Open-access A POBREZA É COERCITIVA?1

Is Poverty Coercive?

RESUMO

O objetivo deste artigo é argumentar que situações de privação material são inerentemente coercitivas. Para isso, avaliam-se teorias da justiça para as quais a pobreza não representaria uma forma de intervenção coercitiva em contextos de livre-mercado. Argumenta-se aqui que a pobreza precisa ser concebida como uma posição social subordinada e, portanto, um caso flagrante de injustiça social.

PALAVRAS-CHAVE: teorias da justiça; pobreza; autonomia

ABSTRACT

The article argues that material deprivation is a kind of coercive social situation. It evaluates some theories of justice for whom poverty would not count as a coercive interference on agency in contexts of free market interactions. It is showed that poverty is to be conceived as a subordinate social position and therefore a flagrant form of social injustice.

KEYWORDS: theories of justice; poverty; autonomy

Uma vida sob condições de privação material representa uma forma de sofrimento humano inigualável. Os danos físicos e mentais causados pela pobreza são equiparáveis apenas à tortura, à violação corporal e a formas severas de doenças. Os efeitos estigmatizantes da pobreza não são menos repugnantes, em especial no interior de sociedades economicamente afluentes. Viver na pobreza significa ser privado de bens coletivos e de formas de sociabilidade consideradas centrais para o bem-estar individual e para o senso de dignidade pessoal. Contudo, o tipo de situação ou experiência que comumente designamos com o termo “pobreza” é de difícil conceituação mesmo para pesquisadores e pesquisadoras dedicadas à compreensão das privações sociais.

Uma primeira dificuldade diz respeito à ambiguidade da própria noção de “definição” quando relacionada à pobreza. Definições de pobreza podem significar ao menos duas coisas bem diferentes. Elas podem se referir (1) à instrumentalização de conceitos ou (2) à conceituação de fenômenos. Quando definida em termos instrumentais, o objetivo é simplesmente delimitar quem conta como pobre para determinado fim. Quando queremos conceituar pobreza, porém, estamos ressaltando seu significado moral e social, destacando as dimensões conceituais e normativas da experiência de pobreza (Lister, 2004, p. 6). No segundo sentido da definição - pobreza como conceituação -, o objetivo é construir e compreender conceitos de pobreza que façam justiça à realidade histórica e moral, bem como a seus significados partilhados.

Boas conceituações são essenciais para que as operacionalizações sejam dotadas de relevância normativa. Contudo, a confusão entre definições conceituais e definições instrumentais da pobreza é um problema recorrente no debate sobre o tema. Um estreitamento considerável ocorre, por exemplo, quando a definição conceitual de pobreza é confundida com a definição instrumental adotada pelo Banco Mundial, segundo a qual pobreza equivale a viver com menos de us$ 1,90 por pessoa por dia (ajustado por paridade do poder de compra). O debate sobre a operacionalização das linhas de pobreza tem identificado inúmeros pontos controversos em seus parâmetros analíticos: a ênfase unidimensional no consumo, o baixíssimo grau de controle de recursos financeiros como definidor da pobreza, sua caracterização dicotômica em detrimento de sua intensidade, a dificuldade de capturar a feminização da pobreza e, finalmente, de mensurar adequadamente os preços e poderes de compra na economia informal dos muito pobres (Lister, 2004; Pogge, 2010; Reddy e Lahoti, 2015). Evidentemente, disso não se segue que definições instrumentais não sejam importantes. Elas são uma ferramenta imprescindível para a produção de políticas públicas e para a compreensão dos padrões e tendências de longo prazo. O problema é confundir - deliberadamente ou não - os dois objetivos. Instrumentalizar e conceituar a pobreza são duas tarefas distintas, e cometemos um erro teórico grave ao conceituar a pobreza, sem mais, como uma vida com menos de us$ 1,90 por dia.

Pobreza pode ser conceituada como uma forma severa de privação social na qual uma pessoa, ou um grupo de pessoas, tem sua agência moral ameaçada em decorrência de encontrar-se privada de um nível mínimo de controle sobre recursos materiais e de serviços socialmente valiosos (Barry, 2005, pp. 172-3; Sen, 1983, p. 159). Nesse sentido, uma pessoa está em situação de pobreza quando se encontra absolutamente prejudicada por estar relativamente situada, em termos materiais, em posição pior que as demais. Por caracterizar uma situação de tipo absoluto, pobreza não equivale a desigualdade social, mesmo quando a definimos com base em um controle de recursos relativo a determinado contexto social. A ideia central é a de que existem patamares normativos abaixo dos quais o fato de a possuir quantitativamente menos que b, c, d… é condição suficiente para que a se encontre em uma situação qualitativamente distinta em relação a b, c, d… e que, portanto, a se encontra em uma posição social qualitativamente diferente no interior da sociedade. Por situação “qualitativamente distinta”, devemos compreender um patamar particularmente objetável do ponto de vista da agência moral; por “recursos”, os recursos sociais necessários, sejam eles bens materiais, seja o acesso a serviços públicos ou ainda bens de participação social.

Podemos identificar pelo menos três propriedades mínimas do conceito de pobreza: (1) é um conceito normativamente dependente, (2) é um conceito potencialmente alterizante e (3) tem por referência uma situação inerentemente coercitiva. Em primeiro lugar, precisamos ter em mente que esse conceito depende de critérios normativos para que seja dotado de sentido. Não é possível classificar um objeto ou estado de coisas como “pobre” sem emitir, explícita ou implicitamente, um juízo avaliativo sobre a situação. Tratar a pobreza como um conceito normativamente dependente significa reconhecer que, mesmo ao usá-lo em sentido estritamente técnico, devemos empregar algum critério normativo sobre a situação em questão, estejamos ou não comprometidos com a alteração desse estado de coisas (Forst, 2014, p. 128).

