Resumo
O foco do presente artigo é o estudo da resistência, ocupação e qualificação de homens e mulheres escravizados na capital do Império do Brasil e arredores, entre 1875 e 1888. Para tanto, além de recuperar parte da bibliografia atinente ao tema, analisamos, inicialmente, informações decorrentes de 8.840 anúncios de fuga de cativos publicados em alguns dos principais jornais que circulavam na cidade do Rio de Janeiro e cercanias. Tal movimento preliminar foi pautado pela hipótese de que informações relevantes sobre a resistência, a ocupação e a qualificação desses indivíduos poderiam ser encontradas por meio dos anúncios indicados. Tal hipótese foi bem-sucedida e possibilitou a percepção, no âmbito dos recortes temporal e espacial indicados, da importância, da dinâmica e das características das fugas de escravizados; do vínculo existente entre qualificação, recompensa e republicação dos anúncios na mesma ou em diferentes folhas; do fato de que cerca de metade dos escravizados, que tiveram a sua ocupação indicada nos anúncios de fuga, exercerem atividades qualificadas; do fato de que não teria sido a falta de qualificação a razão da marginalização dos ex-escravizados no mercado de trabalho assalariado em formação, a partir do final do século XIX.
Palavras chave:
Resistência dos escravizados; Ocupação; Qualificação; Rio de Janeiro-Brasil; Século XIX
Abstract
The focus of this article is the study of the resistance, occupation and qualification of men and women enslaved in the capital of the Empire of Brazil and its surroundings, between 1875 and 1888. We analyzed information resulting from 8,840 captive escape advertisements published in some of the main newspapers that circulated in the city of Rio de Janeiro and its surroundings. This preliminary movement was guided by the hypothesis that relevant information about the resistance and the occupations and qualifications of these individuals could be found through the indicated advertisements. This hypothesis proved to be successful and made it possible for us to apprehend, within the scope of the temporal and spatial cuts indicated, for example: the importance, dynamics and characteristics of the escapes of enslaved people; the existing link between qualification, reward and republication of advertisements in the same or different daily sheets; the fact that about half of the enslaved who had their occupation indicated in the escape advertisements carried out qualified activities; the fact that the lack of qualification was not the reason for the marginalization of former slaves in the wage labor market in formation from the end of the 19th century onwards.
Keywords:
Resistance of the enslaved; Occupation; Qualification; Rio de Janeiro-Brazil; XIX century
A história não revela submissão e resignação, mas sobrevivência e revide. (Dean 1977, 15).
(...) Meu avô já foi escravo / Mas viveu com valentia / Descumpria a ordem dada / Agitava a escravaria / Vergalhão, corrente, tronco / Era quase todo dia / Quanto mais ele apanhava / Menos ele obedecia (...) / Neste mundo camará / Mas não há, mas não há / Mas não há quem me mande (...). (Pinheiro 2010).
1. Introdução
Este artigo se propõe a contribuir com as discussões acerca da resistência, da ocupação e da qualificação dos escravizados.1 1 Tais discussões são feitas, por exemplo, por: Santos (1980); Gebara (1988); Azevedo (1987); Reis (1989); Costa (1998a, 1998b); Salles (2008); Chalhoub (2011); Machado (2014); e Colistete (2021). Para tanto, além de resgatar parte da bibliografia pertinente, tem como hipótese inicial a concepção de que informações relevantes sobre tais temas poderiam ser encontradas nos anúncios de jornal que noticiaram a ocorrência de fugas de cativos ocorridas na cidade do Rio de Janeiro e arredores, um dos mais importantes centros escravistas de então, o principal entreposto responsável por direcionar cativos provenientes de outras áreas do Império para zonas pioneiras e maduras dedicadas a produção do café, como o Oeste paulista (Castro 1980Castro, Antônio Barros de. A economia política, o capitalismo e a escravidão”, in: José Roberto do Amaral Lapa (Org.), Modos de produção e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980.; Rossini 2019______. 2019. “A Importância da Criança Escravizada e seu Comércio no Oeste Paulista, 1861-1869”. Estudos Econômicos 49: 777-806., 2017), a área urbana mais relevantes do Império do Brasil, ligada a um vasto hinterland, possuidora de relevante porto vinculado ao comércio internacional e ao de cabotagem. Tendo tais aspectos em vista, o presente trabalho foi organizado a partir da coleta e leitura de 20.494 anúncios de fuga,2 2 Por meio da Hemeroteca Digital Brasileira, consultamos principais jornais no que diz respeito a publicação de anúncios de fugas de cativos: a Gazeta de Notícias, O Cruzeiro, O Globo e, sobretudo, o Jornal do Commercio. publicados entre 1875 e 1888.3 3 Apenas na Corte, segundo o censo de 1872, havia 274.972 habitantes, destes 226.033 eram livres (82,20%) e 48.939 escravos (17,7%). Nessa localidade, a soma de escravizados e pessoas livres negras resultava em 44,4% do total. Se considerarmos apenas a população negra, 59,9% era livre e 40% era cativa. Eliminada a expressiva redundância?decorrente da republicação de muitos anúncios, em diferentes edições do mesmo jornal, e/ou da sua impressão em distintos periódicos?chegou-se a 8.840 ocorrências. A partir destes documentos, foram acessados e trabalhados 1.948 códices que explicitavam a ocupação exercida pelos evadidos.
O recorte temporal mencionado se justifica por processos que atribuíram especificidades à dinâmica de trabalho, às fugas e às demais formas de resistência dos cativos. Além da abolição da escravidão em 1888, o início do período estudado decorre do esmaecimento, após alguns anos, das dúvidas relativas à continuidade do regime servil surgidas com a campanha e a promulgação da Lei do Ventre Livre (1871). Estes eventos, juntamente com o aumento do volume de café produzido e exportado, assim como a elevação da sua cotação internacional (até meados dos anos 1870), resultaram, na segunda metade dos anos 1870, no aumento do volume de escravizados comerciados no mercado interno e na manutenção dos seus preços elevados (Motta 2012____. 2012. Escravos Daqui, Dali e de Mais Além: o tráfico interno de cativos na expansão cafeeira paulista (Areias, Guaratinguetá, Constituição/Piracicaba e Casa Branca, 1861-1887). São Paulo: Alameda Casa Editorial.; Rossini 2019______. 2019. “A Importância da Criança Escravizada e seu Comércio no Oeste Paulista, 1861-1869”. Estudos Econômicos 49: 777-806., 2017) - ver item I do apêndice deste artigo.4 4 Tais processos foram acompanhados, no plano internacional, por maior contestação da escravidão em algumas partes do mundo e, simultaneamente, sua reestruturação e expansão sobretudo no Brasil, nos Estados Unidos e em Cuba. No caso do Brasil, o complexo escravista exportador cafeeiro (Mello 2009) teve centralidade para o regime brasileiro e para a interação do Império com a economia mundial do século XIX (Marquese e Salles 2016). O aumento da produtividade do trabalho cativo, a incorporação de novas tecnologias de produção e transporte, a prevalência da hegemonia britânica, a ascensão do liberalismo e dos movimentos e políticas abolicionistas constituem processos que caracterizam parte do século XIX (Tomich 2015). De um lado, tal cenário possivelmente ampliou a insegurança e a carga de trabalho e de violência sobre os cativos, estimulando as fugas e, de outro, favoreceu as tentativas de novo aprisionamento dos fugidos, o que fomentou a publicação dos anúncios de fuga.
Além desta introdução e das considerações finais, este artigo se divide em outros três momentos. Inicialmente, resgatamos parte da bibliografia que analisou os movimentos de resistência e as características da ocupação e qualificação dos escravizados ao longo do século XIX. Na sequência, abordamos os anúncios de jornal que comunicavam fugas de cativos. Por fim, a partir da documentação compulsada que explicitou informações relativas às ocupações dos cativos (1.948 ocorrências), procuramos responder algumas perguntas que permitiram a apreensão de aspectos demográficos e econômicos relevantes do grupo analisado e o diálogo com parte da bibliografia atinente ao tema. Entre as perguntas: (i) Quais foram a faixa etária, o sexo, a origem e a forma de fuga (individual ou em grupo) mais recorrentes? (ii) As fugas ocorreram mais frequentemente na área urbana ou rural? (iii) Para quais atividades os escravizados foram direcionados? (iv) Os cativos exerceram mais de uma ocupação ao longo da sua jornada de trabalho? (v) Houve um volume significativo de cativos qualificados, como conclui parte da bibliografia recente atinente ao tema (Salles 2008; Colistete 2021Colistete, Renato Perim. 2021. “Predicting Skills of Runaway Slaves in São Paulo, 1854-1887”. Working Paper nº 15. Department of economics, FEA-USP.)? (vi) Qual a relação que existiu entre as ocupações exercidas e a recompensa ofertada pela recaptura dos evadidos? (vii) Qual foi o nexo prevalecente entre qualificação, republicação dos anúncios no mesmo ou em diferentes jornais e recompensa oferecida pela recaptura dos fugidos?
2. Resistência, fugas, ocupação e qualificação
A dinâmica da economia mundial e os interesses das oligarquias do Império do Brasil garantiram a manutenção da escravidão, uma vez que formaram os alicerces que possibilitaram a esta instituição, sobretudo até o final da década de 1860, abrangente espraiamento social, geográfico e econômico. Tais dinâmica e interesses criaram condições favoráveis para a prevalência dos escravistas no Brasil, até meados dos anos 1880, e para que houvesse, ao longo dos anos 1860 e principalmente na década de 1870, uma concentração de parte importante dos 1.550.000 escravizados (censo de 1872), através do tráfico interno interprovincial, nas platations do Sudeste brasileiro. Cabe destacar, também, que a escravidão se tornou tão profunda e generalizada que a propriedade de cativos não se restringiu a senhores possuidores de grandes plantéis - tal cenário se efetivou sobretudo nos municípios açucareiros e cafeeiros, na segunda metade do século XIX (Marcondes 2005Marcondes, Renato Leite. 2005. “Desigualdades regionais brasileiras: comércio marítimo e posse de cativos na década de 1870”. Tese de Livre Docência. FEA-USP, Ribeirão Preto.). Pequenos posseiros, comerciantes, militares, padres, funcionários do Estado e até ex-cativos possuíam pequenos plantéis direcionados a uma grande variedade de ocupações (Luna, Costa e Klein 2009Luna, Francisco Vidal, Iraci del Nero da Costa e Herbert Klein. 2009. Escravismo em São Paulo e Minas Gerais. São Paulo: Edusp.; Canabrava 2005Canabrava, Alice Piffer. 2005. História econômica: estudos e pesquisas. São Paulo: Hucitec-Unesp.; Motta 1999Motta, José Flávio. 1999. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: Annablume.).
