Open-access Vida contada, vida vivida: racismo e sofrimento psíquico

A life told, a life lived: racism and psychic suffering

Resumo:

Este artigo buscou investigar as experiências das pessoas negras acerca do racismo e sofrimento psíquico. Pesquisa qualitativa, na qual se realizaram 9 entrevistas, analisadas sob a perspectiva da fenomenologia. Os resultados mostram a difícil arte de ser negro; humilhação e silenciamento; depressão. Numa perspectiva analítica, a realidade histórico-social negra produz sofrimento psíquico, e, ao mesmo tempo, a necessidade de romper com o silenciamento e fortalecer a identidade negra.

Palavras-chaves:  Racismo; Sofrimento psíquico; Depressão

Abstract:

This paper aimed to investigate black people’s experiences regarding racism and psychic suffering. Qualitative research, in which 9 interviews were conducted. Analyzed from a phenomenological perspective. The results show the difficult art of being black; humiliation and silencing; depression. From an analytical perspective, the black socio-historical reality produces psychic suffering and at the same time the need to break its silencing and strengthen the black identity.

Keywords:  Racism; Psychic suffering; Depression

Introdução

Os/as negros/as capturados/as de seus territórios foram escravizados/as, explorados/as, discriminados/as e excluídos/as, sob a égide da violência e privação. Tudo lhe foi retirado, suas famílias, tradições, culturas, nomes, religiosidades, e foram alienados da propriedade sobre terras e sobre o próprio corpo, pontos fundantes do racismo estrutural (Prestes, 2013).

O racismo estrutural se refere à totalidade de maneiras pelas quais as sociedades promovem a discriminação racial, seja no acesso à habitação, na educação, no emprego, na renda, na assistência social, na saúde, na segurança e, até mesmo, na mídia (Bailey et al., 2017). É o racismo produzindo um sistema de ideias que o perpetuam (Almeida, 2019), vivenciado por pessoas negras em fatos, acontecimentos, percepções, emoções e sentimentos, ou seja, os conteúdos da vida real, como trabalho, saúde, educação, entre outros, que se impõem ao negro, e conteúdos subjetivos, como emoções, sentimentos e desejos.

As pessoas negras, como ser-no-mundo, existem em relação com o outro, compreendendo as suas experiências, atribuindo-lhes significados. Contudo, quando em sua cotidianidade vivenciam a angústia sob a forma do racismo estrutural, fica estabelecido o que Bento (2014) denomina de desconforto material e psíquico.

Racismo é um processo que se constitui na subjetividade de indivíduos, cuja consciência e afetos estão, de algum modo, conectados com as práticas sociais que mantêm a desigualdade racial de forma contínua, balizada pela brutalidade do racismo sofrida no dia a dia no corpo (Amar, 2005), que limita ou impede o pleno desenvolvimento humano das pessoas negras.

É ideológico, complexo e de manifestações globais que atribui características e significados sociais negativos a determinados grupos e seus padrões de diversidade, desencadeando tratamento desigual (Damasceno; Zanello, 2018; Ignácio; Mattos, 2019), tornando-se uma doutrina que afirma a superioridade de determinados grupos sobre outros e designa práticas discriminatórias.

Os efeitos do racismo podem ser apresentados em sinais e em sintomas, tais como dificuldades de concentração, queixas somáticas e sentimento de inutilidade, que, nem sempre, a pessoa associa às experiências de humilhação (Silva, 2017). As manifestações racistas explícitas ou veladas comunicam desprezos raciais hostis, depreciativos e negativos que interferem significativamente na saúde física e mental da população negra. A construção de um imaginário negativo sobre o negro solapa sua identidade e danifica sua autoestima, assim como pode provocar angústia (Bento, 2014).

A vida das pessoas negras está permeada por uma série de situações relacionada com o racismo estrutural. As consequências do racismo brasileiro marcam as subjetividades das pessoas negras, uma vez que, submetidas a uma existência de preconceitos, humilhação e constrangimento, podem desencadear processos desordenados no componente psíquico (Fernandes, 2007).