Isso nos leva à segunda característica do conceito. A produção acadêmica sobre a pobreza é, no mais das vezes, um discurso sobre o outro. Ademais, é potencialmente estigmatizante, pois, na linguagem comum, “ser pobre” é ser identificado pela falta ou pela baixa qualidade de alguma propriedade humana ou social considerada importante. Expressões como “o pobre é”, “os pobres fazem”, “como os pobres votam”, “o hábito de consumo dos pobres” etc. incorrem na alterização (othering) das pessoas que vivem em condição de privação mesmo quando esses discursos são produzidos por acadêmicos e acadêmicas orientados pela luta contra a pobreza. Como argumenta Ruth Lister (2004, pp. 1-2, 99-123; ver também Piachaud, 1987), a identificação de uma pessoa ou grupo social como “pobre” tende a ser um ato classificatório realizado por agentes sociais que, em geral, não se compreendem como tal.

Por fim, o conceito de pobreza descreve situações inerentemente coercitivas. Essa talvez seja a característica mais controversa do conceito, e é sobre ela que dedicarei o restante deste artigo. Contudo, para entendermos melhor a coercitividade inerente da pobreza, vale a pena contrastar a concepção de agência moral presente em duas teorias da pobreza influentes nas ciências sociais. Seguindo a tipologia de teorias de pobreza proposta por Jiwei Ci (2013), denominarei essas duas concepções, respectivamente, de “pobreza de subsistência” e “pobreza de participação”.

A primeira concepção entende a pobreza como um tipo de privação material severa, capaz de colocar em risco a subsistência física de suas vítimas. Para a pobreza de subsistência, a privação material coloca em risco certas necessidades básicas para o funcionamento típico de um organismo humano. Segundo Amartya Sen (1983, pp. 153, 158-9), a “pobreza deve ser entendida, primeiramente, como uma noção absoluta”, isto é, um patamar mínimo de privação abaixo do qual nenhum ser humano deveria ser submetido. Aquele ou aquela que sofre a privação encontra-se privado de meios vitais, e é por essa razão que aderentes dessa concepção tendem a mensurar a pobreza com base em necessidades básicas universais, como padrões mínimos de renda, consumo e/ou saúde (Streeten, 1979; Shaw, 1988; Lötter, 2013; Sen, 1983, 1999). A pobreza de subsistência é, certamente, a dimensão mais indigna e moralmente mais urgente do problema da pobreza.

De acordo com o segundo modelo, a pobreza deve ser entendida sobretudo como uma forma severa de exclusão social. A pobreza de participação caracteriza a situação de seres sociais destituídos tanto dos meios necessários para participarem das atividades quanto do padrão de vida socialmente aceitável em dada comunidade. Como sustenta Peter Townsend, um dos principais teóricos da pobreza de participação, as vítimas da pobreza devem ser compreendidas como aquelas pessoas “cujos recursos estão tão abaixo daquilo controlado pelo cidadão [ou cidadã] médio que elas se encontram, de fato, excluí­das dos padrões de vida, costumes e atividades cotidianas” de suas sociedades (Townsend, 1979, p. 31). Privação, nesse caso, é entendida como privação para a participação adequada na vida social (Piachaud, 1987; Lister, 2004). O controle sobre bens de consumo e o acesso a serviços e práticas sociais valiosas são compreendidos como meios necessários para a participação em atividades dotadas de significado positivo e fundamentais para assegurar o senso de respeito e estima entre seus participantes. Isso explica, por exemplo, por que precisamos de critérios relativos de pobreza, informados por padrões situa­dos de riqueza e reconhecimento social. É também por esse motivo que países com níveis diferentes de afluência material precisam de linhas de pobreza diferentes.

Não devemos exagerar a diferença entre as duas concepções. Qualquer situação concreta de pobreza tende a expressar as duas formas de privação (Ci, 2013, pp. 127-8). Em sociedades afluentes, porém com níveis elevados de pobreza de subsistência (como o Brasil), os mais pobres tendem a ocupar também o estrato inferior em estima social. Casos como esse adicionam à injúria da perda de subsistência o insulto da exclusão social. Além disso, uma marca da pobreza nas sociedades afluentes é o trade-off entre, de um lado, aplacar a privação de subsistência, aumentando o consumo alimentar e a compra de medicamentos, e, de outro, diminuir a privação para participação, pelo acesso a bens de higiene, comunicação e lazer (Banerjee; Duflo, 2007; Rego; Pinzani, 2014). Os trabalhos de Sen dedicados à pobreza são um bom exemplo do reconhecimento dessas duas formas de privação. Não obstante sua concepção minimalista de pobreza de subsistência e o sentido apenas derivado que atribui a suas concepções relativas, ele reconhece que normas de apresentação sociais e contextos socioambientais diferentes precisam ser levados em consideração ao avaliarmos casos de privação, optando por uma teoria dual de pobreza (Sen, 1983, pp. 161-3).2

Contudo, existem ganhos analíticos em manter a distinção conceitual entre os dois tipos de pobreza. Ela nos permite pensar a pobreza de participação mesmo em sociedades que erradicaram formas extremas de pobreza de subsistência. O contrário também é possível, ainda que mais raro: sociedades nas quais a pobreza de subsistência não produz efeitos estigmatizantes sobre suas vítimas. Especula-se que esse teria sido o caso chinês durante a Revolução Cultural, quando a pobreza de subsistência conferia aos camponeses um status político superior ao dos intelectuais urbanos mais abastados (Ci, 2013, pp. 128-30).

