Open-access Economia e política na ordem Imperial: o Banco do Brasil, 1853-1866.

Gambi, Thiago Fontelas Rosado. O Banco da Ordem: política e finanças no Império brasileiro. (1853-1866). São Paulo: Alameda, 2015

Os economistas, de tempos em tempos, buscam nos convencer de que as instituições econômicas possuem autonomia suficiente para se distanciar de interesses e de projetos políticos, sendo estas instituições governadas por leis imparciais e técnicas. A defesa de um banco central independente, de taxas ótimas de câmbio, juros e inflação, e todo um arcabouço suspostamente técnico de políticas econômicas nos são vendidos como parte de um modelo fundamentado em preceitos puramente científicos. Essa dissociação entre economia e política, que é por natureza impossível, tornar-se ainda mais difícil quando recuamos para um Brasil Imperial e escravista, numa fase em que a Ciência Econômica nem existia como tal, mas sim como Economia Política.

Esse é o ponto de partida do recém-lançado livro de Thiago Gambi, O banco da Ordem: política e finanças no Império brasileiro (1853-1866), tendo como objeto a trajetória do segundo Banco do Brasil, aquele idealizado e conduzido pelo Ministro da Fazenda Joaquim José Rodrigues Torres, o posterior Visconde de Itaboraí.1 Em 540 páginas, a obra teve sua pesquisa amplamente fundamentada em fontes primárias: documentos oficiais do Banco do Brasil do período entre 1854 e 1866, tais como as atas de reuniões da diretoria e os relatórios apresentados às assembleias dos acionistas; documentos do governo Imperial, como os anais do Senado, da Câmara dos Deputados e do Conselho de Estado, das leis do Império e dos relatórios do Ministério da Fazenda; além de artigos de jornais e de obras de autores que naquela oportunidade disputavam e debatiam os modelos e os projetos voltados ao banco.

O livro é resultado da tese de doutorado defendida por Thiago Gambi - professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Alfenas -, no Programa de História Econômica da FFLCH/USP. Sua contribuição para a historiografia do Império é justamente o de relacionar a trajetória do Banco do Brasil, não apenas na perspectiva de uma história empresarial verticalmente analisada, mas também nos marcos do projeto político dos saquaremas, denominação dada aos conservadores que, na direção do estado Imperial entre as décadas de 1850 e 1860, defendiam a centralização do poder fundamentada no princípio de ordem e civilização. Nesse sentido, a obra insere a construção da principal instituição bancária do período dentro dos debates das ideias econômicas e do projeto político do Império brasileiro.

A incursão metodológica escolhida por Thiago Gambi na condução de sua análise sobre o Banco do Brasil permitiu que sua obra estabelecesse um diálogo entre um tema típico nos estudos de economistas - sobre as atividades de uma instituição bancária e monetária no processo de desenvolvimento econômico do país -, com outras perspectivas que priorizam a análise do Brasil oitocentista por meio dos atores e dos partidos políticos, das diretrizes tomadas pelos Ministérios e pelo Conselho de Estado, em suma, por meio das concepções de governo e do sentido do estado Imperial. Ao se valer de uma instituição econômica central na ossatura do estado Imperial, como instrumento para a compreensão de um projeto de civilização bastante particular conduzido pelas lideranças do tempo saquarema, na caracterização de Ilmar Mattos (2004), O Banco da Ordem oferece, por um lado, uma interpretação sobre o caráter do sociedade buscada pela elite Imperial para os estudos de história econômica, como, por outro lado, um emblemático estudo de caso de uma instituição nem sempre ressaltada entre os estudos de história política.

