Resumo:
Este artigo objetiva caracterizar a implementação da política de cotas raciais em concursos públicos, instituída no Brasil por meio da Lei Federal n. 12.990/2014, que reservou 20% das vagas em certames públicos para pessoas negras. Depois de detalhar as lacunas no processo de implementação da referida política pública, o artigo sugere um conjunto de medidas para que mais pessoas negras acessem os cargos públicos e, portanto, contribuam com a necessária e urgente luta antirracista no Brasil.
Palavras-chave: Ações afirmativas; Cotas raciais; Lei n. 12.990/2014; Antirracismo
Abstract:
This article aims to characterize the implementation of the racial quotas policy in public tenders, instituted in Brazil through federal law n. 12,990/2014, which reserved 20% of vacancies in public tenders for black people. After detailing the gaps in the process of implementing the racial quotas policy in public tenders, the article suggests a set of measures for more black people to access public office and, therefore, contribute to the necessary and urgent anti-racist struggle in Brazil.
Keywords: Affirmative actions; Racial quotas; Law n. 12,990/2014; Anti-racism
Introdução
As cotas raciais, que perfazem um tipo de política de ação afirmativa, constituem o conjunto de medidas que implicam a reserva de vagas a indivíduos de determinado pertencimento étnico-racial - tais como as pessoas negras - em certos processos seletivos, dentre os quais estão os vestibulares para cursos técnicos e de graduação em instituições públicas de ensino, os concursos para postos laborais na administração pública, além dos processos de recrutamento, seleção e trainees em empresas e organizações não governamentais (FERES JÚNIOR et al., 2018).
Como política de ação afirmativa, as cotas raciais voltadas para a população negra possuem o objetivo de somar esforços na luta antirracista, permitindo que os sujeitos negros possam ocupar espaços de poder e de agência na estrutura social contemporânea, ressignificando a lógica do racismo estrutural que, segundo Almeida (2019), fez com que os indivíduos negros fossem compulsoriamente relegados aos espaços mais precários e subalternos nas sociedades contemporâneas, em especial naquelas com passado escravagista (EURICO; GONÇALVES; FORNAZIER, 2021).
Em face das consequências nefastas do racismo estrutural, as cotas raciais revelam-se como estratégia de reparação aos indivíduos negros, permitindo-lhes a restituição de sua humanidade, cidadania e dignidade (ARAÚJO; TEMÓTEO, 2021). Parte-se da perspectiva de que possibilitar, por intermédio das cotas raciais, com que os corpos negros ocupem espaços outrora monopolizados por uma elite de pessoas brancas perfaz uma medida das mais potentes para que as organizações, em especial as de caráter público, possam ser mais inclusivas e diversas, refletindo o pluralismo identitário e étnico-racial que constitui a realidade brasileira (MOEHLECKE, 2002).
Do ponto de vista normativo, a primeira legislação mais abrangente (em nível federal) que determinou a institucionalização de uma política de cotas surgiu nos idos de 2012, com a promulgação da Lei Federal n. 12.711. Em suma, tal legislação preconizou a reserva, em processos seletivos para cursos técnicos e de graduação nas Instituições Federais de Ensino, de ao menos 50% das vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas e sejam provenientes de famílias em situação de vulnerabilidade socioeconômica. É importante sublinhar que, dentro do quantitativo de 50% das vagas reservadas, a Lei n. 12.711/2012 determinou, em seu artigo 3o, o estabelecimento de cotas raciais voltadas para pessoas negras (pretas e pardas) em proporção equivalente aos indivíduos que se autodeclaram negros em cada uma das Unidades da Federação, conforme dados do último censo demográfico (BRASIL, 2012).
Pouco tempo depois, no ano de 2014, houve uma ampliação do escopo da política de cotas no Brasil, com a promulgação da Lei Federal n. 12.990, que preconizou a reserva de vagas para pessoas negras em concursos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal (BRASIL, 2014). Diferentemente da legislação surgida nos idos de 2012, é crucial apontar que a Lei n. 12.990/2014 determinou uma política de cotas exclusivamente calcada no marcador racial, tendo como objetivo precípuo enegrecer o universo do funcionalismo público, estimulando a inclusão racial e contribuindo, por conseguinte, com a difusão da pauta do antirracismo na sociedade brasileira.