O que nos interessa neste artigo é o que ambas as concepções de pobreza têm em comum, a saber, o fato de que o aspecto coercitivo da privação a torna moralmente injustificada. Explico: seja na pobreza de subsistência, seja na pobreza de participação, o que é moralmente questionável é que alguém seja, contra sua vontade, privado de/para algo valioso - situação que produz uma reivindicação moral legítima. Ou seja, existe uma relação conceitual necessária entre pobreza e coerção, e é justamente na medida em que a pobreza ameaça nossa agência como seres humanos e sujeitos sociais que podemos distingui-la de privações moralmente neutras ou, no limite, de privações eticamente positivas. Nem a privação de recursos nem a de participação são, per se, condições suficientes para a caracterização da pobreza, como fica evidente ao compararmos o jejum e a misantropia à fome e à exclusão social, respectivamente. Quando, por exemplo, optamos por diminuir nossos níveis de consumo por razões ecológicas, podemos estar sendo privados de recursos e estilos de vida que consideramos desejáveis. Porém, essa privação expressa nossa agência moral, não sua limitação.

POBREZA E COERÇÃO

Apesar do exposto, parte da filosofia política contesta que a pobreza seja necessariamente coercitiva. Teorias da justiça social ligadas ao liberalismo clássico recusam a existência de uma relação conceitual necessária entre pobreza e coerção, sobretudo quando a privação material ocorre em contextos normais de livre-mercado. Teorias liberal-clássicas da justiça social argumentam que relações de livre-mercado devem ser maximizadas no intuito de promover a organização justa e eficiente da cooperação social, na medida em que essas relações são (idealmente) voluntárias e impessoais e representariam, portanto, a melhor maneira de minimizar a interferência nas liberdades individuais em arranjos sociais complexos (Freeman, 2011; Brennan; Tomasi, 2012). Teóricos liberal-clássicos como Friedrich Hayek (1960) e Milton Friedman (1962), bem como o libertarianismo de Robert Nozick (1974), são as expressões filosóficas mais coerentes - e politicamente mais influentes - dessa família heterogênea de teorias da justiça.

O adjetivo “clássico” costuma ser adicionado ao liberalismo para enfatizar um vínculo com as doutrinas históricas do laissez-faire econômico dos séculos XVIII e XIX e, com isso, diferenciar essa forma contemporânea de liberalismo do chamado liberalismo igualitário, ou progressista, do século XX (Vita, 2008). Existem diferenças importantes entre o liberalismo clássico e o libertarianismo. Contudo, ambos partilham da visão clássica da pobreza, de acordo com a qual privações de ordem material não constituem necessariamente uma forma de coerção. A visão clássica da pobreza está fundada em uma interpretação influente sobre a relação entre economia e liberdade e propõe que, em uma sociedade na qual a reprodução material é organizada com base em relações impessoais e voluntárias, viver na pobreza não caracterizaria uma forma condenável de coerção.

A visão clássica não recusa que privações materiais sejam ruins, tanto para suas vítimas como para a sociedade como um todo. Ao contrário do darwinismo social, para o qual a pobreza é útil na medida em que permite controlar “a multiplicação dos irresponsáveis e dos incompetentes” (Spencer apudFleischacker, 2006, p. 128), o liberalismo clássico não contesta o papel da caridade privada no alívio do sofrimento causado pela miséria, nem mesmo os efeitos perversos da pobreza para o mercado ou para a política. O ponto é que a miséria justifica políticas de seguridade social pelas consequências nocivas que acarreta para o funcionamento de mercados específicos (Friedman, 1962, pp. 190-2) ou pelo risco de revoltas populares (Hayek, 1960, p. 128), mas não porque seja coercitiva.

Além disso, a visão clássica não nega o fato óbvio de que viver sob a privação severa de recursos materiais constitui uma importante fonte de restrição à agência individual. O cerne da objeção reside em outro lugar: na distinção entre restrição e coerção, isto é, no fato de que a falta de recursos em condições normais de livre-mercado precisaria ser entendida como um impedimento neutro à agência de uma pessoa, e não uma forma de coerção contra ela. “Ainda que as alternativas diante de mim possam ser terrivelmente escassas e incertas”, argumenta Hayek, “e que meus planos tenham um caráter precário, ainda assim [no caso da privação material] não é uma outra vontade quem guia a minha ação”. Aceitar um trabalho degradante e de baixa remuneração sob a ameaça da miséria não implica coerção na medida em que não estou sendo coagido por ninguém. Ele prossegue:

Desde que a intenção do ato que me prejudica não tenha como finalidade me obrigar a servir os fins de outra pessoa, seu efeito sobre minha liberdade não é diferente do efeito provocado por uma catástrofe natural - um incêndio ou uma enchente que destrói minha casa, ou ainda um acidente que prejudica minha saúde. (Hayek, 1960, p. 137)

A visão clássica trata a restrição orçamentária aos planos de uma pessoa como uma força impessoal, análoga aos azares de uma tempestade, uma erupção vulcânica ou uma doença grave e súbita. Em todos esses casos, argumenta Hayek, podemos lamentar o ocorrido e simpatizar com suas vítimas, mas não faria sentido afirmar que essas forças “coagem” suas vítimas, pelo menos não no mesmo sentido, por exemplo, em que um assaltante coage suas vítimas a entregar o dinheiro de suas carteiras. Diferentemente da violência interpessoal ou da coerção do Estado, a pobreza não acarretaria uma interferência na liberdade, mas apenas nos recursos disponíveis para fazer uso dela. É nesse sentido que o liberalismo clássico acredita ser possível viver livremente “ainda que [como] miseráveis” (idem, p. 18).