Independentemente do tamanho das suas posses, da dinâmica de transformação social e do surgimento de novas formas de trabalho5 5 Em virtude do desenvolvimento do capitalismo industrial, do mercado internacional e da consequente renovação e expansão da escravidão em algumas regiões do mundo, importa destacarmos que os escravizados mobilizados neste artigo interagiam no seio de uma sociedade em transformação e que a cidade do Rio de Janeiro e seus arredores constituíram, ao longo da década de 1870, uma das suas expressões mais avançadas no Brasil. Nesta sociedade em mutação, ao mesmo tempo em que as dinâmicas comercial e de produção do espaço urbano acompanharam, com diferentes níveis de intensidade, padrões observados em outras cidades do capitalismo central, a relação de trabalho predominante cedeu espaço a formas alternativas de organização do trabalho, sobretudo após o fim do tráfico transatlântico de cativos em 1850. Por exemplo, segundo Algranti (1988), as diversas ocupações exercidas pelo “escravo de ganho” e pelo “escravo de aluguel” no meio urbano foram fundamentais para a dinâmica do sistema, assim como foi central as novas formas de repressão, menos ostensivas que as do campo e protagonizadas pelo Estado, que passou a “feitorizar” os cativos, evidenciando que o escravismo soube lançar mão de instrumentos variados para se manter, adaptando-se à dinâmica inerente às modalidades mais modernas de acumulação da riqueza. - trabalhadores imigrante livres, escravizados de ganho e de aluguel -, controle, diversas formas de violência e medo foram necessárias para a manutenção do sistema e para impulsionar a produtividade do trabalho dos cativos de uma tal forma que caracterizaram a interação entre senhores - que acumulavam as atribuições de legislador, magistrado, comandante, juiz e verdugo (Tauney 2001Tauney, Affonso de E. 2001. O Manual do Agricultor Brasileiro. São Paulo: Cia das Letras.) - e escravizados, principalmente no âmbito das atividades rotinizadas exercidas por grupos e que demandavam maior esforço físico e pequena habilidade, tais como parte dos afazeres urbanos, da agricultura e da mineração em grande escala (Fenoaltea 1984Fenoaltea, Stefan. 1984. “Slavery and supervision in comparative perspective: a model”. Journal of Economic History 44 (3).). Mesmo Freyre (1979Freyre, Gilberto. 1979. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. Rio de Janeiro: Companhia editora nacional. Instituto Joaquim Nabuco de pesquisas sociais.), ao analisar de forma pioneira diversos anúncios de fuga de escravizados, enfatizou a existência de recorrente e acentuada violência.6 6 As evidências mobilizadas por Freyre - assim como por diversos outros autores, a partir de variadas fontes, tais como documentos judiciais, policiais, médicos, crônicas, “artigos científicos” e anúncios publicados na imprensa brasileira - fragilizam a histórica argumentação do próprio sociólogo de Apipucos acerca de uma escravidão amena, fraternal e colaborativa, pois tal como demonstra a passagem a seguir de Freyre, a violência era severa e frequente: “Numerosos os que apresentam, nas coxas ou nas costas, letras, sinais ou carimbos de propriedade, como hoje o gado, ou então, marcas de surra e castigo, o corpo deformado pela crueldade dos senhores brancos: uns manquejando, os quartos arreados em consequência de surras tremendas; outros com cicatriz de relho nas costas ou nas nádegas; ou então cicatriz de “anjinho”, de tronco, de corrente no pescoço, de ferro nos pés, de lubambo no tornozelo. Alguns com queimaduras na barriga. Pernas cambaias, joelho tocando um no outro, pernas tortas para dentro, joelhos metidos para dentro, pernas exageradamente finas, bambos arqueados, peitos estreitos, cabeças puxadas para trás ou achatadas de lado (...). Vários negrinhos de 10, 12 anos, já apareceram de coroa na cabeça... feita a força pelo peso de carretos brutos: tabuleiro, tijolo, areia, pipa, barril (...), os dedos dos pés torados por serem amassadores de cal e a cal lhes ter aberto feridas e comido os dedos; outros de dedos e munhecas inteiras comidos - talvez pelas moendas dos engenhos (...). Quase todos de pés e mãos enormes, deformados pelo trabalho” (Freyre 1979, 123). Essa envolvia, dentre outras, a separação das famílias por meio da venda (sobretudo quando temos em vista pequenos plantéis), correntes no pescoço, perseguição por cães, marcas com ferro em brasa, feridas esfregadas com sal, mutilação, tronco e chicote, algemas e peias que prendiam mãos e pés e máscaras de ferro que eram colocadas naqueles que furtavam comida ou comiam terra.7 7 Como evidenciou Sílvia Lara (1988), as leis e a sociedade, com o intuito de minimizar a possibilidade de rebeliões de escravizados, reconheciam que era necessário evitar castigos excessivos. Contudo, era consenso, tal como indica o Manual do agricultor brasileiro, publicado em 1839, que para fazer os cativos trabalharem adequadamente a violência e o medo eram necessários. Esses, todavia, deveriam ser empregados “com muito sistema e arte, porque o excesso obraria contra o fim que se tem em vista (...)” (Taunay 2001). Coerentemente, o Código Criminal do Império, de 1830, vedava o açoitamento de pessoas livres, mas facultava esse castigo aos escravizados.
Este cenário de brutalidade extrema enfrentou reiterada resistência dos escravizados. Fazer “corpo mole” no trabalho, quebrar ferramentas, incendiar plantações, promover revoltas coletivas (Santos 1980Santos, Ronaldo Marcos. 1980. “Resistência e superação do escravismo na Província de São Paulo”. Ensaios Econômicos.; Reis 1986Reis, João José. 1986. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês (1835). São Paulo: Brasiliense.; Costa 1998b____. 1998b. Coroa de glória, lágrimas de sangue: a rebelião dos escravos de Demerara em 1823. São Paulo. Companhia das Letras.), agredir e assassinar senhores e feitores,8 8 Os assassinatos de senhores ou feitores cometidos por cativos eram relativamente frequentes. Em Campinas, entre 1831-1887, ocorreram 79 casos, principalmente (70%) executados por “crioulos” (nascidos no Brasil), que residiam na propriedade dos seus senhores por seis ou mais anos (2/3 das ocorrências) (Machado 2014). No Rio Grande do Sul, entre 1818 e 1833, houve 104 homicídios envolvendo escravizados. 47% dos casos envolveram senhores e feitores. Em apenas 22 casos escravizados foram mortos por outros cativos (Lima 1997). formar quilombos, fugir e furtar - ações executadas por escravizados e mais eventualmente por meio de associações entre cativos e pessoas livres da raia miúda (Wissenbauch 1998) -, além das tentativas de suicídio, evidenciavam como os escravizados se comportaram como agentes históricos que fizeram fracassar o intento dos senhores de condicioná-los a um cativeiro implacável (Mattos 2015Matto, Hebe. 2015. Das cores do silêncio. Campinas: Ed. Unicamp.; Chalhoub 2011Chalhoub, Sidney. 2011. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras.; Slenes 2013Slenes, Robert. 2013. Na senzala uma flor. Ed. Unicamp.; Goés 1993Goés, José Roberto. 1993. Um Cativeiro imperfeito: um estudo sobre a escravidão no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. Vitória: Lineart.) e também “o retrato de um povo muito rebelde que perturbava a paz de espírito e ameaçava a prosperidade material de seus senhores” (Karasch 2000Karasch, Mary. 2000. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras., 398). Cabe assinalar que tais agências de cativos problematizam formulações que consideram o peso da escravidão e da opressão senhorial determinantes para uma suposta indiferença ou anomia dos grupos subordinados, incapacitando-os à ação política diligente e sensata, tal como advogado por Fernando Henrique Cardoso (1977Cardoso, Fernando Henrique. 1977. Capitalismo e escravidão meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra.).
Há que se reconhecer, todavia, a “força da escravidão” (CHALHOUB, 2012____. 2012. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista São Paulo: Companhia das Letras.) decorrente da capacidade dos senhores em preservar o sistema, a despeito das pressões externas próprias da arena internacional pós-napoleônica, dos movimentos contraditórios originados na cúpula do Império do Brasil relacionados ao reconhecimento da independência brasileira e à turbulenta quadra regencial (Marquese e Salles 2016Marquese, Rafael e Ricardo Salles. 2016. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. 1a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.; Parron 2011Parron, Tâmis Peixoto. 2011. A Política da Escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.) e das pressões dos escravizados que, além do enfrentamento violento ao regime, pleitearam persistentemente horas livres, autorização para praticar sua religiosidade e costumes, áreas para cultivo, além de recorrerem, principalmente na província do Rio de Janeiro, ao Poder Judiciário, colocando em primeiro plano certas brechas na lei que pudessem lhes conceder a liberdade.9 9 Com relação a este último ponto, ver: Genovese (1974); Queiroz (1977); Santos (1980), Gebara (1986, 1988); Machado (2014); Lara (1988); Azevedo (1999); Grinberg (2001); Chalhoub (2011); Slenes (2013); e Mattos (2015). Tal como afirma Reis e Silva (1989Reis, João José e Eduardo Silva. 1989. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras., 48), “os escravos inventaram e levaram à quase perfeição uma singular astúcia pessoal na exploração das brechas do poder escravocrata.”
Centrando a atenção nas fugas, percebe-se que essa forma de resistência foi inerente ao regime escravista. Desde o princípio, em todas as sociedades escravistas americanas, escravizados reagiram fugindo do cativeiro; essa foi uma ocorrência comum e generalizada. Tais ações foram individuais e coletivas e motivadas não apenas pela violência e pelo trabalho árduo e incessante, mas também por problemas cotidianos, por um modo de vida terrível e pela falta de enraizamento no grupo dos escravizados, por ausência de laços familiares (Reis 1999Reis, Isabel Cristina Ferreira dos. 1999. “Uma negra que fugio, e consta que já́ tem dois filhos”: fuga e família entre escravos na Bahia”. Afro-Ásia 23.; Matoso 2001; Florentino 2003Florentino, Manolo. 2003. “Dos escravos, forros e fujões no Rio de Janeiro imperial”. Revista da USP - Dossiê Brasil Império 58: 104-115.). Centros urbanos, com densa e diversificada população, eram espaços recorrentemente utilizados pelos fugitivos, que se abrigavam entre os negros livres ou libertos (Klein e Vinson III, 2015Klein, Herbert S. e Ben Vinson III. 2015. A Escravidão Africana na América Latina e Caribe. Brasília: Editora Universidade de Brasília.). Contudo, era no ambiente rural que as fugas evoluíam para a criação de comunidades autônomas, os quilombos, que conflitavam ou negociavam com a sociedade escravista se tornando fator de preocupação para autoridades e proprietários de terras.
Outro aspecto relevante surge quando temos em vista que parte da produção acadêmica, tal como Amantino e Florentino (2012Florentino, Manolo e Márcia Amatino. 2012. “Fugas, quilombos e fujões nas Américas (séculos XVI-XIX)”. Análise Social 203.) e Klein e Vinson III (2015Klein, Herbert S. e Ben Vinson III. 2015. A Escravidão Africana na América Latina e Caribe. Brasília: Editora Universidade de Brasília.), destaca que as fugas muitas vezes foram utilizadas como fator de negociação por melhores condições de vida e trabalho, por isso muitos casos se caracterizavam como escapadas temporárias nas quais os cativos permaneciam nas proximidades da propriedade de seu senhor. Os últimos autores citados, seguindo sugestões de Cardoso (1987Cardoso, Ciro Flamarion Santana. 1987. Escravo ou Camponês O Protocampesinato Negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense.), demonstraram que as fugas tencionavam de tal forma o sistema, em virtude dos possíveis custos decorrentes de ausências prolongadas ou permanentes, que alguns proprietários cediam lotes de terra aos seus cativos e permitiam períodos de ócio e maior autonomia em domingos e dias santos como tentativa de amenizar os conflitos cotidianos e, assim, diminuir os prejuízos econômicos10 10 Ver também: Slenes (2013); Conrad (1988); e Machado (2014). .
Seja fugindo individualmente (como veremos à frente, situação mais recorrente) ou em grupo para cidades, matas próximas ou distantes, o número de cativos que resistiu à escravidão por meio das fugas foi enorme. Alguns dados, além dos quase 9 mil casos mobilizados neste artigo, permitem uma dimensão da importância desta forma de resistência. A prisão central da província do Rio de Janeiro, em 1826, listou 895 cativos fugitivos, a maioria recapturada no interior da província (Karasch 2000Karasch, Mary. 2000. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras.). Flávio Gomes (1996Gomes, Flávio dos Santos. 1996. “Jogando a Rede, Revendo as Malhas: Fugas e Fugitivos no Brasil Escravista”. Tempo 1: 67-93.), em estudo organizado por meio de registros policiais da cidade do Rio de Janeiro relativos ao período 1800 e 1830, evidenciou um total de 5.363 escravizados fugitivos recapturados, dos quais 80% eram africanos. O mesmo autor, ao pesquisar os jornais A Gazeta do Rio de Janeiro e o Diário do Rio de Janeiro, entre 1809 e 1821, constatou que 1.258 africanos foram listados como fugitivos. Estes, em geral, eram mais jovens do que os escravizados evadidos nascidos no Brasil. Ademais, tal como Soares (2007Soares, Luiz Carlos. 2007. O Povo de Cam na capital do Brasil: Escravidão urbana no Rio do séc. XIX. Rio de Janeiro: FAPERJ/7 Letras.) evidencia, os cativos evadidos e recapturados representaram 42% do total de prisioneiros do presídio da cidade do Rio de Janeiro, entre 1810 e 1830 (desse grupo, apenas 178 eram mulheres).11 11 Parte da sistematização das informações presentes neste parágrafo foi decorrente de Luna e Klein (2010). Diversos outros aspectos acerca dos processos de resistência dos escravizados foram tratados, por exemplo, por Mattoso (1982), Reis (1989, 1996), Gomes (2002, 1996), Machado (2010, 2014), Ferreira (2020), Chalhoub (2011), Chalhoub e Silva (2009) e Graham (2002). Esses trabalhos, assim como os demais mobilizados neste artigo, evidenciam diferentes temas e abordagens que nos permitem colocar em primeiro plano a importância, a multiplicidade e a complexidade da agência dos cativos e da dinâmica do escravismo no Império do Brasil, resultante, em parte, dos nexos existentes entre as dinâmicas global e local.
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Antes de explorarmos as possibilidades da documentação compulsada, recuperamos, de forma panorâmica, elementos acerca das ocupações e qualificações dos cativos.