Volpe e Silva (2016) sugerem que as cotas raciais, além de possibilitarem que mais pessoas negras acessem postos laborais na administração pública, também permitem a emergência do debate racial nas organizações públicas, estimulando a cultura do respeito, da tolerância e da diversidade no serviço público. O fato de um maior quantitativo de negros/as ocuparem funções públicas faz com que a população negra (que é a maioria absoluta dos cidadãos brasileiros) sinta-se mais confortável, segura e representada ao procurar os equipamentos públicos, melhorando a eficiência dos serviços públicos (ANDRADE; CASTRO PINTO, 2020).
A despeito da potência e importância da política de cotas raciais em concursos públicos, Mello e Resende (2019), além de Bulhões e Arruda (2020), apontam que há lacunas, principalmente quando se considera o processo de implementação da lei de cotas por determinadas autarquias públicas. Segundo os autores, as lacunas na implementação das cotas raciais nos certames públicos resultam na reserva de um quantitativo de vagas aquém do que ocorreria caso os ditames da Lei n. 12.990/2014 fossem respeitados de forma mais criteriosa, a partir de práticas efetivamente engajadas com a luta antirracista.
Nesse ínterim, considerando os aspectos anteriormente sumarizados, é oportuno nos questionarmos: afinal, de que forma é possível dirimir as lacunas nos processos de implementação da política de cotas raciais em concursos públicos, de modo a possibilitar que tal política pública se consolide no âmbito da luta antirracista no Brasil?
Partindo da supracitada questão de pesquisa, o presente artigo tem como objetivo caracterizar os detalhes da implementação da política de cotas raciais em concursos públicos, elucidando as lacunas e, por conseguinte, apontando os principais desafios para que a política pública em questão reforce a agenda de combate ao racismo no Brasil.
Em termos metodológicos, o artigo apresenta uma abordagem qualitativa, em que se realizou uma análise bibliográfica acerca das características e lacunas, no contexto brasileiro, do processo de implementação das cotas raciais em concursos públicos. Não obstante, é importante frisar que as problematizações e inferências que estarão na sequência deste texto partem também das próprias experiências dos autores como servidores públicos federais, pesquisadores e ativistas do campo das ações afirmativas e, mais especificamente, da política de cotas raciais no Brasil.
Por ser uma política pública das mais paradigmáticas e polêmicas, as cotas raciais em concursos frequentemente estão no debate público, não raro a partir de uma perspectiva em que as discussões ocorrem de forma superficial, sem a plena compreensão acerca da importância e dos caminhos para a adequada implementação de tal política pública. Diante deste cenário, caracterizar e problematizar os desafios da política de cotas raciais em concursos públicos, tal como proposto neste artigo, revelam-se medidas essenciais, até para que - idealmente - a sociedade brasileira reconheça a necessidade de reparar e restituir a humanidade dos indivíduos negros, ressignificando as mazelas decorrentes de séculos de escravização e racismo que feriram (e ainda ferem) o corpo e a alma dos/as negros/as no país.
1. Como as cotas raciais são implementadas nos concursos?
A Lei Federal n. 12.990/2014, que determinou a institucionalização das cotas raciais em concursos públicos, prevê, logo em seu artigo 1o, a reserva de 20% das vagas aos indivíduos autodeclarados negros (pretos e pardos) nos certames públicos para cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração federal.
De todo modo, para que o percentual definido pela Lei n. 12.990/2014 seja efetivamente aplicado, a quantidade total de postos laborais, para um mesmo cargo e/ou área, previstos quando da abertura do edital do concurso público, deve ser maior que ou igual a três. Isso significa que um edital que preveja apenas uma ou duas vagas para um mesmo cargo/área sequer possibilita a operacionalização da reserva de vagas pelo critério racial, muito embora, ao longo do prazo de vigência do concurso, não sejam incomuns os casos de convocação e posse, para um mesmo cargo/área, de um quantitativo maior de candidatos/as em vagas excedentes, originalmente não previstas quando da divulgação do edital.