Ainda são poucos os estudos sobre racismo e sofrimento psíquico na perspectiva das pessoas negras. Por esse motivo, esta pesquisa teve por objetivo investigar o racismo e sua relação com sofrimento psíquico das pessoas negras.

Método

A abordagem fenomenológica utilizada descreve o significado das experiências vividas por um grupo acerca de um fenômeno (Creswell, 2010). É buscar a compreensão do fenômeno “ser negro” a partir da história de vida. A fenomenologia não propõe a essência pronta das coisas, mas afirma que essa essência deve ser encontrada através da experiência vivida, aqui-agora (Ribeiro, 2011). A análise fenomenológica é uma proposta que implica respeito total pelo modo de ser do outro. Desse modo, a proposta é entender como a fenomenologia colabora na investigação do mundo vivido pelos negros e negras, com uma descrição de situação vivida no cotidiano, como elas se manifestam e os significados da experiência.

Utilizar a fenomenologia é recusar pressupostos ou preconcepções, levando à suspensão de qualquer julgamento. A finalidade é trabalhar com a descrição do fenômeno do racismo e do sofrimento psíquico, desvelando a multiplicidade de fatores e de cenários.

O trabalho foi realizado na cidade de Ceilândia, Região Administrativa do Distrito Federal, mais especificamente na comunidade Sol Nascente, uma das maiores favelas da América Latina. Os participantes da pesquisa: moradores residentes em Ceilândia, Sol Nascente e Distrito Federal (DF). Critérios de inclusão: homens e mulheres autodeclarados negros, acima de 18 anos, que aceitaram participar da pesquisa.

A seleção dos participantes se deu por conveniência, pois eram pessoas indicadas por colegas que estavam no cenário da pesquisa. Foram selecionadas nove pessoas, sendo elas cinco mulheres e quatro homens que se autodeclararam negros, compartilhando características particulares e potencial para fornecer dados ricos, relevantes e diversos, pertinentes à questão de pesquisa. Os participantes da pesquisa sabiam que o pesquisador tinha trabalho com as famílias da comunidade do Sol Nascente, o que facilitou a adesão ao estudo.

Instrumento de pesquisa, a entrevista semiestruturada e não dirigida permite, ao pesquisador, obter os dados de forma mais flexível, baseada em parâmetros com profundidade, evitando-se perguntas que possam influenciar respostas para o que se tem em mente. A entrevista foi realizada em sala separada, disponibilizada por uma organização não governamental (ong) do Sol Nascente, preservando a identidade e o sigilo dos participantes. A entrevistadora é mulher, pesquisadora, terapeuta, negra e tem experiência com a temática de saúde mental da população negra e possui projetos no local onde foi realizado o estudo, facilitando a adesão dos participantes na pesquisa.

As entrevistas foram realizadas entre os meses de agosto e novembro de 2019, com duração aproximada de 40 minutos, e buscando-se fazer poucas interrupções. Considerou-se a amostragem por saturação teórica considerada uma ferramenta conceitual frequentemente empregada nos relatórios de investigações qualitativas. É usada para estabelecer ou fechar o tamanho final de uma amostra em estudo, interrompendo a captação de novos componentes (Fontanella et al., 2008).

Aos participantes da pesquisa foi solicitado que descrevessem sobre a experiênciade ser negro. Os depoimentos foram registrados em um gravador digital e foram transcritos minuciosamente, captando as formas expressivas por meio de comunicação verbal.

Na análise dos dados, as transcrições foram lidas, relidas individualmente e compartilhadas com os participantes. Em um segundo momento, foram identificadas, em cada entrevista, as unidades de significação que expressavam o sofrimento psíquico no modo de ser negro no mundo. Após a seleção das unidades de sentido em cada entrevista, essas unidades foram relacionadas, buscando pontos de convergência que pudessem formar uma estrutura e revelar o sentido do sofrimento psíquico quanto a ser negro.