A força da visão clássica repousa em interpretações prima facie plausíveis da gramática usual sobre coerção e escolhas forçadas. A primeira delas diz respeito à definição de coerção adotada pela visão clássica; a segunda, à distinção entre escolhas forçadas e escolhas difíceis. Em ambos os casos, a visão clássica captura aspectos conceituais importantes do vocabulário cotidiano sobre escolhas e relações de força, ainda que, como pretendo argumentar, termine por distorcê-los. De acordo com Hayek, coerção significa “o controle sobre as circunstâncias de uma pessoa por outra de tal forma que, para evitar um mal maior, a primeira é forçada a agir não de acordo com a coerência de seus planos, mas a submeter-se aos fins de uma outra pessoa”. O que há de moralmente objetável na coerção, portanto, é a subtração da agência de uma pessoa, tornando-a “uma mera ferramenta para a realização de fins alheios” (idem, pp. 20-1. Ver também p. 133; e Friedman, 1962, p. 15).

Essa definição parece atender ao modo usual como coerção é entendida na literatura sobre autonomia: um tipo específico de relação na qual uma pessoa é forçada a fazer alguma coisa com base em razões alheias a sua vontade (Dworkin, 1970; Frankfurt, 1988; O’Neill, 2000). Simetricamente, ela é compatível também com a ideia de que uma ação autônoma é embasada por razões que podemos reflexivamente assentir como nossas. Coerção, portanto, precisa ser distinguida de outras relações de perda de autonomia, como a compulsão, na qual uma pessoa é forçada a fazer alguma coisa ao ser objeto de aplicação direta da força. Como formulado por Onora O’Neill (2000, p. 82), relações coercitivas operam, primeiramente, “sobre a vontade, não sobre os corpos” das pessoas e, em casos de coerção, “é a vontade da vítima quem se submete à vontade de um outro”, não seu corpo ou sua presença (Frankfurt, 1988, p. 27). O que é próprio de relações coercitivas é a incidência sobre a vontade de uma pessoa com base em interações comunicativas dotadas de conteúdo proposicional, como ameaças diretas ou veladas. O mesmo raciocínio nos permite entender por que a fraude constitui outro caso paradigmático de perda de autonomia: se assino um contrato fraudulento, também estou agindo com base em razões nas quais não posso assentir, ainda que subjetivamente não o saiba. Em ambos os casos, nossa capacidade de formular e agir com base em razões próprias é diretamente ameaçada.

Já a segunda interpretação plausível refere-se à distinção entre fazer escolhas difíceis, porque limitadas por motivos de ordem material, e fazer escolhas forçadas propriamente ditas, isto é, que resultam da coação por outras pessoas. O fato de que me sinto subjetivamente forçado a fazer alguma coisa não é razão suficiente para a imputação de coerção sobre a minha escolha. Se esse fosse o caso, então toda decisão difícil, por qualquer motivo que fosse, deveria ser entendida como uma escolha coagida. Como afirma Nozick (1974, p. 263), nossas escolhas “não se tornam involuntárias [nonvoluntary] apenas porque existe alguma outra coisa que preferíamos fazer”. Não ter os meios adequados para fazer aquilo que se quer fazer é diferente de ser proibido de fazer aquilo que se quer fazer, ou de ser obrigado a fazer aquilo que não se quer fazer, por meio de ameaças coercitivas vindas de outra pessoa.

A visão clássica sugere, portanto, que, ao defendermos a coercitividade da pobreza, estaríamos violando o vocabulário usual sobre escolhas e relações de força. Contudo, como pretendo argumentar, essa visão traz duas distorções drásticas da gramática das relações de força. A primeira diz respeito à possibilidade de uma distinção não vaga entre ofertas e ameaças em contextos econômicos. Já a segunda se refere ao critério de coerção e ao reconhecimento de que existem diferentes maneiras de vivermos sob o controle de outras pessoas. A despeito de sua aparente plausibilidade, a visão clássica da pobreza distorce o vocabulário da autonomia em relação ao meio exclusivo de ações coercitivas e em relação à fonte da coerção. Vivemos sob o poder (injusto) de outros quando somos forçados a estruturar nossos planos e valores com base em propósitos alheios, seja pela imposição direta por outras pessoas, seja pelo funcionamento impessoal de instituições coercitivas.