Mas o que fez do segundo Banco do Brasil, aquele formado em 1853, assumir papel tão destacado entre as instituições imperiais de meados do século XIX? Como defende o autor, de maneira geral, os bancos eram "mera engrenagem de um sistema comercial mais complexo que ligava produtores e comerciantes nacionais a comerciantes e mercados estrangeiros". O Banco da Ordem, contudo, foi alçado a desempenhar não somente esse papel de banco mercantil, mas também a função de instituição que viabilizasse a estabilidade econômica do estado imperial. A ordem era, nesse sentido, a defesa dos interesses da classe senhorial fluminense, de grandes negociantes, fazendeiros e burocratas do Império. Estes, os saquaremas, eram representados pelos "homens esclarecidos" do Partido Conservador do Império, cuja liderança naquele período estava na trindade composta por Rodrigues Torres, o futuro Visconde de Itaboraí, no Ministério da Fazenda; Paulino José Soares de Souza, o futuro Visconde do Uruguai, no Ministério de Negócios Exterior; e, por fim, Eusébio de Queiroz na Justiça. Três homens que foram a síntese do projeto de civilização nos trópicos conduzido por aqueles gabinetes conservadores.

No que diz respeito ao aparelho econômico, o projeto de uma civilização nos trópicos devia partir de uma economia com fortes vínculos com o mercado internacional, cujos indicadores centrais para viabilizar essa integração passavam pela sustentação de uma moeda forte e estável. A estabilidade cambial e a manutenção de uma moeda valorizada eram instrumentos fundamentais para ampliar o acesso ao crédito internacional, especialmente com a Inglaterra, e também para baratear a importação tanto de produtos de consumo diário como de equipamentos que comporiam as primeiras experiências de empresas de serviços públicos e estradas de ferro no Brasil. Por isso, a preocupação de garantir a adesão do país ao padrão-ouro inglês já em 1846, antes de qualquer outra nação no mundo, com a posterior exigência de centralização da emissão via Banco do Brasil garantindo o saneamento do meio circulante. Por meio do padrão-ouro, as autoridades econômicas nacionais podiam formalizar sua carta de intenções com a estrutura monetária internacional, aproximando-se da city londrina, como também estabelecer critérios supostamente objetivos e exógenos aos interesses de grupos econômicos ou regionais para a prática da política econômica nacional. No entendimento de Thiago Gambi: "Finalmente, a conquista de uma moeda forte representaria a concretização parcial do projeto saquarema e abriria para o império uma das portas de entrada para o seleto grupo das nações civilizadas".

O projeto saquarema em curso nas décadas de 1850 e 1860 encontrava resistência, por outro lado, entre aqueles que compreendiam que a pluralidade de emissão, via bancos regionais, era um caminho mais efetivo para atender a demanda de moeda num país continental e pouco integrado, assim como era instrumento para fomentar o crédito e o crescimento econômico. Por isso, o nexo do projeto político não se efetiva por completo nas esferas produtivas internas, fosse no atendimento das demandas das elites regionais, que sentiam recorrentemente a escassez de meio circulante em suas praças, ou no fomento de atividades produtivas, em especial a agricultura de exportação, que dependiam de condições mais favoráveis de créditos.

Essa dicotomia entre crédito e estabilidade da moeda era a síntese do debate entre os chamados papelistas, defensores da pluralidade de instituições emissoras para atender o giro dos negócios, e os metalistas, em que a provisão de liquidez do mercado era subordinada à manutenção do valor da moeda. E como alerta Thiago Gambi, diferentemente de uma reprodução direta do debate inglês, entre a currency e a banking school, o debate brasileiro precisava assumir uma coloração distinta, resultado das limitações impostas por um país na periferia do capitalismo, em que "a realidade da economia brasileira não cedia espaço para o idealismo metalista", como tampouco os papelistas não deixavam de se preocupar com a defesa da conversibilidade e da estabilidade cambial. Por isso, enquanto entre os pressupostos dos metalistas nos trópicos aceitava-se o lastro das emissões de notas bancárias com a composição também de papel- -moeda estatal, para os papelistas a subordinada posição comercial e financeira do país no mercado internacional não permitiria que o país abandonasse o padrão-ouro.