Foi interpretado e analisado cada um dos discursos individualmente e, ao final, articulado à própria compreensão a respeito do depoimento, quando se obtém todas as unidades de significado de cada um dos discursos.

A análise dos dados foi baseada no método fenomenológico de investigação em Psicologia descrita por Giorgi e Sousa (2010), enquanto redução fenomenológica-psicológica. Os autores seguem princípios basilares da redução fenomenológica-psicológica husserliana - considerando a epoché; a análise eidética de variação livre imaginativa - para a procura da essência do fenômeno.

As etapas seguiram o que é estabelecido por Giorgi e Sousa (2010). A primeira etapa de sentido único, ou estabelecimento de sentido geral, é alcançar o significado das experiências vividas pelo sujeito como descrevem ou exatamente como se manifestou à pessoa. Considerando esta enquanto uma noção fenomenológica-existencial. No segundo momento, ocorreu a redução onde há apropriação da realidade dada e suspensão de juízos passados para possibilitar visão aberta a novas perspectivas.

Foram elencadas três unidades de significados na perspectiva dos próprios participantes. Seguindo Giorgi e Sousa (2010), o terceiro momento de identificar e nomear percepções, experiências e sentimentos expressos nos depoimentos. Foi estabelecido diálogo crítico com as narrativas descritas e aqui o significado da experiência aconteceu que expressaram de forma explícita a problematização dos fenômenos emergidos. Quarto momento ocorreu nessa reflexão a síntese descritiva da concretude intersubjetiva da pesquisa em estrutura geral da experiência vivida.

Desse modo ocorreram as análises desta pesquisa. O fenômeno foi apontado a cada relato descrito e fora encontrado um sentido único. Após leituras exaustivas, foi extraído conteúdo expressivo da vivência descrita e realizada assim a redução fenomenológica.

O estudo obedeceu às normas e diretrizes que regulamentam a pesquisa que envolve seres humanos do Conselho Nacional de Saúde, Resolução n. 466, de 12 de dezembro de 2012. O projeto foi aprovado pelo Parecer 2.572.651. CAAE: 83195617.4.0000.5540. As participações dos sujeitos foram voluntárias, tendo como critério a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Todas as informações foram mantidas em sigilo, sob os critérios da ética em pesquisa. Preservou-se o anonimato e os participantes foram identificados por códigos - E1, E2, E3.

Resultados e Discussão

Foram entrevistadas 9 pessoas, dividindo-se entre 5 mulheres e 4 homens, com idades entre 18 e 43 anos, sendo 2 homens solteiros e 2 casados, e 1 mulher solteira, uma casada e as outras 3 separadas. Todos se autodeclararam como negros e negras, desempenhavam atividades diversas e, quanto à escolaridade, 8 pessoas possuíam nível médio e 1 mulher possuía nível superior. Entre os homens, 1 se autodeclarou pobre e 3 se consideraram classe média baixa. Por outro lado, as 5 mulheres se identificaram como classe média baixa.

A análise do diálogo está relacionada com a fenomenologia, onde as experiências foram analisadas e interpretadas. Em cada depoimento, depois de identificá-los individualmente, elencamos as unidades de significado, ou seja, trechos do discurso que correspondem à inquietação do pesquisador.

A Difícil Arte de Ser Negro

A dificuldade de se relacionar com o mundo pautado na brancura exige que as pessoas negras adotem diferentes posturas, na tentativa de sobreviver aos ataques permanentes por serem negras. A relação com o cotidiano é perturbadora, marcada pelos olhares do branco e pela sensação de ameaças permanentes ao seu corpo negro. Fanon (2020), ao discorrer sobre a experiência vivida do negro, coloca a vivência do ser objeto como elemento principal, onde o olhar do branco tem um poder determinante de fixá-lo.