Além disso, a Lei n. 12.990/2014, em seu artigo 3o, prevê o direito de os/as candidatos/as negros/as concorrerem, de forma concomitante, tanto para as vagas reservadas quanto para aquelas voltadas para a ampla concorrência. Na hipótese de um/a candidato/a negro/a obter um desempenho que o/a classifique nas vagas da ampla concorrência, a legislação prevê que esse/a candidato/a seja convocado/a na lista geral da ampla concorrência - e não na lista específica de candidatos/as aprovados/as nas vagas reservadas pelo critério racial.
A partir da vigência da Lei n. 12.990/2014, as autarquias públicas federais, além de serem obrigadas a institucionalizar os procedimentos técnicos para a observância das cotas raciais, também deveriam, ao longo da vigência de seus concursos públicos, nomear os/as candidatos/as aprovados/as, respeitando critérios de alternância e proporcionalidade entre as listas de pessoas aprovadas na ampla concorrência e nas vagas legalmente reservadas (BULHÕES, 2020).
Outro aspecto que merece ser sublinhado acerca da legislação em análise é o fato de que o referido dispositivo legal prevê um prazo de dez anos de vigência, a partir da data de sua publicação. Portanto, no ano de 2024, a Lei n. 12.990/2014 perderá os seus efeitos, de modo que o Congresso Nacional, a depender das circunstâncias do momento, deverá debater a matéria.
Desde os primeiros anos de vigência da lei de cotas raciais em concursos, houve uma série de embates provenientes de segmentos da sociedade contrários a esse tipo de política pública, não raro argumentando que a institucionalização das cotas raciais em concursos poderia ferir dispositivos constitucionais, sobretudo no que se refere aos princípios da impessoalidade e eficiência na administração pública, previstos no artigo 37 da Constituição Federal (BRASIL, 1988).
Diante deste cenário, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi instado a se pronunciar sobre o tema, de modo que, no ano de 2017, por meio do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) n. 41, a mais alta instância do judiciário brasileiro referendou, por unanimidade, o caráter constitucional da Lei n. 12.990/2014, destacando que as cotas raciais em concursos perfazem medida de justiça social que em nada ferem os princípios de impessoalidade e eficiência na administração pública, uma vez que, em última análise, o expediente do concurso público de provas e títulos, com critérios e conteúdos isonômicos, permanece vigente para a completude dos pleiteantes a um cargo público - por intermédio do direito às vagas legalmente reservadas ou não.
No julgamento da ADC n. 41/2017, o STF sugeriu encaminhamentos para a adequada implementação da Lei n. 12.990/2014, sublinhando quatro diretrizes fundamentais:
(i) os percentuais de reserva de vaga devem valer para todas as fases dos concursos; (ii) a reserva deve ser aplicada em todas as vagas oferecidas no concurso público (não apenas no edital de abertura); (iii) os concursos não podem fracionar as vagas de acordo com a especialização exigida para burlar a política de ação afirmativa, que só se aplica em concursos com mais de duas vagas; e (iv) a ordem classificatória obtida a partir da aplicação dos critérios de alternância e proporcionalidade na nomeação dos candidatos aprovados deve produzir efeitos durante toda a carreira funcional do beneficiário da reserva de vagas (STF, 2017, p. 2-3).
Para além do aspecto constitucional, os argumentos normalmente mobilizados por críticos da política de cotas raciais também dão conta de uma suposta fragilidade da fiscalização quanto ao efetivo pertencimento racial dos postulantes às vagas reservadas, uma vez que, logo nos primeiros anos de vigência da Lei n. 12.990/2014, bastava uma autodeclaração do candidato atestando a sua autopercepção como negro/a para que fizesse jus às cotas raciais nos concursos.
Nesse sentido, a fim de dirimir possíveis fraudes na implementação das cotas raciais, foram institucionalizadas, a partir de 2016, as chamadas “bancas de aferição fenotípica” ou “bancas de heteroidentificação”, conforme procedimentos disciplinados pela Orientação Normativa n. 3/2016 e pela Portaria Normativa n. 4/2018, ambas do então Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (BRASIL, 2016; 2018).
Em suma, as comissões de heteroidentificação perfazem instâncias compostas de cinco membros, distribuídos equilibradamente por critérios de gênero, pertencimento étnico-racial e naturalidade, de modo que a função dessas comissões é conferir tão somente os aspectos relativos ao pertencimento racial do candidato a uma vaga reservada pela Lei n. 12.990/2014, de forma a evitar o possível cometimento de fraudes.