Pesquisas publicadas, sobretudo a partir da década de 1980, oferecem rico quadro das ocupações exercidas por esses indivíduos e dos mecanismos de controle criados pelo Estado para permitir o seu trabalho no ambiente urbano com o feitor ausente. Parte dessa produção indica que o Império do Brasil foi um exemplo de lugar onde os escravizados estavam presentes em quase todas as ocupações, incluindo as que demandavam maior nível de qualificação, exercidas principalmente no ambiente urbano. Tais conclusões são corroboradas pelo censo de 1872, realizado pelo Império do Brasil, que evidencia, como o exemplo de Minas Gerais já havia revelado12 12 Os proprietários de Minas Gerais empregaram os seus cativos principalmente para atender demandas domésticas. Além da pecuária, do processamento de alimentos e da produção de grãos e tubérculos, havia número significativo de escravizados em profissões qualificadas e semiespecializadas, como demonstra o censo realizado em Minas Gerais, entre 1831 e 1832, que permaneceu inédito. Por meio deste documento, é possível apreender que cerca de 14% dos 88 mil escravizados adultos foram listados como qualificados e trabalhadores não agrícolas semiqualificados. Esses foram empregados sobretudo em atividades de fiação e tecelagem de algodão. Além disso, os artesãos escravizados compunham 20% de todos os trabalhadores em fiação e tecelagem, 28% daqueles vinculados à construção e cerca de 25% das cativas adultas estavam direcionadas a ocupações não domésticas (Godoy 2004). , a existência na força de trabalho escravizada de proporção significativa de indivíduos que não estavam diretamente relacionada à agricultura de exportação. O censo de 1872 indicou que havia 345 mil cativos economicamente ativos que não se dedicavam diretamente à agricultura. Esses representavam 10% dos 126.000 trabalhadores das fábricas têxteis, primeira grande atividade industrial do Brasil. Os 175 mil cativos que estavam no serviço doméstico representavam 15% dos escravizados economicamente ativos. Também foi relevante o volume de cativos vinculado à construção, à alvenaria, à cantaria (talhar blocos de rocha bruta) e aos ofícios afins (corresponderam a cerca de 19% de todos os trabalhadores dessas atividades). Os escravizados jornaleiros, por sua vez, representaram 23% do total. Por fim, havia ocupações que, embora os indivíduos em situação de escravidão representassem uma pequena parcela, seu número absoluto chama atenção. Foi o caso das costureiras, em que as 41 mil cativas direcionadas a esta atividade representavam 8% do total dos empregados nessa ocupação (Luna e Klein 2010Luna, Francisco Vidal e Herbet Klein. 2010. Escravismo no Brasil. São Paulo: Edusp.).
Lançando luz sobre ocupações dos cativos localizados na Província do Rio de Janeiro e no Município Neutro, a partir de informações do censo de 1872 (Quadro 1), percebemos a existência de contingentes importantes de indivíduos (em relação à soma geral de livres e escravizados da localidade) envolvidos com atividades especializadas. No Município Neutro, conjuntos relevantes de escravizados trabalhavam como operários com metais (10%), madeira (12%), edificações (22%), couros e peles (12%), vestuário (10%) e calçados (10%). Na Província do Rio de Janeiro chama atenção, a despeito do menor volume total de trabalhadores livres e cativos vinculados às atividades especializadas, a proporção de escravizados envolvida com metais (18%), madeira (29%), tecido (38%), edificações (26%), calçados (20%) e costura (32%). Tal cenário refuta, como sinaliza Soares (2007Soares, Luiz Carlos. 2007. O Povo de Cam na capital do Brasil: Escravidão urbana no Rio do séc. XIX. Rio de Janeiro: FAPERJ/7 Letras.), interpretações que afirmam que os trabalhadores escravizados, mesmo aqueles dedicados às atividades industriais, eram direcionados somente para tarefas não especializadas. Para mais, também foi significativo o número de escravizados que trabalharam como criados e jornaleiros (23% de todos os ocupados nesta função) e realizando serviços domésticos. Dos 55.011 trabalhadores envolvidos nesta última atividade, 42% eram cativos.13 13 Sobre as ocupações dos cativos localizados no município que sediava a corte, entre 1789 e 1839, ver Lima (2010) e Lima (2000). Sobre a dinâmica de trabalho dos escravizados em outros cenários, ver: Graham (1976); Schwartz (1985, 1888); Ferlini (2003); e Godoy (2004). Para além desses, chamo atenção para os trabalhos recentes de Lambais (2020) e Colistete (2021). O primeiro evidencia, dentre outras coisas, que os quilombos, existentes em várias partes do Brasil - em virtude da transmissão intergeracional de aspectos culturais, comunitários, de ação coletiva e também de habilidades (como o trabalho em ferro) - influenciaram positivamente o desenvolvimento de ocupações mais qualificadas e a atividade econômica regional de longo prazo (capturada por meio da intensidade das luzes noturnas). Colistete, discutindo informações decorrentes da província de São Paulo, procurou apreender a qualificação dos escravizados por meio de procedimento semelhante ao adotado neste trabalho, isto é, utilizando informações presentes em anúncios de fuga de cativos publicados durante a segunda metade do século XIX. A partir da coleta e análise de 3.376 anúncios, o autor, além de apresentar um quadro geral das habilidades dos escravizados evadidos como base nos anúncios que explicitaram as suas ocupações (cerca de 30% dos casos), tentou prever as qualificações dos demais, isto é, dos indivíduos cujos anúncios de fuga não fizeram referências à sua ocupação. Para tanto, recorreu a dados individuais sobre sexo, idade, etnia, residência, particularidades físicas e outras características. A previsão para o grupo sem habilidades conhecidas foi realizada por meio de algoritmos de classificação de aprendizado de máquina. Os resultados evidenciam que cerca de metade dos escravizados que empreenderam fugas foram trabalhadores qualificados e destinados a ocupações artesanais. Esses eram sobretudo homens, residentes em áreas rurais, mais velhos do que suas contrapartes pouco qualificadas. Entre outras características relacionadas com a divisão do trabalho e a especialização, segundo Colistete, os africanos parecem não ter sido desfavorecidos na alocação de empregos artesanais e a diferença de habilidade entre mestiços e negros fugitivos era pequena.
Essas informações evidenciam, importa pontuar, que os escravizados artífices, sejam relacionados às primeiras ocupações indicadas no parágrafo anterior, sejam atuando como jornaleiros, foram indispensáveis ao desenvolvimento das cidades e fonte de lucro para os seus proprietários. Ademais, o fato de essas atividades permitirem ao cativo, quando de ganho e vivendo na cidade, ser menos fiscalizado e controlado - já que a sua vida passou a ser mais regulada pelo Estado - e reter parte ou a totalidade do valor excedente da taxa diária estabelecida pelo seu senhor, possibilitou o esmaecimento da relação escravista de produção no interior da escravidão (Silva 1998Silva, Marilene Rosa N. da. 1998. Negro na Rua. A Nova Face da Escravidão. São Paulo: Hucitec.).
3. As fugas de escravizados nos anúncios de jornal
A preocupação dos proprietários e autoridades em coibir a reação dos escravizados, em minimizar o volume de produção não realizada e a perda de capital teve como um dos seus resultados a vinculação da imprensa aos negócios da escravidão por diferentes meios, tais como editoriais, artigos, “seções científicas” e anúncios, que abordavam diferentes aspectos do regime escravista e, reiteradamente, procuravam legitimar a instituição no âmbito de um cenário marcado por permanente pressão abolicionista genérica e internacionalista e por oposição contínua, por parte da Inglaterra, ao tráfico transatlântico de escravizados e, no limite, contra a própria escravidão (Tomich 2004Tomich, Dale. 2004. Through the Prism of Slavery: Labor, Capital and World Economy. Lanham, Rowman & Littlefield.). Tal conexão se deu a partir da criação da Imprensa Régia, em 1808, e consequente inauguração dos jornaisGazeta do Rio de JaneiroeCorreio Braziliense. No Brasil, a contar daí, em virtude da sua disseminação e por serem expressão de regularidades, da manifestação do típico em detrimento do atípico (Freyre 1979Freyre, Gilberto. 1979. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. Rio de Janeiro: Companhia editora nacional. Instituto Joaquim Nabuco de pesquisas sociais.), os jornais passaram a ser fonte relevante de informações massivas e seriadas. Elementos muito difundidos nos jornais que circularam no Brasil, foram os anúncios sobre escravizados. Tais documentos normalmente estavam localizados nas últimas páginas dos jornais, juntamente com os demais anúncios, e expressavam discursos, ideias e visões de mundo hegemônicas e condizentes com as expectativas e receios da época (Volóchinov/Bakhtin 2017Volóchinov, Valentin (Círculo de Bakhtin) / Bakhtin, Mikhail. 2017. Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. São Paulo: Editora 34.) e noticiavam, a título de exemplo, fugas, vendas, leilões, doações, locação e a intenção de compra por parte de algum senhor(a) (Schwarcz 1987Schwarcz, Lilia Moritz. 1987. Retrato em Branco e Negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras.).
Dentre esses diversos anúncios, chama atenção, em virtude dos objetivos deste artigo, aqueles que divulgavam fugas de cativos. Esses documentos evidenciam a reiterada resistência ao regime, a importância e perenidade da agência dos cativos e o anseio dos anunciantes de recuperar aqueles que mantinham em cativeiro. Tais impressos também lançam luz sobre aspectos relevantes e atinentes: a ocupação dos cativos; a violência exercida pelos senhores, pois muitos anúncios contêm informações sobre cicatrizes, problemas físicos resultantes de espancamentos e de rotina árdua de trabalho (ver nota n. 6); aspectos socioeconômicos das localidades em que eram publicados14 14 Aparentemente, o primeiro anúncio desse tipo foi publicado nas páginas da Gazeta do Rio de Janeiro, cuja circulação teve início em 1808 e tratou da fuga do cativo Matheus, ocorrida em 07/01/1809. O anúncio foi publicado por Antônio José Mendes Salgado de Azevedo Guimarães, que se comprometeu a pagar os gastos com a captura do escravizado e recompensar aquele que o apanhasse, em 12$800 réis (Neves 2012). . Além dos elementos indicados, cabe colocar em primeiro plano o fato de que tais escritos constituem material de pesquisa apropriado para os nossos fins, pois, além de serem menos marcados por narrativas parciais e filtros ideológicos do que as reportagens, os editoriais e os artigos assinados, são copiosos, seriados e possuem estrutura similar. Para além das características positivas, essa fonte documental tem problemas. Os anúncios não contemplam a totalidade das fugas, pois os custos poderiam desestimular os senhores de poucas posses, principalmente quando temos em vista que muitas vezes esses comunicados deveriam ser publicados em diversas edições do mesmo jornal ou em “folhas” diferentes para serem mais eficazes. O fato de haver boa chance de capturar fugitivos ainda nas proximidades do local da fuga, com a ajuda de policiais ou caçadores de fujões também diminuía o volume de anúncios. Para mais, como ficará evidente, as escravizadas aparecem sub representadas, pois havia obstáculos adicionais para fugirem e, também, outras estratégias para alcançarem a liberdade, como apontaremos à frente. Por fim, outros aspectos problemáticos decorrem do fato dos diferentes jornais possuírem coberturas geográficas desiguais e da prevalência de baixa alfabetização15 15 De acordo com o censo de 1872, excluindo os menores de 5 anos, 70,5% dos homens e 84,3% das mulheres eram analfabetos. Apenas na cidade do Rio de Janeiro, cerca de metade da população sabia ler e escrever. e difusão da imprensa no Império do Brasil (Colistete 2021Colistete, Renato Perim. 2021. “Predicting Skills of Runaway Slaves in São Paulo, 1854-1887”. Working Paper nº 15. Department of economics, FEA-USP.).
A riqueza de informações presentes nos documentos que temos em vista (ver itens de II a V do apêndice) possibilita investigar a ocupação e a qualificação dos cativos e aspectos atinentes à dinâmica das fugas empreendidas por eles, como por exemplo: (i) o volume de fugas por ano e por sexo; (ii) a idade e origem dos fugidos; (iii) o local das fugas; (iv) o número de indivíduos que participou de cada uma uma fugas. Também tivemos acesso às gratificações ofertadas pela recaptura ou por informações dos evadidos (por sexo, idade, ano do anúncio e qualificação). Pode-se, ainda, discutir a relação existente entre a recorrência das fugas e as fases ascendentes dos ciclos econômicos, que, em virtude da escassez de trabalhadores, a partir do fim do tráfico transatlântico, possivelmente implicaram na maior exploração dos escravizados já empregados.