Eu entro dentro do ônibus, e o ônibus vai enchendo, o ônibus vai enchendo, o ônibus vai enchendo… Às vezes, só tem um lugar ali ao meu lado, mas ninguém senta. Aquilo vai começando a botar na sua cabeça que é porque eu estou ali sentada, né?! É porque eu sou preta. É aquilo que vem. É esse sentimento que vem: o preconceito. Aí, ontem, aconteceu isso dentro do ônibus: o ônibus lotado e todo mundo em pé, e eu lá em um lugar sentada, eu fiquei…, mas ali, ao meu lado, estava um sol danado, esse lado todinho estava de sol, e só quem queria enfrentar o sol sentou, mas acho que ninguém queria sentar. Aí veio um homem, um homem branquinho e disse assim: “Por que que não tem ninguém sentado do seu lado?”. Aí eu falei alto: “Ah é porque eu sou preta, né?!. Ninguém quer sentar perto pra não se misturar, ficar retinto e se misturar a cor”. Pode ser loucura da minha cabeça, né? (E6)

Dentro desse universo de terror, o corpo negro vivencia ameaças. Por mais que tais ameaças racistas não se cumpram, o pavor não desaparece. Para Nogueira (2017), ele traz, no corpo, o significado que incita e justifica para o outro a violência racista, seja ela explícita ou velada. Yancy (2020) propõe a noção de “corpos confiscados” para se referir a encontros disruptivos e violadores sofridos pelo corpo negro em espaços sociais.

As ameaças racistas parecem descabidas. Todavia, o sentimento é mais forte, como se não houvesse nada que separasse o real do imaginário. É loucura da minha cabeça? Pergunta que remete à Nogueira (2017) quando situa que o racismo é um devir interminável enquanto possibilidade gestual, seja de natureza física ou psíquica, que para um negro é uma angústia que se fixa na verdade exterior e se impõe inexoravelmente.

O informante E2 reconhece que a racialização molda o modo como percebemos uns aos outros e como ficamos em desvantagem. Ele relata a violência do racismo e a angústia pela qual passa quando tenta lidar com a situação. A ausência de pertencimento produz um efeito de estranhamento, um não-lugar. Por isso, quando é aprovado na universidade, não consegue cursar.

A pessoa fica em desvantagem. Aquela agressão do racismo deixa você retraído. Eu passei na universidade federal daqui, e não fui me matricular. Sei lá. Eu não fui. Não cheguei a fazer a matrícula. Não sei o que foi, talvez um bloqueio, pois a universidade não parecia ser para mim. (E2)

Eu queria ser veterinária, porque eu sou apaixonada por bicho. Então, eu fui, tentei, me inscrevi. Meu marido ficou muito feliz porque eu passei. Eu falei: “Gente, eu passei! Eu passei na faculdade!”. Aí eu cheguei na faculdade paga, porque não foi faculdade pública, não, foi faculdade que eu estava pagando. Cheguei na faculdade e não me senti bem. Eu achei o clima assim meio de colega, de professor, eu achei… Larguei. (E1)

A identidade negra se relaciona de forma direta com o mundo branco, o que pode ocasionar problemas de pertencimento e existência, ocasionando sofrimento psíquico. Diante do ideal branco, o corpo negro pode ser vivido como uma ferida aberta. É um sofrimento que impõe, ao negro, o desejo de introjeção ideal da brancura. Isto é, o desejo do negro é a brancura do branco: “Eu queria ser branco, pois não sofreria com a polícia, as pessoas não mudariam de passeio quando me vissem passando. Não teriam medo de mim. Nós não temos lugar”. (E4)

Bernardino-Costa (2016) cita que o argumento central desenvolvido na obra de Fanon é a epidermização do racismo, pois, ao se deparar com o racismo, o negro introjeta um complexo de inferioridade e inicia um processo de autoilusão, buscando falar, pensar e agir como branco, até o dia em que se depara novamente com o olhar fixador do branco. Nesse momento, as máscaras brancas caem, pois onde quer que vá, o preto permanece um preto. Para Souza (2020), o desejo pela identidade branca é fruto de coação que provoca sofrimento.