OFERTAS COERCITIVAS

De modo esquemático, a visão clássica pode ser apresentada como um argumento estruturado em quatro partes: (P1) coerção implica interferência intencional de uma pessoa sobre as decisões de outra pessoa; (P2) o uso da força (ou da fraude) caracteriza tipicamente um caso de coerção; (P3) relações de livre-mercado são impessoais e estruturadas por ofertas (e não ameaças), portanto, não são coercitivas; (conclusão) para qualquer situação de pobreza, ou alguém foi vítima de força ou fraude (e, portanto, coagido), ou essa privação foi causada pelo funcionamento normal de relações de livre-mercado (e, portanto, a pobreza não é coercitiva). Ou seja, para a visão clássica, casos de coerção intencional entre dois agentes determinados são a única forma moralmente relevante de coerção. O argumento admite que tornar alguém pobre intencionalmente (com base no emprego da força ou da fraude) caracteriza um tipo de coerção. Esse seria o caso, digamos, de uma pequena proprietária achacada mensalmente por milicianos no Rio de Janeiro que termina por perder seu comércio, e sua fonte de renda, ou de pequenos produtores rurais cuja terra tenha sido grilada por grandes produtores de soja no Mato Grosso mediante escrituras fraudulentas. Contudo, isso não implica que pobreza e coerção estejam conceitualmente ligadas. Precisamos mostrar que uma pessoa é coagida mesmo sob condições normais de funcionamento de mercados, nos quais os direitos de propriedade, bem como sua legitimidade histórica, são tidos como legítimos e os direitos individuais das partes, respeitados.

Acredito que a melhor maneira de mostrar que a visão clássica está errada é recusando diretamente p1 e certa interpretação de p3, qual seja, a de que podemos contar com uma distinção não vaga entre ofertas e ameaças em relações de livre-mercado. Mercados possibilitam a coordenação social em larga escala de um modo cooperativo, eficiente e, em certa medida, impessoal. A defesa da coercitividade da pobreza não precisa negar isso. Ou, pelo menos, nada do que será argumentado a seguir exige que recusemos a utilidade de arranjos de mercado como forma de alocação de recursos em sociedades complexas.

Segundo a visão clássica, existe uma distinção conceitual clara e evidente entre fazer alguma coisa com base em uma oferta e fazer alguma coisa com base em uma ameaça. “Quando uma pessoa faz alguma coisa motivada por ameaças”, afirma Nozick (1997 [1969], p. 40), “a vontade de outra pessoa está operando […] quando [essa mesma pessoa] faz alguma coisa motivada por ofertas, não ocorre o mesmo”. O problema é que a separação entre ofertas e ameaças em contextos reais de interação social caracteriza um caso de vagueza conceitual. Certas ofertas podem ser interpretadas como ameaças disfarçadas (O’Neill, 2000; Cudd, 2006). Uma atribuição de sentido é vaga quando existe para a situação um grupo de casos semanticamente relevante cuja classificação é intrinsecamente incerta (Graff, 2000). Diante desses casos limítrofes, não é possível saber se sua aplicação é verdadeira ou falsa, ainda que saibamos, de modo ideal, o que seria verdade e o que seria falso em relação a sua aplicação. Um exemplo de conceito vago é o de “pôr do sol”: sabemos o que é um pôr do sol e de que modo ele se diferencia da luz do dia e da escuridão da noite. Porém, não conseguimos identificar com precisão quando ele deixa de ser um pôr do sol. O importante a ser notado é que a incerteza decorrente da vagueza conceitual não se deve à informação de que dispomos, nem a outras fontes de limites epistêmicos sobre o caso: sabemos o que é e o que não é um pôr do sol. E, a depender do contexto e da enunciação, existem casos limítrofes nos quais o conceito não admite uma interpretação estável.

Podemos identificar casos paradigmáticos de oferta e casos paradigmáticos de ameaça. Ameaçar alguém é forçar uma pessoa a fazer alguma coisa que ela não gostaria de fazer com base em recursos coercitivos. Ofertas, por sua vez, procuram alterar a ação ou a expectativa de outras pessoas com base em propostas que para elas seriam potencialmente vantajosas, benignas ou, pelo menos, propícias ao aumento do número de opções disponíveis. Contudo, em certas formas de interação, não é possível afirmar com precisão se estamos diante de ofertas ou de ameaças.

Nos primeiros capítulos do romance Vidas secas, Graciliano Ramos descreve os efeitos da diáspora da seca no Nordeste durante a Primeira República na vida (e nas escolhas) da família de Fabiano e Sinhá Vitória (Ramos, 2001 [1938]). Após tentar migrar, sem sucesso, para regiões economicamente mais afluentes do país, a desamparada família de retirantes - “os infelizes tinham caminhado o dia todo, estavam cansados e famintos” (p. 9) - decide como última opção ocupar uma fazenda abandonada no meio do sertão. Após darem vida novamente àquelas terras, contudo, um homem branco portador de um (alegado) título de propriedade sobre a fazenda reivindica sua posse, bem como as melhorias feitas ali pela família de Fabiano, obrigando-os a voltar para a seca. Uma vez que Fabiano “apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto”, o “patrão” lhe faz uma proposta de trabalho sob condições extremamente adversas e abusivas. Graciliano Ramos descreve a relação entre vaqueiros (“cabras”) e proprietários (“brancos”) do seguinte modo: “o patrão […] berrava sem precisão, [o] gado aumentava, o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o vaqueiro. Natural, descompunha porque podia descompor […], o amo só queria mostrar autoridade, gritar que era dono” (idem, pp. 22-3).

Devemos entender a proposta de trabalho feita à família de Fabiano como uma oferta ou como uma ameaça? Consideremos dois cenários alternativos. No primeiro, o patrão obriga Fabiano a trabalhar em sua propriedade sob a ameaça de ser punido fisicamente e de sua família ter de viver sob permanente insegurança alimentar. No segundo, o patrão propõe a Fabiano que trabalhe em suas terras, oferta essa que Fabiano é livre para aceitar ou para recusar. Os dois cenários caracterizam, respectivamente, os casos paradigmáticos de ameaça e de oferta. No primeiro, o patrão coage Fabiano a fazer alguma coisa com base em ameaças. No segundo, argumenta-se, o patrão expande os cursos de ação do vaqueiro com uma oferta. Por mais precários que sejam os termos do contrato de trabalho entre Fabiano e seu patrão, sua agência foi expandida e não restrita.

