou aparelho hegemônico.
O sistema CONFEF/CREFs, na qualidade de um intelectual coletivo da burguesia e um aparelho hegemônico, envida seus esforços na construção do consenso em benefício da propagação da hegemonia dominante. Dessa forma, toda e qualquer ação, destes conselhos, caminha na direção de um projeto classista que defenda seus interesses (Machado, 2022, p. 79).
Para além da propagação de uma hegemonia dominante pela construção do consenso, o sistema CONFEF/CREFs utiliza-se do trânsito no Estado Integral (Gramsci, 2020) - sociedade civil e sociedade política - para angariar apoio e aprovar leis que atendam seus interesses, como no caso da própria Lei nº 9696/98. Por vezes, se aproveita da constituição, de forma errônea, para exercer o poder de polícia, coagindo e/ou constrangendo os trabalhadores da área - prendendo ou expulsando de suas aulas os professores que não possuem o registro no conselho. O trânsito entre o Estado Integral não apenas propiciou a regulamentação da profissão de Educação Física como garantiu a sua (re)regulamentação. Mas por que (re)regulamentação?
Segundo Machado (2022), devido a um vício de iniciativa no Projeto de Lei nº 330/95 - no qual deveria ser de iniciativa do poder executivo e não do legislativo, que depois viria ser transformado na Lei nº 9696/98 -, a Procuradoria Geral da República (PGR), no ano de 2005, entrou com uma a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), de nº 3428/2005, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), questionando os artigos 4º e 5º, que tratam da criação dos Conselhos Federal e Regionais de Educação Física.
A ADI de nº 3428/2005, por ameaçar a validade do sistema CONFEF/CREFs era vista como um absurdo no interior do conselho que diversas vezes se posicionou contrário. Mas apesar de protocolada junto ao STF no ano de 2005, só em abril de 2020 ela retornou a plenária da Suprema Corte sendo julgada procedente pelo relator Sr. Ministro Luiz Fux. Tendo em vista a derrota eminente no judiciário, o sistema CONFEF/CREFs inicia sua articulação junto ao legislativo e ao executivo para sanar o vício de iniciativa da Lei nº 9696/98 e manter o conselho ativo.
Havendo a possibilidade da aprovação da matéria no plenário do STF e com o prazo máximo de 2 anos para sanar o vício de iniciativa, o Sistema CONFEF/CREF passa a articular um acordo com o presidente da República e parlamentares para proteger a instituição. Dessa forma, poucos dias após a suspensão da plenária da ADI n° 3428, o Deputado Federal Evandro Roman - filiado ao CREF/PR - se encontra com o Presidente Jair Bolsonaro para tratar da ADI, a pedidos do CONFEF (Machado, 2022, p. 85).
É de se considerar como influência política do sistema CONFEF/CREFs se constituiu durante os anos, anterior a própria Lei nº 9696/98, levando a eleger representantes no poder legislativo e simpatizantes no executivo. Esta forte atuação no Estado Integral, permitiu a materialização do PL nº 2486/21, pelo então Presidente da República Jair Bolsonaro, que o encaminhou para a apreciação no Congresso Nacional. Aprovado em regime de urgência e com todas as propostas de emenda rejeitadas, foi encaminhada novamente ao executivo e sancionada em 27 de junho de 2022.
O PL nº 2486/21 em nada difere a Lei nº 9696/98, mas apenas elimina o vício de iniciativa e legaliza a regulamentação da profissão de Educação Física. Dessa maneira, nos apropriamos da categoria (re)regulamentação para deixar claro ao leitor que houve dois momentos de atuação dos aparelhos hegemônicos para manutenção da hegemonia dominante no interior da Educação Física.
Depois de superada a totalidade caótica, chegando as determinações mais simples e compreendendo o processo histórico da regulamentação da profissão, faremos o caminho de volta para debruçarmos em nossa hipótese e expor ao leitor os diferentes movimentos pela regulamentação da profissão de Educação Física nos anos de 1940 e 1980/1990. Como dito anteriormente, encontramos na literatura - principalmente de intelectuais orgânicos ligados a burguesia - a equivalência entre ambos os movimentos.
Assim como em Marx (2011), consideramos que para apreender o passado precisamos interpretar o presente, ou seja, para captar o que foi o movimento pela regulamentação da profissão no ano de 1940, carecemos da interpretação do movimento de 1980/1990, suas relações históricas e a estrutura em que se insere.
A regulamentação da profissão enquanto uma categoria moderna, está imbricada nas relações de produção capitalistas, sendo produto das relações históricas. Logo, constatamos que essa é uma categoria histórica onde sua “[...] definição não nos pode dar o acontecimento real” (Thompson, 1981, p. 67), se descurado do período histórico analisado. Assim sendo, afirmar que o movimento dos trabalhadores de Educação Física ocorrido em 1940 é semelhante ao de 1980/1990, por ambos se intitularem movimento pela regulamentação da profissão, é incorrer a um erro epistemológico gravíssimo.