Na minha época, meu pai e minha mãe não me prepararam, né?! Então, a gente acabava não sendo bem resolvida. A gente queria ser da pele mais clara, queria ter o cabelo liso, né?! A gente não queria ser daquela cor. (E3)

Para Nogueira (2017), à medida que o negro depara com esfacelamento de sua identidade negra, ele se vê obrigado a internalizar um ideal de ego branco. Ou seja, ajustar a personalidade preta à personalidade branca. Nobles (2006) relata que o fracasso desse ajuste é visto no aumento das taxas de suicídio entre as pessoas pretas, bem como na crescente incidência de depressão e descontentamento geral.

Experiência de Humilhação e Silenciamento

Os relatos de humilhações são sempre precedidos pelos sentimentos de vergonha. Guajelac (2006) afirma que a vergonha é um sentimento doloroso e sensível sobre o qual é preferível não falar. Ela engendra e silencia o fechamento em si até a inibição. É preciso circunstâncias bem específicas para ousar dizer ou ousar contar.

Eu me sinto… Toda vez que uma pessoa chega assim e fala “aquela preta”, eu me sinto… é… hm… Um toco preto no chão. Eu me sinto mal, eu me sinto muito mal, tanto que tem uma paciente que sempre que chegava aqui, ela falava, e o pessoal escutava, mas eu nunca tomei nenhuma atitude. Ela falava, mas eu sempre levava. Eu sempre deixava. Um dia, ela falou que preto não teria que estar trabalhando aqui, que tinha que estar trabalhando num cemitério carregando defunto, que era o que ela tinha na concepção da cabeça dela, pois, pra ela, preto é isso. Preto é escravo e preto tem de ser isso. (E1)

Ao descrever sua aflição sobre a forma como a chamam, é quase palpável a imagem viva que provoca uma reação imaginativa para quem ouve. A recordação da entrevistada foi traduzida em sinais e sintomas que nem ela mesma reconheceu especificamente no momento em que se refere a se sentir um toco no chão, objeto inanimado e sem valor, abstendo-se de agir diante do racismo vivenciado. É ter que criar arranjos para não entrar em contato com a dor produzida por sua experiência de humilhação e discriminação.

Outro aspecto que chama atenção é a abordagem policial de homens pretos. A cor da pele é um fator determinante na decisão da abordagem policial, uma violência perpetrada pela polícia, direcionada aos homens negros (Amar, 2005). Preto parado é suspeito, correndo é ladrão. Ou seja, homem negro é associado à violência e à periculosidade.

Uma vez, fui a um centro religioso com meu irmão, e saímos tarde para pegar o ônibus. Corremos para pegar o ônibus e fomos abordados pela polícia, tipo de abordagem que há um excesso, e a gente vai convivendo e tentando superar. (E2)

A dificuldade é falar sobre o racismo, uma ferida aberta e cotidianamente aprofundada, que muitas vezes alguns não querem compartilhar e se silenciam. Oracy Nogueira (2007), sociólogo brasileiro, diz, sobre esse silêncio, que “em casa de enforcado não se fala em corda”.

E isso a gente acabava guardando para a gente, né?! A gente não falava nem para minha mãe e nem para o meu pai. Mas, assim, eu acho que se eu for conversar com todas as minhas irmãs, sendo 5 mulheres e 1 homem, todos nós sofríamos na escola, entendeu?! Principalmente naquela época. Hoje, ainda tem, mas é um pouco disfarçado. Naquela época, as pessoas eram muito ignorantes, né?! E a gente sofria muito por ser preto. (E3)

Experiência Traumática: Depressão, Medo e Sofrimento

A experiência do corpo negro produz impressões nas subjetividades. Elas falam dele e socorrem-se das palavras que melhor exprimem as suas experiências de constrangimento, humilhação e discriminação. Procuram conferir sentido ao que parece, muitas vezes, identificada como receios, medos, mágoas, uma dor identificada na alma, um sintoma que seja fruto do racismo contínuo desde o primeiro momento que o negro chega ao mundo.

Para Freud (1911/1996), os sintomas nem sempre resultam de um único acontecimento, mas, na maior parte dos casos, de múltiplos traumas, frequentemente análogos e recorrentes. O sintoma é o modo de ser impregnado por uma determinada experiência, que incide sobre um corpo que, além de ter história, é marcado culturalmente.