Para acessar a documentação que permitiu a redação deste artigo, utilizou-se o site da Hemeroteca Digital Brasileira e foram consultados os jornais que possuíam ao menos 10 eventos relacionados à fuga de cativos, no âmbito dos recortes temporal e espacial adotados. Tendo-se no horizonte tal critério e a hipótese de que poderíamos encontrar, além de informações sobre a resistência, dados relevantes sobre ocupação e qualificação de cativos por meio dos anúncios de fuga publicados no Rio de Janeiro, foram consultados os periódicos O Cruzeiro, O Globo, a Gazeta de Notícias e, sobretudo, o Jornal do Commercio.16 16 Em decorrência do escasso espaço que dispomos e da maior relevância para o presente artigo, resultante do maior número de anúncios de fuga publicados, apresentamos, no apêndice deste trabalho, informações sobre as duas últimas “folhas diárias” mencionadas. Os dados coletados nos anúncios compulsados foram dispostos em planilha cuja estrutura fora previamente organizada tendo em vista a possibilidade de diálogo com outras pesquisas que abordaram a resistência, a ocupação e a qualificação de cativos e os subsídios resultantes das nossas leituras, tanto da bibliografia de referência quanto dos documentos mobilizados. Após a conclusão do banco de dados, foi realizada minuciosa conferência e as diversas redundâncias existentes - em virtude da republicação do mesmo anúncio em diferentes números do mesmo jornal (houve casos em que o mesmo anúncio foi republicado por mais de 40 vezes) ou da publicação do mesmo anúncio em diferentes periódicos - foram eliminadas.
4. Exposição e análise dos dados compulsados
Tal como já indicado, as análises subsequentes, que fornecem respostas para as perguntas relacionadas na introdução deste artigo, foram realizadas a partir da coleta de 8.840 anúncios de fugas (já excluídos os documentos redundantes) publicados na cidade do Rio de Janeiro, entre 1875-1888, número que ganha relevância quando temos em vista que, de acordo com o Recenseamento brasileiro de 1872, a cidade do Rio de Janeiro possuía 48.939 cativos (24.886 homens e 24.053 mulheres) e uma população total de cerca de 275 mil “almas”. Dessas quase 9 mil fugas, 6.233 (70%) foram empreendidas por homens e 2.606 por mulheres (a maioria dos indivíduos destes grupos possuía entre 21 e 40 anos de idade), o que resulta na razão de sexo de 239,17 escravizados por 100 escravizadas17 17 A razão de sexo resulta da divisão do número de homens pelo número de mulheres - (H/M)*100 -, em determinado espaço geográfico e em certo período. Normalmente é expresso como o número de homens por 100 mulheres. . Das evasões ocorridas principalmente no meio urbano, 17,82% aconteceram em grupo. Ademais, identificou-se que os anúncios foram publicados preponderantemente a pedido de homens e que não houve diferença relevante entre o volume de mestiços e negros com algum tipo de qualificação - tal como indicado por Colistete (2021Colistete, Renato Perim. 2021. “Predicting Skills of Runaway Slaves in São Paulo, 1854-1887”. Working Paper nº 15. Department of economics, FEA-USP.) -,aferiu-se também a origem de 3.682 cativos, 83,76% dos quais eram “crioulos” ou nascidos no Brasil.
Dos quase 9 mil anúncios mencionados, tornaram-se objeto privilegiado de análise neste artigo 1.948 ocorrências que evidenciaram as ocupações dos evadidos. Os dados apresentados no Quadro 2 expõem informações decorrentes desse conjunto de documentos que permitem apreender alguns aspectos importantes, tais como: dentre os fugitivos que tiveram a sua idade indicada (muitas vezes de forma aproximada), o maior volume se encontrava nas faixas etárias de 21 a 30 anos (31,47%) e de 31 a 40 anos (16,84%) - como no caso da constatação mais geral indicada no parágrafo anterior; ao longo de todo o recorte temporal tido em vista, a razão de sexo entre os fugitivos com ocupação explicitada nos anúncios foi de 845,63 homens por 100 mulheres, portanto, significativamente maior do que a observada no grupo de escravizados com e sem ocupação indicada nos documentos compulsados (8.840 casos).
A baixa participação das mulheres cuja ocupação foi explicitada nos anúncios de fuga (10,6% dos evadidos), provavelmente está relacionada com a sua condição de mãe e com a construção mais recorrente de outras formas de luta contra a escravidão, como a conquista da liberdade por meio do acúmulo de pecúlio e compra da própria alforria. Tal possibilidade estava prevista na Lei do Ventre Livre (1871), e foi utilizada mais usualmente pelas mulheres, pois elas foram mais demandadas para a realização de serviços que permitiam tal acúmulo, como os domésticos e, também, contaram com o esforço empreendido pela comunidade de cativos e ex-escravizados para levantar o montante necessário - a comunidade atribuía importância à liberdade das escravizadas, já que isso permitia o subsequente nascimento de filhos livres e, a partir da Lei de 1871, sem a necessidade de prestar serviços até a idade de 21 anos completos. A possibilidade da alforria inclusive incentivou, tal como evidencia Silva (2016), por um lado, a agência das cativas no sentido de desvalorizar o seu preço para facilitar a compra da sua liberdade - desobediência, displicência, ações que ocasionavam pequenos prejuízos, os pedidos de proteção a famílias inimigas dos senhores, foram algumas das estratégias utilizadas - e, por outro, sacrifícios diversos como trabalhar durante os escassos momentos de folga, negociar o preço da sua alforria e o uso, com a ajuda de intermediários livres, de meios jurídicos para a determinação do seu preço (movimentos importantes, pois a Lei de 1871 não estipulou um preço máximo para as manumissões), para a efetivação da liberdade que havia sido prometida por meio de cartas de alforria condicionais, assim como da liberdade dos seus filhos nascidos a partir de 1871.
Torna-se notório, por meio do Gráfico 1, que o número de anúncios de fuga aumentou entre 1875 e 1878, o que pode ser explicado, em parte, pela diminuição das dúvidas sobre à continuidade da escravidão, presentes nos anos imediatamente subsequentes à publicação da Lei Ventre Livre (1871) (Rossini 2017Rossini, Gabriel Almeida Antunes. 2017. “Notas sobre o comércio doméstico de escravos no oeste Paulista, 1875-1880”. America latina en la historía económica 24: 243-243.; Motta 2012____. 2012. Escravos Daqui, Dali e de Mais Além: o tráfico interno de cativos na expansão cafeeira paulista (Areias, Guaratinguetá, Constituição/Piracicaba e Casa Branca, 1861-1887). São Paulo: Alameda Casa Editorial.)18 18 Tal dinâmica pode ser indiretamente apreendida por meio do comportamento do preço doméstico dos escravizados presente no Gráfico 13, localizado no apêndice deste artigo. , que, ao lado da dinamização do mercado mundial de café, impulsionou a demanda doméstica de cativos por parte dos senhores que atuavam nas zonas economicamente mais dinâmicas - o que, consequentemente, aumentou o fluxo de escravizados pela cidade do Rio de Janeiro, maior entreposto brasileiro de cativos. É possível dizer que tal cenário, aliado à menor elasticidade da oferta de trabalhadores, além de estimular os senhores da cidade do Rio de Janeiro e arredores, vinculados às ocupações menos vantajosas, a alienarem parte dos seus trabalhadores para regiões e atividades mais prosperas, por um lado, aprofundou a incerteza em relação ao futuro, pois o volume de trabalho e a brutalidade que recaíam sobre os escravizados, além de estimular as fugas, deu fôlego renovado às ações de recaptura dos fugidos e, por extensão, à publicação de anúncios. Por sua vez, a queda do número de anúncios publicados a partir de 1879 talvez tenha relação com o início das discussões que culminaram, em 1881, na promulgação de tributos que tornaram o tráfico interprovincial de cativos proibitivo, favorecendo novo enfraquecimento do regime e certo abatimento do ímpeto dos proprietários em incorrer nos custos envolvidos na tentativa de recapturar os fugitivos. De mais a mais, os proprietários do Sudeste brasileiro há alguns anos já direcionavam seus esforços para incorporarem trabalhadores imigrantes (Costa 1998aCosta, Emília Viotti da. 1998a. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Cia das Letras.). O movimento de queda das fugas anunciadas ainda se acentuou em meados dos anos 1880, em virtude da relevante atuação do movimento abolicionista, da promulgação da Lei do Sexagenário ou Lei Saraiva-Cotegipe (Lei n.º 3.270) e da maior consciência acerca da proximidade do fim do regime. Como esperado, os movimentos indicados foram corroborados pela magnitude das recompensas oferecidas. Enquanto em 1878 o montante nominal médio oferecido pela recaptura dos fugitivos foi de 139$566, em 1885 foi de 135.170 e, por fim, em 1887-88 foi de 82$177.19 19 Com relação à dinâmica dos preços, em termos gerais, observou-se na segunda metade do século XIX tendência à elevação. No entanto, os preços oscilaram de forma contraditória nos ciclos menores. O preço de importação do café brasileiro nos EUA subiu de forma consistente entre 1869 e 1873, mas sofreu queda importante a partir de 1873. Em 1879, o preço do café importado pelos EUA baixou até meados dos anos 1880 (a despeito de oscilação positiva em 1884). Os preços do açúcar e do algodão também diminuíram no início dos anos 1880. O restabelecimento da paz, decorrente do fim da guerra contra o Uruguai e o Paraguai, e a recuperação dos preços do café diminuíram a restrição das importações, sobretudo de gêneros alimentícios preteridos pela compra de material bélico, e trouxeram alguns anos de deflação até 1889. Contudo, a ascensão dos preços do café e o aprofundamento da economia de plantation devem ter contribuído para a falta de estímulo na lavoura dos gêneros de consumo interno e consequente aumento dos seus preços (Lobo et al., 1971). Por sua vez, podemos nos aproximar dos preços dos escravizados por meio do Gráfico 2 presente no item I do apêndice.
Nos anúncios que indicavam a ocupação dos cativos, foi recorrente a ausência do nome dos anunciantes, o que impediu a identificação do sexo em 54% dos casos (tal ausência também foi notória no âmbito dos anúncios que não explicitavam a ocupação dos fugidos) - foram identificados 806 anúncios publicados por homens e apenas 92 por mulheres. Fato que pode ser consequência da intenção dos proprietários de buscarem se preservar da “grande onda antiescravista” então prevalecente (Blackburn 2016).
Com relação à origem dos escravizados evadidos, predominaram os anúncios sem essa indicação. Entre aqueles que tiveram a sua origem mencionada, os que nasceram no Império do Brasil (“crioulos”) constituíram 85%. Também chama atenção os 133 cativos africanos com ocupação explicitada nos anúncios, já que esse grupo é formado por indivíduos com idade média de cerca de 50 anos, o que evidencia que grande parte foi traficada para o Império do Brasil ilegalmente, isto é, ao arrepio da Lei Feijó, de 7/11/1831. O que, dentre outras coisas, sinaliza que os processos de camuflagem do grande contingente de africanos ilegalmente escravizados para dar aparência de legalidade à propriedade cativa produzida por contrabando foram socialmente amplos e enraizados.20 20 Cabe enfatizarmos que, a partir da Lei Feijó, a maioria dos africanos escravizados no Brasil e todos os seus descendentes foram mantidos ilegalmente na escravidão até 1888. Tal como afirma Alencastro (2010, 7), “boa parte das duas últimas gerações de indivíduos escravizados no Brasil não era escrava. Moralmente ilegítima, a escravidão do Império era ainda - primeiro e sobretudo - ilegal”. Ocorreu de fato, um pacto entre os sequestradores que constitui, de acordo com o mesmo autor, o pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira que ajudou a firmar a impunidade e o casuísmo da lei que marca a nossa história. A nossa pesquisa também permitiu verificar outra informação que corrobora essa conclusão, qual seja: a existência de 466 africanos que não tiveram a sua ocupação explicitada. 301 entre 1875 e 1879, com idade média de 46 anos e 165 entre 1880 e 1888, com idade média de 50,6 anos. Outra decorrência relevante da ilegalidade é a sua conexão com a precariedade da liberdade a partir de 1831. Tal conexão, como avalia Chalhoub (2012b), é importante “tanto para compreender modos de atuação do poder público no período quanto para observar as atitudes e estratégias de pretos e pardos, escravos e livres ou libertos, no intuito de lidar com essa situação”, pois o desrespeito à lei de 1831 reduziu as exigências de prova da propriedade de escravizados.