Na década de 1940, enquanto o mundo enfrentava a expansão do fascismo na Segunda Guerra Mundial, o Brasil iniciava um processo de crescente industrialização e diversificação na produção agrícola devido a redução nas importações por conta do conflito bélico. Economicamente o país responde de maneira positiva as demandas do grande capital expandindo o seu parque industrial, mas no mundo do trabalho havia a necessidade de melhora nas condições materiais de reprodução da vida para conter os avanços do pensamento comunista.
Gramsci (2011), nos mostra que o consenso não se constrói sem a coerção e que dependendo das tensões de classe a tendência é sempre pesar para um dos lados da balança, ou seja, em momentos de paz o consenso torna-se a mais apropriada forma de controle, já em momentos de efervescência política a coerção tende a ser maior, mas sempre os dois coexistindo. Isso explica a coerção sofrida pelos trabalhadores comunistas, na era Vargas, ao mesmo tempo em que as políticas populistas permitiam a Consolidação das Leis Trabalhistas de 1943. Até então um avanço no mundo do trabalho e um retrocesso no pensamento crítico da classe trabalhadora.
Ao contrário do período histórico analisado anteriormente, os anos de 1980 e 1990 indicam uma transformação no mundo do trabalho e nas relações de produção capitalista. No cenário mundial, políticas neoliberais começavam a se estabelecer nos países de capitalismo central com a queda da União Soviética. No Brasil, a economia experienciava a retração do parque industrial nacional e uma forte crise inflacionária, que impactou diretamente a vida de milhões de brasileiros. As crescentes privatizações junto com a teoria utilitarista do capital humano, jogavam inúmeros trabalhadores a precariedade, responsabilizando-os por suas condições de subalternidade.
Já na particularidade da Educação Física, o que se apresenta na década de 1940, “[...] a recém-criada Escola de Educação Física - da antiga Universidade do Brasil - formava seus primeiros professores civis e, concomitantemente, nascia o Movimento de Estudantes de Educação Física (MEEF)” (Machado, 2022, p. 77). No Decreto-Lei nº 1212/39 - que cria a Escola Nacional de Educação Física -, a formação dos trabalhadores era obtida pela Licenciatura, conferindo o grau de professor independente do espaço de atuação.
Nos anos de 1980/1990, a Educação Física mergulhada em uma crise epistemológica e impregnada pelo receituário neoliberal, assiste o início da fragmentação do campo de trabalho e o amoldamento dos trabalhadores a formação de novo tipo. Para isso, o movimento encabeçado por Jorge Steinhilber - que depois viria ser presidente do sistema CONFEF/CREFs - pela regulamentação da profissão, optou por trocar a palavra professor por profissional. Dessa forma, o trabalhador formado em Educação Física era visto, fora do espaço formal da escola, como profissional.
Nascimento (2018), aponta para o início das discussões sobre a regulamentação da profissão de Educação Física na década de 1940. O autor salienta que essas discussões, em sua maioria, eram vinculadas as associações como a FBAPEF (Federação Brasileira das Associações de Professores de Educação Física). Debruçado em Boschi (1987), Nascimento (2018) enxerga as associações como autônomas em relação ao controle do Estado e que no caso da Educação Física as reinvindicações trabalhistas não estavam na ordem do dia, apenas ao debate curricular.
Ora, se para Nascimento (2018) a regulamentação da profissão começou a ser discutida em 1940 no interior das associações, como não existiam reinvindicações trabalhistas? Pela limitação na compreensão da totalidade de seu objeto, o autor não enxerga a profissão como uma questão trabalhista, mas puramente curricular. Para confirmar sua tese, Nascimento (2018) invoca a categoria professor para explicar o movimento das associações a partir de 1940, vejamos:
Como vimos acima, o movimento associativista na Educação Física no Brasil adota inicialmente a denominação de “associação de professores”. Isto revela da predominância, no movimento associativista, de professores de educação física no sistema educativo formal, nos seus diferentes graus de ensino: superior, médio e fundamental. No entanto, este associativismo congregava dentre seus filiados, membros dos cursos de graduação e profissionais inseridos nas mais diversas e recentes áreas de atuação, ligadas é certo pela dimensão pedagógica, mas não só em estabelecimentos de ensino fundamental e médio, mas também em outras áreas extra-escolares, tais como academias, clubes desportivos, etc (Nascimento, 2018, p. 116).