Dados sistematizados em nota técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), elaborados por Silva e Lopez (2021), apontam que a composição racial dos servidores públicos civis da União mudou sensivelmente em 2020, comparativamente aos dados de duas décadas atrás. Ainda segundo a mesma fonte, no ano de 2000 os servidores públicos que se autodeclararam negros (pretos e pardos) eram 17% do total - percentual que subiu para 38% no ano de 2020, certamente em função dos efeitos da Lei n. 12.990/2014.
Estratificando as informações relativas à composição racial dos servidores públicos civis da União no ano de 2020, em específico, é possível apontar (SILVA; LOPEZ, 2021):
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Dos cargos de nível intermediário (que não exigem formação universitária), 43,9% eram ocupados por negros/as e 46,4%, por brancos/as. Nos cargos que requerem formação universitária, 27,3% são ocupados por negros/as e 65,1%, por brancos/as;
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Entre os/as servidores/as com nível superior, os/as negros/as recebiam, em média, 78% da remuneração dos/as servidores/as brancos/as que possuíam a mesma qualificação;
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A média salarial dos/as negros/as com ensino fundamental e ensino médio correspondia, respectivamente, a 87% e 85% dos ganhos médios dos/as servidores/as brancos/as com a mesma qualificação.
Portanto, os dados anteriores sugerem que a despeito de a lei de cotas raciais em concursos públicos ter possibilitado uma mudança - mesmo que muito aquém do desejado - na composição racial do funcionalismo público, ainda assim é crucial um esforço de aprimoramento da política pública em questão, em especial para dirimir eventuais lacunas na implementação da lei e, dessa forma, possibilitar que os indivíduos negros possam ocupar um repertório maior de cargos no funcionalismo público, sobretudo quando se consideram as funções com maiores níveis de remuneração, prestígio e poder decisório.
2. Lacunas na implementação das cotas raciais nos concursos
As lacunas identificadas na implementação das cotas raciais em concursos públicos são mecanismos que ocorreram - ainda que de forma não intencional - ao longo da vigência da Lei n. 12.990/2014 e que resultaram em barreiras para que um quantitativo maior de negros/as ocupasse os cargos públicos a partir de 2014, ao abrigo da lei de cotas raciais em concursos. Vale sublinhar que, no escopo deste artigo, as lacunas na implementação da Lei n. 12.990/2014 resultaram no descumprimento do percentual mínimo de 20% de vagas a serem destinadas às pessoas negras nos certames públicos.
Mello e Resende (2019), ao avaliarem a implementação das cotas raciais nos concursos públicos para docentes de 63 universidades federais brasileiras, detectaram que, de um universo de mais de 15 mil vagas abertas entre 2014 e 2018, menos de 5% desses postos laborais foram efetivamente reservados para pessoas negras - percentual, notadamente, muito inferior em relação aos 20% preconizados pela Lei n. 12.990/2014.
Já Bulhões e Arruda (2020), que avaliaram a implementação da lei de cotas raciais nos concursos para Técnico Administrativo em Educação (TAE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no período de 2014 a 2020, perceberam que, no geral, pouco menos de 17% das vagas para TAE foram preenchidas por negros/as, com as seguintes particularidades: 25,5% dos indivíduos que ocuparam os cargos TAE de nível C (que requerem formação de nível fundamental) eram negros/as, percentual que foi de 20,6% nos cargos TAE de nível D (que exigem formação de nível médio) e apenas 5,8% nos cargos TAE de nível E (que preconizam formação universitária).
Dentre os mecanismos que podem explicar a não observância do percentual mínimo de vagas que devem ser reservadas às pessoas negras (em especial nos cargos de maior remuneração e prestígio), é possível citar: (a) a ocorrência do fenômeno da segmentação de vagas, quando da elaboração do edital do concurso; (b) a não previsão de convocação posterior de candidatos/as negros/as em vagas excedentes; (c) a ausência de um padrão para a realização das convocações de candidatos/as aprovados/as na ampla concorrência e nas vagas reservadas; e (d) a carência de maior conhecimento e ciência quanto aos ditames fundamentais da Lei n. 12.990/2014. Essas lacunas serão discutidas de forma mais pormenorizada na sequência deste artigo, tamanha a importância delas para pensarmos os desafios futuros da política de cotas raciais em concursos, no campo da luta antirracista.