O problema dessa interpretação semanticamente ingênua da distinção entre ameaças e ofertas é que, quando olhamos com mais cuidado para o segundo caso, notamos que a oferta pode, na verdade, ser uma ameaça. Basta reescrever a proposta levando em consideração seu contexto de enunciação: o patrão propõe a Fabiano que trabalhe em suas terras, proposta que Fabiano está livre para recusar, porém sob a pena de voltar para a seca, onde será fisicamente castigado e sua família viverá sob insegurança alimentar permanente. A despeito de ter a forma locucionária de uma oferta, a proposta funciona como uma ameaça, dado que uma das partes não tem opção senão aceitá-la (O’Neill, 2000). Como no primeiro caso, Fabiano é forçado a escolher entre exploração ou punição, pois a “oferta” em questão é a única alternativa à punição da miséria. É verdade que, nesse segundo caso, o patrão não é o responsável direto pela situação de vulnerabilidade de Fabiano. Ela pode ter sido causada pelo descaso do poder público ou pela queda abrupta dos preços de produtos agrícolas no mercado internacional. Contudo, do ponto de vista da coercitividade presente nas escolhas de Fabiano, essa não é uma diferença que faz diferença. Uma situação de trabalho forçado não precisa ter sido criada por quem se beneficia dela para que a exploração seja coerciva. O patrão pode se sentir tão pouco responsável pela “punição” causada pela seca quanto pela legalidade da escravidão (como se dissesse: “Não fui eu que criei a instituição da escravidão”).

O ponto importante do exemplo diz respeito ao fato de que, em situações-limite, existem ofertas tão coercitivas quanto ameaças. Nesses casos, a ordem da relação está invertida: é como se o lado mais fraco da relação “já tivesse sido punido pela pobreza e, agora, estivesse disposto a aceitar qualquer oferta”, ao invés de, primeiramente, ter sido ameaçado com a punição (Fleurbaey, 2007, p. 146). Coagir é forçar uma pessoa a fazer algo por meio de propostas, sejam elas ameaças ou ofertas coercitivas. Determinar se uma relação é coercitiva ou não depende da existência de alternativas disponíveis aceitáveis. No contexto das vidas secas, morrer de fome no sertão é uma alternativa tão inaceitável quanto a servidão.

Se uma situação coercitiva depende da inexistência de alternativas aceitáveis, então grande parte do problema passa a ser definir o que conta como “aceitável”. Apenas critérios normativos independentes da descrição das situações podem determinar o que conta como um status quo coercitivo. Nozick (1974) pode separar de modo não vago ofertas de ameaças porque sua teoria adota, a priori, uma métrica proprietarista da liberdade, segundo a qual qualquer transação amparada por direitos de propriedade é, por definição, moralmente ilibada. Se o patrão possuir um título de propriedade legítimo sobre a fazenda ocupada pela família de Fabiano - um grande “se” em condições históricas reais - e, como único empregador da região, exigir dos trabalhadores e trabalhadoras locais um contrato vitalício de servidão, isso não representaria uma forma de coerção. Ninguém estaria sendo coagido, na medida em que nenhum direito de propriedade - nem mesmo o de “propriedade de si” - estaria sendo violado. Como podemos notar, a “solução” libertariana representa, na verdade, uma vitória de Pirro: relações de mercado não são coercitivas apenas porque o significado de coerção foi redefinido, caracterizando não mais uma forma de intervenção injusta sobre os planos de agentes morais, mas a infração de direitos de propriedade. Nesse sentido pitoresco de liberdade, a pobreza pode até não ser coercitiva - novamente, caso se possa averiguar com precisão a legitimidade histórica das titularidades presentes -,3porém apenas porque nada que proprietários decidam consensualmente é coercitivo.

DOIS TIPOS DE COERÇÃO

A segunda distorção na gramática das relações de força diz respeito à concepção individualizada de coerção adotada pela visão clássica (Haslanger, 2004). Lembremos que, segundo a definição hayekiana, coerção é um tipo de relação moralmente condenável na medida em que a agência de uma pessoa é subordinada aos objetivos de outra, os quais não podem ser reflexivamente assentidos pelas partes coagidas. Inversamente, uma pessoa age autonomamente caso possa se identificar com as razões - ou “planos” - com base nas quais ela age.

De acordo com a teoria procedimental da autonomia (Dworkin, 1970; Frankfurt, 1988), o valor da autonomia refere-se à identificação (procedimental) reflexiva entre, de um lado, as razões pelas quais gostaríamos de agir sobre o mundo e de interagir com as outras pessoas e, de outro, as motivações primárias dessas mesmas ações e relações. A reflexividade da agência humana nos possibilita, ou melhor, nos compele a agir com base em uma estrutura hierárquica de razões, nas quais a origem e qualidade das razões de primeira ordem são avaliadas por razões avaliativas de níveis superiores (Frankfurt, 1988, pp. 11-25, 159-76). Podemos querer comer alguma coisa neste exato momento porque estamos famintos e, assim, a volição da fome representa uma razão de primeira ordem para agirmos. Contudo, a estrutura das nossas intenções é constituída de tal forma que, em condições usuais de funcionamento, precisamos refletir se, de fato, queremos querer ser motivados por determinada volição (como a fome). Autonomia, em sentido procedimental, é a capacidade de estipular razões de ordem superior de maneira coerente e refletida.