Outra informação relevante surge ao se associar a origem e a ocupação dos escravizados (Quadro 3). Nesta associação, ficou notória a prevalência dos “crioulos” qualificados.21 21 Neste momento, importa termos em vista (ver Quadro 1) que a nacionalidade da população escravizada no Município Neutro, segundo o Censo de 1872, era, no que diz respeito aos homens, de 18.009 brasileiros e 6.877 estrangeiros e, em relação às mulheres, de 19.957 brasileiras e 4.096 estrangeiras. Ademais, ao se confrontar os cativos e cativas “crioulos” e “de nação” (nascidos em diferentes regiões da África) com a ocupação explicitada nos anúncios com os seus respectivos totais (isto é a totalidade de indivíduos decorrente da soma daqueles com e sem ocupação indicada), percebemos que a proporção de escravizados qualificados brasileiros e africanos foi praticamente a mesma (22,14% e 22,20% respectivamente). Tal informação evidencia que os fugitivos africanos, já habituados, após mais de duas décadas, com a dinâmica de vida e trabalho no Brasil, eram tão habilidosos quanto os evadidos nascidos no Brasil.
Os Quadros 4 e 5 evidenciam a origem dos cativos nascidos no Brasil e na África. Esses Quadros colocam, por um lado, em primeiro plano, a preponderância dos angolanos e minas e, por outro, o número expressivo dos provenientes do Norte e Nordeste do Império, fato relevante, pois este último aspecto corrobora constatação recorrente nas pesquisas sobre a dinâmica do mercado doméstico de cativos, a partir de 1850 (Rossini 2019______. 2019. “A Importância da Criança Escravizada e seu Comércio no Oeste Paulista, 1861-1869”. Estudos Econômicos 49: 777-806., 2017. Motta 2012____. 2012. Escravos Daqui, Dali e de Mais Além: o tráfico interno de cativos na expansão cafeeira paulista (Areias, Guaratinguetá, Constituição/Piracicaba e Casa Branca, 1861-1887). São Paulo: Alameda Casa Editorial.). O Quadro 4 evidencia que o Nordeste foi o principal fornecedor de escravizados para o Sudeste, sobretudo após a reorganização da produção de algodão no Sul dos EUA, iniciada ainda em 1865, isto é, já nos momentos finais da guerra civil norte-americana - processo que contribuiu para a decadência econômica das regiões vinculadas à produção de algodão no nordeste do Brasil (Marquese e Salles 2016Marquese, Rafael e Ricardo Salles. 2016. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. 1a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). Como decorrência desse movimento, os pequenos produtores de algodão, de mantimentos e os donos de pequenos plantéis do meio urbano, do agreste e de outras regiões empobrecidas do Norte-Nordeste brasileiros se viram impelidos a comercializarem seus cativos, não para os engenhos de açúcar da região, que enfrentavam dificuldades em decorrência da competição cubana, mas para o centro-sul cafeeiro, por meio do Rio de Janeiro, o que foi significativamente impulsionado, no final da década de 1870, em virtude da grande seca (1877-1879) ocorrida sobretudo no Ceará.22 22 Tal flagelo climático foi resultante de quase três anos seguidos sem chuvas e fez parte, segundo Davis (2002), de fenômeno de extensão planetária que envolveu localidades inseridas na economia mundial como produtoras de gêneros tropicais. Embora as estatísticas da morte sejam imprecisas, elas possibilitam certa ideia sobre a vastidão da tragédia. Na seca de 1877-1879, 114 mil retirantes receberam algum tipo de auxílio na cidade de Fortaleza, então a capital do desespero, que contava alguns anos antes com apenas com 21 mil habitantes (Censo de 1872). Além dos retirantes, segundo Herbert Smith (1879), a situação então vivenciada pelo sertão brasileiro resultou na morte, por varíola e fome, de cerca de quinhentos mil sertanejos. De acordo com o farmacêutico cearense Rodolpho Theóphilo, que acompanhou a calamidade, a capital do Ceará perdeu, em pouco mais de dois meses, quase 30% da população de pouco mais de 100 mil almas que se aí encontravam (Secreto 2020). Tal cenário extremo, além de forçar a classe proprietária a abrir mão, temporariamente, de parte da sua mão de obra livre excedente, fomentando e mesmo subsidiando o deslocamento de trabalhadores, acentuou o comércio interprovincial de cativos. A província do Ceará foi uma das que mais perdeu cativos, principalmente para o Sudeste brasileiro. Entre 1850 e 1880, saíram oficialmente 16.480 escravizados. Apenas durante o triênio de seca, 6.559 indivíduos foram vendidos para outras áreas (sobretudo para o Rio de Janeiro) (Theóphilo 1922; Secreto 2020).
Indicou-se o local das fugas e o sexo dos escravizados evadidos por meio do Quadro 6. Através das informações presentes nesse quadro ficou evidente que a maioria dos anúncios indicou o local da fuga e a maior relevância das fugas ocorridas no meio urbano. No Quadro 7, por sua vez, evidenciou-se a larga ascendência das fugas individuais realizadas por “crioulos” e “de nação”, assim como a maior recompensa, em termos nominais médios, oferecida pela recaptura desses “crioulos”, o que provavelmente resulta da menor idade média dos indivíduos deste grupo.
Com relação às fugas realizadas em grupo, cabe indicarmos uma hipótese a ser verificada em pesquisa futura e de maior fôlego. Em virtude de casos como o que relatamos na figura presente no item V do apêndice, conjecturamos que os grupos de escravizados evadidos podem ter sido formados frequentemente por famílias. As fugas realizadas por membros de uma mesma família (pai, mãe, filhos, irmãos, parentes próximos e, também, padrinhos) e por casais de cativos casados legalmente ou unidos por meio de relação consensual possuem grande significado. Retratam o desejo de viver em liberdade e essa incluía a companhia dos seus familiares (Reis 1999Reis, Isabel Cristina Ferreira dos. 1999. “Uma negra que fugio, e consta que já́ tem dois filhos”: fuga e família entre escravos na Bahia”. Afro-Ásia 23.). Podemos imaginar as motivações que os teriam impulsionado a empreender tal ação no momento de ápice do tráfico interno de escravizados; além dos possíveis maus tratos e do trabalho árduo, havia a incerteza de seus destinos, em parte, pautada pela possível fragmentação da família por meio da venda de seus integrantes, sobretudo quando essa compunha pequenos plantéis (Slenes 2013Slenes, Robert. 2013. Na senzala uma flor. Ed. Unicamp., 1976).
Tendo em vista o Quadro 8, inicialmente, cabe mencionar que a diferença entre as 1.948 ocorrências que temos em vista e o total geral de observações aí presentes decorre dos dados apresentados a seguir não contemplarem as mulheres escravizadas evadidas. Essas eram majoritariamente nascidas no Brasil, tinham sobretudo entre 21 e 40 anos de idade e foram principalmente lavadeiras, engomadeiras, vendedoras, quitandeiras, pajens e dedicadas a outros serviços domésticos. Oferecia-se por sua recaptura uma recompensa, em termos nominais médios, de menos de 100$000. Além disso, a diferença indicada também se explica em virtude da existência de um grupo de homens cativos que exerciam uma miríade de outras atividades, tais como: maquinista, lustrador, empalhador, chacareiro, arreador, ferrador, cavoqueiro, foceiro, engomador, ganhador, curandeiro, músico, qualquer serviço braçal, ensacador, falquejador. Não incluímos essas observações na tabela, pois, caso o fizéssemos, haveria muitas linhas contemplando apenas uma, duas ou três pessoas exercendo as ocupações mencionadas. A despeito dessa diferença, a relevância dos dados que expomos a seguir fica evidente ao termos em vista que enquanto o censo de 1872 apontou a existência de 2.135 cativos operários no Município Neutro (ver Quadro 1), a pesquisa que resultou neste artigo identificou 577 fugas realizadas por escravizados operários.23 23 Tal número resulta da soma dos pedreiros, carpinteiros e marceneiros, oficiais, alfaiates, sapateiros, serradores, ferreiros e chapeleiros.
Para além dos aspectos anteriores, é possível notar que as informações apresentadas no Quadro 8 demonstram a prevalência de atividades exercidas no ambiente urbano. Parte importante das ocupações indicadas, de um lado, evidenciam a especialização, a diversidade e a sofisticação dos trabalhos executados por muitos cativos, o que contraria as ponderações que afirmam que os escravizados eram menos habilitados para a realização de atribuições mais complexas. De outro lado, por serem atividades exercidas sobretudo no meio urbano, as informações presentes no Quadro 8, corroboram, indiretamente, uma das constatações presente no censo de 1872. Trata-se do fato de que a concentração dos cativos nas atividades relacionadas às platations, a despeito da sua importância, foi paulatina ao longo da segunda metade do século XIX. Segundo este censo, no início dos anos 1870, a maioria dos escravizados e escravizadas estavam vinculados a atividades variadas, que iam do trabalho urbano qualificado (muitas vezes não rotineiro e recompensado) e não qualificado, ao transporte com mulas (Ianni 1988Ianni, Otávio. 1988. As metamorfoses do escravo: apogeu e crise da escravatura no Brasil Meridional. São Paulo: Hucitec.; Luna e Klein 2010Luna, Francisco Vidal e Herbet Klein. 2010. Escravismo no Brasil. São Paulo: Edusp.) e à pesca de baleia (Ellis 1973Ellis, Myriam. 1973. “Escravos e assalariados na antiga pesca da baleia”. In Trabalho livre e trabalho escravo, organizado por Eurípedes Simões de Paula. São Paulo.).
Os dados sobre as ocupações, presentes no Quadro 8, permitem identificar os fugitivos como pouco qualificados e qualificados, ainda que tal processo seja impreciso, pois os escravizados geralmente exerciam, mesmo os mais qualificados, diversas atividades ao longo do dia de trabalho, do ano e de suas vidas (ver itens II e V do apêndice).24 24 Tal como aponta Colistete (2021), em termos práticos, o conceito de ofícios especializados variou da simples separação entre empregos agrícolas (não qualificados) e não agrícolas (qualificados) para noções de profissões não qualificadas, pouco qualificadas e altamente qualificadas tendo em vista a formação, experiência e destreza necessários. Ao utilizarmos a classificação das ocupações sugerida por Colistete (2021Colistete, Renato Perim. 2021. “Predicting Skills of Runaway Slaves in São Paulo, 1854-1887”. Working Paper nº 15. Department of economics, FEA-USP.), percebemos que os pouco qualificados foram responsáveis por 56% das fugas e que mais da metade dos cativos indicados no Quadro acima eram trabalhadores urbanos qualificados. Esta última constatação distancia parte dos resultados deste trabalho, em função principalmente dos diferentes recortes espaciais pesquisados, daqueles apresentados por Colistete (2021) que, ao estudar as fugas e a qualificação dos cativos na província de São Paulo, concluiu que “escravos qualificados estavam presentes em grande número no ambiente rural de fazendas e plantações, em vez de aglomerados principalmente em áreas urbanas, como às vezes é retratado” (Colistete 2021, 17). Em contrapartida, os resultados apresentados no Quadro em questão, a despeito de não contemplarem previsão de qualificação para o grupo sem habilidades conhecidas25 25 Colistete (2021) faz essa estimativa por meio de algoritmos de classificação de aprendizado de máquina (para tanto, leva em consideração dados individuais, tais como: sobre sexo, idade, etnia, residência, particularidades físicas (ver nota 16)). , evidenciam, tal como constata Colistete (2021), significativa presença de escravizados com diferentes tipos de qualificação. Para mais, no que diz respeito às gratificações, os indivíduos que possuíam algum tipo de qualificação tinham em seus anúncios a indicação, em termos nominais médio, de uma recompensa de aproximadamente de 120 mil réis, montante cerca de 13,5 mil réis superior àquele decorrente da média das recompensas pelo reaprisionamento dos cativos evadidos sem indicação de ocupação.
Além dos elementos anteriores, quando temos em vista as recompensas ofertadas pelo reaprisionamento dos fugidos, chama atenção dois outros aspectos relevantes: (i) ao se fazer a diferença entre médias, percebe-se que aqueles que recapturassem indivíduos qualificados receberiam 19.117 réis a mais em relação à prisão dos pouco qualificados (ver figura 6 do apêndice); (ii) ao se realizar a razão entre a recompensa ofertada para a recaptura dos evadidos homens, de 21 a 40 anos de idade, com ocupação indicada nos anúncios e o preço nominal médio dos escravizados com as mesmas características (ver Gráfico 2 do apêndice) aprendemos que a retribuição pela captura representou, entre 1875 a 1879, cerca de 11% do preço do cativo e, entre 1880 e 1984 (último ano que obtivemos informações sobre o preço de venda), 17%. Tal fato, além de ser decorrente da diminuição mais acentuada do preço médio de venda dos escravizados em relação à recompensa média oferecida, pode evidenciar que, ao longo da primeira metade da década de 1880, a recaptura dos fugitivos, num contexto de grande incerteza e acentuada escassez de trabalhadores (processos que dificultaram e mesmo inviabilizaram novas compras de cativos), passou a ter maior relevância para parte dos senhores, como sinalizam os dados presentes no Quadro 10.