2.1 Segmentação de vagas
O fenômeno da segmentação de vagas ocorre quando, em um mesmo edital, há distintos cargos/áreas com uma ou duas vagas e, ao se avaliar os pré-requisitos para se concorrer a essas vagas, percebe-se um repertório de exigências muito homogêneo, sobretudo no que tange à área de formação dos potenciais candidatos. O aspecto que merece aqui ser sublinhado é o fato de que uma oferta agregada das vagas para cargos/áreas com pré-requisitos similares e/ou sensivelmente próximos certamente poderia ensejar o “acionamento” mais regular da Lei n. 12.990/2014, uma vez que, de forma mais corriqueira, a quantidade agregada de vagas ultrapassaria as três unidades preconizadas na legislação.
Em uma avaliação dos editais para o cargo de Técnico Administrativo em Educação (TAE) da UFRJ, Bulhões e Arruda (2020) perceberam que, de 182 cargos/áreas cujos concursos foram abertos entre 2014 e 2018, em 41 deles (22,5% do total) foram identificados indícios de segmentação de vagas, sobretudo em virtude do turno de trabalho e/ou do tipo de público a ser atendido pelo/a potencial servidor/a, apesar de os cargos possuírem as mesmas exigências, principalmente em termos de formação acadêmica e/ou técnica.
Mello e Resende (2019), que se detiveram na análise dos concursos para docentes de universidades federais, alertam que nesse tipo de cargo/área é mais corriqueiro que os certames sejam abertos com poucas vagas, não raro com exigências bastante específicas no que tange à titulação acadêmica do/a potencial candidato/a. De todo modo, ainda assim os autores apontam que as universidades analisadas na pesquisa pouco se esforçaram para aglutinar os cargos/áreas, de maneira a aplicar, de forma mais efetiva, a Lei n. 12.990/2014.
Outro aspecto, complementar ao fenômeno da segmentação de vagas, que dificulta o acesso de pessoas negras aos cargos públicos é a exigência de pré-requisitos muito específicos para que candidatos/as concorram a determinados cargos/áreas (ainda que haja vagas reservadas a negros/as para esses cargos/áreas). Nesse sentido, segundo Adriano, Vieira e Carvalho (2021), no concurso realizado pela Fiocruz, em 2016, tal expediente ocorreu, por exemplo, no cargo de “especialista em ciência, tecnologia, produção e inovação em saúde pública” que, a despeito de ser uma função técnica, exigia formação em nível de doutorado. No caso em específico, muito embora tenham sido reservadas duas vagas para negros/as, apenas um único candidato concorreu a essas vagas reservadas e, infelizmente, não logrou aprovação no concurso, tendo sido eliminado em uma das fases do certame.
2.2 Não previsão de convocação posterior de cotistas
É corriqueiro que os concursos públicos, quando da divulgação do edital, publicizem o prazo de vigência do concurso, que basicamente se refere ao período em que os/as candidatos/as aprovados/as no certame poderão ser convocados/as a ocupar uma vaga na administração pública. Muito embora as vagas excedentes não sejam previstas quando da publicação do edital, ainda assim elas surgem de forma corriqueira ao longo da vigência do concurso, em especial nos cargos/áreas que possuem significativa rotatividade.
Dito isso, o ponto que interessa para o escopo deste artigo é o fato de que nos cargos/áreas com uma ou duas vagas originalmente previstas em edital, não é possível a convocação de pessoas negras cotistas em vagas excedentes, uma vez que para esses cargos/áreas não se realizam os procedimentos técnicos (dentre os quais estão as bancas de heteoridentificação) para a elaboração de uma lista de cotistas negros/as aptos/as a ocuparem tais vagas excedentes.
Um caso sistematizado por Bulhões e Arruda (2020) que ilustra esse fenômeno ocorreu no cargo de “Médico - Clínico Medicina Interna”, no concurso n. 293/2016 da UFRJ. Originalmente, no edital, havia apenas uma única vaga prevista para esse cargo - logo, não se operacionalizou a reserva de vagas a negros e sequer foi elaborada uma lista de cotistas aprovados. Porém, segundo os autores, ao longo da vigência do edital foram convocados 28 candidatos aprovados na ampla concorrência para o cargo em análise. Assim, aplicando-se o percentual de 20% sobre as 28 convocações, tem-se que ao menos cinco pessoas negras poderiam ter sido convocadas para esse cargo.