Mesmo sem um lastro puramente metálico, o rigoroso comprometimento de homens como Rodrigues Torres com a estabilidade monetária não deixava de ser admirável. Avaliando os balanços do Banco do Brasil, o livro explora algumas evidências da atuação do banco como parte do projeto saquarema. Apesar da dificuldade tanto de conduzir uma política econômica como de garantir o controle do valor da moeda num país periférico como o Brasil, a direção do banco conseguiu preservar o projeto Imperial, ao longo de todo período de análise, mediante um perfeito controle monetário, não ultrapassando os limites de emissão impostos pela lei. Esses limites representavam o realismo metalista - da realidade de "um debate econômico tropicalizado" -, em que a fragilidade da economia revelava a incapacidade de sustentar a demanda monetária nacional com as reservas puramente metálicas (ou de moedas conversíveis, tais como, e especialmente, a Libra). A centralização de emissão com o Banco do Brasil, e o rígido controle da circulação monetária dentro dos parâmetros estabelecidos por lei, permitiram que a taxa de câmbio permanecesse estável durante o período dos saquaremas no poder, mesmo com as oscilações do mercado consumidor internacional, ou as flutuações dos fluxos de capital, como ocorrida no ano de 1857. O governo conseguia levar a frente um poderoso instrumento de estabilidade da moeda, que era desejado por representantes das Casas Comerciais, por consumidores dos centros urbanos e, no limite, pelo próprio estado Imperial, já que todos esses grupos viam as desvalorizações da moeda como ameaças ao acesso ao mercado e ao crédito internacional.

A resistência ao projeto hegemônico da estabilidade da moeda durante o tempo saquarema teria um dos seus capítulos mais interessantes entre os anos de 1857 e 1858. Mediante a pressão por ampliação da emissão monetária decorrente da expansão comercial e a política de conciliação conduzida pelo Marquês de Paraná, o projeto saquarema sofreria um revés. A ascensão de Bernardo de Souza Franco ao Ministério da Fazenda, entre os anos de 1857 e 1858, abriu espaço para uma política de aumento da oferta de crédito e da pluralidade de emissão. Souza Franco era antigo opositor das posições metalistas, defendendo que a economia precisava reverter a insuficiente oferta de capital à indústria e meio circulante aos mercados. Em seu mandato na Fazenda chegou a colocar em prática a pluralidade de emissão, tendo como suporte a posição do Presidente do Conselho de Ministros, o Marquês de Olinda, ainda que tivesse oposição dos conservadores no Parlamento, assim como dentro do Banco do Brasil, cuja presidência foi conduzida nos primeiros meses por seu antípoda, Rodrigues Torres. A experiência papelista de Souza Franco encontrou seu limite com a "primeira crise econômica capitalista de alcance mundial", aquela de 1857. A crise levou do país as reservas metálicas que davam lastro para o Banco do Brasil, acendendo ao governo um trade off entre a liquidez da economia e a desvalorização cambial. A instabilidade econômica seria suficiente para garantir a retomada do projeto saquarema depois de um breve interregno papelista na condução da política econômica imperial.

Quais as lições que a trajetória do segundo Banco do Brasil trazem para a análise da política econômica do Império brasileiro? No debate com os historiadores econômicos a problemática que constrói a interpretação de Thiago Gambi é a de avaliar se "o sentido dos bancos só podia ser o desenvolvimento econômico", isto é, se os bancos no Império eram instrumentos para a industrialização e para a organização capitalista das relações de trabalho e da produção. Sua resposta é negativa. Discordando de teses como de Luiz Carlos Delorme Prado (1991), que entende o fracasso do desenvolvimento econômico do país no século XIX pela falha da burguesia mercantil na condução de mudanças estruturais na economia brasileira, o autor recoloca a questão de avaliar qual era o projeto político saquarema. Será que esse projeto, como destacado acima, de construção de uma civilização na periferia não foi perseguido e exitoso no tempo saquarema?

Tal fato não significa que a estabilidade da política econômica não fosse objeto de disputas e de abalos, como o interregno de Souza Franco bem exemplifica. Mas aqui novamente Thiago Gambi oferece um caminho próprio para indicar as potenciais contradições entre medidas de política econômica e interesses dos grupos que lhes davam suporte. Em desacordo com a interpretação de André Villela (1999), a obra não assume a ideia de que existiria uma autonomia do Estado, pois este foi conduzido pelos interesses de uma classe senhorial, em que mesmo representado por grupos que podiam disputar as práticas econômicas, não se duvidava do alvo a ser alcançado: a civilização.2 Nesse sentido, a interpretação se aproxima da leitura de Flávio Saes (1986), ao identificar os limites da política deste grupo frente às condições impostas pelos credores estrangeiros ou pelo peso ideológico da doutrina metalista no período, mas também a obra acrescenta que a política econômica foi conduzida pelo ideal de um Império fundado na ordem e na civilização.