Podemos nos perguntar se a mera harmonização procedimental entre razões de ordens diferentes representa, de fato, uma condição suficiente para a autonomia. Formas opressivas de socialização podem adaptar os padrões de identificação motivacional por motivos extrínsecos à agência pessoal (Meyers, 1989). Contudo, a pobreza representa uma ameaça à autonomia mesmo quando empregamos uma concepção procedimental de autonomia individual - uma concepção que, como vimos, é usualmente aceita pelos próprios liberais clássicos. Isso porque a distorção não reside no valor da autonomia em si, mas em sua unilateralidade. Certamente a intencionalidade (imediata) de uma pessoa é uma condição suficiente para a manutenção de uma relação coercitiva, mas não uma condição necessária. Como sustenta Sally Haslanger, o único tipo de problema relevante para teorias individualizadas da coerção “ocorre quando um agente [quem coage] provoca formas moralmente reprováveis de dano sobre outro agente [que é coagido]”. Qualquer outra forma de coerção “só ocorrerá em sentido derivado” (Haslanger, 2004, pp. 104-5). Ou seja, abordagens individualizadas caracterizarão a coerção como um problema moral entre duas dadas pessoas, e não como um problema de arranjos coletivos temporalmente persistentes.

Em contraste com abordagens agenciais da coerção, precisamos reconhecer a existência de casos de coerção institucional, nos quais o poder em questão “depende de instituições e práticas que estruturam nosso relacionamento mútuo”, e não necessariamente do poder imediato de uma pessoa sobre outra (idem, p. 102). Arranjos sociais, sejam eles instituições legalmente definidas, sejam normas sociais difusas, também estruturam de modo inaceitável as escolhas de indivíduos ou grupos sociais, em decorrência da organização assimétrica de poder no interior desses arranjos. Nesse sentido, podemos falar em coerção mesmo quando os agentes causais imediatos de sua aplicação não se beneficiam diretamente da relação coercitiva que executam. Isso ilustra o fato sociológico trivial de que, na grande maioria dos casos de coerção nas sociedades modernas, os agentes mais beneficiados pela coerção não são eles próprios os agentes da coerção (Young, 1990, pp. 40-2; Cudd, 2004, cap. 7).

Leis, governos e organizações são fruto da intencionalidade humana tanto quanto um ato violento imediato. Diferentemente de forças naturais, instituições são uma forma de ação em concerto cuja existência persiste no tempo. Não precisamos aceitar que qualquer interferência - inclusive as de tipo não humano, como uma enchente - também seja coercitiva. Basta mostrar, ao contrário, que mercados podem ser organizados de tal forma que um pequeno número de agentes econômicos é capaz de exercer poder unilateral sobre os preços e, com isso, alterar significativamente as preferências dos demais agentes. Esse é um tipo de assimetria de poder que mesmo adeptos da visão clássica tendem a aceitar, ainda que relutantemente (Hayek, 1960, pp. 135-7; Friedman, 1962, pp. 14, 27-32).

É difícil entender por que a estrutura da coerção monopolística não poderia ser estendida para outros tipos de interação social pautados por arranjos sociais assimétricos. Na verdade, existe um tipo de coerção institucional necessária ao funcionamento da coordenação de livre-mercado. Para que os mercados produzam eficiência e liberdade, eles precisam pressupor normas constitutivas que garantam a legitimidade das relações econômicas, definindo a estrutura e os modos de anuência correspondentes às apropriações e às trocas de recursos legalmente permitidas. Esses arranjos sociais de fundo estão sujeitos à organização assimétrica de poder tanto quanto as próprias relações econômicas. Para utilizar uma expressão de G. A. Cohen, a posse legítima de qualquer recurso material em uma sociedade capitalista depende da “coerção de fundo” permanente do Estado (Cohen, 1979, 1995; Hale, 1923). Estados são responsáveis pela definição e efetividade de direitos de propriedade, um tipo de relação social cuja característica definidora é o direito de exclusão com base na força. “A essência do direito de propriedade é o direito de excluir”, como explica Douglass North, e apenas “uma organização que possui vantagem comparativa em relação ao emprego da violência (Estado) encontra-se em posição de especificar e garantir [to enforce] direitos de propriedade” (North, 1986, p. 249).

A coerção estatal é institucional porque o possuidor ou a possuidora legal de título de propriedade não precisa (e em certos casos nem poderia) ser o agente causal da coerção: cabe às agências de segurança estatais o poder de ameaça e violência. Isso significa que, mesmo quando as condições ideais de mercado são perfeitamente satisfeitas, a liberdade de que disponho no interior desse tipo de arranjo social “depende do número e da qualidade das minhas opções [o que,] por sua vez, [depende] tanto das regras do jogo [econômico] quanto dos recursos controlados pelos outros jogadores” (Cohen, 1995, p. 54). Vimos que a família de Fabiano desistiu voluntariamente da posse da fazenda ocupada porque sabia que o patrão tinha uma reivindicação legítima sobre ela e que, por sua vez, o Estado poderia empregar a força necessária para despejá-los de volta para a morte no sertão. As razões para essa decisão foram estruturadas por uma ameaça institucional latente. O fato de o patrão ter ou não ter ameaçado explicitamente os ocupantes é irrelevante para as escolhas de Fabiano porque essa possibilidade é o significado normal da propriedade privada em uma sociedade capitalista.