É importante reiterar, conforme já apontado neste texto, que a recomendação do STF, no julgamento da ADC n. 41/2017, é que o percentual definido pela Lei n. 12.990/2014 deve valer para todas as fases do concurso - logo, é lícito supor que os 20% preconizados pela legislação devem incidir também para as vagas excedentes que surgirem ao longo do prazo de vigência do concurso e superarem as três convocações, para três vagas distintas, que é o mínimo que legalmente “aciona” a reserva de vagas pelo critério racial.
2.3 Carência de um padrão para as convocações
A inexistência de uma ordem padronizada para as convocações de candidatos/as aprovados/as em certos concursos públicos, seja na ampla concorrência, seja nas vagas reservadas pelo critério racial, é algo especialmente sensível e evidente nas vagas que surgem ao longo do prazo de vigência do concurso, em cargos/áreas que possuem significativa rotatividade e apresentam uma lista de cotistas negros/as aptos para serem convocados/as.
Um cargo/área que apresente, em edital, um quantitativo de vagas que “acione” a Lei n. 12.990/2014, naturalmente, irá especificar os quantitativos de pessoas que serão convocadas, tanto na ampla concorrência quanto nas vagas reservadas pelo critério racial. Porém, nas vagas excedentes que eventualmente surjam ao longo da vigência do concurso, percebe-se que as autarquias públicas usam critérios heterogêneos para conduzir as convocações, não raro desrespeitando a proporcionalidade preconizada na lei e, portanto, negligenciando a lista de cotistas negros em benefício da lista de aprovados/as na ampla concorrência.
Uma circunstância que revela os efeitos da inexistência de um padrão para a convocação de candidatos cotistas em vagas excedentes ocorreu com um dos autores deste artigo que, aprovado em quarto lugar na lista de cotistas negros/as em um concurso público federal, ainda assim não foi imediatamente convocado em substituição à candidata que ficou em terceiro lugar no certame, a qual, muito embora tenha sido nomeada, acabou por desistir formalmente da vaga antes da posse e efetivo exercício no cargo. Em substituição à supracitada candidata, a instituição nomeou uma pessoa da lista da ampla concorrência. Ao ser inquirida e “acionada” judicialmente quanto ao fato, a instituição alegou, em sua defesa, que a interpretação prevalecente na autarquia era a de que a mera nomeação (e não a posse e efetivo exercício) do/a candidato/a ensejaria a plena observância à lei - o que é uma interpretação deveras equivocada, a qual fere os propósitos fundamentais da Lei n. 12.990/2014 e que, a julgar pelas manifestações proferidas quando do julgamento da ADC n. 41/2017, afronta também as recomendações do STF.
Vale dizer que, para além da padronização dos processos de convocação de cotistas negros/as aprovados/as no concurso, é fundamental que o judiciário brasileiro emane entendimentos e jurisprudências que permitam maior segurança para as autarquias públicas e, em especial, para os/as candidatos/as que se submetem a um concurso público e carecem de amparo por parte das políticas públicas.
2.4 Necessidade de maior conhecimento quanto à Lei n. 12.990/2014
É notório o desconhecimento, por parte de vários segmentos da sociedade brasileira, quanto aos propósitos e às características das cotas raciais em concursos, ainda que a Lei n. 12.990/2014 já esteja em vigência há um tempo considerável. Neste particular, Barros (2015) aponta que os próprios beneficiários potenciais da lei de cotas raciais desconhecem as características da legislação e, em muitas circunstâncias, até evitam submeter-se aos ditames da lei de cotas raciais, movidos por um conjunto de informações desencontradas, por exemplo, a crença de que concorrer a uma das vagas reservadas pelo critério racial implica a exclusão da possibilidade de também concorrer às vagas da ampla concorrência (crença que não coaduna com o teor da Lei n. 12.990/2014).