Adoece, adoece a sua alma, adoeceu seu... Adoece a alma, adoece... é a alma. Minha alma é dolorida, tanto que antigamente eu me sentia tão feliz de trabalhar. Às vezes, eu entro aqui dentro e tenho vontade de chorar. Eu olho, chego ali, sento, penso e fico querendo chorar, sabe?! Aquilo que, por dentro, sabe? Eu me sinto assim. Dói dentro. O racismo dói dentro da alma. Eu tenho certeza de que dói dentro da alma de um preto. Teve um dia que eu estava falando para mim mesmo que estou precisando procurar um psicólogo, porque eu preciso conversar com alguém, por ter algum preconceito dentro da minha cabeça. Eu estou precisando… (E1)

Para Vannuchi (2017), o trauma do racismo em carne viva silencia, grita e chora. São fenômenos experienciais difíceis de nomear e renomear por várias razões, uma vez que permanecem dentro dos limites da subjetividade, além do sofredor se sentir aprisionado em sua dor, sozinho e incapaz de se comunicar. O racismo gera desconforto.

Ah, a gente acaba ficando chateada, né?! A gente fica chateada quando a gente é mais nova. A gente fica, entendeu?! Mas, assim, não aquele sofrimento, aquela coisa de ficar sem comer, com a depressão, mas a gente fica chateado, entendeu?! Porque a gente tem sentimentos. A gente tem coração, não é verdade?! (E3)

Eu me sinto magoado, porque tem gente que quer desfazer do preto, e não pode ser assim. Não, não pode. Tem de ser igual. Tem gente que quer desmoralizar o outro porque é preto, porque o cabelo é ruim, porque o cabelo é não sei como. (E4)

O racismo é devastador, atingindo, em cheio, a sua identidade física e psíquica. O uso da dicotomia “bom ou ruim” é uma extensão das dicotomias históricas regidas pelo preto e branco, africano e europeu, selvagem e racional. Na história da sociedade brasileira, o cabelo afrotexturizado é relacionado à ideologia de inferioridade. Os padrões hegemônicos de beleza estão associados à branquitude.

O racismo produz marcas do ataque vivido continuamente, ainda que a pessoa não saiba como nomear o que está acontecendo. O racismo brasileiro é difuso, sutil, evasivo, camuflado e silenciado em suas expressões e manifestações (Munanga, 2017), daí a dificuldade do entrevistado em se defender. A acusação, basicamente, é por ser negro.

É uma carga emocional pesada e dentro da sociedade é complicado. Porque falam só de coisas depreciativas. É desigual. Porque você não tem como se defender. Porque você não sabe do que está sendo acusado e de qual é a acusação. Não tem como levantar a cabeça, pois tem receio e tem medo. (E2)

Os negros vivem um apartheid psíquico, uma segregação silenciosa. Podem ser conscientes das implicações histórico-políticas do racismo, mas isso não quer dizer que não seja afetado pelas marcas deixadas na sua psique (Nogueira, 2017).

O psiquismo humano se desenvolve através das relações sociais, que são continuamente co-construídas a partir de interações da pessoa com o seu meio. A compreensão do ser humano não pode ser reduzida a um único aspecto (Costa, 2003). É preciso considerar sua complexa multidimensionalidade, que inclui o fator racial. O contato com a brutalidade do racismo insiste em colocar o negro, segundo Nogueira (2017), como não merecedor, além de não reconhecer suas conquistas como legítimas.

É claro que a gente fica triste e abalado, pois isso envolve muitas questões na nossa vida, né, de achar que a gente não pode, de achar que a gente não vai conseguir ser alguém. Alguém que eu falo é na questão de estudos. Então, é ruim, né?! Porque, de certa forma, a gente se sente excluído de tudo aquilo que está acontecendo. (E5)

O racismo potencializa o quadro de sofrimento dos negros, pois a discriminação pode gerar tristeza, acabar a esperança e a motivação de vida. O preconceito racial aprisiona energias sociais e significativas. Hordge-Freeman (2020) afirma que a pessoa tratada baseada no seu fenótipo pode levar a ter sentimentos de inutilidade e, assim, moldar a autoestima.