CONCLUSÃO

Reconhecer a existência de dois modos distintos de coerção nos ajuda também a evitar a trivialização de relações coercitivas. Certas teorias institucionalistas tendem a caracterizar como coercitivo qualquer arranjo no interior do qual as escolhas dos agentes são restringidas. Algumas dessas “coerções” são ditas justificadas ou irrelevantes, enquanto outras, como a pobreza, não o são (Cohen, 1989, pp. 291-5; Hale, 1926, pp. 471, 474). Além de reduzir a importância normativa de coerções intrapessoais - uma objeção típica da visão clássica (Nozick, 1997 [1969], pp. 23-4) -, a trivialização da coerção também nos obriga a distorcer a gramática moral das relações de força equiparando escolhas difíceis e escolhas forçadas. A pobreza seria coercitiva apenas porque qualquer interação social é potencialmente coercitiva e, nesse sentido, a trivialização da coerção pode resultar na trivialização da pobreza como uma forma particularmente abjeta de coerção. O que precisamos mostrar, contra a visão clássica, é que existe uma diversidade de modos (injustificados) de viver sob o poder de outras pessoas e que alguns desses modos acarretam coerções individualizadas, enquanto outros não.

Quais critérios normativos tornam uma situação neutra de assimetria social em um caso objetável de coerção? Harry Frankfurt, por exemplo, argumenta que determinada proposta (oferta ou ameaça) é coercitiva se e somente se atender a pelo menos três condições específicas: (1) uma das partes é dependente do tipo de bem ou serviço controlado pela outra; (2) essa mesma parte necessita urgentemente do tipo de bem ou serviço controlado pela outra; e, finalmente, (3) a parte que possui maior poder de barganha na transação utiliza as condições de dependência e a necessidade como forma de explorar uma vantagem comparativa (Frankfurt, 1988, pp. 33-4). Apenas a conjunção das três condições - dependência, necessidade e exploração - cumpre o requisito, pois uma mera superioridade material não implica exploração, e a dependência de um bem ou serviço, ou a simples urgência com que precisamos de alguma coisa, não constituem necessariamente formas graves de vulnerabilidade material. Mais recentemente, Thomas Scanlon propôs critérios alternativos com objetivos similares. Transações coercivas dependem (1) do valor socialmente partilhado de um bem ou serviço, (2) do tipo de relação social estabelecida entre as partes e (3) da magnitude da diferença das consequências da transação para cada uma das partes (Scanlon, 2018, pp. 100-2).

Uma terceira opção diz respeito aos efeitos de relações coercitivas sobre os planos de longa duração e as identidades práticas de agentes em posições de privação social. Notemos que a definição de coerção elaborada pela perspectiva clássica pode ser expandida em relação não apenas à fonte da coerção (individual ou institucional) mas também à dimensão da agência afetada pela pobreza. Se uma pessoa a é coagida por b na medida em que b estrutura os propósitos de a de maneira injusta, então o objeto da coerção pode ser tanto as ações de a, suas escolhas e ações discretas, como também os planos e identidades práticas de a. A capacidade para uma agência planificada e responsiva às expectativas sociais possibilita tanto a estruturação racional de planos de vida (Bratman, 1999) como a confecção autônoma de projetos pessoais e identidades publicamente partilhadas (Korsgaard, 1996). Ao permitir a criação de posições hierarquizantes de obediência e de estima, a pobreza restringe a formação de identidade prática tanto entre grupos subordinados como em superordenados (Petroni, no prelo).

O objetivo deste artigo não é decidir quais critérios normativos específicos devemos adotar, mas apenas mostrar por que precisamos buscá-los. Viver em situação de pobreza é uma condição coercitiva mesmo em contextos idealizados de livre-mercado. Nesse sentido, a reprodução da pobreza em sociedades afluentes precisa ser entendida como uma forma persistente de injustiça social. Certamente, essa não é uma tese nova. Acredito, entretanto, que uma das tarefas da filosofia política seja justamente a de nos relembrar daquilo que é evidentemente verdadeiro, ainda que por vezes esquecido, nos ajudando a resistir a ideias amplamente disseminadas, ainda que evidentemente falsas. A filosofia, como afirma Grada Kilomba (2017), é uma atividade intelectual fundada em verdades importantes as quais já sabemos, mas que tendemos a esquecer.4

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  • Young, Iris Marion. Justice and the Politics of Difference. Princeton: Princeton University Press, 1990.
  • 1
    Agradeço a Raissa Ventura, Rúrion Melo, Sebastián Rudas e os/as pareceristas pelas sugestões e comentários. A pesquisa contou com o apoio institucional e humano da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
  • 2
    Recentemente, Sen (1999, cap. 4) e Nussbaum (2000) defenderam a tese revisionista segundo a qual deveríamos redefinir pobreza como privação de capabilidades, um conjunto de liberdades efetivas para “ser” (capacidades) ou “realizar” (habilidades) finalidades valiosas. O problema é que, com isso, qualquer forma de privação se torna uma instância de pobreza, seja essa privação de natureza material ou não (Lister, 2004, pp. 15-20; Wolff, Lamb e Zur-Szpiro, 2015, pp. 15-6, 26-7).
  • 3
    É muito provável que o título de propriedade legal com o qual o patrão ameaça Fabiano resulte de uma história de transações e apropriações moralmente espúrias. Portanto, é incapaz de sustentar uma reivindicação de propriedade legítima mesmo sob critérios libertarianos.
  • 4
    Agradeço a Mônica Oliveira pela referência.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2019
  • Aceito
    16 Set 2020
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