Complementando a supracitada perspectiva, Bulhões (2020) entende que a política de cotas raciais em concursos públicos é cercada de estigmas, principalmente relacionados à crença - não raro pejorativa e racista - de que concorrer às vagas reservadas implica menor concorrência, sendo, dessa forma, mais fácil obter aprovação no certame. Dessa feita, é principalmente em função dessa crença que há tentativas constantes, em especial por parte de pessoas brancas, de tentar ilegalmente concorrer no certame pelo mecanismo das cotas raciais.
Ademais, Bulhões (2020) lembra ainda da dificuldade, manifestada por negros/as, em reconhecer a si próprios/as como sujeitos/as de direitos e, portanto, potencialmente beneficiários/as da política de cotas raciais em concursos. Em função disso, não é incomum encontrar pessoas que se autorreconhecem como negras e que, a despeito de terem ciência dos detalhes da Lei n. 12.990/2014, ainda assim não se julgam dignas de se valer desse direito.
Outro aspecto que merece vir à baila é a urgência de que os vários segmentos da sociedade - em especial, as pessoas que ocupam cargos de poder e de agência na administração pública - estejam cientes quanto à íntegra dos ditames da Lei n. 12.990/2014, até para que não sejam empreendidos mecanismos que infrinjam, mesmo que de forma não dolosa, o expediente das cotas raciais nos concursos públicos.
3. Desafios que cercam a política de cotas raciais em concursos
Os desafios que recaem sobre a política de cotas raciais em concursos públicos, em suma, referem-se a um conjunto de direcionamentos que, a despeito de serem, neste artigo, apresentados de forma exploratória, ainda assim perfazem caminhos potentes e promissores para que a administração pública crie mecanismos que superem e/ou ao menos coíbam as lacunas já constatadas no processo de implementação da Lei n. 12.990/2014.
A julgar pelos desafios sistematizados no Quadro 1, é possível inferir que boa parte das lacunas identificadas na implementação das cotas raciais em concursos poderia ser superada se o próprio teor da Lei n. 12.990/2014 e das recomendações do STF, quando do julgamento da ADC n. 41/2017, fosse respeitado de maneira plena e criteriosa, revelando um comprometimento das autarquias públicas com a pauta antirracista.
No que tange, em específico, aos desafios para evitar os processos de segmentação de vagas, é fundamental que sejam criados mecanismos, em especial quando da elaboração do edital dos concursos, para que as vagas sejam sempre aglutinadas, a menos que tal expediente implique flagrante afronta à legislação e/ou às funções que potencialmente serão desempenhadas pela pessoa que obtiver aprovação no certame.
Ainda no esforço de coibir a lacuna da segmentação de vagas nos concursos, é essencial que os mais variados atos da administração pública - incluindo a elaboração do edital de um concurso - passem pelo constante escrutínio da opinião pública, a qual exerceria, de forma ativa, a função de controle dos processos conduzidos pelos gestores públicos, exigindo maior transparência e publicidade dos atos públicos.
Vale ainda dizer que os concursos públicos carecem de maior simplificação, em especial no que tange aos pré-requisitos para se concorrer a certos cargos/áreas ou mesmo ao excesso de fases previstas no edital. Tal esforço de simplificação almejaria democratizar a possibilidade de que um contingente maior de pessoas - incluindo negros/as - possa se submeter ao concurso, sem que exigências específicas (sobretudo em termos de formação acadêmica) ou mesmo o excesso de fases do certame impossibilitem que um repertório mais plural de pessoas concorra às vagas (incluindo as reservadas pelo critério racial).
No que se refere à não previsão de convocação posterior de cotistas negros/as, é importante ponderar que esta lacuna poderia ser minimizada na medida em que fossem feitos os procedimentos técnicos para a elaboração de uma lista de cotistas negros aptos a serem convocados, ainda que o edital do concurso, originalmente, preconize apenas uma ou duas vagas para um mesmo cargo/área.
Vale frisar que a realização desses procedimentos técnicos (incluindo as bancas de heteroidentificacão) perfaz ato preventivo do poder público para que a política de cotas raciais seja plenamente respeitada e, portanto, valha para todas as etapas do concurso - e não meramente para o edital de abertura do certame. Muito embora a condução maciça dos referidos procedimentos técnicos implique custos para o erário público, ainda assim se entende que os benefícios sociais de tal prática poderiam ser maiores em relação aos custos, em especial para tentar corrigir distorções muito latentes e sérias, tal como é o caso do racismo estrutural que historicamente subalternizou os indivíduos negros no Brasil. Outro aspecto que merece ser realçado é o desafio relativo à publicização, no próprio edital do concurso, da previsão de convocação de cotistas negros nas vagas excedentes que, ao longo do prazo de vigência do concurso, superem os três postos laborais para um mesmo cargo/área.