Informações atinentes ao número de ocupações exercidas pelos cativos no Rio de Janeiro, entre 1875 e 1888, são apresentadas no Quadro 9. Além do grande número de cativos que exerciam apenas um ofício (68%), chama atenção a quantidade expressiva de escravizados, com cerca de 30 anos de idade, que exerciam mais de uma ocupação (32% do total de cativos presentes nos anúncios que identificaram a(s) sua(s) ocupação(ões)), o que encontrou evidente correspondência no aumento da recompensa paga pela recaptura desses indivíduos.
Por fim, o Quadro 10 evidencia a importância e a recorrência de republicações no mesmo jornal ou em diferentes jornais, ao longo do tempo, de anúncios de fuga de escravizados com algum tipo de qualificação. Em média, cada proprietário recorreu à publicação de 2,5 anúncios para reaver os cativos evadido pouco qualificados ou qualificados, quantidade superior aos cerca de 2 comunicados relativos às fugas daqueles cuja ocupação não foi indicada nos anúncios. Os dados também demostraram que para os grupos com e sem ocupação explicitada, as primeiras republicações (sobretudo as cinco iniciais) evidenciavam o aumento da preocupação dos senhores com o reaprisionamento dos fugitivos, o que se traduziu, muitas vezes, no paulatino aumento da recompensa ofertada.
Ficou, também, evidente a diminuição do montante médio das recompensas a partir da quinta repetição, e de substancial aumento, em alguns casos particulares, mesmo após o anúncio ter sido republicado mais de 20 vezes - episódios ocorridos sobretudo a partir do final da década de 1870, o que pode evidenciar a relação existente entre a duração das fugas e o fortalecimento do movimento abolicionista. Algumas dessas ocorrências específicas, que envolveram a republicação de anúncios em diversas edições do Jornal do Commercio, foram protagonizadas, por exemplo, por Diogo da Fonseca Coelho, que publicou em 1877, 1878 e 1879, entre 45 e 50 comunicados para tentar reaver José, cocheiro e cozinheiro de 41 anos, Gervasio, cocheiro, pedreiro e pintor de 26 anos, Antônio, cozinheiro de 24 anos e Agostinho, de 31 anos e dedicado ao serviço da roça. As recompensas pela recaptura desses escravizados começaram em cerca de 100 mil réis e foram elevadas, com o passar do tempo, até 250 mil réis.
5. Considerações finais
Este artigo tratou do estudo de aspectos da resistência, da ocupação e da qualificação de cativas e cativos residentes na capital do Império do Brasil e arredores, entre 1875 e 1888. Para tanto, além de utilizar informações secundárias, foram coletados e analisados 20.494 anúncios de fuga de escravizados, publicados em alguns dos principais jornais que circulavam na cidade do Rio de Janeiro, então um dos principais centros escravistas do Brasil e principal entreposto do tráfico interno de cativos. Após a eliminação da expressiva redundância dos documentos, passou-se a trabalhar com 8.840 ocorrências. A partir desses registros, foram acessados e analisados sobretudo 1.948 códices que permitiram vislumbrar fragmentos da história de muitos escravizados que afrontaram o sistema então vigente e conhecer ao menos parte das suas ocupações e, por extensão, a sua qualificação.
O número de fugas ao longo do tempo variou muito. Três momentos se destacaram, quais sejam: (i) aumento substancial ao longo da segunda metade dos anos 1870, o que pode ser explicado em virtude da diminuição das hesitações relativas à continuidade da escravidão surgidas com a Lei Ventre Livre (1871) e da expansão da lavoura cafeeira de São Paulo. Tais processos dinamizaram o fluxo doméstico de cativos que passaram pelo maior entreposto de escravizados de então, a cidade do Rio de Janeiro, em direção ao Oeste paulista e estimularam os proprietários da Corte e arredores, engajados em atividades menos rentáveis, a venderem parte dos seus trabalhadores para as áreas economicamente mais dinâmicas. Ademais, tal cenário, se por um lado ampliou a incerteza, o volume de trabalho e a violência que recaiam sobre os escravizados que trabalhavam nas áreas que constituem o recorte geográfico mobilizado neste artigo, incentivando as fugas, por outro, fomentou a recaptura daqueles que fugiram do cativeiro e, consequentemente, o número de anúncios publicados; (ii) diminuiu significativamente, entre 1879 e 1885, o que pode ter relação com a ampliação do número de alforrias, com a ascensão do movimento abolicionista e com as diligências que resultaram, em 1881, em tributos provinciais que inviabilizaram a comercialização interprovincial dos escravizados, possibilitando novo enfraquecimento do regime e diminuição do ímpeto de recaptura dos fugidos (o que reduziu o número de anúncios relatando fugas) por parte dos proprietários que já buscavam suprir a sua demanda de braços através de trabalhadores imigrantes; (iii) caiu de modo ainda mais acentuado, a partir de 1885, em virtude do fortalecimento do movimento abolicionista, da promulgação da Lei do Sexagenário e do espraiamento da consciência de que o regime estava próximo do fim, acontecimentos que, mais uma vez, inibiram a disposição dos proprietários em arcar com os custos decorrentes das tentativas de recapturar os fugitivos.
A partir da análise dos recortes geográfico e temporal selecionados e do grande volume de dados compulsados, outros aspectos relevantes tornaram-se evidentes, tais como: a larga preponderância dos homens escravizados dentre os evadidos, característica também observada em outras sociedades escravistas; a prevalência das fugas realizadas por “crioulos” provenientes do “Nordeste” do Império; a maior recorrência de fugas individuais (87% entre os africanos e 85% entre os brasileiros), realizadas principalmente no meio urbano, por cativos que tinham entre 21 a 40 anos de idade; o fato de que, em termos nominais médios, a recompensa oferecida pela recaptura dos escravizados evadidos, com algum tipo de qualificação, foi pouco superior a 120 mil réis. Tal gratificação, contudo, poderia mudar substancialmente em virtude do tipo da experiência e do número de ocupações e, por extensão, de qualificações acumuladas pelos cativos. Aqueles que reaprisionassem escravizados que desempenhavam três ou mais de três ocupações recebiam como pagamento médio 147$145 e 170$053, respectivamente. Ademais, percebeu-se que o cenário de maior insegurança para os proprietários na década de 1880, ao passo que diminuiu e mesmo interrompeu a compra de novos trabalhadores, aumentou a disposição de gasto com recompensas, em relação ao preço de venda dos cativos, de parte dos senhores.
Ao se confrontar cativos e cativas “crioulos” e “de nação” com ocupação explicitada com os seus respectivos totais (formado por aqueles com e sem ocupação indicada nos anúncios) viu-se que a proporção de qualificação entre brasileiros e os africanos já ladinos, isto é, já social e culturalmente adaptados e falantes da língua portuguesa, foi praticamente a mesma (22,14% e 22,20% respectivamente), o que contradiz as conclusões que afirmam que os africanos possuíam, em geral, menor qualificação.
Por fim, além de se indicar a importância e significados resultantes da republicação dos anúncios ao longo do tempo, observamos que as ocupações exercidas pelos escravizados e escravizadas, eram executados predominantemente no espaço urbano - o que distancia os resultados desta pesquisa daqueles encontrados por Colistete (2021Colistete, Renato Perim. 2021. “Predicting Skills of Runaway Slaves in São Paulo, 1854-1887”. Working Paper nº 15. Department of economics, FEA-USP.). Ademais, foi possível constatar que cerca de 50% dos cativos, que tiveram a sua ocupação indicada nos anúncios de fuga, exerciam atividades qualificadas, tais como as de: boleiros, pedreiros, carpinteiros, marceneiros, diversos tipos de “oficial”, padeiros, alfaiates e de sapateiros.
Concluímos com três afirmações resultantes da análise da bibliografia e documentação mobilizadas. (i) As fugas e outras formas de resistência foram quantitativamente relevantes ao longo do período que temos em vista e evidenciam uma das formas pela qual os escravizados atuaram decisivamente para o fim da escravidão; (ii) Os escravizados, no final do século XIX, exerciam as mais diversas ocupações, inclusive aquelas que envolviam médio e alto conhecimento técnico; (iii) Não foi a falta de qualificação a razão da marginalização dos ex-cativos no mercado de trabalho assalariado em formação nas últimas décadas do XIX.
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Agradeço as sugestões decorrentes da atenta leitura dos pareceristas anônimos da Estudos Econômicos. Sou muito grato ao professor Ramatis Jacino pela gentil cooperação e pelas diversas sugestões e alterações que realizou no manuscrito. Milena Yumi, minha orientanda, ajudou-me com a coleta de informações e organização de um banco de dados que permitiu parte das análises presentes neste artigo. Vale a ressalva usual de que os eventuais erros presentes neste trabalho são de inteira responsabilidade do autor.
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JEL Classification
N3 - Trabalho e Consumidores, Demografia, Educação, Renda e Riqueza.
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Tais discussões são feitas, por exemplo, por: Santos (1980Santos, Ronaldo Marcos. 1980. “Resistência e superação do escravismo na Província de São Paulo”. Ensaios Econômicos.); Gebara (1988____. 1988. “Escravidão: Fugas e Controle Social.” Estudos Econômicos 18.); Azevedo (1987Azevedo, Célia Maria Marinho de. 1987. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites. Século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra.); Reis (1989Reis, João José e Eduardo Silva. 1989. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras.); Costa (1998aCosta, Emília Viotti da. 1998a. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Cia das Letras., 1998b); Salles (2008); Chalhoub (2011Chalhoub, Sidney. 2011. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras.); Machado (2014Machado, Maria Helena Pereira Toledo. [1987] 2014. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas 1830-1888. Edição revista e ampliada. São Paulo: EDUSP.); e Colistete (2021Colistete, Renato Perim. 2021. “Predicting Skills of Runaway Slaves in São Paulo, 1854-1887”. Working Paper nº 15. Department of economics, FEA-USP.).
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Por meio da Hemeroteca Digital Brasileira, consultamos principais jornais no que diz respeito a publicação de anúncios de fugas de cativos: a Gazeta de Notícias, O Cruzeiro, O Globo e, sobretudo, o Jornal do Commercio.
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Apenas na Corte, segundo o censo de 1872, havia 274.972 habitantes, destes 226.033 eram livres (82,20%) e 48.939 escravos (17,7%). Nessa localidade, a soma de escravizados e pessoas livres negras resultava em 44,4% do total. Se considerarmos apenas a população negra, 59,9% era livre e 40% era cativa.
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Tais processos foram acompanhados, no plano internacional, por maior contestação da escravidão em algumas partes do mundo e, simultaneamente, sua reestruturação e expansão sobretudo no Brasil, nos Estados Unidos e em Cuba. No caso do Brasil, o complexo escravista exportador cafeeiro (Mello 2009Mello, João Manuel C. 2009. Capitalismo Tardio. São Paulo: Unesp; Campinas: Facamp.) teve centralidade para o regime brasileiro e para a interação do Império com a economia mundial do século XIX (Marquese e Salles 2016Marquese, Rafael e Ricardo Salles. 2016. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. 1a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). O aumento da produtividade do trabalho cativo, a incorporação de novas tecnologias de produção e transporte, a prevalência da hegemonia britânica, a ascensão do liberalismo e dos movimentos e políticas abolicionistas constituem processos que caracterizam parte do século XIX (Tomich 2015Tomich, Dale. 2015. “Dale Tomich - Binghamton University”. Entrevista realizada por Christian Cwik, Luiz Alberto Couceiro, Rafael Marquese e Rejane Valvano da Silvapara. Revista Outros Tempos 20.).
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Em virtude do desenvolvimento do capitalismo industrial, do mercado internacional e da consequente renovação e expansão da escravidão em algumas regiões do mundo, importa destacarmos que os escravizados mobilizados neste artigo interagiam no seio de uma sociedade em transformação e que a cidade do Rio de Janeiro e seus arredores constituíram, ao longo da década de 1870, uma das suas expressões mais avançadas no Brasil. Nesta sociedade em mutação, ao mesmo tempo em que as dinâmicas comercial e de produção do espaço urbano acompanharam, com diferentes níveis de intensidade, padrões observados em outras cidades do capitalismo central, a relação de trabalho predominante cedeu espaço a formas alternativas de organização do trabalho, sobretudo após o fim do tráfico transatlântico de cativos em 1850. Por exemplo, segundo Algranti (1988Algranti, Leila Mezan. 1988. O Feitor Ausente. Estudos sobre a Escravidão Urbana no Rio de Janeiro, 1808-1822. Petrópolis: Vozes.), as diversas ocupações exercidas pelo “escravo de ganho” e pelo “escravo de aluguel” no meio urbano foram fundamentais para a dinâmica do sistema, assim como foi central as novas formas de repressão, menos ostensivas que as do campo e protagonizadas pelo Estado, que passou a “feitorizar” os cativos, evidenciando que o escravismo soube lançar mão de instrumentos variados para se manter, adaptando-se à dinâmica inerente às modalidades mais modernas de acumulação da riqueza.