Na abordagem que aqui apresentamos, procuramos deixar claro que o sofrimento psíquico não pode ser compreendido sem que se remeta ao contexto do racismo estrutural. As narrativas sobre o racismo retratam os sofrimentos vivenciados, e nos lembram que somos jogados em um mundo racializado permeado por um passado e um presente de exclusão, preconceito e discriminação. Como Fanon (2020) observa muito bem em sua análise, o racismo desorienta, desnorteia e obnubila. Provoca um sentimento de humilhação e vergonha por ser negro. “Quando me amam, dizem que o fazem apesar da minha cor. Quando me detestam, acrescentam que não é pela minha cor… Aqui ou ali, sou prisioneiro do círculo infernal” (Fanon, 2020, p. 109).

Tosta e Alves (2013) afirmam que as relações étnico-raciais no contexto social brasileiro são permeadas, sim, de complexidades e ambiguidades, uma vez que o processo de afirmação da negritude não é simples, e um dos motivos para isso são as representações fortemente negativas que foram construídas em relação ao negro, culminando com sentimento de inferioridade. Porém, só há complexo de inferioridade após um duplo processo: inicialmente, econômico; em seguida, pela interiorização dessa inferioridade (Fanon, 2020). Bernardino-Costa (2016) diz que esse é o drama que Fanon observa em Pele negra, máscaras brancas: um mundo dominado econômica e politicamente pelos brancos, em que os negros, destituídos de resistência ontológica, não conseguem estabelecer um sistema de representação capaz de gerar resistência ao sistema de representação dominante.

Tal como salienta hooks (2021), em uma sociedade em que a supremacia branca prevalece, as vidas das pessoas negras são permeadas por questões que resultam na interiorização do racismo e de um sentimento de inferioridade e, para acabar com a inferioridade, precisamos romper as barreiras da negação que escondem a profundidade da auto-aversão negra.

As narrativas destacadas dão voz às experiências racistas traumáticas vivenciadas cotidianamente baseada na branquitude. Hordge-Freeman (2020) escreve que essas experiências são internalizadas não apenas como feridas, mas como traumas recorrentes. A diferenciação fenotípica vivenciada pode iniciar uma trajetória de sofrimento. Para reparar tal dano, os esforços devem ser direcionados para construir estratégias que evitem o silenciamento e que colaborem no enfrentamento ao racismo.

Lorde (2019) nos diz que fomos socializados a respeitar mais o medo do que nossas necessidades de linguagem e significação, e, enquanto esperarmos em silêncio, o peso desse silêncio nos sufocará. “É necessário romper com o silêncio: O silêncio fere, afasta, arde, corta, esmaga, oprime, desgasta, sangra, grita… grita… Ai… O silêncio, faz um barulho imenso!” (Adún et al., 2014).

Considerações finais

O silenciamento diante do racismo é um indicador de sofrimento psíquico que interfere no bem-estar, na autoestima e ainda provoca o sentimento de inferioridade nas pessoas negras. Nesse sentido, temos como imperativo pensarmos em estratégias de cuidado que considerem a realidade do racismo e seu efeito na construção da subjetividade, bem como o desenvolvimento de intervenções que possibilitem romper com o silenciamento para que as pessoas negras possam se afirmar e existir. Cabe aos profissionais, que atuam neste campo, ajudá-las a acessar a possibilidade de fortalecer sua identidade no que diz respeito à valorização de sua história e vida. Diante de tantas experiências dolorosas, o acolhimento e a instrumentalização sobre a temática étnica-racial podem demarcar um divisor na construção da identidade negra, aumentando a capacidade psíquica de reflexão e melhorando a relação consigo mesmo e com o outro.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2022
  • Aceito
    28 Jul 2023
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