Quanto à carência de um padrão para as convocações em vagas excedentes dos aprovados nos concursos, entende-se que tal lacuna poderia ser dirimida caso fosse elaborada e publicada, nos editais, uma sequência a ser respeitada quando das convocações dos/as candidatos/as, de modo a se obedecer a proporções de vagas a serem reservadas. Por mais que pareça óbvio esse aspecto, vale reiterar que a ausência de uma ordem para a realização das convocações é algo que gera muitas contestações, principalmente por parte das pessoas negras, as quais são alijadas do serviço público em função da não observância irrestrita dos direitos que lhes são conferidos pela lei de cotas raciais nos concursos.
Considerando, agora, a necessidade de maior (re)conhecimento quanto à Lei n. 12.990/2014, é importante pontuar a urgência de que sejam criados programas (tais como campanhas informativas em veículos de comunicação, por exemplo) que reforcem as características e a importância, no âmbito da luta antirracista, da lei de cotas raciais em concursos.
Por fim, entendemos ser relevante, no Brasil, um processo de letramento para as relações raciais que inclua a perspectiva das cotas e seus potenciais beneficiários. Em outros termos, isso significa dizer que é crucial criarmos mecanismos pedagógicos e educativos, os quais permitam que os indivíduos potencialmente beneficiários das cotas raciais efetivamente se reconheçam como sujeitos de direitos de tal política pública, acessando, dessa forma, as vagas reservadas nos mais diversos certames públicos, sem que estigmas e/ou preconceitos impeçam que essas pessoas se valham desse direito arduamente conquistado, o qual é imprescindível para as agendas antirracistas.
Considerações finais
Este artigo, além de apresentar as lacunas que cercam a implementação da política de cotas raciais em concursos, pretendeu também sinalizar um conjunto de desafios para que a operacionalização da reserva de vagas a negros/as seja aprimorada e, portando, auxilie na emergência e na consolidação de pautas - e, sobretudo, práticas - antirracistas na sociedade brasileira contemporânea.
É importante frisar a relevância da luta pela perenidade da política de cotas raciais no Brasil. Conforme se pontuou ao longo deste texto, as políticas de cotas que viabilizaram, ainda que em meio a críticas e empecilhos, a entrada de maior quantitativo de negros/as nas universidades e no serviço público irão expirar muito em breve, conforme prazo-limite de dez anos de vigência preconizado tanto para a Lei n. 12.711/2012 quanto para a Lei n. 12.990/2014. Nesse sentido, é crucial que a sociedade, de maneira geral, seja mobilizada a lutar pela continuidade e até pela ampliação do escopo das políticas de cotas raciais no Brasil.
Sabe-se que as pessoas negras reconhecem e sentem, na pele, no corpo e na alma, as feridas provocadas pelo racismo, que perfaz um sistema de opressão forjado ao longo de séculos de desumanização dos corpos negros no Brasil. Logo, não seria ao longo de dez anos (conforme preconizado no texto da lei de cotas) que se repararia e corrigiria uma distorção naturalizada ao longo de séculos de história. Portanto, é fundamental que as cotas raciais e todo o repertório de políticas públicas e práticas antirracistas sejam permanentes e efetivos no país.
Não obstante, é relevante também apontar que existe uma crença - notadamente equivocada - de que a luta pela emergência e pela manutenção de pautas antirracistas é dever somente dos movimentos sociais negros no Brasil. Tal perspectiva é, evidentemente, errônea. Toda a sociedade, em especial as pessoas brancas, pode (e idealmente deve) engajar-se na defesa das políticas públicas voltadas à população negra para que, dessa forma, o país possa caminhar no sentido da plena justiça social, de maneira irrestrita, independentemente do pertencimento racial e identitário dos indivíduos.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Ago 2022 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2022
Histórico
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Recebido
16 Fev 2022 -
Aceito
26 Maio 2022