Nesse sentido, a política econômica e o projeto político eram faces de uma mesma moeda. Nas considerações de Thiago Gambi: "Rodrigues Torres, o Banco do Brasil e a política econômica do período nos remetem à interpretação de Ilmar Mattos, para quem os saquaremas imprimiram uma direção política e moral ao Império. No campo econômico, a direção política se expressaria no monopólio de emissão do Banco do Brasil, centralizando o controle da oferta de moeda na Corte. Já a direção moral se refletiria na rejeição da moeda fiduciária, um vício, e na busca da moeda forte, uma virtude, condição para a construção de um império civilizado nos trópicos". A atuação do segundo Banco do Brasil, em suma, garantiu a estabilidade econômica de uma civilização idealizada pelo projeto saquarema, que não era contraditória com os privilégios da classe senhorial, nem com a estrutura de uma economia mercantil escravista. Conforme O Banco da Ordem, o projeto de civilização desse grupo não passava pela concepção de se aproximar das nações centrais por meio da reprodução de suas estruturas econômicas, em transição para economias industrializadas e assalariadas, mas da aproximação via divisão internacional do trabalho, como país agrário-exportador, que não alteraria suas relações sociais e políticas tradicionais.

Como conclui o autor: se houve um tempo saquarema, houve um banco da ordem. Isto é, entre 1853 e 1866, a atuação do Banco do Brasil sintetizou o projeto econômico da poderosa elite Imperial que, por meio da centralização política buscava construir uma civilização na periferia, sustentando seu caráter de classe senhorial e de uma estrutura econômica mercantil escravista. Em suma, entre o crédito e a moeda, a moeda foi a prioridade dos saquaremas para a manutenção da ordem. O Banco da Ordem, portanto, é um bem-vindo exemplo de que o reconhecimento das cartas de intenções dos grupos que conduzem a política econômica são instrumentos valiosos. Mais valiosos, inclusive, do que a avaliação de erros e acertos das técnicas e das ferramentas econômicas, pois estas não alcançam a compreensão do sentido da dinâmica econômica e dos projetos sociais em disputa na sociedade.

  • 1
    O primeiro Banco do Brasil foi fundado em 1808, com a chegada da família real ao Brasil. Esse banco, contudo, teve sua liquidação em 1829 e uma tentativa de reorganização, sem sucesso, em 1833. O assim chamado segundo Banco do Brasil, portanto, recebe essa denominação por não ser considerado uma continuidade do primeiro projeto..
  • 2
    O autor identifica as contribuições de José Murilo de Carvalho (2008) conforme a perspectiva da autonomia do Estado, no caso, personificada pelo Conselho de Estado. Todavia, vale destacar que a tese de José Murilo para uma interpretação do projeto de Império de meados do oitocentos contribuiu para a compreensão dos interesses da classe senhorial conduzidos naquela oportunidade.

Referências

  • CARVALHO, José Murilo. A construção da ordem. Teatro de sombras Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
  • MATTOS, Ilmar. O tempo saquarema. A formação do Estado Imperial São Paulo: Hucitec, 2004.
  • PRADO, Luiz Carlos Thadeu Delorme. The failure of Brazilian economic development in the XIXth century Londres: University London (Tese de Doutorado), 1991.
  • SAES, Flávio Azevedo Marques de. Crédito e bancos no desenvolvimento da economia paulista, 1850-1930 São Paulo: IPE/USP, 1986.
  • VILLELA, André Arruda. The political economy of Money and banking in Imperial Brazil, 1850-1870 Londres: London School of Economics and Political Science, 1999.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2015
  • Aceito
    30 Set 2015
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