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As evidências mobilizadas por Freyre - assim como por diversos outros autores, a partir de variadas fontes, tais como documentos judiciais, policiais, médicos, crônicas, “artigos científicos” e anúncios publicados na imprensa brasileira - fragilizam a histórica argumentação do próprio sociólogo de Apipucos acerca de uma escravidão amena, fraternal e colaborativa, pois tal como demonstra a passagem a seguir de Freyre, a violência era severa e frequente: “Numerosos os que apresentam, nas coxas ou nas costas, letras, sinais ou carimbos de propriedade, como hoje o gado, ou então, marcas de surra e castigo, o corpo deformado pela crueldade dos senhores brancos: uns manquejando, os quartos arreados em consequência de surras tremendas; outros com cicatriz de relho nas costas ou nas nádegas; ou então cicatriz de “anjinho”, de tronco, de corrente no pescoço, de ferro nos pés, de lubambo no tornozelo. Alguns com queimaduras na barriga. Pernas cambaias, joelho tocando um no outro, pernas tortas para dentro, joelhos metidos para dentro, pernas exageradamente finas, bambos arqueados, peitos estreitos, cabeças puxadas para trás ou achatadas de lado (...). Vários negrinhos de 10, 12 anos, já apareceram de coroa na cabeça... feita a força pelo peso de carretos brutos: tabuleiro, tijolo, areia, pipa, barril (...), os dedos dos pés torados por serem amassadores de cal e a cal lhes ter aberto feridas e comido os dedos; outros de dedos e munhecas inteiras comidos - talvez pelas moendas dos engenhos (...). Quase todos de pés e mãos enormes, deformados pelo trabalho” (Freyre 1979, 123).
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Como evidenciou Sílvia Lara (1988), as leis e a sociedade, com o intuito de minimizar a possibilidade de rebeliões de escravizados, reconheciam que era necessário evitar castigos excessivos. Contudo, era consenso, tal como indica o Manual do agricultor brasileiro, publicado em 1839, que para fazer os cativos trabalharem adequadamente a violência e o medo eram necessários. Esses, todavia, deveriam ser empregados “com muito sistema e arte, porque o excesso obraria contra o fim que se tem em vista (...)” (Taunay 2001). Coerentemente, o Código Criminal do Império, de 1830, vedava o açoitamento de pessoas livres, mas facultava esse castigo aos escravizados.
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Os assassinatos de senhores ou feitores cometidos por cativos eram relativamente frequentes. Em Campinas, entre 1831-1887, ocorreram 79 casos, principalmente (70%) executados por “crioulos” (nascidos no Brasil), que residiam na propriedade dos seus senhores por seis ou mais anos (2/3 das ocorrências) (Machado 2014Machado, Maria Helena Pereira Toledo. [1987] 2014. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas 1830-1888. Edição revista e ampliada. São Paulo: EDUSP.). No Rio Grande do Sul, entre 1818 e 1833, houve 104 homicídios envolvendo escravizados. 47% dos casos envolveram senhores e feitores. Em apenas 22 casos escravizados foram mortos por outros cativos (Lima 1997Lima, Solimar Oliveira. 1997. Triste Pampa: Resistência e punição de escravos em fontes judiciárias no Rio Grande do Sul, 1818-1833. Porto Alegre: EDIPURCS.).
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Com relação a este último ponto, ver: Genovese (1974Genovese, Eugene. 1974. Rolll, Jordan Roll. The world the slaves Made. New York: Pantheon Books.); Queiroz (1977Queiroz, Suely Robles Reis de. 1977. Escravidão negra em São Paulo: um estudo das tensões provocadas pelo escravismo no século XIX. Rio de Janeiro: José Olympio.); Santos (1980Santos, Ronaldo Marcos. 1980. “Resistência e superação do escravismo na Província de São Paulo”. Ensaios Econômicos.), Gebara (1986Gebara, Ademir. 1986. Escravos: fugas e fugas. Revista Brasileira de História. São Paulo., 1988); Machado (2014Machado, Maria Helena Pereira Toledo. [1987] 2014. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas 1830-1888. Edição revista e ampliada. São Paulo: EDUSP.); Lara (1988); Azevedo (1999Azevedo, Elciene. 1999. Orfeu de carapinha. Campinas: Unicamp.); Grinberg (2001Grinberg, Keila. 2001. Código Civil e Cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.); Chalhoub (2011Chalhoub, Sidney. 2011. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras.); Slenes (2013Slenes, Robert. 2013. Na senzala uma flor. Ed. Unicamp.); e Mattos (2015Matto, Hebe. 2015. Das cores do silêncio. Campinas: Ed. Unicamp.).
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Ver também: Slenes (2013Slenes, Robert. 2013. Na senzala uma flor. Ed. Unicamp.); Conrad (1988Conrad, Robert Edgar. 1988. Tumbeiros. O tráfico escravista para o Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense.); e Machado (2014Machado, Maria Helena Pereira Toledo. [1987] 2014. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas 1830-1888. Edição revista e ampliada. São Paulo: EDUSP.).
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Parte da sistematização das informações presentes neste parágrafo foi decorrente de Luna e Klein (2010Luna, Francisco Vidal e Herbet Klein. 2010. Escravismo no Brasil. São Paulo: Edusp.). Diversos outros aspectos acerca dos processos de resistência dos escravizados foram tratados, por exemplo, por Mattoso (1982Mattoso, Kátia de Queirós. 1982. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense.), Reis (1989Reis, João José e Eduardo Silva. 1989. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras., 1996), Gomes (2002____. 2002. “Sedições, haitianismo e conexões no Brasil escravista: outras margens do atlântico negro”. Novos Estudos Cebrap 63: 131-144., 1996), Machado (2010______. 2010. O Plano e o Pânico. Os Movimentos Sociais na Década da Abolição. 2a ed. São Paulo: EDUSP., 2014), Ferreira (2020Ferreira, Fernanda Cristina Puchinelli. 2020. “Decifrando as fugas escravas: narrativas, senhores e fujões na cidade do Rio de Janeiro (1840-1850)”. Em Tempo de Histórias 36.), Chalhoub (2011Chalhoub, Sidney. 2011. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras.), Chalhoub e Silva (2009) e Graham (2002____. 2002. “Nos tumbeiros mais uma vez? Comércio interprovincial de escravos no Brasil”. Afro-Ásia 27: 121-160.). Esses trabalhos, assim como os demais mobilizados neste artigo, evidenciam diferentes temas e abordagens que nos permitem colocar em primeiro plano a importância, a multiplicidade e a complexidade da agência dos cativos e da dinâmica do escravismo no Império do Brasil, resultante, em parte, dos nexos existentes entre as dinâmicas global e local.
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Os proprietários de Minas Gerais empregaram os seus cativos principalmente para atender demandas domésticas. Além da pecuária, do processamento de alimentos e da produção de grãos e tubérculos, havia número significativo de escravizados em profissões qualificadas e semiespecializadas, como demonstra o censo realizado em Minas Gerais, entre 1831 e 1832, que permaneceu inédito. Por meio deste documento, é possível apreender que cerca de 14% dos 88 mil escravizados adultos foram listados como qualificados e trabalhadores não agrícolas semiqualificados. Esses foram empregados sobretudo em atividades de fiação e tecelagem de algodão. Além disso, os artesãos escravizados compunham 20% de todos os trabalhadores em fiação e tecelagem, 28% daqueles vinculados à construção e cerca de 25% das cativas adultas estavam direcionadas a ocupações não domésticas (Godoy 2004Godoy, Marcelo Magalhães. 2004. “Uma província artesã: O universo social, econômico e demográfico dos artífices da Minas do oitocentos.” Anais do XII Encontro Nacional da ABEP.).
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Sobre as ocupações dos cativos localizados no município que sediava a corte, entre 1789 e 1839, ver Lima (2010Lima, Maria da Vitória Barbosa. 2010. “Liberdade interditada, liberdade reavida: escravos e libertos na Paraíba escravista (século XIX)”. Tese de Doutorado. Recife: UFP.) e Lima (2000). Sobre a dinâmica de trabalho dos escravizados em outros cenários, ver: Graham (1976Graham, Richard. 1976. “Slave Families of a Rural Estate in Colonial Brazil”. Journal of Social History.); Schwartz (1985, 1888); Ferlini (2003Ferlini, Vera Lúcia Amaral. 2003. Terra, Trabalho e Poder: O Mundo dos Engenhos no Nordeste Colonial. Florianópolis: EDUSC.); e Godoy (2004Godoy, Marcelo Magalhães. 2004. “Uma província artesã: O universo social, econômico e demográfico dos artífices da Minas do oitocentos.” Anais do XII Encontro Nacional da ABEP.). Para além desses, chamo atenção para os trabalhos recentes de Lambais (2020Lambais, Guilherme. 2020. “Slave resistance, cultural transmission, and Brazil’s long-run economic development”. Disponível em: Acesso em: 10/11/2022.) e Colistete (2021Colistete, Renato Perim. 2021. “Predicting Skills of Runaway Slaves in São Paulo, 1854-1887”. Working Paper nº 15. Department of economics, FEA-USP.). O primeiro evidencia, dentre outras coisas, que os quilombos, existentes em várias partes do Brasil - em virtude da transmissão intergeracional de aspectos culturais, comunitários, de ação coletiva e também de habilidades (como o trabalho em ferro) - influenciaram positivamente o desenvolvimento de ocupações mais qualificadas e a atividade econômica regional de longo prazo (capturada por meio da intensidade das luzes noturnas). Colistete, discutindo informações decorrentes da província de São Paulo, procurou apreender a qualificação dos escravizados por meio de procedimento semelhante ao adotado neste trabalho, isto é, utilizando informações presentes em anúncios de fuga de cativos publicados durante a segunda metade do século XIX. A partir da coleta e análise de 3.376 anúncios, o autor, além de apresentar um quadro geral das habilidades dos escravizados evadidos como base nos anúncios que explicitaram as suas ocupações (cerca de 30% dos casos), tentou prever as qualificações dos demais, isto é, dos indivíduos cujos anúncios de fuga não fizeram referências à sua ocupação. Para tanto, recorreu a dados individuais sobre sexo, idade, etnia, residência, particularidades físicas e outras características. A previsão para o grupo sem habilidades conhecidas foi realizada por meio de algoritmos de classificação de aprendizado de máquina. Os resultados evidenciam que cerca de metade dos escravizados que empreenderam fugas foram trabalhadores qualificados e destinados a ocupações artesanais. Esses eram sobretudo homens, residentes em áreas rurais, mais velhos do que suas contrapartes pouco qualificadas. Entre outras características relacionadas com a divisão do trabalho e a especialização, segundo Colistete, os africanos parecem não ter sido desfavorecidos na alocação de empregos artesanais e a diferença de habilidade entre mestiços e negros fugitivos era pequena.
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Aparentemente, o primeiro anúncio desse tipo foi publicado nas páginas da Gazeta do Rio de Janeiro, cuja circulação teve início em 1808 e tratou da fuga do cativo Matheus, ocorrida em 07/01/1809. O anúncio foi publicado por Antônio José Mendes Salgado de Azevedo Guimarães, que se comprometeu a pagar os gastos com a captura do escravizado e recompensar aquele que o apanhasse, em 12$800 réis (Neves 2012).
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De acordo com o censo de 1872, excluindo os menores de 5 anos, 70,5% dos homens e 84,3% das mulheres eram analfabetos. Apenas na cidade do Rio de Janeiro, cerca de metade da população sabia ler e escrever.
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Em decorrência do escasso espaço que dispomos e da maior relevância para o presente artigo, resultante do maior número de anúncios de fuga publicados, apresentamos, no apêndice deste trabalho, informações sobre as duas últimas “folhas diárias” mencionadas.
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A razão de sexo resulta da divisão do número de homens pelo número de mulheres - (H/M)*100 -, em determinado espaço geográfico e em certo período. Normalmente é expresso como o número de homens por 100 mulheres.
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Tal dinâmica pode ser indiretamente apreendida por meio do comportamento do preço doméstico dos escravizados presente no Gráfico 13, localizado no apêndice deste artigo.