Algumas páginas depois, o autor cita Sartori (2005) para falsear a realidade e retomar a categoria profissional contrapondo-a com o professor, notemos:
Nas décadas de 1940 e 1950, segundo Sartori (2005), as APEFs priorizaram suas ações em torno de aperfeiçoamento profissional avançado, voltado tanto para seus associados como para todos professores e profissionais de Educação Física não associados (Nascimento, 2018, p. 120).
Ainda que os trabalhadores formados em Educação Física nas décadas de 1940 e 1950, atuassem fora dos espaços escolares ou universitários, estes sujeitos eram reconhecidos como professores, tendo sua formação restringida a Licenciatura. O próprio sistema CONFEF/CREFs reconhece em seu site a incoerência dessa fragmentação.
Hoje entende-se ter sido em virtude de na época os profissionais atuarem prioritariamente em unidades escolares, os cursos serem exclusivamente de licenciatura e os currículos voltados essencialmente à formação de profissionais para atuarem no ensino formal. Historicamente, a área era responsável por oferecer profissionais a um mercado pré-determinado: a escola. O fato da profissão de Professor não ser regulamentada, torna incoerente desmembrar a Educação Física (Conselho Federal de Educação Física, 2023).
Posto isso, retomamos para nossa hipótese inicial de que o movimento pela regulamentação na década de 1940, não pode ser explicado como uma luta limitada pela profissionalização e sim por melhores condições de trabalho, ocupação dos diversos espaços de atuação enquanto professor e pela conquista de direitos trabalhistas. Essas são condições dadas pelo momento histórico em que se inseria o movimento pela regulamentação da época. Mas isso impede que a categoria regulamentação da profissão de Educação Física tenha existido em 1940? Thompson, nos ajudará a responder esta questão:
Com o correr do tempo histórico o conteúdo real dessas categorias modificou-se tão profundamente que impôs ao historiador um extremo cuidado em seu emprego, tal como, no mesmo período, a “ciência” mudou de mágica para a alquimia, para ciência, para a tecnologia - e por vezes, ideologia (Thompson, 1981, p. 109).
Por essa razão, encaixar uma categoria do passado de forma estática no presente - como fazem os defensores da regulamentação da profissão de Educação Física - sem analisar as condições históricas do período e captar sua essência, no mínimo, invalida qualquer exame crítico da realidade e contribui para a propagação das concepções dominantes.
CONCLUSÃO
Na crítica ao programa de Gotha, Marx (2012) nos alerta para o uso de determinadas categorias que, se não explicadas, acabam por trazer noções vazias, ou errôneas. Dessa forma, nesse artigo, buscamos sublinhar a importância dos conteúdos históricos e sociais para empregar uma determinada categoria e apontar as diferenças entre os movimentos pela regulamentação da profissão de Educação Física nos anos de 1940 e nos anos de 1980/1990.
Ao analisarmos as relações entre capital e trabalho, Educação Física e trabalho, capital e Educação Física, lançamos mão de duas categorias: regulamentação da profissão e regulamentação do trabalho. Conseguimos, assim, identificar algumas determinações dos dois períodos históricos analisados: modo de produção; relações sociais do trabalho; a formação dos trabalhadores em Educação Física. No que diz respeito ao nosso objeto, a regulamentação da profissão de Educação Física, essas determinações foram cruciais para superar a aparência, atingir sua essência e demonstrar as diferenças entre os movimentos: o movimento de 1940 deu-se pela regulamentação do trabalho, encontrando-se se em consonância com a manutenção dos direitos trabalhistas e na melhora das condições materiais da classe trabalhadora; o movimento de 1980/1990 transformou-se em regulamentação da profissão, adequando-se ao receituário neoliberal de manutenção dos privilégios da classe dominante.
Conforme vimos, denominar esses dois movimentos de forma semelhante, como um movimento pela regulamentação da profissão, é incorrer a um erro epistemológico. Pois, a partir das leituras de Marx (2011) e Thompson (1981), percebemos que a definição de determinados conceitos não exprime a realidade do objeto em sua integralidade e que para isso faz-se necessário compreender suas abstrações, suas determinações e todo o processo histórico de um determinado momento.
Por fim, apesar do presente não favorecer a classe trabalhadora, no geral e a de Educação Física, em particular, é possível aprender com os erros do passado para construir um futuro melhor. Mas para isso, urge a necessidade de fortalecer os aparelhos hegemônicos da classe trabalhadora - partidos políticos, movimentos sociais, etc. - e impregná-los com a ciência do proletariado.
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1
Sistema que integra o Conselho Federal de Educação Física (CONFEF) e os Conselhos Regionais de Educação Física (CREFs).
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2
O ChatGPT é uma Inteligência Artificial com recursos para busca e produção textual que gera respostas imediatas semelhantes à de um ser humano.
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FINANCIAMENTO
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
18 Mar 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
17 Jul 2023 -
Aceito
22 Fev 2024