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Com relação à dinâmica dos preços, em termos gerais, observou-se na segunda metade do século XIX tendência à elevação. No entanto, os preços oscilaram de forma contraditória nos ciclos menores. O preço de importação do café brasileiro nos EUA subiu de forma consistente entre 1869 e 1873, mas sofreu queda importante a partir de 1873. Em 1879, o preço do café importado pelos EUA baixou até meados dos anos 1880 (a despeito de oscilação positiva em 1884). Os preços do açúcar e do algodão também diminuíram no início dos anos 1880. O restabelecimento da paz, decorrente do fim da guerra contra o Uruguai e o Paraguai, e a recuperação dos preços do café diminuíram a restrição das importações, sobretudo de gêneros alimentícios preteridos pela compra de material bélico, e trouxeram alguns anos de deflação até 1889. Contudo, a ascensão dos preços do café e o aprofundamento da economia de plantation devem ter contribuído para a falta de estímulo na lavoura dos gêneros de consumo interno e consequente aumento dos seus preços (Lobo et al., 1971Lobo, Eulalia Maria Lahmeyer. 1971. “Evolução dos preços e do padrão de vida no Rio de Janeiro, 1820-1930 - resultados preliminares”. R. Bras. Econ. 25 (4): 235/265.). Por sua vez, podemos nos aproximar dos preços dos escravizados por meio do Gráfico 2 presente no item I do apêndice.
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Cabe enfatizarmos que, a partir da Lei Feijó, a maioria dos africanos escravizados no Brasil e todos os seus descendentes foram mantidos ilegalmente na escravidão até 1888. Tal como afirma Alencastro (2010, 7), “boa parte das duas últimas gerações de indivíduos escravizados no Brasil não era escrava. Moralmente ilegítima, a escravidão do Império era ainda - primeiro e sobretudo - ilegal”. Ocorreu de fato, um pacto entre os sequestradores que constitui, de acordo com o mesmo autor, o pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira que ajudou a firmar a impunidade e o casuísmo da lei que marca a nossa história. A nossa pesquisa também permitiu verificar outra informação que corrobora essa conclusão, qual seja: a existência de 466 africanos que não tiveram a sua ocupação explicitada. 301 entre 1875 e 1879, com idade média de 46 anos e 165 entre 1880 e 1888, com idade média de 50,6 anos. Outra decorrência relevante da ilegalidade é a sua conexão com a precariedade da liberdade a partir de 1831. Tal conexão, como avalia Chalhoub (2012____. 2012. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista São Paulo: Companhia das Letras.b), é importante “tanto para compreender modos de atuação do poder público no período quanto para observar as atitudes e estratégias de pretos e pardos, escravos e livres ou libertos, no intuito de lidar com essa situação”, pois o desrespeito à lei de 1831 reduziu as exigências de prova da propriedade de escravizados.
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Neste momento, importa termos em vista (ver Quadro 1) que a nacionalidade da população escravizada no Município Neutro, segundo o Censo de 1872, era, no que diz respeito aos homens, de 18.009 brasileiros e 6.877 estrangeiros e, em relação às mulheres, de 19.957 brasileiras e 4.096 estrangeiras.
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Tal flagelo climático foi resultante de quase três anos seguidos sem chuvas e fez parte, segundo Davis (2002), de fenômeno de extensão planetária que envolveu localidades inseridas na economia mundial como produtoras de gêneros tropicais. Embora as estatísticas da morte sejam imprecisas, elas possibilitam certa ideia sobre a vastidão da tragédia. Na seca de 1877-1879, 114 mil retirantes receberam algum tipo de auxílio na cidade de Fortaleza, então a capital do desespero, que contava alguns anos antes com apenas com 21 mil habitantes (Censo de 1872). Além dos retirantes, segundo Herbert Smith (1879Smith, Herbert. 1879. Brazil, the Amazonas and the Coast. New York: Charles Scribner’s Sons.), a situação então vivenciada pelo sertão brasileiro resultou na morte, por varíola e fome, de cerca de quinhentos mil sertanejos. De acordo com o farmacêutico cearense Rodolpho Theóphilo, que acompanhou a calamidade, a capital do Ceará perdeu, em pouco mais de dois meses, quase 30% da população de pouco mais de 100 mil almas que se aí encontravam (Secreto 2020Secreto, Maria Verônica. 2020. “A seca de 1877-1879 no Império do Brasil: dos ensinamentos do senador Pompeu aos de André Rebouças: trabalhadores e mercado”. História, Ciências, Saúde - Manguinhos 27 (1), jan. - mar., p.33-51, 2020.). Tal cenário extremo, além de forçar a classe proprietária a abrir mão, temporariamente, de parte da sua mão de obra livre excedente, fomentando e mesmo subsidiando o deslocamento de trabalhadores, acentuou o comércio interprovincial de cativos. A província do Ceará foi uma das que mais perdeu cativos, principalmente para o Sudeste brasileiro. Entre 1850 e 1880, saíram oficialmente 16.480 escravizados. Apenas durante o triênio de seca, 6.559 indivíduos foram vendidos para outras áreas (sobretudo para o Rio de Janeiro) (Theóphilo 1922Theóphilo, Rodolpho. 1922. História da seca do Ceará, 1878-1880. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa.; Secreto 2020).
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Tal número resulta da soma dos pedreiros, carpinteiros e marceneiros, oficiais, alfaiates, sapateiros, serradores, ferreiros e chapeleiros.
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Tal como aponta Colistete (2021Colistete, Renato Perim. 2021. “Predicting Skills of Runaway Slaves in São Paulo, 1854-1887”. Working Paper nº 15. Department of economics, FEA-USP.), em termos práticos, o conceito de ofícios especializados variou da simples separação entre empregos agrícolas (não qualificados) e não agrícolas (qualificados) para noções de profissões não qualificadas, pouco qualificadas e altamente qualificadas tendo em vista a formação, experiência e destreza necessários.
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Colistete (2021Colistete, Renato Perim. 2021. “Predicting Skills of Runaway Slaves in São Paulo, 1854-1887”. Working Paper nº 15. Department of economics, FEA-USP.) faz essa estimativa por meio de algoritmos de classificação de aprendizado de máquina (para tanto, leva em consideração dados individuais, tais como: sobre sexo, idade, etnia, residência, particularidades físicas (ver nota 16)).
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Os jornais, como afirmou Machado de Assis, possibilitaram “a verdadeira forma de república do pensamento (...), a locomotiva em viagem para mundos desconhecidos (...), a literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das ideias e o jogo das convicções” (Assis 1979, 946). Os anúncios em questão constituem fonte originada a partir do testemunho do proprietário do cativo evadido; involuntária (Aróstegui 2006) ou não-voluntária (Bloch 1949), isto é, produzida no curso de uma atividade e finalidade sociais que não têm, em absoluto, o caráter testemunhal como horizonte” (Aróstegui 2006, 496); que interessam por sua mensagem (Aróstegui 2006, 500).
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A similaridade da estrutura dos anúncios de fugas de cativos também foi ressaltada por Machado de Assis: “quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lhe levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha a promessa: ‘gratificar-se-á generosamente’, - ou ‘receberá uma boa gratificação’. Muitas vezes os anúncios traziam em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse” (Assis 1992, 659).
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De acordo com Molina (2015Molina, Matías. 2015. História dos jornais no Brasil. São Paulo: Cia das Letras., p. 251), “novos concorrentes surgiram nos anos 1870. O Globo foi lançado em 1874 como órgão da Agência Americana Telegraphica, de Manuel Gomes de Oliveira e fechou em 1878. Foi relançado em 1881 sob a direção de Quintino Bocayuva e circulou até 1883, tendo alcançado um inegável prestígio. Machado de Assis escreveu sobre ele: “O Globo honra a nossa imprensa e merece ser coadjuvado por todos os que amam essa alavanca do progresso, […] [em que] ocupa lugar distinto” (Assis apud Molina 2015). O Cruzeiro surgiu em 1878 como uma séria ameaça, com 12 mil assinantes. O redator Ernesto Mattoso disse que um acionista do Jornal do Commercio “ficou assustado, irrequieto, com medo de que O Cruzeiro, tão favorecido pelo comércio, viesse fazer sombra ao seu jornal”. Até ver o “pavoroso primeiro número”. E afirmar que “a montanha pariu um rato… Podemos dormir tranquilos”. O Cruzeiro fechou em 1883” (Molina 2015, 251).
APÊNDICE
I. Café e preços de escravizadosPreços dos escravizados homens, de 21 a 40 anos, anunciados no Jornal do Commercio (em contos de réis). Rio de Janeiro, 1870-1888
Como é notório, os jornais se tornaram documentos relevantes e usados de forma crescente ao longo dos últimos 30 anos. E isso a despeito de possuírem conteúdos de qualidades diversas e serem permeados por interesses, compromissos e paixões ao registrarem certa verdade; ao constituírem praticamente os únicos meios de comunicação e de formação da opinião pública, por possibilitarem subsídios acerca das atividades político-econômicas, das ideias, dos anseios e das expectativas de uma época; ao permitirem ao pesquisador acompanhar o cotidiano da sociedade, o seu desenvolvimento no tempo, os seus embates e as transformações socioeconômicas em curso (Molina 2015Molina, Matías. 2015. História dos jornais no Brasil. São Paulo: Cia das Letras.; Freyre 1979Freyre, Gilberto. 1979. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. Rio de Janeiro: Companhia editora nacional. Instituto Joaquim Nabuco de pesquisas sociais.). Contudo, apreender aspectos da história por meio da impressa pressupõe que o investigador se mova por imagens e informações parciais, distorcidas e subjetivas, entre a história vivida e a história construída, assim como entre o tempo longo da história e o tempo curto do cotidiano, o que torna necessário questionar não apenas se as informações do documento são falsas ou verdadeiras, mas também realizar algumas perguntas-chave, tais como: quem produziu o jornal?; quando e onde?; quais interesses o periódico procurou atender? Perguntas que colocam em xeque o mito do documento-verdade, ilusão positivista questionada desde os anos 1920, principalmente pela escola dos Annales (Capelato 1994).
III. Imagens e transcrições de alguns anúncios de jornalPara que o leitor se familiarize com o formato e com as informações presentes nos documentos que possibilitaram parte deste trabalho, reproduzimos imagens e a transcrição de alguns anúncios de jornal.26 26 Os jornais, como afirmou Machado de Assis, possibilitaram “a verdadeira forma de república do pensamento (...), a locomotiva em viagem para mundos desconhecidos (...), a literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das ideias e o jogo das convicções” (Assis 1979, 946). Os anúncios em questão constituem fonte originada a partir do testemunho do proprietário do cativo evadido; involuntária (Aróstegui 2006) ou não-voluntária (Bloch 1949), isto é, produzida no curso de uma atividade e finalidade sociais que não têm, em absoluto, o caráter testemunhal como horizonte” (Aróstegui 2006, 496); que interessam por sua mensagem (Aróstegui 2006, 500). Esses, como já indicado, eram copiosos, seriados e possuem estrutura similar.27 27 A similaridade da estrutura dos anúncios de fugas de cativos também foi ressaltada por Machado de Assis: “quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lhe levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha a promessa: ‘gratificar-se-á generosamente’, - ou ‘receberá uma boa gratificação’. Muitas vezes os anúncios traziam em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse” (Assis 1992, 659).
Cabe observar que histórias como essas foram muito numerosas ao longo do século XIX e adquiriram, nas últimas décadas da escravidão, novos significados políticos resultantes do inexorável fim do regime. A própria duração da fuga de Constantino, indicada acima, provavelmente foi favorecida pela agitação política de então.
IV. Notas sobre os principais jornais utilizadosO Jornal do Commercio28 28 De acordo com Molina (2015, p. 251), “novos concorrentes surgiram nos anos 1870. O Globo foi lançado em 1874 como órgão da Agência Americana Telegraphica, de Manuel Gomes de Oliveira e fechou em 1878. Foi relançado em 1881 sob a direção de Quintino Bocayuva e circulou até 1883, tendo alcançado um inegável prestígio. Machado de Assis escreveu sobre ele: “O Globo honra a nossa imprensa e merece ser coadjuvado por todos os que amam essa alavanca do progresso, […] [em que] ocupa lugar distinto” (Assis apud Molina 2015). O Cruzeiro surgiu em 1878 como uma séria ameaça, com 12 mil assinantes. O redator Ernesto Mattoso disse que um acionista do Jornal do Commercio “ficou assustado, irrequieto, com medo de que O Cruzeiro, tão favorecido pelo comércio, viesse fazer sombra ao seu jornal”. Até ver o “pavoroso primeiro número”. E afirmar que “a montanha pariu um rato… Podemos dormir tranquilos”. O Cruzeiro fechou em 1883” (Molina 2015, 251).
Editor Responsável:
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Out 2023 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2023
Histórico
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Recebido
22 Ago 2022 -
Aceito
05 Abr 2023